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Inpresio no Bras dezembro ce 2010 Copyright © by Cames Nerd, 2008 Mare ae Pilani rida por Frédéne Gros (Os direitos dest oligto petencem a E Reaagses Eator, Lara Distbidor ids {Ca Post 45291 “01010970 So Palo SP Tee (11) 5572 5368 eteealzacoes comb -wwerctzicoescombr Bi Eihon Manoel de Ove iho Grr Be Aen Peo (Cha Fit Marna Castano apc cet gifs - ‘Mausico Nisl Gongaes Eso Pages ins sigs Layols Reservados oles os dion desta obra, Poi ta € quaker reproduc det edigto por qualquer mio ou forma sea, elena ou mec, frocépa,graasio ou qulquer autre Ineo de reprodago, em perso exprena do editor Frederic Gros CAMINHAR, uma filosofia “Tradugao de Lilia Ledon da Silva AGRADECIMENTO ‘Obvigado a Benoit Chante, que fez com que este vo se pusesse “1 eaminho" eo acampanhont até seu témino. Sumdrio, Caminhar no é um espore LUberdades " Por que so tia or caminhante (Niet) Do lado de fora Leni. a Frugasratvosas Reha) 45 Soldaes 59 Siléncios 65 (Os sonhos diuenos da caminhante Rosen). © Etemnidades 85 A conqusta da natureza selvagem (Thor) °1 eran Peregrinacio Regeneragio e presenga Ocaminho cinica Os estados do hem-estar Aeerincia melancélica (Nera) Saida cotidiana (Ken! Passeios Jardins pdblicos O fisur das cidades Gravidide, Elementar Misti e politica Gani) Repeticio Textos¢ referéncias Caminhar nao é um esporte mminhar nfo € um esport. Ocesporte € uma questio de téenicas e regras, de rimeras competicio, que exige toda uma aprendizagem. conhecer a= poses, inconporar os gestas adequados. E depois, bem de pois, vm aimprovisacio eo talento, Oeesporte é consituida de contagens: em que posicio voce ficou? Qual for seu tempo? Qual o resultado? Sempre a mesma tivisio entre 0 vencedor e o vencido, tal como na guerra — hi tum parentesco entre a guerra © 0 esporte do qual a guerra tra sus honra eo esporte, sua desona: da respeita pelo adversirio 20 6dio pelo inimiga. O esporte € também, obviamente, o senso da resisténcia, © sto pelo esforgo,adisiplina, Uma ética, um trabalho. Mas €além disso algo de material, revistas,espetéculas, um mercado. Sao performances. © esporte proporciona imensos cerimonials midisticos, apinhados de consumidores de marcas imagens. O dinheiro toma-o sob controle para despoja as alas, € 2 medicina, pra fabricar corpos atifciais, CCaminhar ndo € um esporte. Pér um pé na frente do ou: tro & uma brincadeira de criangs, Nada de resultado, nada de (Gediaetaad acter rdmeros quanda se di um encontro: 0 caminhante diré que caminho tomou, em que trilha se descortina a mais bela pasa gem, a vista que se vislumbra de tal ou qual terago, Muito embora se tenha tentado criar um nave mercado de acess6rios:calgados revalucionsrios, melas incrives, mochils| priticas, calgashuncionas.. Ese procure implementaroespirito do esporte:ndo se faz mals uma caminhada, se “faz um rein Vendem-se bast6esalongadios que deixam os caminhantes com 2 aparéncia de improvaveis esquindores. Mas nada disso vai ‘muito Tonge. Nem pode ir muito longe. {A caminhada ~ no se descobriu nada melhor para andar ‘mais devagar. Para caminhar,sio necessirias antes de tudo das eras. © resto € supérflwo, Querem andar mais depressa? Nese caso ndo caminhem,facam outra coisa: rodem, desizem, vyoern, No caminhem. E depois, quando se anda apé, s6 hd um desempenho que de fato conta: aintensidade do céu, 0 vigo das paisagens, Caminhar nio é um esporte. ‘Mas, ura vez em pé, o homem no consegue ficar para. Liberdades ee eo ag mesmo que se trate de um mero passeio: desvencitharse do fardo das preacupactes, exquecer por um tempo os cont promissos. Opta-te por nfo carregar 0 escritério consig: pas seia-se, vaguea-se, pensa-se em outra coisa. Coma excursio de viros dae de duracso, acentua-se 0 procesto de desligamento escapa-se das obrigagbes do trabalho, fica-se livre do grihio thos habitos, Mas de gue maneiracaminhar passaria melhor essa sensagia de iberdade do que uma Tonga viagem? Pelo fato de ‘ue, afinal de contas, outrasimposigdes,igualmente drduas, vio cexercer pressfo: 0 peso da mochils, a distincia esipulada para a tapas, a8 incertezs do tempo (ameacas de chuva e tem. orig, calor de rachat), as pousadas toscas,algumas dores. CContudo, s6.aeaminhads consegue nos lvrar das lusbes doin Llispensivel, Enquanto ta ela permanece o reino de poderoses necessidades. Para chegar a esta ou Aquela paragem, é preciso andar tantas horas, que constituem determinada quantidade de passos,aimprovisacaoé limitada, pois nose est seguindo por caminhos de jardim e devesse evitarenganos nos cruzamentos los caminhos, a menos que se queira pagar caro e de imediato ute ppor eles. Quanda a neblina invade a montanha ou una tromba- gua cai, tem-se de continuar, prosseguir. Comida e égua si0 objetos de uma contabilidade engenhoss, conforme os trajetos ce Fontes, Enem sequer menciono.o desconforta. Ora, 0 milagre io € que se esta feliz apesar de, mas sim gracas asso. Quero dizer que nio dispor de uma escolha ilimitada quando se tata dle comer ou beber, encontrar-se submetido a grande ftalidade «do tempo que estéfazendo, mo poder contar serio com a re agularidace de seu part tuda isso faz ver de repente aabunlén- cia da oferta (de mercadorias, transporte, redes integradas), a rultplicacio das facilidades (de comunicacio, compra, desl. ‘camento) como dependéncias. Todas esas microiberacées no passam de aceleagées do sistema, que me aprisiona com mais forga ainda. Tudo © que me liberta do tempo e do espaco me li pres Para quem nunca passou por essa experiéncia, a simples descrigio da estado do caminhante logo parece um absurdo, uma aberracio, uma servidio assumica por opcio, Porque, s- pontaneamente, 0 citadina interpreta como privacio aquilo que ao caminhante se revela como uma liberagio: nfo estar mals preso na tela dos intercimbios, nfo mals se limitar a ser tum n6 da rede que redistribui informacées, imagens, produ: os; notar que tudo isso tem por realidade e importincia tio somente as que eu Ihe atribuir. Mew mundo nfo apenas nfo ddesaba por nao estar conectado, mas além disso essas cone- Ges de repente se mostram como enteelagamentos pesados, sufocantes, apertados demats, A liberdade, entio, € um bocado de pao, um gole de dgua Fresca, uma paisagem'aberta Isso posto, gozando desse liberdade suspensiva, feliz em par tir fico também feliz em volar f uma Felicidade por parénteses, 1 Flos ‘uma Hberdade sob 2 forma de escapulida de um ou varios das, Nada mudou de verdadle quando retomo, E a¢ antiga inércias retomam seu lugar a pressa, 0 autoesquecimenta, a desatengo pelos outros, a exctagio eo cansago. O chamado da via simples ters tido a draco de uma caminhada: “O ar puro the fez bem! Liberagio pontual, depois torno a mergulhar A segunda liberdade éagressiva, mas rebelde. A suspensiva, permite apenas, em nossa exsténci, uma “desconessa” provi ‘6ria- escapo da rede por alguns das, vivencio em tlhas desertas| a experiéncia do forado-sistema, Mas pode-se também tomar a deciséo de roner. Nesse ponto seria ficil encontrar convites & transgressio e ao vaste mundo li fora nos escitas de Kerouac ‘ou de Snyder: acabar com as convenctes imbecis, com a nga nosa protegia das paredes, com o tédio do Mesmo, o desgaste dle repeticao, a precaucio dos rcos e o édio pela mudanca. & necessirio provocar partidas, transgress6es, alimentar finalmen- te afoucurae o sonho, A deci em algum outro lugar, afm de rentar algo navo) signifies des- sa vez0 chamado do mundo selvagem (The Wid). Descobre-se na caminhadlaa forca imensa das noites estrelada, das eneraias| tlementares, € nossos apetites seguem o mesmo mode: fica enormes, € nosso corpo plenamente saciado. Quando saimos «do mundo batendo a porta, nada mais nos segura: as calgadas no gradam mais nos passos (0 tajeto, pereorndo centenas de milhares de vezes, da volta ao curral). Os cruzamentos tremem tal qual estrefashesitantes, e reencontra-seo medo arrepiad de ter que escolher,aliberdale em forma de vertiger, ‘Hi nio se trata de se livrar do anificlo para experimentar alegriassingelas, mas sim de encontrar uma liberdade que sea o limite de si ¢ do humano, que seja o transbardamento em si de uma Natureza rebelde que me ultrapassa. A caminhada 30 de caminhar (ir para Tonge, tae eae pode fomentar estes excessos: excessos de cansago que levam a mente 20 deliio, excessos de beleza que abalam a alma, exces sos de embriaguez nos cumes, no alto dos desfiladitos (0 cor: po explode). Caminhar acaba despertando em nés esta parcela rebelde, arcaica: nossos apetitesficam grasseiros e iredutiveis, nossos impetos, inspirados. Porque o caminhar nos posiciona 1a vertical do eixo da vida: arrastados pela torrente que joa logo abaixo de nés ‘Com isso quero dizer que 20 andar nio se esté indo a0 encontro de si proprio, como se a questio fosse se reencon: trar, se desfazer das velhas alienacBes para reconquistar um cw auténtico, uma identidade perdida. Ao andar, escapa-se 3 propria ideia de identidade, & tentagio de ser alguém, ter um nome e uma histéria. Ser alguém pega bem em reunides so ais onde cada um se exibe, pega bem nos consultérios de psicélogos. Mas ser alguém no seria 56 mals uma obrigacio social que acorrenta (nos obrigamos a ser figis & nossa pr: pria imagem), uma ficcio boba que representa para nés um peso nas costas? A liberdade, caminhando, é nfo ser ningwém, porque © corpo que caminha nio €em ama histéria, tem #0 somente uma corrente de vida imemorial. Desse modo nko passamos de um bicho de duas pates que se locamove, uma forca pura em meio as alas érvores, um grito. E frequente mente, caminhando, grita-se para marcar su presenga animal recobradla. Sem duvids, nessa grande Mberdade exaltada pela keracio dilacerada de Ginsberg ou Burroughs, nesse esbanja mento de energia que devia dlacerar nossa existénciae estou rar 0s pontos de referéncia dos submissos, a caminhada nas montanhas constitufa um meio entre outros, © estes outros incluiam as drogas ¢ o alcool, as bebedeiras, as orgias, pelos ‘quai se tentava alcancar a inocéncia, 44 © Caminhar ue Forse Mas ela deixa avista-se um sonho; caminhar como ex. pressao da recusa ce uma civilizagzo pode, poluida, alienante, dlesprezivel Eu li Whim, vots sem 0 que ee dn) De ens etn dtr tangs Eis 0 que par cle deve er attade to wovador, do trovadrloaco npitad pla Zen, nae eh is tas do deseo, Ee creda que se devs magna o mundo como ‘© pont de enonto dos andatthos que ve, com 8 machi cosas par a ent, dos vagabundos lumina que ecu © deve de consumir ido 0 que proddo,consequenemcnte © «le tabubar para poder consi 0 de comp oda ess sata inl: efigeradores,tleisores,astomsves, etd tp de no inl (.). Mihares, mihoes de ovens americanos,Fechando sua rmochlaepegando era, A derradera iberdade do caminhante & mals rara, E um terceito grau, depois do retomo aos prazeres simples e da re conquista da besta primitive, Ea lberdade do reuncante. Hein- rich Zimmer, um dos grandes indianistas, nos relata que se dlistinguem, na flosofia hindu, quatro etapas no caminho da vida. A primeira €a do aluno, aprendiz, discfpulo, Durante a manha de sua vida, trata-se, enti, basicamente de obedecer ’s ordens do mestre, ouvir seus ensinamentos, submeter-se = criticas conformar-se com os prineipios.E a hora de receber, [Numa segunda etapa, o homem, jé adulto, no meio-cia de sua ‘existéncia, via 0 dono da casa, casado,arimo de fai: adm nistra 0 melhor que pode seus haveres, ajuda no sustento dos padres, exerce um oficio, se submete de espontinea vontade as obrigacbes sociise as cobra dos outros. Ele accita vest as éscaras socials que determinam seu papel na sociedade © na "Tack Keren ain, familia. Mais tare, quando os filhos esto prontos para assumit fo controle, no entardecer de sua vida, © homem pode rejeitar repentinamente os deveres socais, ar obrigngSes familiares, a8 preacupagdes ecandmicas, e ele se faz eremita, Ea etapa da “partida para a flresta’, em que se haverd de aprender, pelo recolhimento e pela meditagio, a familiarizar-se com 0 qu desde sempre, petmaneceu intato em nds e espera ser, parands préprios, despertado. esse Si mesmo eterno, que transcend a6 siscaras, fungées, identidades, historias. Fo peregeino, enfin scede a0 eremita, no que deve ser a interminvel e gloiow sa noite de verio de nossa existénca: uma vida de agora em clante toda itinerante (2 etapa do mendigo errante) em que 2 caminhada infnita, aqui e ali, dé amostras dessa coincidén cia entre o Si mesmo sem nome € 0 onipresente coracio, Mundo, A essa altura © sibio renunciou a tudo, E a mais alta liberdade: a do desprendimento perfeto,Jé nfo estou envolvs do, nem comigo mesmo nem com o mundo. Alheio 20 passado «20 futuro, nfo sou nada alm do eterno presente da coin: sléncia. E, como se ve nas Callmet de Perarivacio, de Swart Ramdas, €no instante em que se abre mio de tudo que tudo ros € oferecido, no instante em que nio se pede mais nada que | tudo € entregue, em abundincia. Tudo signficando a propria intensidade da presence, Tnei-se com certa clareza, durante percursos longos, es liberdade de renéincia. Quando se esté caminhando hé muito tempo, chega um momento em que jé no se sabe muito bem ‘quaneas horas transcorreram, nem quantas mais serdo necessie rine para se chegar a0 destino, sente.se 0 peso do estritamente rnecessrio sobre as costa, pensa-se que isso & o que basta se: 6 que mais € de fato necessirio para seguir na vida ~e sente-se que daria para continuar desse jeito por dias, séulos. Entio, Gaia taeacte nal e mal se sabe para onde se esté indo e por qué, isso no ante mais do que meu passado ou ter nogio de que horas so, Hs gente se sente livre porque, assim que volta a lembranga \losantigossinais do nosso comprometimenta com o inferno — Nome, idade, profisso, careia ~ eudo, sem exces, fica i= Silo, mindsculo, fantasmagérico. Por que sou téo bom caminhante (Niewsche) seta ows ose ie seal teehee ied at o woo aan ant Tapco pon is ms Feta ee rio, Co analropaale cares pin Orsi rer Nich 5 pre Oita res, + amar qu sole, Mat em se ig, via desis designs rept slants 0 mundo 3 see oe eres era eee ae ee ee eee imine ia te eum geet presar conta, nenfura slug de eo-emo que <6 spa eee enema Nictsche trum caminhant novel, eine, Faz sempre mengio a esse fata. A caminhada 20 ar livre foi como que ochuerto de sua obra, o acompanhamento permanente de he; Ee Hane (Por que sou to preetid), Coie ieee ‘Si exsténcta se compde de quatro grandes 2tos. Primeiramente, os anos de formagio: do seu nascimento (1844) & sua nomeagio na Universidade de Basel como profes- sor de Filologia,O pai é pastor, am homem honrado ¢ bom, que more jover. Nietzsche gosta de se imaginar como o dlkimo’ rebento de una linhagem da nobreza polonesa (os Nictski) Quando morre seu pai (nos seus quatro anos de ida), ele se toma a promessa da mae, daa e da rm, azo da total de dicagio delas. O menino, dotado de grande inteligenca, val es ‘ada nolicew de Pforta, renomadde rigoraso, onde passa por uma Farmaco clissica, Al ficaré submetido a um regime infle vel cya geandeza ele reconhecers mais tarde, segundo a eae ‘glo grega:deve-se saber obedecer para saber comandar. An acredita nele ¢nio The poupa admiragio, na esperanca de que le colocard sua inteligenca bilhante 2 servico de Deus. Sonha ‘que seja tedlogo, E um rapagio gozando de excelente said, acometido apenas por uma forte miopi, sem dvida muito mal ccorigia. Faz brilhantes estados de Filologia na Universidade de Bonn, ea seguir em Leipzig. Aos 4 anos € nomeado profes sor de Filologia na Universidade da Baslea, por recomendaclo do especialista Ritschl. Algo excepcional para sua idade. Abres s€ 0 segundo ato. Lecionari por dez anos Flologia grega, dez anos difceis « fracassados. O trabalho € enorme: além das aulas na univer: idade, tem de ministrar outras no grande Liceu da cidade (0 Pelagogiva). Mas Nietasche contentava-se em ser apenas filo 4807 A misicao haviatentado muito tempo, depois fascinou-se pela filosofia. Mas €a clénclaflol6gica que o acolhe de bragos {caste ahertos, Fle a abraca, com 0 caragio um pouco apertado, pois io € sua auténtica vocagio, Pelo menos ela the dé 2 possibil dlade de ler os gregos: os trégicos (Esquilo, Séfocles); os poetas (Homero, Hesfodo), 0 sibios (Heréelto, Anaximandeo) © 05 hiscoriadores (tem paixio por Didgenes Laércio porque, diz ele, se ios omens. are al dessa). O primeira ano transcorre rnuito bem: ele se dedica com fervor & redagio de suas auas, ém éxito com oF anos, conhece novos eolegas, dente oF ‘ns um que se tomaréo amigo preferid,o amigo fc Franz Overbeck, profesor deteologa, © amigo de sempre, aqele x quem se pede socomo, aque qe vir sc lo em Trim, apd 2 eatsrofe ind em 1969 que Nietzsche eliza uma Viagem a ILucerna, para depois poder ir até Tribschen, nde fiz uma vista femocionada ao "Mestre (Wagner), em sua imensa e monumen: lal morada. Allele se encanta por Cosima, aquela que chamaré, fe suas cartas de loucura, de sua “princesa Ariane, minha bem- ‘nda um preconcelta quer que eu seja homens, mas éverdade jue por muita tempo os frequencei” (ianeiro de 1889). Entretanto o entusiasmo, © ardor pelo trabalho université- 1 boa satide duram pouco, Os acessos ea crises comecam 1 s© multiplicar. O corpo se-vinga de uma série de pesados equivocos. Equivoco profissional, Ele estoura em 1871 quando sai O. Nici da Tras, que deixar atdnitos, se nfo enfurecidos, ‘ fidlogos de profsszo, Mas também como alguém pode ter a inde escrever uma obra dessas? Um livro nao tanta de pes- visas sas esim de incuigdes nebulosas, metafsicae o etemo eonlto do caos e da forma. Equévoco nas amizades também, He vioa regularmente a Bayreuth para a consagracio anual do Mestre, volea a Tbschen, comna-se seu companheiro de viagens i Furopa, mas entende cada vez mais que Wagner, em sex inhonte Ntsc) logmatism faniticn, sua arroginci, representa aquilo que ele abomina © que a misica dele sobretudo nio the eai bem: ela 0 dleixa doente. A misica de Wagner, escrevers,n6s nos afogamos rela, € um marasmo, & preciso “nadar" ela sem para, ela tra- ‘2 como uma correnteza lancinante, caética, Perde-se 0 pé 20 eseuti-la,Jé Rossini, pelo conrévio, dé vontade de dancar. Sem falar da Carmav de Bizet. Equivoco sentimental enfrenta rect sas para seus pedidos de casamento,fetos de maneita abrupta Equivoco social por fim. Pois no consegue se adaptar nem 3 agitagio dos creulos socnis de Bayreuth, nem aos dos profes sores eeruditos Dificil de encarar. Todo semeste fica mais dar, mais im ppossvel. Com frequéncia cada vex maior, tem dores de cabeca terriveis que o deixam de cama, deitado no escuro, agonizando de dor. Seus olhos doom, cle mal consegue le, escrever. Para cada quinze minutos que pass Iendo ou escrevendo, tem de pagar o ato prego de horas de enxaqueca, Ped que leiam para cle, pois seus olhos hesitam em contato com a gina Nietzsche teata encontrar um meio-termo, pedindo para ser dispensada de um curso, logo de todo exercicio do ma- gistério no liceu, obtendo também wna licengs de um ano para retomar flego, restabelecer-se,recobra a frcas. Mas nada disso adianca ‘Ao mesmo tempo, aquilo pelo que ele opta como trata mento leva a marca de seu futuro destino: grandes caminha dase grandes solidaes. Contra as dores lancinantes, terrvei, cesses dois remédios. Fugir da excitagio, das solicitagbes e da agitagio do mundo, cujo custo tem sempre de ser quitado de imediato por meio de horas de sofrimento. E caminhar, cami nae bastante tempo para dispersar, distrai,esquter as marte Tadas nas témporas. Fle ainda ndo fo cativado pela mineraidade dura das alas smoneanhas ou a secura perfumada cas tailhas pedregosas do Sul Anda sobretudo 2 beia dos lagos (o lago Léman, com Gers- orf, seis horas de caminhada por dis) ou segue pela sombra das florestas (0s pinheitas em Seeinabad, a0 sul da Floresta Negra; "Caminho muito, através das loretas, ¢ tenho comiga ‘mesmo conversas étimas") No més de agosto de 1877, esti em Rosenlau eleva uma vida de eremita: "Se pelo menos eu pudesse ter, em algum lt far, uma casa como aqu, eu caminhara de seis a oito horas por dia, compondo pensamentos que depois eu fanaria de uma tirada sobre o papel ‘Mas nada di resultado, As dores sia fortes demas, As en- saquecas o deixam de cama por dias, ele se contorce de dor a noite intera por causa dos vmitos. Seus olhos estdo sempre ddoendo e sua visio piora. Ele apresenta em maio de 1879 seu pedido de demissio da universdade. ‘Abre-se aqui a terceira grande épaca de sua vida. Dez anos, do verao de 1879 20s primeiros das de 1889. Viveré dessa vez juntando ers escasss pens6es que the permitem levar uma vida ‘extremamente modesta, morar em albergues simples, pagar © trem que o leva da montanha 20 mar, do mar i montanha, 35 vyezes a Veneza, para vsitar Peter Gast: E entio que se torna ‘eaminhante inigualivel que se tornou lenda. Nietzsche cami nha, caminha como se trabalha, Tabalha caminhando. Jno primeiro verio cle descobre sua montana: 2 Alta Engadine, ¢ no ano seguinte sua aldeia:Sils-Maria Lé, oar € fee eo eal erheeeret sarees transparente, 0 vento, forte, a luz, cortante, Por detestar 0 ca lor pesado, passaré todos os verdes ali, até a queda (excetona ano de Lou). Aos amigos (Overbeck, Karelitz), escreve que encontrou sua natureza, sc elemento A mie, que li ele depara com “0s methores caminhos que deseja © quase cego que et ime tornet, e oar mais revigorance”(julho de 1879). E sun pal sagem, sente-se igado a ela coma que por lagos de sangue "e até mais que isso"? ‘Hino primeico verso, ele caminha, caminha sozinho a oto horas por di, e escreve O Vinint sua Sams “ido, ato ser thes por slums ny, a pens durante os tacos eabisado ips em sei caeriahoe”? E passard 6 inverno nas cidades do Sul, principalmente Cénova, 2 baia de Rapallo, ¢ mais tarde Nice (*Passeio em ‘méclia uma hora de mana, trés horas de tarde, a passo acele- rado ~ sempre © mesmo caminho: ele é belo o bastante para aguentar a repeticio", margo de 1888), Menton uma s6 vez (‘Descobri ito passeios”, novembro de 1884). As colinas se ro seu cavalete de escritura, ¢ © mar sua abdbada mestra (*O) mat e 0 cu puro! Como pude me tortura tanto no passadol”, janeiro de 1881) E caminhendo, dominando o mundo e o¢ homens, ele com: poe 20 ar live, imagina, descobre, exalta-se, asusta-se com 0 ‘que enconira, abalado perplexo diante do que Ihe cu corante 3s caminhadas, 2 Fedhich Nietasche, O Visine sua Sb, § 338. dem carta de steno de 1979, 2s Cis ames ‘inensdade de meus semmentor me iz ie me rea 20 sin tempo ~ vir vezes nope sido quar pla moto elo de que esta com os alos vemnelhos~ de qu E que véspera eu vs, dante inks lng eaminads, chord leis, no eam ess gras sete, mis co gma eels, eartnd ambaleanda, cm un lar novo ave € marca de mew prio sabe os homens de ole Em dz anos, escreverd seus maioreslnros, de Aurora a Ge wali d Mor, de A Gaia Cita a Alén do Bem ¢ do Mal, smn ‘squecer Assn Flow Zaatasta, Ele e torna 0 eremita Cvoltar a er eremita,¢ fazer caminhadas de eremita dez horas por dia’, Julho de 1880), 0 sotrio,oviaante ‘A caminhada nesse caso no é, como para Kant, 0 que dis \in/clo trabalho, ess higiene minima possibilitando que o corpo se recupere depois de ter permanecidlo sentado, cansado, par tid 20 meto. Para Nietzsche, ela € a condigio bisica da obra Mais queseu relaxamento, ouaté sew acompanhamento, a cami 2 & seu deweto propriamente dit, No somos daguces qu ent em mio os ose cut Men agora os eto ds pigias pra mace, aso a € olive, andando, plan, sabindo, dangando, de pe a ms monanhas soles ov beta da a, nd mes 0 camithos eae mediation? Muitos escreveram seus livros a partir t30 somente da leiura de outros livros, tantos livros tém o cheiro de lugar “Veich Nietzsche, aa de agosto de 1881 Wem Ga Ce, 8366, or que sou to bom camiahante (Nitsche) = a fechado caracterstico das bibliotecas. Com base em qué se avalia um livro? Por seu cher (e, mals ainda, como se ver por sew ritmo). Por seu cheira: demasiados livros recendem ‘a0 ambiente pesado dos gabinetes de letura ou escrit6rios Cémodos sem luz, pouco arejados. © ar no tem uma boa circulagso entre as estantese se encarrega do mofo, da lenta decomposigio do papel, da alteragio quimica da tinta, O ar Fica carregado de miasmas. ‘Outros livros respiram um ar revigorante: 0 ar revigorante dlos espagos abertos, o vento as altas montana, seja 0 sopro gelado da auras batendo no corpo ou, entio, a amanhecer, & ar fresco das trilhas do Sul ladeadas de pinhos,transpassadas de perfumes. Esss livros restiram, Nio esto sobrecarregados, nfo cestia satarados de erudicio morta, va ©, compreendemos bem depress st autor cheyou 3 se ‘ia permnecersentad dante de seu tno, com a barge ‘ied a abecsenflads nos paps. Como se 8 pido seu Tir! A comprst doe inteting fa ante to rapidamence quanto oaraeeto, ofr bac, pega acanhada* Mas hi também 9 busca de outra luz. As bibliotecas so sempre muito sombrias. O armontoado, o empilhamento, a js tapsigio preciria dos volumes, a altura das prateleias, «uo ‘contribu para imped a entrada de claridade ‘Outros livros refletem a laminosidade cortante das mont thas, ou 0 rebritho do mar sob sol E sobretudo: as cores. As bibliotecas sio cinza,e cinza of livros que nelas se escrever tudo estésobrecarregado de citaeées, referéncias, notas de ro dapé, de prudéncia explicativa, de refuacoes imprecias “dem Comphor ame Flos E preciso falar, por fim, do corpo dos eserevinhadores: suas Inios, pés, ombros e pernas. O livro, como expressio de uma (siologia. Em livros demaissente-se 0 corpo dobrado, sentado, ‘aurvado, encolhido sobre si préprio. O corpo que caminha fica lstirado tenso como um arco: aberto 20s vastos espacos como 1 Mlor a0 sol. Com 0 torso exposto, as pernas tensionadas, os bagos slongados: Para feral de uli, ar omer, x uma mses, reso primo rele pergumarmo-nos. abe elecaninar” (livros dos autores, 05 que estio prisioneitos entre suas predes, enxertados em cima de suas caderas, sto indigestos ¢ pesados, Nascem da compilagio dos outros livos sobre a mesa. Sto livros parecidos com gansos de engorda: abarrotados de tages, entupidas de referencias, engrossados de anotagbes. Sto pesados, obesos e leem-se com lentidio,tédio, difculds Ale Fazem um livro com outros livros, comparando linhas com dura, epetindo 0 que os otros disseram do que outros ainda lerlam até chegado 2 falar. Verifica-e,especifca-se,retifica-se lu Trae torma-se-um pardgrafo, um capitulo, Um livro torn: 1 0 comentario de cem livros sobre uma frase de algum outro. Aquele que compae caminhando est, pelo contriro,lvre Le amarras, seu pensamento néo é escravo dos outros volumes, » peso das verficacies, da carga do pensamento alheto, Nio hi contas a prestar, a ninguém. Sé pensar, julgar, decidir. E lun pensamenta que brota de um movimento, de um impulso. Sente-se afaelasticidade do corpo, 0 movimento da danca. Ele rem, ele expressa a energia, 0 arrojo do corpo. Pensar a coisa fon sem oembaralhamento, a névoa,abareira,aalfindega da eat eee ‘cultura e da tradigio, Nao havers extensasdemonstragbes bem concatenadas, mas pensamentos leves ¢ profundos. A aposta é cexatamente esta; quanto mais leve um pensamento, mais ele se leva, € vira profundo porque fica na vertical, vertiginosamen: te, dos brejos espessos das convicgbes, da opin, dos saberes insttaidos, Enquanto os livros cancebidos nas bibiotecas $80, pelo contri superficiais e pesados. Nio passam de uma at vidade de cia Pensar caminhando, caminhar pensando, ¢ que a escritura Jimite-se a ser a pausa ligeir, como quando o corpo descansa durante a caminhada pela contemplacio dos vastos espagos. (© awe, para terminar, significa para Nietzsche um elogio 0 pé, Nio se escreve apenas com a mio, Sé se escreve bem “com 05 pés”* O pé é uma excelente testemunha,talvez a mais confdvel. preciso saber se, ao lero pé "fica de oretha em pe” — visto que 0 péescuta em Nietzsche, como selé no segundo “canto da dana’ de Zaratusuia. "Meus dedos dos pés Ficaram dle orelha em pé para escutar, pois seus ouvidos, o danarino 1s tem nos dedos do pé” ~ se ele estremece de prazer com a Teitura por ter sido convidado & dang, partida, 20 li fo. Para avaliar a qualidade de uma misca, € necessério confiar no pé Se, 0 escutar, 0 né& tomado da voatade de marcar 0 compasso,

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