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ek WiellU|an\ouy Obras Literarias POLIEDRO SISTEMA DE ENSINO POLIEDRO Séo José dos Campos SP Telefon (12) 3924-1616 elitora@sistemopoliedo.com br ‘we sislemapoliedro.com.br ISBN; 978-85-7901-455.0 Copyright © Ecitora Poliedro, 2015 ‘es os direitos de edigéo. reservados &Editora Poliedro Auioria: Ano Coraline Coxen Guimaries Neves Sarelos, de Comes), Carlos Edvarde de eee eee een ey Peete ee eek eter rod Felx de Melo Chaves (err sondmbulo, de Mia Cui) « Renata Gores Teenino iss Lopes (rennet eerste se ete) s Dae ae eres Cee cpeete is. eo ie ee eee ea ed cece a ee re Pe reietene eiierac td ee tere an ee ten Te er et ee eee Tsar ve ct Nootea ory nS est geiey Mare tr ce ene : (enero é eer ee ete ea De eet See eet) eee i ‘ ete ee te en een ee eae Kenny ers Se ent ee rma eee eee tm et rd Ce eee ee ee ene ears ee a ee es ee eT pea APREST: NTACAO 4 Caro estudante, As ondlises de obras literdrias do Sistema de Ensino Poliedro tém como prin- ipol objetivo ojudé-lo a compreender de forma critica e opreciar algumas das principais obras presentes na lista de muitos vestibulares no Brasil ‘Alam disso, fais producées sao tao cléssicas e importantes na literatura que 4 sua letura & fundamental para uma boa formacéo. Se voce é lev todas elas, agora é o momento pora relembrar 0s seus pontos ‘mais importantes e fazer novas descobertos! Para compreendé-las de maneira mais profunda e completa, é fundamental fazer as devidas ligacSes com o contexto social da época e regio, a vida do autor, areolidade de cada periodo, o esfiloliterério, os elementos de referéncia etc. Por iss0, éimportante ressotar que somente a letura dos obras na integra possibilitaré que vocé acompanhe de forma ampla como so construidas as personagens € 0 desencadeomento dos fatos. Ferceba que nos lists de livros de vesibulores afvais ha umo diversidade de géneros e exiensdes, produgbesliterérias mais recentese a inclusao de autores de ouiros paises falanies do portugués. Considere esta, portanto, uma oportuni- dade de amplar seu horizonte de leituras. ‘Atente-se também pora 0 fato de que a escolha das obras pelos exomes também esté ligada @ intencéo de prepord-los pora uma reflexéo voltada oo que acontece no “mundo real”. Temas ligados a querra, o realidade do negro, a ‘momentos de enifania, co bem eo mal e, é claro, co amor so assuntos sempre contemporéneos suitos a diferentes perspectivas e, consequentemente, passiveis de discusséo, Neste volume, sio apresentadas as anélises de seis obras literdrias, com ppersonagons roméanticos e sofredores, como o proprio eu lrico {em Sones); re- flexivas e profundas, como Ana (em “Amor’); esperancosos @ sonhadores, como Tuahir e Muidingo (em Terra sonémbul; conquistadores emalandros, como Leléu (em Lisbela e o prsioneiro); valentées e redentores, como Augusto (em ‘A hora @ ver de Augusto Matraga’|;cruéis.e cultivdoras de aparéncias, como dona Inécia {om “Negrinh”) Que a leitura das obras e deste material desperte em vocé novas formas de conscincia e provoque grandes transformacées! Sistema de Ensino Poliedro * : CTR Lae Od ery rr De ee ar se SUC coin relactio ao mundo que nos cerca! Vamos juntos nesta viagem! 8 INTRODUCAO ¥ Certamente, quando voeé se detém um pouco na literatura portuguesa, dois nomes The saltam logo 20s olhos, Sem diivida nenhuma, voeé jé ouviu falar de Femando Pessoa ou de Luis de Camées, © primeiro foi um poeta modernista, habil como ninguém, que escrevett no inicio do século passado diversas obras, dentre elas Mensagem; neste livro, Pessoa mostra que se inspirou, deliberadamente, em outro nome aclamado da literatura Iusitana, o senhor Luts de Camies, ¢ 0 seu Os Lusiadas. Esta & a obra de maior l6ria da lingua ela literatura portuguesas ese comou uma referéneia obrigatéra, influenciando diretamente a poesia brasileira ¢ husitana dos séculos posteriores. Quando Camées escrevent essa epopeia, Portugal estava no auge do poder, conquistando terras € mais tertas. No decorter dos versos, é contada a descoberta do caminho para as fndias em 1498, na famosa viagem de Vasco da Gana, um acontecimento tio importante que foi responsivel por tomar Portugal o unais forte império do Renascimento ocidental. Por razGes como essa, voce ii pode perceber a gran- de importéincia da obra camoniana, Alisis, Os Lasfadas, por si si, nos proporcionaria matéria suficiente para diversos estudos. No entanto, Cam@es fez muito mais envio se restringiu A poesia 6pica ~ sobre a qual falate- mos um pouco, O esctitor explorou também a poesia lirica, escrevendo alguns dos sonetos mais belos, cujos temas principals eram o amor, o desconcerto do mun- do e a transitoriedade das coisas. Aqui nos centrare- mos nessa parte da obra camoniana, ou seja, na poesia lirica. Entaio, vamos lat , SOBRE 0 AUTOR ¥ Pequena biografia do autor Sabe-se muito poucoa respeito da vida deCamdes, no entanto, apesar de alguns problemas permanece- rem insoliveis por falta de dados biegrificos, o que nos chegou € suficiente para entender quem fot esse que é considerado o maior poeta da lingua portuguesa, Lanfs Vaz de Camées teria nascido em Lisboa, no ano de 1525, e morrido na mesma cidade, em 1580. Ele era, provavelmente, de uma familia oriunda da. Galiza; quando novo, frequentou os centros aristocrs- tivose a vida bo@mia de Lisboa — era uma figura recor- rente nos dois ambientes. Fra extremamente hébil com as palavras, e seu talento certamente favoreci aceitagioda sua pessoa pelas damas mais famosas daquele tempo, como a infanta D, Maria ¢ a dama D, Caterina de Ataide. A aura que citcundava a sua figura proporcio- nou-lhe relacionamentos, inclusive na Corte = 0 que sgerou para ele certos embaracos. Caterina de Ata por exemplo, foi chamada por ele, nos versos, de Natércia - um anagrama, isto é, uma espécie de jogo de palavras, feito pelo rearranjo das letras, no caso, do nome Caterina. Gracas possivelmente a descoberta dlesse “amor”, o poeta foi desterrado. ‘As cartas particulares mostravam-no envolvide em brigas notumas ¢ com mulheres, Talves, justamente, por esse tipo de vida, ele esteve fora dos grandes circu- los de letrados, e pecialmente daqueles que figuravam em tomo de Si de Miranda, Si de Miranda (1481-1558) foi um poeta por- ‘tugués e o responsfvel por introduzis, na nossa lin- sua, o modelo poéticn chamado soneto, bem como o dolee sil nuovo © a medida nova — s6picos que estudaremos mais adiante Nao era apenas no campo amoroso que ele se en- volvia em polémicas. Acreditase que na comédia ELRei Seleuco, Camdes tenlaa feito alusdes ao ento rei de Portugal. Isso porque a historia representada na pega é bastante parecida com a realidade vivida na Corte da épocn: um rei se cast com a excnoiva do filho. E ainda tem mais! Fora do mio das letras, gragas ao tempera mento inconstante e artebatador, 0 escritor ceria ferido, com um golpe de espada, um alto funcionétio de Pago. Camaes foi preso, mas, depois, obteve a liberate sob «a condigio de embarear para a India, no ano de 1522, como um simples homem de guerra No Oriente, ele teve uma estadia bem acidentada: Passou algum tempo em Goa e outro tanto ne Golfo Pérsico, Exerceu a incrivel fungio de “provedor de de- fuantos ¢ ausentes” em Macau, onde naufragou. Aliss, foi nesse episidio de sua vida que ele teria perdido tudo que tinh e se salvado a nado, portando apenas © manuscrito de Os Lusiadas. Diz a lenda que, nesse naufrigio, moreu Dinamene, a sua amada compa- nheira oriental, a qual nio foi salva porque 0 poeta se preocupou em salvar antes os seus manuscritos. Essa & exatamente, a imagem mais conhecida que temos dele: nadando com um brago noar e segurando o livro que tinha comecado a escreves, até chegar em uma gruta, onde continnou a eserevé-o. Em 1549, partiu pata Ceuta, na Africa, Em busca de mais aventura, juntou-se ao exéreito na luta contra fos mouros. Camdes tinha um verdadeiro sentimento aventureiro e, em uma desis batalhas, perdeu o olho direito. Por isso, ele é normalmente retratado com uma pala no olho, tal como os piratas. Cambes permaneceu em Goa até 1557 ¢, apés dois anos, conseguiu retornar i Portugal. No entanto, precisou da ajuda de alguns bons amigos para se manter em Mogambique, onde fizera escala, Em 1569, apds um admirador té-lo encontrado, atracou em terras lusitanas, A imagem que nos relegou © abandono financeire sofride por Camdes cornou-se nos Dois anos mais tarde, em 1572, depois de tanto lutar para obrer a licenga da Inquisigao, ele conseguia finalmente publicar Os Lusiadas, liveo que contava os feitos dos portugueses € eta dedicado a D. Sebastito, que desapareceu na batalha de Alescer Quibir Na época, 0 entio rei concedeu av poeta, pelos servigos prestados ao povo portugués, uma modesta pensio, que nao lhe foi paga regularmente. Os iiltimos anos foram de total pentiria. Doente & ‘marginalizado, Camoes teria moztido em um hospital em 10 de junho de 1580 e teria sido enterrado em uma cova rasa, no Convento de Santa Ana ~ local hoje chamado de Campo de Santana. Na verdade jamais se encontrouo iimulode Camses, masairma-se que, anos apés ofalecimento dele, um certo D, Gongal Coutinho mandou instalar uma hipide, fim de identificar o local coneto. Entretanto, esse marco perdeu-se totalmente quando, jf no séoulo XVI, um forte teremoto balou as rerras de Lisboa. Por coincidéncia, naquela mesma época, Portugal perdew a antonomia polttica pana Espanha, Anualmente, porém, a0 visitarmos 0 Mesteito dos Jerdnimos, é possfvel ver um ttimulo em honra dele, a0 lado do ttimulo de Vasco da Gama, heréi imortalizado justamente pelo poeta em Os Lusiadas. 12 O autor e seu periodo Na Europa do século XVI, circunstdneias ini- ciadas no perfodo do Humanismo se acentuaram. Merecem destaque a proliferacao e o fortalecimento das cidacles, relacionados & ascenso econdmica de uma burguesia mereantil © a0 aprofindamento de uma nova divisao social do trabalho, Outros fatores importantes sao o desenvolvimento das cigncias € as Grandes Navegagies. Para perceber a mudanga, reconde-se que, na Made Média, © feudo era um cerritério fechado e, por isso, quase autossuficiente: produsia o necessirio para a produtos a serem comercializados; quase tudo que Ibrevivéncia dos sens, de modo que nfo havia cera ali produzido, era também consumido. Assim, no existia um comércio expressivo, Por outro lado, as cidades no produsiam 0 que consumiam ¢ cram dependentes do campo e, até mesmo, de outros p: s para a obtengio de alimen- Essa situagio provocou, ni urbanas, 0 creseimento dos fluxos comerciais ~ prineipalmente de caravanas vindas do Oriente ~, alimentados, com eficigncia, pela nascente burguesia mercantil, que se extabeleceu nessas fren © creseimento das atividades comerciais gerou, or sua vez, a necessidade da implantagio de moe- das que fossem aceitas por todos, 0 que permitivia trocas mercantis em grande escala; esse fato favo- rece o surgimento de um sistema bancério que gerenciasse fluxo da moeda e financiasse as ativi- dades mercantis. ia divisio do trabalho manifestou-se nas diver- ‘as corporagdes de servigos artesanais, agora com um mestre artesio, que tinha por fungdo 0 gerenciamen- rode todas esas atividacles e que passou a ser 0 cargo rms almejado pelos aprendizes. A necessidade de encontrar novos espagos & fornecedores de produtos para atender s crescen- tes populagies das cidades impulsionow as Grandes NavegagSes. Houve uma busca desenfreada por territ6rio, de modo @ aumentar 0 poderio da nagio. Acontecen também uma eaga 2s especiarias e a todo tipo de macéria-prima para a Coroa e para a crescen- te e influente sociedade burguesa. Em Portugal, mais precisamente, os séculos XV © XVI foram de grande gléria ¢ desenvolvimento. A nagio era verdadeicamente poderosa no mundo, A riqueza © 0 prestigio conquistados nas Grandes Navegagies, as novas colonia ¢ as descobertas de rotas para as indias favoreceram a incorporagiio da cultura clissica renascentista. © acesso facilitade ae ouro, aos escravos © as cespeciaria as has da Madeira e das Canérias Portugal um papel de destaque no conjunto das na , © também a posse de novas terras ~ como pnferiram ccuropeias. Seguindlo ese plano de conquistas, Portugal se dirigira ao sul do continence afticano, descobrindo uma rota maritima para as indias & para outras localidades da Asia, em um process crescente que culminaria no estabelecimento de um grande império uleramarino, do qual o Brasil rambém fazia parte SONETOS 14 0 Renascimento e o Classicismo © Classicismo foi o movimento attistico-liters- fio que integrou um movimento maior denominado te em todas as esferas Renascimento, que se fez da arte de grande aleance. O Renascimento centrou- -se na Iulia, principalmente em Florenga, embora ci- dudes como Milfio, Roma ou Urbino também renham sido importantes. Da Itilia, ele se alastrou por toda a Europa. A produgio liteniria dese perfodo sincetizou um. ias & formas estéticas de uma socie- conjunto de id dade que procurava diferenciar-se das rafzes teocén- tricas medievais, Para isso, foram recuperados temas, formas, escritos e ideais dos grandes autores clfssicas ch Grécia e Roma antigas. No entanto, essa produgio também criou formas inéditas. Os escritores provinham, na sua maioria, das classes sociais mais privilegiadas ou, entio, tinham relagdes estreitas com elas, fosse por convivéncia ou dependéncia econdmica. A obra do italiano Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, por exemplo, foi dedicada a0 “llustrissimo ¢ Reverendissimo Cardeal Dom Ippolito de Este”. © proprio Os Lusiadas, de Camées, foi dedicado a D. Sebastiao, rei de Portugal. Leia o teecho a seguir. 16 A circulagio da obra literiria ocorsia, na pritica, em situagies de en- conttos sociais ou em festivais na Corte, bem como de ricos mecenias ~ que cecam agueles que financiavam as produgies artisticas. Tor iso, a poesia cera conluecida como palaciana. Nio existia ainda um mercado editorial, em que as obras fossem pro- dduzidas com © propisito de venda. Até mesmo a ideia de um livro de poesia niio estava em voga, ainda. Uma das primeiras compilagées bem- -sucedtidas da poesia palacinna em um fivro foi um eancioneiro, executado por Garcia de Resende em Cancioneiro Geral. Nio nos esquegamos, po- rém, de que a grande maioria da populagio nfo sabia ler; dessa forma, 2 produgiio de livros era um mercado para um pequeno nimero de pessoas, Além disso, a difusto ¢ a divulgagio da imprensa foram diferentes em cada uum dos pafses da Europa. Em Portugal, por exemplo, jana metade do sécu- lo XVI, grande parte das obras em circulagio exam manuseritas, Como vimos, a literatura do Classicismo teve como principal carac- terfstica a recuperagio de temas e formas origindrios da cultura greco- -romana. Isso se deu de forma tio constante que © conceito antigo de mimesis, isto 6, a imitag&o dos autores antigos, passou a ser praticado no cotidiano dos escritores. Por meio desse conceit, dzia-se que um bom poeta era aquele capaz de imitar com perfeicao os grandes poetas gregos ¢ latinos, pois s6 assim estariam aptos a produsir qualquer coisa verdadei- ramente original, Além disso, 0 Classicismo, enquanto é entendido como uma conti- ‘nuacio do Humanismo, aprofundou o antropocentrismo na abordagem dda realidade e da arte e, nesse sentido, mudou a érbita do pensamento, entio ditigida pelo teocentrismo, que era pregado pela Igreja Catdlica, pois valorizou o ser humano como o principio ¢ o fim das ciéncias, e nao adivindade. APRODUCAO LITERARIA v Poesia Epica Poesia Dramatica © Os Lusiodas (1572) ® Auto de Fllodemo (1587) © E.R Seleuco (1587) Poesia Lirica © Anfivides (1587) ® Rimos (1595) Aspectos gerais da producdo literdria do autor Sabe-se que existiram duas edigdes de Os Lusiadas, ambas datadas de 1572. No entanto, a verdade que uma delas deve ter sido impressa posteriormente, mas com essa data, como uma tentativa do editor de, com isso, burlar a Inquisigfo, de modo a evitar que essa ‘obra passasse mais uma vez pela censura da época. 17 © fato € que nio sabemos ao certo qual das duas € realmente a edigio princeps (primeira, principal), especialmente porque as diferengas percebidas entre as duas sio minimas, apesar de serem numerosas. Supie-se que a princeps seja aquela que tem, na folha de rosto, a ilustragio de um pelicano com a cabega voltada para a esquerda (a outra edigho tmz o mesmo pelicano, coma cabega voltada para o lado direito).. Quando © assunto € a poesia lirica, sabe-se que CCames teve, ao longo de sua vida, publicadas apenas quatro de suas composigies: dois sonetos, uma ode € uuma dlegia ~ sendo um dos sonetos de autoria incerta, A quase totalidade da produgio lirica do escritor reve- bet a publicagio somente depois de sua morte. Apis quinze anos do sen falecimento, tendo come ponto de partida alguns cancioneiros manuscritos de diversas origens, divulgou-se a primeita coletinea lirica, de fato, atribufda a Camdes. Ela recebeu o titulo de Rhymas de Luis de Camdes ¢ apresentou diversos problemas, de auroria incerta e de estabelecimento do texto, também. As publicagSes que se seguiram as Rims (nome adotado a partir da segunda edicéo, em 1598) foram incorporando as descobertas da. producio lireréria camoniana, 0 que resultava em adequagies, core «Bes, acréscimo de poemas, bem como em retirada de outros. Apesar dessas circunsténcias, o que possuimos de certo do autor € suficiente para que ele seja consi- derado um dos iaiores poetas liticos da histéria ~ esse titulo é, merecidamente, dele. da prodlugio de Camses. Ele se aventurou pela poesia ele- A luz de um quadro geral, notamos a riquez vada e heroica da épica em Os Lasiadas; ele adentrou 6 universo des sentimentos humanos, das diverg@neias da transitoriedade do mundo que 0 cereava em sua poesia Iirica; e, também, ele passeou pelo mundo do drama ao compor tr pegas de teatro: Awo de Filo: dono, Angers ddas comédias latinas, particularmente as de Plauto, Rei Seleuco © Anjiides, publicadas em 1587 em especial, seyue o modelo das chama- enquanto que Auto de Filodemo ¢ El-Rei Seleuco seguem de perto o modelo de teatro do humanista Gil Vicente: Essas pecas nfo so, porém, to importantes dentro da obra do poeta quanto sua composigio litica e épica. ‘Ode: Composiglo pogtica para ser cantada, as vezes declamada, em homenagem a pessoa amada ou a uma personalidade, seja em uma solenidade festiva, seja em um funeral. Teve origem na Grécia antiga e foi cultivada por Horicio, entre outros. Hlegia: Poema imbufdo de tristeza, composto em forma musical para funerais, na intengio de lamentar a morte, Teve origem na Grécia antiga. Cancioneiro: Compilagio de cangées, com algum registro da musicalidade delas, Os cancioneizos po- dem se dividir de acordo com a época de composigio} por exemplo: medievais, renascentistas, rominticos, contemporineos etc. Os mais famoses cancioneitos sio o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, € 0 Cancioneivo da Ajuda. Apoesia épica A poesia épica do Classicismo inspirou-se nas grandes epopeias greco-romanas e as colocou em voga de novo; por exemplo; a Odisseia, do grego Homero, ¢ a Eneida, do latino Virgilio As epopeias so textos que cantam os feitos hecoicas de um homem ou de um povo. A epopeia maritima, portanto, um texto que exalts os feitos heroicos realizados em alto-mar, como foi o caso de Os Lustadas ~ que canta a viagem de Vasco da Gama e as aventuras pelo eaminho — ou da Odisseia. Esses textos sfo mais do gue relatos de viagem em forma de poesia, situados em épocas distan- tes, Bles registram néo sé informagées geogréficas, mas, também, amores, mits ¢ costumes dos poves, de diferentes pontos percorridos pelos hensis. 19 Observagao; A Odisseia, de Homero, apresenta-nos a viagem do grego Odisseu de volta para casa, em f de o povo aqueu vencer Troia na famosa guerm homdnima. Ele passa por diversos inforttinios, prodigaliz pela ira de Posseidon, o deus dos mares. Com a ajuda de Atena e depois de muitos anos, Qdisseu che} terra, mas encontra a casa tamada por impostores; no entanto, com astticia, vinga-se e reconquista sua vida novamente AEneida, de Virgilio, utiliza-se da mesma materia de Odisseia e de Ilfada, de Homero, pois trata da fuga do herdi troiano Eneias apésa derrota do seu povo na guerra contra os gregos. Eneias, um dos poucos sobrevi- vventes, embarca em uma viagem pelo Mediterraneo e passa por muitos obstaculos e desafios até chegar terra que habitaria, a Peninsula Itélica, onde se toma o simbolo das origens e da gléria do pavo romano. _ 20 A poesia lirica A poesia lirica do Classicismo baseava-se em um conjunto de ideias que procurou se distinguir da pro- dugao postica medieval, embora mantivesse alguns dos elementos dela, Para perceber esse equilibsio entre a inovagio e a continuidade, comecemos observando que, na Made Média, 0 dole stil munvo (doce estilo novo), expressio criada pelo poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), definiu uma concepgio de amor que se considerava uma virtude individual, per tencente somente aos coragbes nobres e puros. Por causa disso, a amada, objeto de afeigio do su jeito que ama, era vista como uma senhora angelic 2, ‘capaz de despertar no amante os sentimentos de per feigio moral, nobreza, gentileza, bondade e elevagio espirimal. Motivado pela beleza espiritual da smada senhora, 0 eu litico expressava seus sentimentas de ma- neira refinada ¢ equilibrada, descartando os arroubos ¢ os excessos da emogio. lente lighcert Oitenta anos depois de Dante, surgiu outro poeta italiano que seria devisivo para a poesia lisica do Chassicismo. Tiata-se de Petrarca, que consolidow a ten denciade valorizara vida interiog apreveitandoa temitica aamorosi, mas, também, com uma vivéneia da turbulén- cia emocional, Influenciado pelo amoy, 0 eu rien des crevin-se como uum ser divicido e angustindo; a0 tentar compreender ese sentimento, constarava seu canster contraditirio, além da instabilidade das coisas e da vida, Francesco Seracrae ‘Ademais, muites poems portugueses do petiodo classicsts manifestavam ainda alguns tragos das eantigas do Trevadorismo, por exemplor o sentimentalismo e a referéncia a circunstncias concretas, em contraste com. © racionalismo €0 idealismo tipicos do espitto cissico, No aspecto formal, a poesia do Classicismo convivia com caracteristicas do Renascimento ¢ com algumas restances da Made Média. Escritores impor: tantes dos séculos XV e XVI incorporaram as novas formas posticas surgidas predominantemente na It lia, como o soneto e as medidas longas ~ agora com versos de dez, onze ou doze sflabas poéticas. 21 Aestrutura do soneto A forma poética soneto originou-se em Provenga, na Franga,¢ teve Petrarca como oseu principal dfusos no século XIV. Trata-se de uma composigio formada por dois quattetos Hi dois tipos de soneto: o italiano € 0 in- glés. O soneto inglés, eternizado por William Shakespeare, constitui-se de tés quartetos € (conjunto de quatro versos) e dois tercetos (conjunto de urés versos), contend 14 versos no total. O soneto, aliado A retomada da cultura clissica greco-romana, propiciou a ym dfstico (estrofe de dois versos). O soneto grande mudanga da literatum, no Classicismo,¢ estabeleceu-se, italiano é o mais conhecido apresenti-se desde entio, como uma composigio trudicional € como a em dois quartetos e dois tercetos. rmais famosa da irica ocidental, Em Portugal, osoneto foi introduzido por Sé de Miranda. Veja a seguir um exemplo de soneto desse poeta: Soneto Ossol é grande: caem co'a calma as aves, do tempo em tal saxiio, que sbi ser fra Esta dguat que dato cai acordar-m'-ia do sono ndo, mas de cuidados graves © cousas tadas wis, tndas mudaves! Qual é tal conagao qu'em ws confia? Passam os tempos, vai dia tras dia incertos muito mais que ao vento as naves. Ex vin jd aqui sombras, viva flores, wi tanta dguas, vi tanta verdura, as aves todas cantavam d'amores Tudo é seco, e mudo, ¢ de mistura, também mudando-m'-eu fiz doweeras c E tudo 0 mais renova: isto é sem curd “8 de Miranda. "O sol grande: caem co’a calmo os oes". In: Cinco sfeuls de sone portugueses: de Canes @ Femando Posing Cleorice Berardinelli org). 1 ed. io de Joneio: Coto de Polowo, 2013 22 A coexisténcia da medida nova e da medida velha Alem de introduzir © soneto em Portugal, $4 de Miranda trouxe, da producio poética italiana para as letras lusitanas, os versos decassilabos, isto é, com dez silabas poéticas, que caracterizavam o que se conven- cionou chamar de medida nova. Enquanto osoneto ¢ os verses decasstlabos ganha vam terreno, algumas formas tipicas da liveratura medieval, como asredondilhas~com versosna medida vetha, ou seja, de cinco ou sete slabas poéticas -, permaneceram no repert6rio portugues. Essa conv vei (medi poeta, tamanha era a sua forga. ada medida nova (classicista) coma medida velha, al) ocorre inclusive nas obras de um mesmo Can tiga De cor do Homie: \ Do men corucie. Fichas Cronpe.gue te estendas cra ice: evellias, que rela Gade, ‘vease prasie fondo: of ervas vos mantentios ‘anste mete allivie: Virco sie 0s campos Fisst site.o Mics que traze Verio, vesse mantimenite eeu das fombiranens nce entendets: ame ccrociio iisse gue comets sie. goureus dis Mies de meu coreg Amedida velha em Camées A medida velha se apresentava nas redondilhas, cra chamadas de menores ~ quando possuiam cinco silabas posticas -, ora de maiores ~ quando possufam c. Em Camies, as redondilhas apresentam primei- mamente um more, que € 0 tema do poema e pode ser de autoria do poeta ou vir da sugestio de alguém {mote alheio). Na sequéneia, aparecem uma ou mais estrofes, conhecidas como glosas ou voltas, nas quais se desenvolve a ideia apresentada no mote. Na maio~ rin das vezes, 0 poeta era desafiado a compor um poema a respeito de um dado mote, a fim de mostrar © préprio talento. Observe esta cantiga: qoepasceis, drmbannente A cedondilha, conforme sua organizagio, podia seceber designagGes especificas, como trova, cantiga, vilancete etc. ~ es s formas eram famosas nas produ- gies do Trovadorismo. Trova: A principio, um poema, ou uma cangio, muito comum, que em declmado pelo proprio poeta, chamado de trovador Com o passar do tempo, chamou-se de trova a forma que hoje €co- nhecida como quatro versos em redondilha maior ‘Cantiga: Genero Iirico ~ encontrado nas regides da Galicia e de Portugal, entre os séculos XII e XIV ~, que se diversificava de acordo com 0 tema, nos seguintes subgénemos: cantigas de escmnio & maldizer, cantigas de amigo, cantigas de amor. ‘Vilancete: Poema que tinha um mote seguido de ‘uma ou mais estrofes, cada uma com sete versos. O vilancete e a cantiga se diferiam entre si em ra- zo da quantidade de versos no mote. Ele tinha dois ou trés, enquanto ela tinha quatro ou mais. 23 Camées compos redondillas, em sua maioria, amorosas, sobre um sentimento associado & beleza 8 calimaria dus paisagens bucclicas. Os modelos de be camponest ¢ a refinada dama da Corte, 3s quais 0 poe- femninina, em especial, oscilam entre a graciosa ta dirige seus versos de amor, as vezes mais espiritua,, coutras ma Porém, fugindo a padres como eses, existe um belo exemplo de redondilha no qual Canes celebra a beleza da negritude, eremizada em versos de paixsio undechas (quadras) a Barbara escrava"s «seguir, ranscrevemos a primeira estrofe: nsu afogueada, as Trovas. «uma cativa com quem andava de amores chamada Barbara Aguela cativa, ‘que me tem cativ, pene nela vivo jd ndo quer que viva Eu numea vi rosa em suaves molhos, ‘que para meus olhes fosse mais fermosa. 24 Nos dois primeizos verses, Cams mostra o quan to © amor por vezes nes prende ao ser amado, Nos outros, podemos notar que os olhos so uma imagem poderosa nas redondilhas camonianas. Quando usa dda para expressar o importante tema da saudade, essa 10 da imagem se apresenta como canal de comuni alma, como aparece, também, neste fragmento: Sede saudade momerei ow nto, ‘meus olhos dio de mina verdade. Por clos me atrevo alangar as dguas que mostrem as magoas que nesta alma levo, CANTIGA, "Se de sovdade’ Além do amor, a medida velha camoniana explora um tema que remonta as origens da poesia lirica ocidental: deseoncerto do mundo. Por meio dele, © poeta explora a visio de um mundo absurdo, dle natureza dinimica, muitas vezes dificil de compreender, ¢ revela o quanto 0 eu litico é frigil ¢ inconstante, Muda-se o tempo todo, ¢ a mudanga {gora um sentimento de tensio e desconforto. Devido a isso, tudo sempre parece dar etrado, um fracasso total ~nio hs nada a ser feito para evitaro fado (o destino). Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; «pnts mus me espana, os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos. Cuidando alearncar assion 0 bem tao mal ordenado, fui manu, mas fui castigado: Assim. que, 6 pana mim. coda 0 mundo concertado, ESPARSA. ‘Os bons vi sempre pest” Aspectos gerais sobre a obra analisada Os Sonetos de Camées Se Si de Miranda foi o responsivel por introduzir © soneto em Portugal, Camies foi 0 protagonista do set criunfo, por fazer com que esse genet postico se consolidasse cle uma vez por todas em terras hisitanas. O eseritor seguiu de perto as regras de composigao e, sobretudo, obedeceu rigorosamente os principios da imitagio dos clissicos, em especial, a imitagio do ita- liana Petrarca. A forma breve do soneto, unida aos versos decass Jabos, foia ocasido propfeia para que Camdes imprimisse 1no papel suas ideas eas defendesse com maestria. Geralmente, em seus sonetos, predominam as te- miticas do amor e do desconcerto do mundo, como uma preocupagio de mostrar as afligées humanas & os seus anseios ou uma forma de expressar a incom- preensio a respeito do prdprio tempo. A linguagem do poeta costuma apresentar jogos verbais e concei- nuais, metSforas, antiteses, comparagdes, paradoxos ¢ hipérboles. Seus sonetos apresentam emogSes, mas também desenvolvem raciocinios. ‘Os dilemas existenciais sao disciplinados: a expres- so © as emogées surgem contidas, porém comoventes. A perfeictio desejada pelo poeta é limitada pela condigio humana. A tensio lirica que nutre o texto camoniano nasce das oposigées entre 0 real e 0 ideal, o eterno € 0 transit6rio, a morte ea vida, o pessoal e 0 universal. Predomina o desajuste entre o que se desejac o que se consegue, fizendo com que o poeta nao encontre harmonia entre a vida ideal, marcada pela busca do amor ea concretude da realidade, Ainda ¢importante destacar que 0 escritor enxerga na interiorizagao uma forma de atingira plenitude divina, sendo ela uma via de escapar da aparente irracionalidade do mundo, Os temas e a andlise dos poemas Embora seja impossivel determinar com certeza a data de composigio dos poemas, € razofivel aceitar a ideia de uma evolugio no tratamento dos assuntos ao longo do tempo. Isso € 0 que sugere o estudo do tema central da fica camoniana em medida nova: 6 amor. Camées lirico: 0 amor, o desconcerto do mundo & a transitoriedade das coisas Doce comtentamento jé pussado em que todo mew bem jé consist quem vos levou de minha companhia e me deivou de ws tao apantado? Quem cuidou que se visse nesse estado, naquelas breves horas de alegria, quando minha ventura consentia «que de enganos vivesse meu euidado? SONETO. ‘Doce contrtmerto js pots’. Observacio: / Perceba que, tanto nas redondilhas quanto nos sonetos, nem sempre os versos comegam em letra maitiscula, pois tratam-se da continuagio sintética, do verso antetior. Esse recurso estilistico, no qual tum verso se estende no outto, & conhecido como enjambement ou encavalyamento. A taafio renascentista procurava compreender as coisas para destitutdas de seu mistério, Camdes, por suta vee, fila sobre elas para constatar que hii no mundo tum enorme desicerto, uma mudanga constante, Esse aspecto, aliado a0 rigor do trabalho com a lin- |quagem, tornou os poemas liricos do autor um modelo para as yeragdes seguintes. O poems abaixo, por exem- plo, tomou-se uma referéncia fundamental do tema “desconcerto do mundo”. COMTAYAS. “Quem pode ser no mundo io quilo” Os limites da compreensio ricional ni con- seguem abarcay segundo 0 eu litica, todas as incer tezas © inconsifineias que cercam 0 ser humano, essa é a maior realidade da vida, De certa forma, ‘Camées jf anuncia uma imagem viva e impregnada de pontos ebscuros, inalcangéveis pela mzfio, percebida com angiistia pelos sentimentos, que tomava o cu livico cada vez mais depressivo ¢ desesperancado. Alma minha gentil, que te partiste 27 ‘Osoneto anterior foi escrito em medida nova, ou seja, versos decasslabos, e possui o esquema de simas cem abba-abba-cde-ded (interpoladas nos quartetos, alternadas nos tercetos). Vejamos a escangiio do primeiro verso do poema: Alma minha gentil, que te partise As sflhas dle um poema sio contadas até a iltima sflaba tOnica do verso; no caso desse verso apresentado, dispensi-se © -e final. Nemes, cliramente, que ele tem dezsflakas posticas, so aeontece ao long de todo © poe- ma. Também, é importante lembrar que as slabas posticas: fo contadas conforme a emissio dos sons, ou seja, nem sempre coincidem com as sflabas gramaticais. Para provar, vejamos.a escangio do tiltimo verso do segundo terceto: roge a Deus, que teus anos encurtont afDeus| que teu sa | no | sen cur tow tfz[3 [alsfelz[s[ofw Provada a contagem das silabas poéticas do poema, passemos & matéria apresentada, Q soneto fala sobre a perda da amada pelo eu Iirico, que aqui se confunde com 0 proprio poeta, Dinamene, a chinesa amada por Canes, morreu em um naufrigio, por volta de 1560, nna costa do Camboja, Esse naufrégio € famoso, pois foi nele que Camées salvou seus manuseritos de Os Lusiadas quando no pode salvar a armada, Nota-se alguns elementos de platonisme no poems, pois o eu litco jamais aleangard aquele amos, uma vez «que a sua amada partiu para sempre, em razio da morte, essa forma, nia primeira estrofe, o eu lirico ditige-se 1 amada lamentando a vida que se segue, depois da par- tida ~ “Sempre iste”. Também é importante observar as antiteses marcadas pelos advérhios ld eed i 60 C60, a nova morada da mulher amada et é terra onde vive desencantado 6 eu ltico. Note que essas antitesesrefor- cam a distancia entre eles, sendo mais uma evidéncia de um amor que nunca se concrevizart Na sequéncia, © eu lirico contempla a amada no “assento etéreo”, observando-a em uma esfera cespititual, Entretanto, ha também uma alusio a vida ha terra, em uma referéncia ao amor fisico: “nao te esquegas daquele amor ardente / que jé nos olhos meus to puro viste” Nos tercetos, evideneia-se 0 softimento decorente da penta repentina da amada e pede-se aos céus (@ divindade) que oamante seja levado, a fim de que pos- sa teencontrar-se coma amada, precocemente morta Além da temética do amor, do amor realizado € fisico, que parte e se fiz ausente, podemos ainda inserir o poema na temética da transitoriedade das coisas, que, emum momento, oeu lrico ests com sua amada e, repentinamente, depoisde umnaufrigio, ele a perde completamente. £ um estado de vida que muda ‘eque faz 0 eu litico passar da calmaria doamor corres: pondido para a angtistia e a melancolia da perda. ‘Amor é um fogo que arde sem se ver Este certamente € 0 soneto mais famoso de Camées. Mostea de forma clara a contsadigio por que passa o eu lirica; foi nada mais do que uma tentativa sua de definir o que é 0 amor, mas que, na sequéncia dos versos, niio obteve sucesso, revelando que o amor nfo pode ser definiddo de maneira precisa. Afinal, esse & um sentiment tio contradit6rio que rvio consegue ser plenamente definide, Dessa forma, percel 1¢ um jogo de paradoxes durante todo 0 poema. Analisemos eom mais detalhes. © soneto props postica do amor O eu lirica tenta definir um senti- desenvolver uma definigio mento indefinivel e explicar o inexplicével, colocando imagens opostas € paradoxais para caracterizar esse “mistério". Para Camées, o Amor (com maitiscula) & ideal, superior, perfeito, tinico e, consequentemente, inalcangével, pois somos imperfeitos e incapazes de aringir essa ideia (cides, a forma plardnica), por maiores que sejam as tentativas. Esse carter do transcendente, além da realidade acessivel a0 homem, revela alguns sragos do platonismo na poesia eamoniana, 29 Observacéo: / Paradoxo: figura de linguagem que consiste na reuniio de ideias ¢ imagens contraditGrias © parentemente inconcilifveis e excludentes. No fundo, apresentam-se como antiteses, ou seja, figuras contrarias; porém, sua associag%o torna-se: aparentemente absurda. E um recurso bastante usado pelos poetas. ‘Os enunciados antivéticos compdem uma pro- sgressio ldgica, na qual se expte a matureza paradoxal cdo amor: a segunda parte de cada verso complements primeira, aproximando realidades distintas e impossfveis de acontecerem 0 mesmo tempo “ferida que déi e info se sente”. Percebemos que a oposicio também acontece entre 0 material (ensivel) e o espititual ~ “dor que desatina sem doer” ~ durante todoo soneto, caminhando para o questionamento final, que traduz a perplexidade cxistente diante da impossibilidade de definicio e de compreensio do sentimento amoroso: “Mas como causar pode seu favor / nos coragdes humanos amiza- de, / se tio contrétio a si 0 mesmo Amor?” Observagé / A banda brasileira Legiio Urbana transformou este soneto em parte de uma de suas misicas, muito conhecida, chamada “Monte Castelo”, Jf os versos ‘que iniciam a letra “Ainda que eu falasse a lingua dos homens falasse a lingua dos anjos, sem amor eu nada seria", foram baseados em um trecho da Biblia, o “Cantico do Amor” (1 Corintios 13). — 30 Descalca vai Leanor este moto: Descalga vai pans a forte Leanor pela verdura, Vai formes, nao segura. Voltas Leva nat cabegs 0 pote, 0 wsto nas mins de prata, cinta de fina escarla sainho de chamalou; cou a sasquinbs de cove, mais branca que « neve pura; vai fermosa, e nao segura. Descobre a rouca a garganta, cabelos de ouro 0 trangado, fita de cor de encamado, tao linda que o muendo espanta; chove nela graca tanta, que dé graca a fermosura; vai fermosa, e nao segura. Este poema, apresentado na forma tradicional ¢ trovadoresca do vilancete, parece um daqueles resguardados nos cancioneiros. Composto com refe- réncia a um mote, o poema é desenvolvido pelo poeta nas glosas, em redondilhas menores, de sete silabas poéticas. Vejamos a escangio: Leva na cabega 0 pote, Le| va |na | ca amy Thabstats tela O testo ns mdos de pata, Ae Th2tstals lela Reparemos, com atengio, outro trago tipicamente das cantigas trovadorescas: a presenga «le um. refiio «que vaise repetindo ao longo do poema, em cada iltima verso das glosas: “Vai fermosa, ¢ niio segura”. E interessante, também, notarmos a diferenga de abordagem da figura feminina nesse poema em compa- ragdo aos sonetos apresentados anteriormente. Nesse vilancete, o lirismo esta na descrigao fisica da mulhes, nos detalhes da sua aparéncia, partinds de um mote inicial. O titulo “Voltas” evidencia a retomada do mote. Pede-me o desejo, Dama, que vos veja Pede-me o desejo, Dama, que vos veja, iio entende o que pede; esta enganudo, E este amor tdo fino e tio delgado, que quem o tem ndo sabe o que deseja Nato ha cousa ct quall natural seja que ndo queira perpétuo sew estado; iio quer logo o deseo o desejado, porque ndo falte numca onde sobeja. Mas este puro afeito em mim se dana que, como a grave pedra tem por arte centro desejav da naturexa, assim o pensamento (pela arte que wai tomar de mim, terrestre[e] humana) fei, Senhora, pedir esta baixeza Nesse soneto, encontrames uma reflexao sobre © amos mas de um amor que ainda no esta certo, ‘Tem-se diivida sobre o que realmente se sente, Um anor inicialmente repleto de paixio © com desejo carnal, que, posteriormente, ao niio se realizay passa a set espititual ©, consequentemente, plat6nico: situado na oposigio entre o amor carnal e sensual ¢ 0 tumor ideal e platdnico. Ao que parece, nos sonetces supastamente de juventude, a deseoberta amorosa & hiperbélica, uma vivencia exagerada e confusa. A euforia eo tumultoda alma que se percebem no soneto a seguir, denunciam outros aspectos dessa experincia juvenil ‘Tanto de meu espirito me acho incerto Tanto de meu estado me acho incerto, que em vivo ardor tremendo estou de fro; sem causa, juntamente chow e vio, omendo todo abarco & nada upon E tudo quanto sinto, um desconcerto; dk ana an fogo me sa, da vst um to; agora espero, agora desconjiv, agora desvario, agora acento Esandlo em tena, chego ao Céu voanulo, ruanthora acho 1 anos, eé de jeito que em mil anos ndo posso achar um hora. Se me perguna ale ém porque assi ando, respondo que nao sei; parém suspeito que s6 porque vos i, minha Senhora Nesse soneto, o autor fala de um “desconcerto”, um sentimento de inquietagao que se manifesta por meio das antiteses ¢ das hipérboles, resultando em uma constante tensio entre o que parece (a aparén- cia) © © que é (a esséncia). Logo no primeito verso, ‘esse desconcerto fica evidente, pois 0 eu litico afirma a propria incerteza: “Tanto de meu estado me acho incerto”, © motivo da perturbagio € 0 sentimento que foi despertado pela simples visio da “Senhora” amada, 0 que © autor assume, no iltimo verso do poema, apre~ sentando a remitica amorasa mais evidentemente. Suspeita-se que sio da juventude também os sonetos em que o amor € uatado galsntemente, da maneita mais cortesi posivel, com otimismo e con- fianca, em uma atmosfera de sonho, tal como neste ‘outro soneto: 31 Eu cantarei de amor tao docemente iw cantare de amwr tio docemente, por uns termos em si tdo concertados, que dows mil acidentes namorados {aga sentir ao peito que ndo senue. Farei que amor a todos avivente, pinusndo mil segredos delicados, drandas ns, suspiros namorados, temena onsuilia e pena auserte. Também, Senhora, do desprezo honesto de vossa vista branda e rigowosa, contentar-me hei dizendo a menos parte. Porém, para cantar de wosso gesto (rosto) a composigdo alta e milagrosa, agi falta saber, engenho ¢ arte. Na edigio de 1595, 0 verso 7 se escreve tal como citado: “brandas iras, suspiros namorados”. No centanto, em edigio posterior de 1598, a palavra namorados foi trocada por magaados. Esse & um cexemplo das dificuldades encontradas até hoje para se estabelecer e publicar os textos posticos da lirica de Camoes. esse soneto,o eu liven prope cantar o Amor com uma propriedade tal, a ponto de conseguir despertar ese sentimento até mesmo em quem niio sente. Além disso, dle pretende conter a expressio do sefimento, despertado pelo desprezo honesto do olhar da sua “Senhora”, Entve- tanto, ele reconhece, com falsa modéstia, a limitagio de sua poesia, 2 qual faltariam o suber, 6 engenho ea arte.

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