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e3e HISTORIA E PODER Francisco Falcon toria e poder sao como irmaos I Ls olhar para um sem perceber a presenca do outro & quase impossivel. A historia da humanidade deve neste caso ter s — separa-los é presentes estas duas maneiras de ver a questao das relacées entre a historia c o poder: ha um olhar que busca detectar e analisar as muitas formas que revelam a presenca do poder na propria histori: ; mas existe um outro olhar que indaga dos intimeros mecanismos ¢ artimanhas através dos quais o poder se manifesta na producio do conhecimento historic, Na verdade, porém, a historiografia costuma ser muito clara quando se trata do primeiro olhar mas é quase sempre imprecisa ou cega quanto ao segundo © tema deste capitulo admite assim duas leituras opostas mas complementares: © poder visto como objeto da investigacao/produc&o historica © 0 poder enquanto agente instrumentalizador da propria oficina da historia, com o que 0 conhecimento — histérico se converte em seu objeto. Preliminarmente, ha que considerar tanto 0 conceito de histéria como 0 de poder. Dada a conhecida polissemia do termo historia, convém esclarecer que iremos aqui emprega-lo com 0 sentido de hist6ria-disciplina, salvo indicacao em contrario, Ja 0 termo poder nao é s6 mais problematico do ponto de vista conceitual como carrega consigo, na historiografia, um outro complicador — a freqiiéncia com que os historiadores se referem a politica ou ao politico como equivalentes {sinénimos} de poder. Temos aqui uma dificuldade adieional cuja anélise transcende nossos_ limites atuais. O des topicos principais: (1) Visao panoramica do curso geral da nvolvimento do presente capitulo compreende trés historiografia ocidental — ascensao, apogeu ¢ declinio da historia politica tradicional; (2) A nova histéria politica ou os ‘novos caminhos’ do poder ¢ da politica na historiografia contemporant 2a (3) Poder ¢ politica na historiogratia brasileira recente. No primeiro tépico observar-se-4 a passagem bastante lenta do poder como algo inerente a certos individuos ¢ instituicoes — a comecar pelo Estado — ao conceito de poder como um tipo de relacdo social concebida eventualmente como de natureza plural — os poderes. ‘Tratar-se-a ai da hi storiografia tradicional e de sua tendéncia multissecular de abordar apenas a politica como se fosse esta a tinica forma/lugar do poder. No segundo tépico, a partir da crise da historia politica tradicional, tentaremossituar as caracteristicas do que se convencionou chamar de nova historia politica. No terceiro, procura-se empreender um balanco preliminar da presenca do poder e da politica na historiografia brasileira recente. Um quarto t6pico v sando as complesas relacdes entre 0 poder ¢ a producao do conhecimento historieo em diferentes épocas ¢ sociedades deveria ser incluido aqui; no entanto, somos forcados a ficar somente com algumas alusoes bastante pontuais uma vez que este topico justificaria por si so um capitulo a parte. Poder e politica na_historiografia ocidental — ou ascensao, apogeu e declinio da historia politica Se de fato a historia comecou com Herddoto ou nao pouco importa agora. Nasceu, sim, com os gregos uma certa concepeao 's herdicas ou de historia: uma narrativa de certo tipo de ago humanas dignas de serem lembradas. A cidade-estado, os impérios, monarquias, ou, num plano mais abstrato, a Republica c/ou Estado, foram os centros ou nticleos que polarizaram as narrativas historicas, ¢, nestas, 0 papel dos politicos ¢/ou homens de Estado, as tcorias filoséficas, juridicas e teolégicas acerca das origens, instituicées ¢ fins da Republica, Surgiu ¢ consolidou-se assim, ao longo de muitos séculos, “a histéria dos historiadores” ou, apenas, a historia, Bem mais tarde, esta historia foi identifi ‘ada como um tipo de historia: a hist6ria politica tradicional. Prisioneira da visao centralizada e institucionalizada do poder, a historia politica tradicional foi_—_definindo progressivamente temas, objetos, principios ¢ métodos. Ligada intimamente ao poder, essa historia pretendeu ser também memoria. Coube-lhe entao, durante séculos, lembrar e ensinar pelos exemplos reais ¢ ilustres de que cra a tnica depositaria Esta historia magistra vitae pode entao servir com equanimidade a0 politicos, filésotos, juristas ¢ pedagogos Da histéria praticada por gregos e romanos Aquela dos eclesiasticos ¢ escribas leigos da Idade Média, ha continuidades e diferencas evidentes, a comecar pela transformacéo da natureza do proprio discurso histérico. Sua esséncia no entanto — a reten¢ao de certos eventos ¢ a continuidade narrativa — manteve- se quase intacta, Tratava-se sempre de miltiplas historias, sobre untos eclesiasti os ou seculares. Historia singular, apenas em Santo Agostinho podemos encontra-la: a Historia do Homem, da Criacao ao Juizo Final. Em oposicao a ela, a “cidade dos homens” oferece somente a possibilidade de historias multiplas, contingentes, desconexas ¢ sujeitas a repeticéo ciclica. Tais hi sobretudo historias siérias, eminentemente humana sao politicas e intentam imitar os padrées herdados da Antigitidade ou © que como tal entao se apresent ‘a aos seus escritores leigos ou eclesiasticos. A historiografia humanista e renascentista nao introduziu modificag6es sensiveis nessa tradicional orientacao politica da historia, mas iniciou duas tendéncias fundamentais: a da critica crudita das fontes ¢ a climinacao de lendas, milagres, “fantasia em busca dos fatos verdadeiros ou, pelo menos, verossimeis. Na verdade, porém, do século XVI ao XVIII, ao lado desta tendéncia erudita dos chamados antiqudrios, ganhou novo alento a dos historiadores of iais a servico de principes ¢ repuiblicas urbanas, habitantes das primeiras academias de historia. Paralelamente. sobretudo nos séculos XVI ¢ XVII, as disputas teologico-politicas resultantes da Reforma reforcaram a tendéncia presente nas historias oficiais: produzir, por intermédio da historia politica ou religiosa, conforme 0 caso, os elementos histéricos favoraveis a causa defendida pelo historiador. Caberia entao a historia proporcionar provas e argumentos as partes em litigio. Ao contrario dos polemistas catélicos ¢ protestantes que, empenhados na comprovacao de suas proprias teses, propiciaram uma investigacao e critica rigorosas das fontes textuais cristas, a comecar pela Biblia, encontrando-se conseqiientemente com a corrente erudita ou antiquaria, os historiadores a servico dos poderosos do momento mostraram-se em geral pouco ou nada suas historias de exigentes em matéria de critica de fontes principes, dinastias ce reinos sao basicamente politicas e pragmaticas. Neste period, correspondendo a chamada Idade Moderna, a Histéria, como historia politica, apresenta ainda trés peculiaridades interessant (1) ela continua a ter sua velha funcao de mesira da vida, mas os humanistas a utilizam também no ensino da retérica; (2) a sombra de Maquiavel faz pairar sobre ela uma desconfianca terrivel: talvez, na verdade, a histéria nao scja capaz de ensinar sendo politica ¢ nada tenha a ver com a moral ¢ a ética; (3) trata-se de “historias” que se referem cada vez mais aos Estados territoriais ou dinasticos, as conhecidas monarquias nacionais dos Estados absolutistas dos tempos modernos, constituindo-se em precursoras das futuras historias nacionais centradas na idéia de Estado nagao De meados do século XVIII ao terceiro quartel do XIX, dois grandes movimentos, a Ilustracéo e o Romantismo, modificaram a concepeao de historia acentuando ainda mais a importancia do politico. no minimo curioso observar que iluministas e romanticos, tao diferentes entre si, nao estavam, em principio, comprometidos com a idéia de que a historia tivesse que ser necessariamente histéria politica A historiografia da llustracao abrange na realidade dois tipos de historias © historiadores — a histéria interpretada pelos filésofos c as historias produzidas por historiadores eruditos — os antiqudrios. Enquanto os filésofos criticaram a natureza meramente descritiva, factual e cssencialmente politica das historias eruditas, propondo como alternativa uma_histéria filosofica — uma histéria racional € explicativa da totalidade do devir histérico — cujo micleo seria dado por valores universais expressos através de conceitos como cultura, civilizacao, liberdade, os historiadores eruditos, analisados por Gusdorf,) apesar de serem quase todos eles hoje ilustres desconhecidos, aperfeicoaram © instrumental da critica das fontes documentais, além de revelarem novos acervos a investigacao historica, Sujcitos a uma espécie de dupla servidio — a de uma historia essencialmente politica € a de seus objetos eminentemente locais ou regionai tais historiadores foram decisivos em variados sentidos para o avanco historiografico do Oitocentos. A historiografia do romantismo remete-nos a um problema talvez mais complexo do que 0 anterior. Por romantismo entende- sc um conjunto de movimentos contemporancos, tanto da Revolucao Francesa e das guerras napoleénicas, quanto das chamadas revolugées liberais ¢ nacionais da primeira metade do século XIX. Assumindo feigdes diversas conforme o pais que se tenha em vista, 0 romantismo, principalmente o aleméo, cuja expressio maior € 0 idealismo germanico, ostenta conotacées francamente opostas aos principios e ideais da Ilustracdo. Contra as concepcées iluministas consideradas abstratas ¢ absurdas — racionalismo extremado, universalismo ético-juridico e historico, naturalismo fisicalista — 0 romantismo propos e defendeu perspectivas quase diametralmente opostas: o papel ec a importancia do sentimento, a intuicao, 0 individualismo, o organicismo e a historia. Na historiografia propriamente dita, os principios ¢ valores do romantismo originaram, em alguns casos, ou reforcaram, em outros, certas concepgdes ¢ tendéncias de importancia crucial, algumas delas, para o rumo da historia na Europa. Dentre elas é importante mencionar: (1) 0 Estado-nacao como tema central tanto da investigacao quanto da narrativa histéricas; (2) a critica erudita das fontes como componente essencial do método historico, garantia da cientificidade do conhecimento — seu carater verdadeiro; (3) a introducao do conceito de historia como singular coletive® em conexao com 0 novo conceito de revolucaos (4) a perspectiva historicista aplicada quer @ historia-matéria quer A disciplina, ou seja, neste caso, “a inteligibilidade compreens vae historista” analisada por Gusdorf.4 © romantismo associou as idéias de pove e nacao como constitutivas de uma mesma entidade coletiva manifesta na lingua, na histéria ¢ na cultura comuns, Entificada como alma ou espirito nacional, a realidade intrinseca de cada povo-nacéo representa uma individualidade historica irredutivel, A historia scra sempre, entao, a historia dessas realidades tinicas que tém no Estado sua expressao politica. Cabera entao ao Estado-nacao 0 lugar de honra no campo da historiografia do Oitocentos. Os pressupostos historicistas romanticos articularam- com exigencias metddicas quase sempre rigoristas, em particular na Alemanha. A erudicéo, a critica documental rigorosa, a incessante busca de novas fontes, 0 conhecimento filobbgico, constituem componentes fundamentais da escola historica alema Este era na verdade o territério comum a romanticos e positivistas. A promocao do Estado a condicao de “objeto por exceléncia da producao histérica’s significou a hegemonia da_ historia politica. Dai porque, no século XIX, poder é sempre poder do Estado — instituigdes, aparelhos, dirigentes; os “acontecimentos” sao sempre eventos politicos, pois sao estes os temas nobres e dignos da atencao dos historiadores Mais ou menos a partir de 1870, com o eclipse do romantismo, afirmou-se rapidamente uma historiografia imbuida dos valores do cientismo. Habituamo-nos a denomina-la positivista, porém, como ainda recentemente foi argiiido por Bourdé$ trata-se de uma designacao equivocada uma vez que si raros os historiadores propriamente positivistas. A rigor, dever-se- ja chamé-la de historiografia metédica, ja que cra no método is de historico que seus adeptos fe ziam repousar S garant cientificidade julgadas por eles indispensaveis ao. verdadeiro conhecimento his ‘rico, Seja como for, 0 fato mais importante para nds € 0 de que essa historiografia levou @ supremacia da historia politica — narrativa, factual, linear — ao seu apogeu nos meios académicos em geral A historiografia metédica instituiu, a partir de scus pressupostos cientistas, um tipo de discurso histérico préprio destinado a demonstrar, através de marcas espccificas, as suas diferencas em face do discurso literario. 'Tratava-se de distinguir a verdade histériea da fiecao literaria a partir da separacéo entre doi tipos de fatos — os verdadeiros, que podem ser comprovados, © 0s falsi ys, de comprovacao impossivel. Logo, a historia — historia politica, como vimos — é ciéncia ¢ nao arte, consistindo tarefa do historiador nao em evocar ou reviver 0 passado, como desejavam os romanticos, mas sim em narrar/descrever os acontecimentos desse passado tal como eles realmente se passaram. Este trecho de uma frase de Ranke tornou-se, a posteriori, a propria expressao do horizonte historiografico chamado de positivista, o que nao deixa de ser bastante curioso se tivermos em vista que sua significacdo para o mesmo Ranke e seus colegas cra completamente diversa, Tendéncias historiograficas romanticas e positivistas nao esgotam todas as possibilidades interpretativas do Oitocentos. As es cecdes foram néo apenas honrosas mas destinadas a futuros dos mais brilhantes, nao importando neste caso a idéia dos contemporaneos a respeito do carater histérico ou nao dos textos de Marx Engels, Tocqueville, Burckhardt, Dilthey, entre outros, O mais importante em todos eles, do nosso ponto de vista, é 0 fato de que, apesar de estarem presentes, os acontecimentos politicos nao se auto-explicam; longe de excluirem, eles impdem a anélise de outras dimensoes da realidade historica. De formas distintas, abordam a sociedade, a economia ¢ a cultura, quase sempre em busca de determinagoes ou fatores néo-politicos importantes ou essenciais para a compreensao/explicacao dos processos politicos A propria historia politica vé-se entao enriquecida pela incluso de questdes que, além de politicas, sao também, ou antes de mais nada, sociais ¢ idcolégicas: lutas ¢ movimentos sociais, com destaque para as revolugées ¢ a revolucdo. Assinalemos, por liltimo, 0 fato de que houve também historiadores positivistas, como Taine e Buckle, os qi ao transitarem para uma perspectiva evolucionista, foram levados a considerar em suas obras temas bem mais variados e abrangentes do que aqueles habitualmente contemplados pela _historiografia politica dominante. Ao longo das trés primeiras décadas do século XX manteve- se quase inalterada a hegemonia da escola metédica ou positivista Foram, no entanto, décadas de criticas e ataques partidos de inameras posigées intelectuais, As quais Hughes? chamou, em conjunto, de revolta antipositivista. Se esta revolta como um todo nao diz. respeito ao nosso tema, convém no entanto mencionar-lhe dois clementos constitutivos importantes para 0 nosso ponto de vista: os antecedentes dos Annales € 0 neo-historicismo, No primeiro grupo, poder-se-iam incluir a influéneia da sociologia durkheimiana, vocalizada especialmente por Francois Simiand, 0 prestigio da geografia humana, através de Vidal de La Blache; os esforcos pioneiros de Henri Berr em prol da sintese historica — a Revista de Sintese Histérica, 1903, ¢ o livro La synthése en histoire, 1911; 0 prestigio da historia economica — nai Alemanha, com Schmoller; na Gra-Bretanha, com Cunningham e ‘Thorold Rogers; na Franga, com Henri Sée, H, Hauser e Paul Mantoux me s, sobretudo, 0 belga Henri Pirenne; o despertado pela psicologia social de L. Levy-Bruhl, G. Le Bon, Charles Blondel ete, O novo historicismo, ou historismo (para aqueles que reservam a Popper um certo monopolio do conceito de historicismo}, ligado as obras e idéias de Dilthey, Rickert, Windelbland, $ Troeltsch seus dois maiores historiadores germanicos. Na Italia, a mmel e, em parte, Max Weber, teve em Meinecke e partir do neo-hegelianismo de B. Croce, constituiu-se uma sélida € duradoura tradicao “croceana” na perspectiva historiografica. Na Inglaterra, com Collingwood, leitor de Croce, bem como nos Estados Unidos, esi ‘a vertente neo-hegeliana do historicismo teve também ampla repercussao sobretudo no ambito da historia das idéias, Por mais importantes e inovadoras que possam ter sido estas tendéncias, nao foram suficientes para provocar de imediato grandes alteragées no panorama da historiografia, ou seja, nao conseguiram abalar a posicao dominante da histéria politica, nem a supremacia institucional da ‘historiografia metédica” ou positivista. No maximo, talvez, pode-se propor a hipotese de que 0 historicismo tenha trazido @ tona certas preocupagées tedricas que, como desafios, atuaram em diversos niveis ¢ campos do pensamento historiogrdfico. Para a historia politica, por exemplo, talvez se possa supor que 0 historicismo acentuou 0 psicologismo como elemento explicativo das agées dos grandes homens, a0 mesmo em tempo que privilegiou ba nte o papel das idéias

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