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Kory torr EPH ANINT wevwrsataphanink past ypiascorn OF Lins Arjun Appadurai A VIDA SOCIAL DAS COISAS As mercadorias sob uma perspectiva cultural Tradugao Agatha Bacelar Revisio Técnica Leticia Veloso 18 Reimpresstio ala Editora da UFF Niteréi - 2010, un A BIOGRAFIA CULTURAL DAS COISAS: A MERCANTILIZACAO COMO PROCESSO"* Igor Kopyiogy Para os economistas, as mercadorias simplesmente existem. Ou st certas coisas ¢ certos direitos a coisas so produzidos, existem ¢ po- ‘dem ser vistos circulando por meio do sistema econdmico, conforme ‘vo sendo trocados por outras coisas, geralmente por dinheito. Essa visio, evidentemente, abarca a definigio de mercadoria segundo 0 senso comum: um item com valor de uso e que também tem valor de tuoca, Provisoriamente, aceitarei essa definicio, suficiente para le- vantar certas quest6es preliminares, mas mais a frente eu a ampliarei conforme exija a minha argumentagio. De um ponto de vista cultural, a produgio de mercadorias é também um processo cognitivo e cultural: as mercadorias devem ser no ape- nas produzidas materialmente como coisas, mas também culturalmente sinalizadas como um determinado tipo de coisas. Do total de coisas disponiveis numa sociedad, apenas algumas so apro- priadamente sinalizéveis como mercadorias. Além do mais, a mesma coisa pode ser tratada como uma mercadoria numa determinada oca- sido, ¢ ndo serem outra, Finalmente, a mesma coisa pode, a0 mesmo tempo, ser vista por uma pessoa como uma mercadoria, e como uma outra coisa por outta pessoa. Essas mudangas e diferengas nas cir- cunsténcias e nas possibilidades de uma coisa ser uma mercadoria revelam uma economia moral subjacente & economia objetiva das transagoes visiveis. DE PESSOAS E COISAS No pensamento ocidental contemporanco, admitimos, como um ponto relativamente pacifico, que as coisas ~ objetos materiais e os direitos de t6-los representem 0 universo natural das mercadorias. Situa- 89 mos as pessoas do lado oposto, representando o universo natural da individualizagio e da singularizacao. Essa polarizacio conceitual entre pessoas individualizadas ¢ coisas mercantilizadas € recente e, em ter- ‘mos culturais, excepcional. Pode acontecer (como ja aconteceu) de pessoas serem mercantilizadas, por vezes sem conta, em muitas $0- ciedades ao longo da hist6ria, por intermédio daquelas instituigoes bem disseminadas, conhecidas pelo nome genérico de “escravidio”, Portanto, talvez soja titil abordar a nocdo de mercantilizagéo exami- rnando-a primeiro no contexto da escravidio, Acescravidio foi muitas vezes definida, no passado, como a fora de tratamento dada a pessoas consideradas como propriedades ou, em algumas definicdes semelhantes, como objetos. Mais recentemente, abandonou-se essa visio de “on-uma-coisa-ou-outra”, e adotou-se um ponto de vista processual, no qual a marginalidade e a ambigii- dade de status se tornaram 0 centro da identidade social do escravo (ver MEILLASSOUX, 1975; VAUGHAN, 1977; KOPYTOFF; MIERS, 1977; KOPYTOFF, 1982; PATTERSON, 1982). Sob essa perspectiva, a condigdo de escravo € vista nfo como um status fixo © unitério, mas como um processo de transformacio social que envol- ve uma sucessao de fases ¢ mudancas de status, alguns dos quais se fundem com outros status (por exemplo, o de adotado) que, nés, os ocidentais, consideramos muito distintos da escravidio. A escravidio comeca com a captura ou a venda, quando a identida- de social prévia do individuo Ihe ¢ arrancada, transformando-o numa nio-pessoa, que, na verdade, é um objeto e uma mercadoria de fato ‘ou em potencial, O processo continua, no entanto. O escravo é ad- quirido por uma pessoa ou um grupo e ¢ reinserido no grupo que 0 recebe, dentro do qual é re-socializado e re-humanizado por meio da aquisig&o de uma nova identidade social. O escravo-mercadoria € efetivamente re-individualizado, ao adquirir novos status (nem sempre baixos) ¢ uma configuragao tinica de relacionamentos pes- soais. Assim, esse processo afasta 0 escravo do status simples de ‘uma mercadoria intercambiavel e o aproxima de um status de um individuo singular que ocupa um nicho social e pessoal particular. No entanto, o escravo continua a ser uma mercadoria em potenci ele ou ela continua a ter um valor potencial de troca que pode set concretizado mediante a revenda. Em muitas sociedades, o mesmo |se aplicava aos “livres”, sujeitos a serem vendidos sob circunstancias definidas. Na medida em que nessas sociedades todas as pessoas / 2” : W | tinham um valor de troca ¢ eram passiveis de virar mercadorias, fica | bem claro que a mercantilizagdo nao era culturalmente limitada a0 mundo das coisas. (© que percebemos na carreita de um escravo é um processo de retira~ da inicial de um determinado contexto social original, a mercantilizaco, seguida de uma crescente singularizagio (ou seja,

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