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ESTANTE DE PROBLEMATICAS II : = CASTRACAO SIMBOLIZACOES Laplanche, J. — A Angiistia Laplanche, J. — Castragio/Simbolizagoes Futuros langamentos Laplane Bion, Ferenc, 8. — Diirio Clinica _#-Laplanche __ Oras Beteein, B. Orientagdo Psicanalitien = No Interesee de Criange? ea Mie ida Formagdo do Psicenaisia Winnie 3. Wi, ~ brivagao'e Behaabencia Martins Fontes Tituto original PROBLEMATIQUES II: CASTRATION—SYMBOLISATIONS Publicado por Presses Universitaires de France, Paris © Presses Universitaires de France, 1980 1 edigdo brasileira: junho de 1988 Indice Tradugao: Aware Cabral Revisdo: Monica Stahel M. da Silva Revisdo téenica: Luis Carlos Menezes, da Sociedade Brasileira de Psicandlise de Sao Paulo Revisdo tipogrifica: Coordenagdo de Mauricio Balthazar Leal Adverténcia i 1. Castragio: seus precursores € seu destino Producdo gréfiea: Geraldo Alves Composigdo: Artestilo Compositors Grafica Capa: Alexandre Martins Fontes Todas os direitos para a lingua portuguesa reservados & LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 (01325 — So Paulo — SP — Brasil — 6 de novembro de 1973 Na confluéncia da angistia e da lei “A evidéncia” da angistia de castragio . — 20 de novembro de 1973 Labilidade do vinculo entre angistia € castrago Especificidade da castragao em psicandlise Autonomia do pénis © que &utado de qué’ Percu'so de Freud — 4 de dezembro de 1973 Teorias sexuais infantis ....... : Diferenas dos sexos e distinefo dos géneros © conflito psiquico e 0 segredo O unissexo. .. » © suas conseqiiéncias . 1 4 16 18 19 24 24 26 28, 32 — 18 de dezembro de 1973 — 16 de abril de 1974 © complexo de castrago na evolugao Dos elementos empiricos & universalidade do da sexualidade infantil : 36 complexo: trés dire 98 A fase filica ....... 38 As fantasias originérias 98 Diversidade e diferenca a) A via genética: os precursores 105 Diversidade dos érgdos sexuais? ....... 42 Independéncia do afeto e da representacio. 105 © atributo como qualidade ¢ como insignia ....... 44 Penis e falo 8 — 30 de abril de 1974 — 15 de joneiro de 1974 © trauma do nascimento ceveeeeeeeees 108 ? As angistias infantis . a ut Colocagio do complexo de castragdo no menino .. 50 ‘A irvelevincia da castracéo : ari A Nogica félica Bos Os ingredientes do complexo de castragio .. 53 7 de maio de 1974 Castragio e narcisismo _ 54 A percepgfo € @ ameaca 57 A anpistia de morte e 2 angistia do nascimento .. 123 A fantasia do segundo nascimento : . 127 — 29 de janeiro de 1974 Freud ¢ 0 trauma do nascimento: argumentaclo contra Rank vevttteteteee 130 © impacto do complexo de castragio no Edipo 60 ‘A castragio, sangio da loi .....-.seccceeeceee 63 ene ‘A castragio como lei : 66 21 de mato de 1974 Ambigtidades da nogo de perigo .... 137 — 5 de fevereiro de 1974 Pontuigdo: insuficigneias de Inibigdes, siniomas € Complexo de castragio na menina ... cee OT cue ae coterie ee Auséneia da ameaca? .... ee: 70 Solugées do complexo ......: B IL. Simbolizagdes — 5 de margo de 1974 —5 de novembro de 1974 Diferengas do complexo de casttaco no menino e Situago deste curso . 149 na menina cee 76 Rememoragdo da problemética da castracao 153 A inveja do penis me / 7p Castregio e simbolizacio 160 © tabu da virgindade : ee ail — 26 de novembro de 1974 — 19 de mareo de 1974 ‘A casiragio: problemas de seu status metapsicolégico 163 Introdugo do ponto de vista intersubjetivo .... 86 ‘A cizcuncisdo: a propésito de As feridas Mulher castradora e mulher falica ...........-. 9 simbdlicas, de Bruno Bettelheim .............-. 168 3 de dezembro de 1974 Critica da cizcuncisio como castracio simbélica . Os argumentos clinicos de Bettetheim Interpreiagdo de circuncisio ritual Os mitos referentes & circunciso 17 de dezembro de 1974 © ritual € © desejo de feminilidade A subinciséo .. ee Roheim e, Bettelheim: amputacio e ferida As teses fundamentais de Bettelheim 18 de fevereiro de 1975 O simbolo: seu conteiido © seu sujeito Reik: desenvolvimento das teses freudianas a propésito dos rituais de iniciagao Reik: contziido e sujeito do ritual : O interdito: interpretagio estruturalista © interpretagio psicanalitica 4 de margo de 1975 18 de margo de 1975 Groddeck e 0 judafsmo : Stekel: a ambivaléncia do simbolo A cireuncisiéo mugulmana 15 de abril de 1975 Simbolo, simbolismo, simbélica “Castragiio simbélica” e cireuncisio Sintoma, sfmbolo mnésico, simbolizagio 175 178 184 187 190 194 197 198, 203 205 212 216 221 226 230 236 241 244 247 252 — 29 de abril de 1975 Interpretagdo simbélica e elaboragao secundéria Simbolismo ¢ “sonhos tipicos” “sonho de morte de pessoas queridas” — 6 de maio de 1975 A. ausineia de disfarce Dois aspectos da simbolizagio Afeto e simbolizagio: o exemplo da fobia ‘A migragao da fobia: das psiconeuroses & neuroses atuais ‘A migrago da fobia: retorno as psiconeuroses — 20 de maio de 1975 Ambigiidade de Inibigdes, sintomas e ansiedade ‘A. angistia,e 0 ataque pulsional Niveis da simbolizagio da angistia Uma simbolizagao bemsucedida? .... 254 263 265 267 270 273 214 278 283 286 287 289 Adverténcia Desde 1562 na Ecole Normale ¢ desde 1969 na UER™ des Sciences Humaines Cliniques na Sorbonne (Université Paris VII), yerho buscando ¢ expondo, num curso piiblico, um método inter- pretativo e de levantamento de problemas, ao longo de certos eixos principais da teoria psicanalitica, Sob o titulo geral de Probléme- tiques (Probleméticas), os cursos @ partir dos anos 70-71" esto aqui reuntidos. O texto oral sofreu apenas as modificagbes neces- sdrias 2 sua publicacao em tivro. Os temas dos anos sucessivos encadeiamse segundo uma 16- gica que nade tem de deliberada: 0 percurso rege-se ao mesmo tempo pelo conteido e por minha evolugao pessoal. $6 depois descortinei a possibilidade de, sem excessivos artificios, reagrupar cesses temas num certo mimero de volumes. O ciclo de wm curso anual é iniciado, na maioria das vezes, por uma intreducto metodolégica mais ou menos extensa. Impres- sas em itélico, essas introducées dispensamtme de retomar aqui suas idéias. Sio 0 relato de uma reflexo posterior sobre as moda- lidades de minha abordagem e sobre a legitimidade de desenvol- vela “na universidade”. E evidente que o leitor, segundo suas disposigdes ¢ sua dis ponibilidade, poder reagir a esta publicacto de duas maneiras. elassicismo das nocdes apresentadas, 0 fregiiente recurso ao comentério eritico, os retornos e as repeticdes (exigidos pelo © Unité dEnscigment et Recherche: Unidede de Ensino’ e Pesquisa. (W. do 7) |. Foram inicialmente publicados no Bulletin de psychotogie, depois, a partir de 1974-1975, na revista Paychanalyse & "Université. fato de me dirigir, a cada ano, a um auditério em grande parte novo) poderdo fazer com que estes textos sejam considerados tum exemplo da muito desacreditada “exegese freudiana”. Ou entao, creditande-me uma certa paciéncia e benevoléncia para acertar 0 asso comigo, talvez 0 leitor seja receptivo a certos aprofunda- mentos ou a certas sondagens, na tentativa de abordar a propria teoria levando em conta 0 método analitico, de modo a fazer ranger determinadas articulacdes ¢ a derivar certos conceitos. Através deste modo de tornar problematica a doutrina, mas também a his- \6ria ¢ a clinica, esbocase a configuragao de wma outta tematica. Castragao. seus precursores € seu destino — 6 de novenbro de 1973 Um pensamento nao-dogmético como © que tentamos instau- rar no seio desta UER deve esforcar-se, ao mesmo tempo que so expoe, para deixar ver como caminha. © tema deste ano, em meu encaminha- NA CONFLUENCIA mento, & 0 da castragfo. Ele se encontra DA ANGUSTIA nna confluéncia de dois outros temas que EDA LEI expus em anos precedentes. [Cf. Pro- bleméticas I, A angdstia, Martins Fontes, 1987]. primeiro foi o da pulsiio em sua relacio com a angiistia. ‘Abrimos essa questo a propésito do caso do pequeno Hans, que mostra, com efeito, essa relagio intrinseca, totalmente estreita, en- ‘re 0 surgimento do desejo e a angistia, Uma conclusio provi- sdria desse caminho era de que a angistia pode ser definida, numa certa Gtica, como a maneira subjetiva de apreender uma certa mo- dalidade do ataque interno ao individuo pela sua propria pulsio. Outro tema: o chamado problema das normas e, em particular, © das normas morais, problema que eu quis colocar nio tanto 20 nivel sociolégico ou filos6fico geral mas ao nfvel da prépria expe- rigncia psicanalitica. Era, portanto, menos 0 problema da origem 2 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES das normas do que o de sew impacto no individuo. O impacto, ou seja, de um lado: 0 que constitui sua forca viva? Em que consiste sua energia? E 0 que, em termos analiticos, se chama o problema econémico. Por outro lado, 0 que constitui seu ponto de ataque, out de aplicacio, no individuo? Onde funcionam as normas? Em que se apéiam para atuar? Em que parte (no se deve hesitar em pronunciar palavras como esta) do aparelho psiquico a norma en- contra seu ponto de aplicagao? Problema que denominamos t6pico. Enfim, qual é, historicamente, no individuo, seu modo de surgi- mento ¢ de subjetivago? Problema que denominamos genético © se coneretiza numa questio debatida desde longa data em psica- niflise: a das origens do superego. A{ encontramos um fato sur preendente: boa parte das origens da angtistia moral, em outros termos, 0 préprio superego, em grande parte, € pulsional. Nés 0 vimos ao estudar um caso como o do Homem dos Ratos: trate-se de um pulsional particularmente arcaico — feroz, nesse caso — em que 0 superego encontra sua encarnagdo em ratos que penetram no fnus do paciente. Apesar de tudo permanecia o problema da existncia de uma lei que se referitia no diretamente & pulsio, com seu carter destrutivo e andrquico, mas @ um certo ordenamento, a ‘uma certa regulacdo da pulsao. Diz-se, por certo, que € a lei do com- plexo de Edipo, entendendo-se que se trata da lei de uma neces- sdtia separaglo dos sexos e das geracées. Entretanto, em psica- nélise, desconfiamos (e eu pessoalmente desconfio) do répido re- curso a uma transcendéncia, E essa distingzo de duas fontes da moral — uma fonte pulsional ¢ uma transcendente, legel — exige {are Fonte transcendente: entendo-a como aquilo que, aberta ou sub-repticiamente, se produz quando cedemos & propensio de escrever com maitisculas certas insténcies: 0 Pei, 0 Outro ou a (ai. Seja 0 que for que se diga sobre o problema da transcen- déncia da lei, o certo & que nos encontramos, atualmente, no ponto de cruzamento desses dois encaminhamentos, um referente & an- gistia e 0 outro referente a legalidade ou as normas. Ora, esse ponto de atticulacio é, muito precisamente, em psicandlise, © cha- ‘mado problema da castrago. Ele.nos leva em primeito lugar, numa espiral (como, alids, teremos muitas outras 2 percorrer), a0 pro- CASTRAGAO: SUS PRECURSORES E SEU DESTINO blema do pequeno Hans ¢ & famosa angistia de castragio que nele foi descoberta por Freud. Angdstia de castragao € um termo hoje perfeitamente admitido em psicandlise, mas € uma angistia que dove ser situada entre muitas outras: angistia, por exemplo, de fragmentagéo, de separago, etc. Portanto, apresentarse-4 0 pro- bblema da relagao entre a angistia de castragao (@ qual Freud, pro- gressivamente, atribuiré um lager central) ¢ as outras angtstias numerosas, multiformes. Em Inibigdes, sintomas ¢ ansiedade, a angistia de castragdo é apresentada como um verdadeiro ponto de perspectiva que é 0 tinico a partir do qual, a maiotia das vezes retrospectivamente, mas também prospectivamente, & possfvel obter uma visao completa, exata, bem situada, dos outros tipos de an- istia, A psicardlise nus eusina, neste ponto, a derrubar um certo mimero de evidéncias fenomenolégicas muito solidamente estabe- lecidas, seja a chamada evidéncia da prioridade da angtstia de morte, que @ andlise nos mostra com que freqiiéncia se reduz, de fato, a outras angéstias, e principalmente & angistia de castragio; seja esse outro importante tipo de angistia cujas relagses com a angistia de castragdo deveriam igualmente ser estudadas: a an- gistia da perda de amor. Assinalemos que Freud, por mais de Juma vez, considerou essa angtstia a contrapartida da angistia de castragao, principalmenté na mulher. & antes de tudo, evidente- mente, a angéstia da perda de amor da mée. Em todo caso, @ angtistia ¢ seu problema levamnos & questo da angtistia de cas- tracdo e, evidenfemente, se aceitamos por outro lado a defini¢ao da angistia como tradugio subjetiva do ataque_pulsional interno, estamos bem Tonge da angistia como falo de temer um ataque corporal, que seria oda castragio. Ha, portanto, uma série dis- idacia a perConer, justamente aquela que liga © separa-os termos angistia ¢ castragio. Q que se quer dizer, exatamente, quando se fala de angistia de castracio? E a ameaca de castragio que gora essa angistia, ou essa angustia ndo estaré ligada, de uma outra maneira, & castragio? © termo kei, por seu lado, remete também & castragio como castigo, como pena maior infligida a0 sujeito. Lei de castrago. O termo é, de inicio, ambiguo, contendo a possibilidade de um duplo sentido, de um duplo tipo de imperativo, para retomar tempora- 4 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES riamente uma distinedo de tipo kantiano, O sentido mais simples ¢ que parece dbvio é 0 de considerar essa lei de castrago como 0 correlative de um imperativo hipotético. Em outras palavras, a Iki seria enunciada assim: “Se no te submeteres a tal linha de eonduta, serés castrado.” A linha de conduta em questio — e & af que vemos 0 vinculo fatimo que liga os dois “complexos” — 6 precisamente a linha ditada pelo complexo de Edipo: nfo dor- mirds com tua mie, ndo matarés teu pai. Nessa perspectiva de uma [kj hipotética, a ameaga de castracdo € como a forga que dé vigor ao complexo de Bdipo, sua policia, sua justica, seu carrasco: se dommires com tua mae — tanto faz, alids, que 0 facas ou que 0 desejes — serds castrado. Esse aspecto da lei de castracéo liga, em suma, de maneira bastante extrinseca, uma lei e a pena que pune sua transgressao, Ligagio extrinseca mas que, no entanto, segue uma certa Idgica, a do inconsciente, e, talvez de um modo mais fundamental, a de toda a verdadeira punigio: néo s6 és pu- nido, mas é punido exatamente por onde pecaste. Bs punido no objeto do delito, no corpo do delito, no ponto do desejo, em teu Pénis que, precisamente, se excitou diante de tua mae. © outro aspecto da lei da castragio est, talvez, ligado a de- senyolvimentos mais modernos, essencialmente pés-freudianos. O imperativo © 0 castigo seriam uma coisa sé. A lei é auto-sancio- nante, Nao haveria relacio hipotética mas uma espécie de impe- rativo categdrico ou, mais exatamente, uma lei imposta categori- camente a0 individuo: serds castrado. Sem dtivida, nunca é exata- mente assim que ela se apresenta. Existe ainda um equilibrio, pelo menos implicito, uma certa ligagdo hipotética; ¢ até um equilibrio muito mais positivo do que no caso precedente, em que a cas- ‘nagdo era a punicao de um ato ou de uma intengio culpdvel. Aqui, a castragdo seria, pelo contrério, a garantia de uma possibilidade de cumprimento ulterior. De sorte que encontrarfamos ainda como que uma ligagdo entre premisse © conseqtiéncia: se quiseres des- frutar de teu pénis, serds castrado; ou talvez: se quiseres sor um hhomem (o que vai aitida muito mais longe, um homem, no senti- do mesmo de um ser humano), seris castrado, Este segundo as- pecto mais auto-suficiente, neste sentido mais categérico, tampouco § independente, portanto, do complexo de Edipo. Também no Edipo existe um equilibrio implicito, nfo existe apenas um lado CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 5 negativo. Nao é somente: nfo dormirés com tua mae, Mas, de um modo, digamos, mais encorajador: se queres desfrutar das mu- Theres, deves primeiramente renunciar & tua mae; se queres ser sexualmente potente, deves ser castrado em relagdo @ tua mie. Esse equilfbri, alids, no é simples, na medida em que 0 fato de ser castrado em relagdo A mae também no € univoco. Digamos provisoriamente: nfo € apenas renunciar genitalmente & mie, € ser separado dela igualmente em outtos planos, além do plano genital; e talvez seja (desenvolvimento ainda mais interessante) fundamen- talmente a ma que é castrada de seu filho pequeno, Seja como for, a nossa oposigao entre uma lei de castragio hipotética e uma lei categérica revela no se estabelecer, em ab- soluto, de um modo tao nitido assim. Antes, teriamos, de um lado, a castragiio como castigo, como ameaga, como policia da lei; do outro, uma lei sem justificacdo @ priori mas instaurando, numa dimensio de futuro, uma divida, um “por conta de”: tu renuncias agora ao prazer sexual, o que te abre uma perspectiva de realizado sexual Sio estes, pois, os dois encaminhamentos que adotei nestes ‘iltimos anos, a respeito da angiistia, por um lado, e da lei, por ‘outro. Cologuemo-nos agora em sua confluéneia, no ponto da cas- trago, e nos perguntemos como angistia de castragio e lei da cas- tragao se articulam entre si. At vamos encontrar ainda dois as- pectos. Um, que esté mais de acordo com o senso comum, é @ solucao geralmente admitida e finalmente adotada por Freud, so- bbretudo em seu estudo Inibigdes, sintomas e ansiedade: a aplicagio da lei implica um perigo, a angustia é simplesmente a reagio diante | desse perigo Jepiga —> ANGE: Nessa perspectiva, portanto, a lei da castragio é que seria a geradora da angistia. O outro aspecto, bastante diferente, refere-se em particular ao fato de que a angistie, as angtstias, tém uma 1. Lembremos.que a lingua alemi se presta particularmente a ese reavalo, na medida em que a palavra Angst pode significar, ao mesmo tempo, medo © angistis. NEO me estendo sobre essas distingdes terminolégicas, (que na realidade so mais complexas, na medida em que fazem intervie ainda outros termos e, portanto, outras sobreposigées entre ap linguas alema ¢ francesa. Cf. meu curso do ano 19701971, em Problemdticas 1 6 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES origem muito mais arcaica, Definimos essencialmente essas angus. fias arcaicas como desestruturaedo, perigo de desdiferenciagio, onda energética, onda libidinal, submergindo o individuo ou sua agéncia de sintese, 0 ego. Ora, por seu lado, a castragio, como veremos, apresentase primeiro e fundamentalmente como um evento mitico. Como todo mito, individual ou coletivo, é um acon- tecimento ordenador de uma certa estrutura, de uma certa lei das relagdes humanas. Como articular, pois, os dois termos antind- micos na expresso “angistia de castragio”? Uma vez mais, para @ consciéncia comum, isso.parece ser dbvio: um perigo acarreta um medo, Mas, quando aprofundamos a metapsicologia dos dois termos, temos Verdadeframente a alianga da égua e do fogo, de lum estado de desestruturagio © de um elemento, por definigio, estruturante. Voltemo-nos, por um momento, para Freud. Sabemos que ele s6 tardiamente descobriu o complexo de castragio, em 1904-1905, precisamente com a anélise do pequeno Hans. © primeiro trabalho que Ihe faz alusio, e que se refere exatamente a essa andlise do pe- ‘queno Hans, intitula-se Sobre as teorias sexuais das criangas (1908). Seremos levados a reconstituir a seqiiéneia da evolugéo do pen samento de Freud a partir dessa primeira emergéncia da nogdo de fantasia de casteacao, Ora, anteriormente, em 1900, tinhamos, no estudo fundamen- tal para o nosso tema, A interpretactio de sonhos, sonhos que exigem, com uma evidéncia flagrante, uma interpretagio pela castragdo. (Evidentemente, é preciso estar atento, nesse tra- balho como em outros, para as diferentes reformulagées feitas por Freud no decorrer des revises, mas refirome aqui as passagens que fazem parte da edig&o de 1900.) Como explicar que Freud no tenha descoberto mais cedo 0 complexo de castragio? Como ele no centra mais a interpretaco nessa nogio de castragio? Pode-se dizer que estou fazendo uma pergunta ingénua; preciso que haja uum comego pata tudo... e, se ndo aconteceu naquele momento, “A EVIDENCIA” DA ANGUSTIA, DE CASTRACAO 2. Les shéories sexuelles infantiles, em La vie sexuelle, Paris, PUP, 1977, pp. 1427. [ESB — vol. IX} CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E EU DESTINO 7 aconteceu mais tarde... Mas, se os analistas gostam das perguntas ingénuas, no gostam de respostas que parecem ébvias. Sem di- vida, existe uma resposta mais elaborada do que se pode imaginar. Sabemos que A interpretacio de sonhos esté intimamente ligada & auto-andlise de Freud. Um grande niimero de sonhos relatados so sonhos do préprio Freud. Com respeito a alguns deles, ele mesino © diz, para outros descobrit'se depois, através de um mimero im- pressionante de verificagdes baseadas em outras fontes (remeto para o estudo de Didier Anzicu sobre A interpretagio de sonhos *) A auto-andlise de Freud, que ocorreu em torno de 1897, levou A descoberta do complexo de Edipo e das fantasias ligadas a ele. Portanto, poder-se-ia dizer simplesmente: Freud néo avangou, em sua auto-andlise, até a descoberta daquilo que, no entanto, nos parece to intimamente ligado ao Edipo: a ameaca de castragio. Essa resposta parece-me relativamente pouco satisfatéria, Para po- dermos falar de uma resisténcia de Freud, seria necessério mostrar or que essa resisténcia pode manter-se, uma vez que Freud varreu tantas outras, em ndmero impressionante, para chegar & explorag do seu complexo de Edipo; e, inversamente, pot que essa resis- téncia, que Freud ndo venceu pela auto-andlise, teria sido subita- mente superada por uma experiéncia muito menos pessoal, a ané- lise do pequeno Hans? Aqui temos, portanto, um enigma que gostaria de concretizar baseado no exemplo de wma andlise de A interpretagao de sonhos: “Um homem de 27 anos, gravemente enfermo hé um ano, teve freqiientemente entre os 11 € 13 anos um sonho acompanhado de angGstia muito penosa [esta passagem situase, alids, nas con- siderages de Freud sobre os sonhos de angustia): ele & perseguido por um homer com um machado, quer jugir mas estd como que paralisado e niéo pode sair do lugar [com base no simples conteiido do sonho, quem nao diria hoje imediatamente: sonho de castra- 07]. Trata-se, certamente, de um bom exemplo de pesadelo muito comum @ incontestavelmente sexual [orientanos logo para a se- xualidade mas no para a castracio] . Na andlise, o sujeito recorda primeiro uma hist6ria ulterior de seu tio, Este contava que tinha 3. Of. D. Anzieu, Lautoanalyee de Freud et fa ‘chanalyse, Patis, PUR, 1975, tomos 1 ¢ 2 verte de ta psy. 8 CASTRAGAO — SIMBOLIZAGOES sido atacado & noite por um individuo mal-encarado. Daf 0 doente concluiu que poderia ter ouvido falar de uma aventura andloga na época do sonho. [Portanto, um certo niimero de associagées, de lembrangas, referentes ao fato de que se pode ter, efetivamente, maus encontros desse tipo, ser atacado.} A propésito do machado, lembrase de que nessa mesma época feriu-se numa das mos com uma machadinha enquanto rachava lenha. [Parece que estamos “rodeando o toco”. Vejam tudo o que Freud fornece mas sem falar, em nenhum momento, de castragao, embora se refira a esse equivalente simbélico inteiramente admitido, cléssico — 0 feri- mento na mo — de uma castraglo,} Bruseamente, pensa na sua atitude em relago ao irmo mais novo, a quem tinha 0 habito de maltratar. Recorda especialmente que certa vez, quando bateu na cabega do irméo com o sapato, a ponto de sair sangue, a mie disse: “Tenho medo de que um dia ele o mate.’ (Nessas recordaghes, a violés portanto, invertida, e desta vex é 0 paciente que a exerce sobre um irmao.] Enquanto parece estar ainda absorto no tema da violncia [tema que, portanto, pareceria mais uma resis- téncia], surge de repente uma recordagio de quando tinha nove anos, Seus pais haviam chegado tarde em casa, foram para a cama enquanto ele fingia estar dormindo. Pouco depois, ouvi suspiros ¢ outros ruidos que 0 apavoraram; também péde perceber a po- sigdo dos pais na cama, © curso ulterior de seu pensamento mostra que ele estabeleceu uma analogia entre as relacées de seus pais ¢ sua atitude em relacio ao irmio mais novo. Classificou o que sur preendeu entre seus pais sob o conceito de ‘violencia e batalha’. E encontrava a prova no fato de que, com freqiiéncia, notara man- chas de sangue na cama de sua mae. [Somos levados diretamente ao que costumamos chamar de ‘cena primitive’ — uma cena de coito entre os pais — percebida, adivinhada pela crianga. E, 0 que igualmente muito freqiente, essa cena primitiva & interpretada sob uma forma de violéncia, como uma cena de batalha.] Que a relagio sexual dos adultos impressiona as criangas € Ihes cause angtistia € um fato da experiéneia cotidiana [0 que provoca a angtstis, nessas circunsténcias, segundo a teoria Frew diana até 1920, é 0 fato de 0 individuo ser ameagado por uma descarga sexual; & a percepedo ou a interiorizagio de uma exci- tagdo sexual que provoca nele — em certas circunstincias, evi- lead CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 9 dentemente — a angiistial. Explico essa angistia por uma exci- glo sexual que néo ¢ dominada por sua capacidade de com- preensio [isto é extremamente importante no pensamento freu- diano, essa idgia de um dominio da excitagao] ¢ que, além disso, € tejeitada porque seus pais se encontram nela envolvidos. Por conseguinte, ¢ convertida em angistia. Quando a crianca é mais nova, seus impulsos sexuais dirigidos para um dos pais — 0 do sexo oposto — ainda ndo so reprimidos e exprimem-se livremente, ‘como vimos.” ¢ Pela leitura deste breve exemplo e das reflexdes de Freud, vvé-se que todos os elementos para interpretar esse sonho como um sonho de medo da castracio esto nas mos de Freud: nio s6 os elementos mais diretos (pois af existem, com efeito, epis6dios que 10 equivalentes simbélicos reconhecidos da castragio), mas Freud vai mais Jonge, até o coito parental percebido como violento, san- grento, Mais uma vez, a interpretagao pela castragio parece vir muito naturalmente: interferir no coito parenial seria incorrer no perigo de casiracao (o que ¢ expresso com clareza numa andlise ulterior, como a do Homem dos Lobos). Essa presenga da castragio no sonho é, portant, efetiva, inegavel. A questo esté em saber por que Freud negligencia essa presenca, e em proveito do qué. Em proveito da idéia de que é 0 coito parental, como excitacéo demasiado forte, efrativa (effractive), que gera a angistia, Ba angistia surge precisamente porque essa excitacdo “ndo é dominada pela capacidade de compreensio” da crianga. Sugeri — para in- dicar a sua insuficiéncia — a hipdtese de uma resisténcia de Freud em reconhecer a castragao, Se resistencia existe, parece-me que ela esté profundamente fixada numa certa exigéncia te6rica, suficiente- mente para ir contra a evidéncia da angistia de castragao em todos cos niveis em que ela se apresenta, Como exprimir essa resisténcia teérica? Por exemplo, pelo fato de que Freud insiste de maneira absoluta, sem nenliuma exceco, em ver comprovada a tese segundo a qual o sonho é uma realizacao de desejo. Se o sonho € uma reali zagdo de desejo, ele jamais poderd ser a pura e simples represen- 4. Hinterprétation des réves, Paris, PU, 1971, pp. 496-497. Entre colehetes, comantirios de J. 1. [ESB —'A interpretasao de sonhos, vols Wevy 10 CASTRAGAO — SIMBOLIZAGORS taco de um castigo (como seria 0 caso se se falasse de sonho de castragdo). Qual € 0 desejo gue, de imediato, poderia levar a re presentar-se um evento tio dramtico e tio desagradavel? Para Freud, € preciso que 0 préprio desejo seja o motor do sonho. E uma ese que, uma yez mais, choca-se contra o senso comum, contra a evidéncia fornecida por grande mémero de sonhos ma- nifestos, até contra numerosas interpretagGes que damos corten- temente quando interpretamos um sonho sem ir até o nivel do desejo sexual que esté subjacente. Essa tese geral, a do somho como realizagéo de desejo, vai, portento, contra 0 senso comum, também contra a interpretacdo por Freud desse sonho particular, que poderiamos retomar assim: a crianga nao pode enfrentar 0 ailuxo de excitacdo proveniente do espetéculo da cena primitiva. Essa excitagdo transformase em angistia, Essa angistia traduz-se no contetido manifesto sob a forma deformada de um medo do homem com o machado. Em suma, 2 castracdo seria apenas a forma mais elaborada (a mais préxima do que chamamos elabo- ago secundaria) ¢ também, talvez, a mais defensiva desse sono. Uma tal traducio no manifesto-pode ser pensada de duas ma- neiras, Seja como simples disfarce do desejo e da angistia vin- culada a ele, transformando a angtistia em medo; evidentemente, uma forma de dominar a angistia € transformé-la em medo, atri- buirhe um objeto conereto, Neste caso, o homem que brande 0 machado é algo mais representével, mais dominavel, mais evitével do que simplesmente o fato de ser transbordado por ume excitacdo {que submerge e desestrutura tudo. Mas essa traducao no manifesto, sob forma de uma angistia ou de um medo de castracio, pode igualmente ser chamada tentativa de estruturacdo da anglstia pre- cisamente como medo de castragio. Ai esté uma nova questio que hoje quero apenas mencionar. A presenga da castragio est inscrita nesse sonho de maneira tio evidente que nos vemos for- cgados a indagar como se explica que Freud nem sequer a mencione, nem que fosse para dizer que no passa de um disfarce, Se ele nfo 2 viu foi, em minha opinigo, por uma razo de lugar, como uum objeto evidente demais que se procura durante horas, como 0 fumante que busca o cachimbo que esté ne sua boca. No lugar onde a castrago se encontra nesse sonho, isto é no contetido manifesto, ela s6 podia, para Freud, impedir a investigagao do in- Ces) CASTRAGKO: SEUS PRECURSORES F SEU DESTINO u consciente ¢ ¢ busca do desejo. Que esse proprio desejo esteja tigado, em nivel mais profundo, & castracii histéria da cena primitiva), € um outro percurso que, é claro, foi apenas iniciado. Posiedo central da castragao em psicandlise, ventral principal- mente do ponto de vista genético: é essa a perspectiva de Freud, segundo a qual a castraco seria uma espécie de ponto de estrei- tamento, agrupando angistias © perigos anteriores a cla (a que se di o nome de angtistias pré-genitais), e desembocando em novas angtstias que poderfamos chamar de pés-casteativas. Eu poderia ter dado ao meu curso deste ano simplesmente o titulo de “A castracdo”; ou ainda, e de um modo mais neutro, “A castragio & sew grupo” ou “A castracdo e sua familia” (entendendo-se grupo © familia num sentido I6gico). Ao dizer “A castrago, seus pre- cursores ¢ seu destino”, 6 evidente que admiti, provisoriamente, essa posigdio de perspectiva da castracfo em relagdo a0 que a pre- cede © em relacio ao que Ihe sucede. Posi¢ao central que nio admito como definitiva, mas que deverd ser discutida. — 20 de novembro de 1973 Entramos em cheio, portento, numa ceria problemética da castracdo, Tentei apresentar a questio de duas maneiras, Por um lado, a castragio do ado da tei, perguntando-me, a esse propésito se a castracio deve ser concebida como sancao de uma certa lei (oma pena como qualquer outra, sem dévida particularmente ter- rivel mas, enfim, uma pena) ou se, numa corta concepgfo mais “moderna” da psicandlise, a castragao é a prépria lei, e 0 que isso poderé querer dizer. Por outro lado, o problema da angistia em relagio com a castragao ¢, em especial, uma interrogagéo sobre essa conjugacao de angiistia e castracdo: o que é a angistia de cas- LABILIDADE DO tragdo? Isso patece ser dbvio, se admi- Sacre tirmos uma eerta concepedo da intencio- aoe nalidade do afeto. Se 0 afeto € sempre ae aleto de algo, por que néo admitir, com efeito, que a angistia possa ser, como & natural, angistia dessa ameaca particularmente terrivel, desse peti- 2 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES 0 da castrago? Mas, insisto, a psicanélise nos ensina precisamente que essa intencionalidade, esse de na angiistia de castragio, € algo extremamente mével, Iabil, no sentido de que essa ligagdo entre aafeto e a representagao (neste caso, angistia como afeto e castragio como fenémeno, agdo e resultado que se representa) & suscetivel de numerosas modificacdes que a fornam: irreconhecfvel. Sabemos, por exemplo, que 0 ajeto pode ser deslocado, transportado para outras representagdes (Sabemos que temos, no lugar da angéstia de castracio, “angustias” de toda uma série de fendmenos que Freud enumera desde o comego de sua obra: angéstia de cavalos, de tempestades, etc.); mas também sabemos que 0 afeto pode estar isolado, de modo a no mais se aptesentar como vinculado a re- presentagGes: € a crise de angtistia, aparentemente sem dbjeto (que corresponde, alids, & habitual defini¢ao francesa de angistia, pre- cisamente um medo sem objeto). A psicandlise mostra a existéncia desses deslocamentos e desse isolamento ou liberagdo do afeto mas, a0 mesmo tempo, restabelece as vins associativas que thes deram existéncia, desfaz as jalsas conexdes que so 0s deslocamentos, desmistifica os isolamentos mostrando, por trés de uma angéstia aparentemente sem objeto, 0 objeto escondido. Aqui, a interpretagio psicanalitica da angistia teria por via essencial reencontrar a castracio por trés de seus disfarces, seus substitutos, seus equivalentes. Teré sido essa a intuigo de Freud (que hoje nos parece muito banal): desvendar, por trés de certas Iembrangas anédinas, a pista do complexo de castragao, Dou como exemplo o Homem dos Lobos, que, num momento de sua infancia, tinha uma governanta inglesa de quem conservou duas recordagbes, que Freud chama “‘lembrangas encobridoras”; parecem inocentes ‘mas necessitam de uma interpretago para encontrar sua subsistén- cia, As duas lembrangas sfo as seguintes: por um lado, ele se lem- brava de que um dia a governanta Ihe dissera: “Olha 0 meu rabi- rho"; por outro lado, certo dia 0 chapéu da governanta voara ¢ todas as criangas tinham rido muito, Freud —~ estamos em 1917 — declara muito naturalmente que essas duas recordacdes levam imediatamente a suspeftar de um problema de castracao © até, pre- cisa ele, de uma amenga de castragio emanando da governanta, Temos af uma interpretagio relativamente préfabricada, precon- CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 13 cebida ou, em todo caso, “‘selvagem"’; sem ter necessidade das associacées do Homem dos Lobos, Freud vai diretamente para a idéia do complexo de castracao. A essa aptidéo, ou a essa atitude, quase natural do psicans- lista de ir (um pouco demais) diretamente & castrago, eu quis, da ‘iltima vez, opor um testemunho inverso, que foi aquela espécie de obtusio de Freud ao recusarse a ver a castragio no sonho do homem com o machado. $6 volto a esse sono e a0 seu comentério para recordar que a castracio esté 14 “como 0 nariz no centro do rosto”, em pleno centro do sonho (€ 0 que é o nariz no centro do rosto? o que é essa prépria expressio?), Recusarse a vé-la — em 1900 — seré somente resisténcia por parte de Freud? E, mesmo que haja resistencia (0 que € certo), nao haveré mais a aprender desse tipo de obstinaglo ou dessa contradigio com a teoria ul- terior? Tudo isso para questionar a expresso “angtistia de castra¢ao”, que admitimos provisoriamente, nfo obstante, mas conservando no espirito o carter 20, mesmo tempo importante ¢ enigmatico da ligagio que pode muito bem existir entre esses dois termos: seré uma ligagdo verdadeiramente intrinseca? Sera uma ligagio parcial- mente exterior e complemeniar? Ainda um outro modo de for- ‘mular a pergunta: a angistia de casiragZo seria um exemplo — © 0 principal exemplo, poder-se-ia dizer — de um medo natural, de um medo que ndo precisa de explicagéo? Também a{ encon- tramos em Freud elementos contraditérios, em particular um ele- mento que contraria essa idéia de que a angistia de castracso ypossa ser um medo natural e explicar-se por si mesma, sem ter necessidade de qualquer outra coisa. Em Conferéncias introdutd- rias sobre psicandlise, Freud assinala a austneia quase total de ‘montagens instintuais do medo no ser humano. A erianga pequena, diferentemente da maioria dos animais, no tem praticamente medo natural, vital, pré-montado, € que possa servir & sua conser vacao. Caminha & beira de precipfcios, manipula facas, brinca com Fogo, tudo isso sem qualquer espécie de temor até o momento em que lhe ensinam — e talvez por meio da angastia — a ter medo. Esse lembrete de Freud, que se bascou, em sua época, na obser- vvacdo corrente, acha-se atualmente confirmado por todo tipo de experigncias no dominio da psicologia do comportamento. Es 14 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES experiéncias, que comparam os comportamentos da criatica pe- quena edo animal pequeno, mostram a existéncia em um ou outro animal de medos préformados (por exemplo, numa ave que tem. «que viver agarrada as rochas, uma espécie de montagem inata para nao se precipitar no vazio), a0 passo que, na crianga, néo se pode distinguir nenhum desses medos inatos. Portanto, 0 proprio Freud duvida da existéncia de um medo inato da castragio e a prova disso € que ele sentiré a necessidade de situar essa angistia de castracJo numa génese complicada (que eu tentei evocar no titulo deste curso) que a coloca entre precursores — isto é, angistias, mais arcaicas — ¢ um destino — isto é, uma fungdo que deve ser discutida justamente em relagio ao devenir do complexo de Edipo. Esse titulo, portanto, seus precursores ¢ seu destino, cexta- mente a ser discutido, admite provisoriamente a perspectiva freu- diana, que é a de situar a castragao numa posigio central: resultado de outras experiéncias antes do complexo; necessidade de varios ingredientes no préprio complexo, para que ele “pegue”. E, por outra parte, cla encontra-se numa posigéo central por seu efeito indutor sobre a seqiiéncia do desenvolvimento psfquico, Mas, antes de prosseguirmos com esta hist6ria em Freud, eu gostaria ainda de nos interrogar sobre o prdprio termo “castragdo”. Assinalemos ra- pidamente que costumamos usar esse ESPECIFICIDADE termo lato sens, ao mesmo tempo comd DA CASTRACAO aco de amputar como estado daquele EM PSICANALISE a quem se ampntou, digamos por agora, “alguma coisa”. Podemos igualmente co- locar a questio de saber se se trata de uma agéo real ou de uma seqiiéncia fantasistica, Mas © que me parece ser ainda mais importante indagar €: trate-se de anipiitar 0 qué? Fora da psica- ndlise, se procurarmos, nem que seja num dicionério, 0 uso cor- rente da palavra castra¢do, veremos que se trata de eliminar no © pénis, mas as glindulas genitais (0s testiculos no miacho € os ovétios na fémea). Ha, pois, uma importante discordanola entre @ castracdo real, aquela de que se fala na vida corrente (realizada eventualmente no ser humano, pelo menos em certas épocas, ¢ mais correntemente nos animais domésticos) e « eastrato fanta sistica, de que a psicandlise se ocupa, A castragéo fantasfstica da psicandlise néo & simplesmente a fantasia, a imaginagao da cas- CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES £ SEU DESTINO 15 tragdo real, uma vez que ela se refére a um outro objeto. Discor dancia, portanto, quanto ao objeto, sobre a qual cabe meditar, visto que nfo é a primeira vez que a passagem do real & fantasia nfo constitui somente interiorizagdo do primeiro, mas profunda modificacio deste. Ao mesmo tempo, entretanto, existe assim mesmo uma certa correlagdo entre a teoria da castragdo, tal como Freud a labora, ¢ a castragéo real, tal como se pratica hé milénios e tal como seu mecanismo foi esclarecido pelos cientistas. Ao longo de mais de 50 anos, trabalhos extremamente precisos, complicados, rnumerosos © convergentes foram desenvolvidos respeito do pro- blema da diferenciagao sexual, principalmente nos vertebrados su periores. Esses trabalhos experimentais, em seu proprio modo de encaminhamento, funcionam essencialmente (Ser4 por acaso”) @ partir de cortes, amputagdes (sobretudo glandulares), portanto, de castragSes arranjadas, escalonadas no tempo desde as primeiras fases embriosdrias§. Essas experiéncias evidenciam numerosas tapas no processo de diferenciagio que faz de um embrido ele- mentar um ser masculino ou feminino. Mas, para além dessa grande complexidade, uma idéia simples se destaca: 0 embrigo — as oé- lulas embrionérias — possui, inicielmente, uma bissexualidade po- tencial, ou seja, a possibilidade de se desenvolver no sentido tanto de um indivicuo masculino como de um individuo feminino, seja qual for o que se chama, por outro lado, o seu sexo cromossémico. Mas, se toda unidade embriondria possui essa bissexualidade po- tencial, 0 mais impressionante € ainda o fato de que o desenvol- vimento espoutineo dessa unidade embriondria € 0 desenvolvi- mento femiinino. Existem mensagens hormonais sexualizantes mas, justamente, do Indo dessas mensagens, verifice-se uma dissimetria impressionante: sem mensagem hormonal masculinizante, temos ‘uma evolugéo feminina tanto no individuo feminino como no in- dividuo mascalino (se ele for castrado, por conseguinte privado dessas mensagens, suficientemente cedo): “A masculinizacio € um fendmeno ativo que requer a pre senga de um testiculo funcional. A feminizagéo é um fenémeno passivo que nio necessita da presenca de um ovério fuiicional. As 5. Resumos desses trabalhos encontramse, por exemplo, no ne 7 da Nouvelle Reyue de Psychanalyse: “Bisexualié ot différence des sexes". 16 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES experitncias de eastrago precoce do embriéo masculino resultam numa morfologie interna feminina.” & ‘Vésse, pois, que existe uma relagéo 20 mesmo tempo diver- gente € correlativa entre essa teoria sexual, no infantil mas cien- fica ou adulta, ea teoria sexual injantil, de que nos ocuparemos em breve. Divergéncia em dois pontos importantes: por um lado, nna teoria infantil, 0 sexo de base, aquele de que se parte, nfo seria | 0 sexo feminino, mas o masculino; enquanto que na teoria cient ica a evolucio masculina constitui uma diferenciaggo suplementat a partir do sexo feminino, segundo a crianga & a feminilidade que € obtida por amputacéo. E, por outro lado, como mencionei mais acima — referindo-se essa diferenca ao objeto amputado — 0 que cesta em jogo para a crianga € 0 pénis e no os testiculos (ou, de um modo mais geral, as glandulas genitais) Antes de falar um pouco rapidamente, AUTONOMIA DO como fiz até agora e, com freqiiéncia, PENIS num sentido muito critico, acerea do primado do falo — ou do falocentrismo, ou da falocracia — detenhamo-nos nesse privilégio do pénis (con- ferido por Freud... ou seré pelas eriangas?), privilégio Ihe vale... poder ser cortado: que ‘Com razio temse assinalado a liberdade indécil desse érgi0 ingerindose tio oportunamente, quando nfo hé o que fazer, e falhando tio inoportunamente, quando mais precisarfamos dele, contestando 10 imperiosamente a nossa vontade, recusando-se pe- remptGria ¢ obstinadamente a atender as nossas solicitagées men- tais © manuais, Se, entretanto, sua rebelido fosse repreendida e to- mada como prova para condenélo, e me cumprisse defendéo, eu colocaria sob suspeita nossos outros membros, seus companheiros, de terem, por inveja da importineia e docura de seu uso, levantado contra ele essa conspitaedo, e sublevado o mundo contra ele, act: sando s6 a ele, malevolamente, da culpa que Ihes é comum. Pois, eco que reflitam, haverd uma s6 parte do nosso corpo que nao 6. L. Kreiser, “L’enfant et V'edolescent de sexe ambigu ou Venvers du mythe", em Nouvelle Revue de Psychanalyse, primavera de 1973, n° 7, Pils, CASTRACAO: SEUS PRECURSORES £ SEU DESTINO 7 se recuse, por vezes, a operar segundo a nossa vontade ou que muitas vezes nfo aja contra a nossa vontade? Cada ume dessas partes tem paixdes préprias, que as despertam ou adormecem, sem autorizagdo nossa. Quantas vezes os movimentos involuntétios do nosso rosto nos traem, revelando pensamentos que conservévamos secretos. Essa mesma causa que anima esse membro anima também, sem 0 nosso conhecimento, 0 coraca0, os pulmées, 0 pulso; a vista de um objeto agradavel acende imperceptivelmente em nés @ chama de uma emogao febril. Néo hi aqueles mtisculos ¢ veias que intu- mescem e se distendem sem o aval no s6 da nossa vontade mas também do nosso pensamento? Néo mandamos que nossos cabelos se ericem e nem que nossa pele estremeca de desejo ou de medo.” 7 Eu poderia prosseguir, pois serdo citados ainda outros Grgaos sais intimos, prineipalmente os intestinos e seu funcionamento au- t6nomo, evocasdo e associacio inteiramente premonitérias das ques- Wes que iremes encontrar em Freud, E no eapitulo XI do Livro st~! Primeiro de Montaigne, capitulo que se intitula (¢ também af es- tamos em pleno niicleo do nosso tema) “Da forca da imaginacao”. ‘Observem que esse pénis, esse SrgGo, ¢ descrito, evidentemente na esteira de outros autores, como uma parte muito especial do corpo, sede de uma excitacZo particularmente autdnoma; uma autonomia ‘que, se também ocorre em outros membros, é, por assim dizer, como que por extensio. Ha uma espécie de pressentimento nesse texto, uma primeira forma de apresentar o que Freud descreveria, de uma parte, sob o titulo de “erogeneidade” e, de outra, como “pulsio parciel”. Brogeneidade consiste no fato de que a totali- dade do corpo e nao apenas uma parte particular é suscetivel dessa excitago sexual; em toda e qualquer parte do corpo pode “ocorrer erecio”, E a referéncia & pulsdo parcial vem exatamente completar essa noggo de erogeneidade porque, nessa erogeneidade, nfo € 0 corpo como totalidade, mas tal e tal parte autnoma, separada, tal e tal zona etégena, que pode comportarse a despeito da nossa vontade ¢ a despeito do que desejam as outras partes. Deparamo- nnos aqui com nogSes psicanaliticas muitissimo importantes, que nos colocam no caminko do questionamento do que se chama o 7. Montaigne, Oeuvres complates, Bibliothéque de ta Pléiade, Paris, Gallimard, 1962, p. 100. 18 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES corpo fragmentado, sendo que este encontra sua prefiguracéo, seu primeirc aspect, nessa repartigo do corpo em zonas erégenas sub- metidas a pulsdes parciais to fragmentadas quanto esse corpo: pulsdo, evidentemente, do pénis, mas também pulsio do olho, da boca, do dedo, do Anus, etc. A sexualidade, no sentido de genita- lidade, no sentido da pulsdo do érgio sexual, cujo aspecto tota zador é, por vezes, sublinhado. E 0 que se chama, ao término de tum certo desenvolvimento, 0 “primado genital”, sob o qual, de maneita normativa (no methor dos casos, segundo Freud), deve ordenarse © conjunto das outras pulsées parciais para chegar a uma atividade sexual relativamente coordenada. Mas essa genita- Tidade, ¢ nés 0 vemos em Montaigne — ¢ em Freud —, ¢ também a pulséo parcial por exceléncia. O pénis, 6rga0 privilegiado, par- ticularmente aut6nomo na excitagio, ser gratuitamente designado por numerosos termos como “passarinho”? O passarinho estaré pronto para voar? Ele esté pronto, direi eu, a separar-se, se & ver dade que na eregio ele préprio se separa, marca imediatamente sua vocago autOnoma, A excitaclo, e sobretudo a erecdo, quando se apresentam como independentes da vontade do individuo, marcam, como que em pontilhado a linha de recorte que vai ser a da castracao, Pode-se entio perguntar: nessa ampu- OQUEEAMPUTADO —facdo que é a casiragdo, 0 que & am- DE que? putado de qué? Quero dizer: se se faz um corte entre o pénis e 0 individuo, qual é 0 principal ¢ qual é o acess6rio? Sera esta uma interrogacio absurda? Seré absurda a hipétese de que talvez nao seja o pénis que seja amputado do homem, mas o homem amputado do pénis? Os psicanalistas emitem este tipo de hipéteses absurdas porque as vem freqiientemente surgir justamente no transcurso de suas investigacGes. Freud formula essa hipdtese quase sob essa forma, quando nos diz textualmente que “o homem, para um certo tipo de desejo feminino, aparece como apéndice do pénis” & 8. Cf. “Sur les transpositions de pulsions plus particulitrement dans Verotisme anal", em La vie sexuelle, Paris, PUF, 1977, pp. 106-112. [ESB — “As transformagses do instinto exemplificadss no erotisma anal”, vol. xvill CASTRACAO: SEUS PRECURSORE £ SBU DESTINO 19 Onde esté 0 sujeito na castragiio? (No me refiro a0 sujeito metafisico mas, simplesmente, aquele que sofreu a castragio.) Do ado do corpo castrado ou do lado do que foi separado, do lado do ptnis? Esta questo bastante desconcertante — © que, com efeito, pode parecer algo extraordingria a propésito da castragao genital — é muito mais incisiva no que se refere a0 que se designa por “prectirsores” da castragéo. Teremos ocasifio de estudé-los de perto, mas consideremos alguns deles, notadamente 0 trasciniento, que € considerado, com freqiiéncia, uma primeira castracio. Ai, quem € cortado de quem? B a me que é castrada da erianga? Ba crianca que € coriada da mae? Nao sera a parte que af, justa- mente, tendo a funcao de pénis seré o sujeito primordial da cas- tragdo? Vejamos agora a fantasia da fragmentagio: a questo ja no consiste em saber de que lado esté o sujeito mas, se o sujeito ainda fica em alguma parte, 0 que ele se torna. Outro precursor da castragdo: a experiéncia da amamentagao e do desmame (no que se chama fase ou libido oral). A andlise nos mostra que esse xualidade oral é sustentada por fantasies absolutamente simétricas, em que “comer” e “ser comido” esto igualmente presentes. (Vé-se que também nasse caso a fantasia se distancia da experiéncia real.) Para a ctianga, a experiéncia de comer alguma coisa — ser ame- mentada, por exemplo — encontra, na fantasia, também (e até de maneira preponderante, com freqiiéneia) a sua tradugio inversa ser comida — © como vetemos adiente — mais pelo pai do que pela mie, Refirome aqui, uma vez mais, ao Homem dos Lobos, em que 0 sujeito se apresenta como objeto parcial suscetivel de ser devorado pele pai. Dessas mudancas de posiggo do sujeito nas diferentes “castragdes” encontramos ainda exemplos mais impres- sionantes nos trabalhos de Melanie Klein, sobretudo em sua des- crigéo dos processos parandides, onde € moeda corrente que 0 sujeito se identifique aos -objetos parciais, fragmentados, projetados ou introjetados. Retomemos mais diretamente a Freud ¢ A sua evolugao, desde esse desconhe- cimento da castragdo em A interpretagio de sonhos, em 1900, até a posicio central que Ihe atribui no fim, Recordo aqui, sumariamente, a bibliogratia cronolégica: PERCURSO DE FREUD 20 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES — Dois textos, situados verdadeiramente na origem dessa teoria da castraglo, ¢ centrados na psicandlise do pequeno Hans, que teve Iugar em 1905 ¢ foi publicada em 1909. Portanto, Le petit Hans®, Depois, 0 estudo que reflete essa psicanélise, em especial no que se refere ao seu aspecto de teoria sexual: Les thed: ries sexuelles infantiles, de 1908 ®. — Em seguida, trés textos em que se apresenta, em todo 0 seu desenvolvimento, a descrigio do complexo de castrago em suas relacdes prineipalmente com a evolucio da libido © com 0 nareisismo. Sio eles: Pour iniroduire le nascissisme, d2 1914; Les transpositions des pulsions plus particuligrement dans l'érotisme anal, de 1917"; e, finalmente, a psicandlise de O Homem dos Lobos, de 1918, Nese momento, o complexo de castragio € verdadeiramente descrito em suas diferentes dimensdes libidinais. E nos anos de 1925-1925 que Freud o resitua, desta vez no conjunto da evoluedo infantil e adulta, destacando uma fase in- fantil da sexualidade, a chamada “fase félica”, que seré precisa- mente dominada pela problemética da castracdo, Trés estudos, portanto, entre 1925 e 1925, que sio: L’organisation génitale in- Jantile, de 1923; La disparition du complexe d’Oedipe, de 1923; ¢ Queiques conséquences psychologiques de la différence anatomique des sexes, de 1925", — Depois, nessa evolugo, o estudo absolutamente capital de 1926: Inhibition, symprome et angoisse #, que amplia 0 pro- 9. Em Cing psyehanalyses, Paris, PUF, 1975, pp. 95198. [ESB — Andlise de uma fobia em uni menino de cinco anos, vol. X) 10. Em La vie sexuelle, Paris, PUE, 1977, pp. 1427. (ESB — Sobre 1s teorias sexuats das eriangas, vol. 1X] 11. Op. cit, pp. 81-105 © 106-112. [ESB introdugdo, vol. XIV; As transformagdes do instinto exempli tismo areal, vol. XVI] 32. Em Cing Psychanalyses, Paris, PUF, 1975, pp. 525420. [ESB — de uma neurose infantil, vol. XVI Em La wie sexuelle, Pavis, PUR, 1977, pp. 115-116, 117-122, 123- 132, [ESB — A orgonizagdo genital infantil, yol. XIX; A dissolugio do coniplexo de Edipo, vol. XIX: Algumas conseqiiéncias psiquicas da distin. 20 anatdmica entre os sexes, vol. XIX] 14. Paris, PUF, 1978, [ESB — Jnibicdes, sintomas ¢ ansiedade, vol. xx] CASTRACAO: SEUS PRECURSORES £ SEU DESTINO 2 blema da castracdo 20 conjunto da teoria das neuroses, introduz uma reviséo da teoria da angistia, centrando-a a partir dai na nagio de perigo, e insere 2 angiistia de castragio no encadeamento dos diferentes tipes de angtstia, pré © pés-castrativa — Uma série de texios que implicam uma certa bifurcagdo do pensamento freudiano sobre a castragio: sio as elabora: referentes a relacdo da castracao e da perversio. O estudo central € aquele sobre Le jétichisme #8, de 1927, seguido de Le clivage du ‘moi dans le processus de défense 1, ensaio inacabado de Freud. — Finalmente, uma outra bifureacio, uma outra linha cola- teral, que amplia o problema da castracio em relagio com questées antropoldgicas. Dois textos importantes: de uma parte, Te tahou de la virginité", de 1918, apresentando a questo das origens desse tabu da virgindade em sue relagio com 0 complexo de castracio; «, depois, Moise ef le monothéisme *, de 1959, onde & evocado em particular o significado da circuneisio. — 4 de dezembro de 1975 No seguiremos linearmente essa evolu- ‘TEORIAS do de Freud, mas recordarei hoje apenas SEXUAIS © ponto inaugural: 9 caso do pequeno INFANTIS Hans, a fobia de um menino de 5 anos de idade. Foi 2 primeira cura por psica nilise de ums crianca, e uma psicandlise que se fez por interposta, isto €, Freud nfo interveio (ou s6 interveio exce nnalmente) para falar com 0 pequeno Hans. Tudo se passa entre os pais de Hans — sobretudo 0 pai — e 0 filho, sendo que Freud 15. Em Le vie sexuelle, Paris, PUF, 1977, pp. 135-138. [ESB — Feti- chismo, vol. X81 16. Trad. franc. em Nouvelle Revue de Psychanalyse, autono de 1970, ns 2, pp. 25-30. [ESB — Diviséo do ego no processo de defesa, vol. XXII} iT. Em La vie sexuelle, Paris, PUR, 1977, pp. 6680. [ESB — O fobu a virgindade, vol. XT) 18. Paris, Gallimard, 1971, [ESB — Moisée © © monoteismo, vol. xin} 2 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES desempenha, no segundo plano, uma funco que hoje chamarfamos de supervisor (é também, por assim dizer, a primeira supervisio analitica), 0 que, como € natural, torna-o portador de autoridade legiferante ¢ Ihe permite, naquela vez. em que intervém diretamente junto a Hans, fazé-lo com todo 0 peso de quem *ditou” a lei do Edipo, Essa andlise (resumirei apenas 0 indispensével para nos levar ao complexo de castracio) centrase num sintoma, a fobia do cava- Io; no o cavalo em sua generalidade, mas um cavalo muito preciso, ein certas situagdes, e com qualidades bem precisas: por exemplo, o cavalo que puxa carros pesados e cai, ou ainda o cavalo de uma cerla cor. ou que fem algo no focinho — em suma, uma fantasia, ‘uma imago extremamente precisa do cavalo. O pequeno Hans cha- ma a essa fobia do cavalo de “besteita”, e todo o trabalho associa: tivo & conduzido a partir dessa “besteira” e de seus diferentes de- talhes. O trabalho associativo € induzido pelo pai mas percebe-se ‘que logo se torna auténomo em relagio a essa tutela, até mesmo 4 essa sugestao: 0 pequeno Hans nfo tardaré em tomarse um mes- tre © no segue nem seu pai e nem Freud, ou, pelo menos, arras- taos para muito mais longe do que eles pensavam chegar (até, justamente, a descoberta do complexo de castracdo). Freud ¢ 0 pai de Hans baseiam 0 comego de sua investigacdo na hipétese de que 0 sintoma traduz 0 complexo de Edipo, que nessa 6poca é essen- cialmente concebido, alids, sob seu aspecto positive © nfo inver do; so guiados pelo pressuposto de que se trata, antes de mais nada, de um Edipo em que o sentimento positive, o amor, é dis gido para a mie e a hostilidade contra o pai. E a interpretagio que fazem da angistia do cavalo esté vinculada a essas duas ditegSes muito simples: a angistia é, de maneira fundamental, angdstia pela perda da mie ¢ igualmente angiistia de retaliacdo, de uma hostli- dade de volta, proveniente do pa. Entretanto, Hans no tardaré em enveredar por dois cami- nhos imprevistos. Por um lado, e isso € muito importante, Hans encaminhase na ditegso do apego positivo homosexual ao pai, ‘eaminho cm que, aliés, os dois adultos nfo suporiam que Hans se aventure, reconduzindo-o incessantemente 2 ortoposigo do Edipo direto, positivo. Por outro lado, ele desenvolye uma inves- tigacdo sexual considerdvel em torno de trés temas, que sfo, de CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 23 vuma parte, 0 pénis (que ele chama de “faz-pipi”), sua presenga, sew tamanho, seu crescimento, em suma, por que existe um faz- Pipi? Todo mundo tem um faz-pipi? As pessoas que aparente- mente nfo tém faz-pipi nfo terdo, na realidade, um menor, que simplesmente ir crescer? O segundo tema de investigacao gira em torno da defecagZo, como separagdo dos excrementos (na it guagem do pequeno Hans, o “lumpi”). Enfim, o terceiro tema é © da gravider e do nascimento: investigagéo em torno do modo como chegam as criangas (“chegam” tanto no sentido figurado quanto no sentido préprio, pois, com freaiiéncia, 0 nascimento € fantasiado como uma viagem), sem omitir, alids, a possibilidade de uma graviéez da propria crianga, de uma maternidade do pe queno Hans. ‘'ambém neste caso, tal como no tema da homosse: xualidade, é um caminho em que Freud e o pai de Hens s6 deixam a otianga avangar com muitas reservas. Em todo caso, em todas essas experiénsias, em todas essas questdes, tratase de fantasias de separagio, lidando com a parte e 0 todo, e que, além disso, tuam-se numa relago de analogia, de metéfora umas em relecao as outras. Equivaléncias simb6licas so empregadas, principal- mente a dos diferentes tipos de partes ou de “objetos parcial (como se diz agora) que séo a crianca, o “Iumpf” e 0 “fer-pipi”. Essa investigagao levou a0 que Freud chama de “teorias”, as *teorias sexuais infantis”. Insisti no fato de que também tinhamos as nossas “teorias sexuais adultas", e Freud ndo esté longe de perceber essa analogia, pois deu a seus trés ensaios 0 titulo de Trés ensaios sobre a teoria sexual (Trois essais sur ta théorie se xuelle) © niio, como se traduz corremtemente, Trés ensaios sobre a sexualidade (Trois essais sur la sexualité), Para Freud existem realmente, em planos compardveis, teorias sexuais da crianca e teorias sexuais do adulto, entre as quais, em iltima instancia, as teorias sexuais psicanaliticas sio apenas uma parte do quedro. Lembro que estamos tragando um primeiro esboco, rapido, da teoria freudiana, numa certa linha cléssica que & indispensével apresentar numa primeira etapa, nem que seja para ver surgit interrogagdes ¢ contradicdes. © investigador “niimero um” nesse questéo da castracio é © pequeno Hens. E 0 descobridor do complexo de castracio, € primeito a fomaular as “teorias sexuais infantis”, que constituem *, ele volta a um certo biologismo da nogio de pul | ndo tem o titulo de “fantasia origingria’ 24 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES a contrapartida das teorias sexuais adultas... ou psicanaliticas. Hé uma concomitancia no tempo, verdadeitamente impressionante, entre a publicagéo de Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, a anélise do pequeno Hans, em 1906, ¢ 0 artigo “Sobre as teorias sexuais das criangas”, em 1908. A teoria sexual adulta ea teoria sexual da crianca af sfo apresentadas (sempre se colocaré fa questo sobre se a teoria sexual psicanalitica é verdadeiramente ‘uma teotia adulta ou uma teorin cientifica). Seja como for, Freud respeita de forma evidente essas “teorias” infantis, onde ele con- sidera que existe obrigatoriamente uma parte de verdade. Eis uma passagem do artigo “Sobre as teorias sexuais das criangas” que de- fine hem essa atitude: “Essas falsas teorias sexuais que vou agora examinar tém todas uma propriedade muito notavel. Embora se equivoquem de maneira grotesca, cada uma delas contém, entre- tanto, um fragmento de pura verdade; s0, sob este ponto de vista, anélogas &s solugdes qualificadas como ‘genisis’ que os adultos tentam dar aos problemas que o mundo coloca e que ultrapassam 0 entendimento humano.” Na atmosfera da época de 1905, em que Isto, Freud explica essas “teorias sexuais” pelo seu enraizamento na constituigio ps cossexual da crianea — em outros termos, invocando uma espécie de predisposigio, de esquema hereditério (predisposigao que ainda como ocorrers subse- qiientemente). ‘Vamos acompanhar 0 texto de “Sobre as teorias sexuais das criangas” de perto, pelo menos para assinalar algumas articula- goes. Essas teorias so respostas a perguntas. Assim como os adultos tentam responder a questdes que, afinal, provavelmente nfo tm resposta (as grandes quest6es metafisicas), também = cerianga vé-se diante de interrogacdes para as quais no tem res- posta imediata, resposta “cientifica”, ou seja, correspondente a0 seu entendimento. [A questio que nos parece primordial — aquela que para nés, psicanclistas, esté no centro da questo da castragio — &, obviamente, a da diferenga dos sexos. Ora, Freud variow nesse ponto (ainda que essas variagdes talvez sejam reduti- DIFERENCA DOS SEXOS E DISTINGAO DOS GENEROS CASTRACAO: SEUS PRECURSORES F SEU DESTINO 25 veis) e, nessa época, pensa que o ponto de partida da inves no € a diferenga dos sexos: “Se pudéssemos renunciar & nossa condigio corporal €, puros seres pensantes provenientes, por exemplo, de um outro planeta, aprender as coisas desta terra com uma visio nova, talvez nada prendesse mais a nossa atencdo,do que a existéncia de dois sexos ‘entre os seres humanos que, em tudo o mais tio semelhantes, acen- tuam, porém, sua diferenca pelos sinais mais exteriores. [Portanto, ‘a maior questo que se colocaria em relagéo & espécie humana seria, com efeito, essa diferenciacgio que se traduz até nos sinais mais exteriores: a conformagio fisica, 0 vestuéirio, os costumes socials, ete, Ora, para Freud, esse nfo é 0 ponto de partida.] Ora, néo parece que as criangas também escolham esse [uw fundamental ‘como ponto de partida de suas investigagdes sobre os problemas sexuais. Como elas conhecem pai ¢ mae desde o tempo @ que re ‘montam stas lembrangas, aceitam a existéncia da diferenga como uma realidade que no cabe examinat mais a fundo. .." No ensaio Algumas consogiidncias psiguicas da distingdo ana- tamica dos sezos, de 1925, uma nota ® volta sobre essa afirmaglio para dizer que isso ndo € tio claro assim e que talvez para certas criancas, conforme 0 caso, 0 que se apresenta primeiro é 0 problema da diferenga dos sexos ou, pelo contrétio, 0 outro problema (que iremos ver qual é, dentro de um instante). Em todo caso, temos af um modo de ndo colocar em primeiro plano, como um enigma fundamental, 2 origem da diferenciagio masculino-feminino, E, 0 que vai ainda mais longe, nessa passagem © em outras, Freud ad nite que exisiria uma espécie de reconhecimento “pré-castrativo — ou “pré-edipiano” — de uma difetenca, ou melhor, de uma distingao entre homem e mulher, entre pai e me. Com efeito, est ai uma evidéncia que € atualmente enfatizada por certos autores: ‘a de que, anteriormente & problemética da castragio, ji-existe a ad- rmissio de uma distingao entre homem e mulher, e que a crianga se enquadra nessa distingéo, do lado dos meninos ¢ do lado das meninas, Retomando um termo que esta hoje em destaque, depois igo 1S. Em La vie sexuelle, Paris, PUF, 1977, p. 16. Entre colchetes: comentévios de J. L 20, Ibid, p. 127. 0 26 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES de trabalhos em lingua inglesa, direi que nessa época — ¢ Freud f reconhece mas, evideniemente, de um modo muito passageio — existe, numa etapa précastrativa, 0 reconhecimento de uma dis- tingo dos géneros, precedendo a diferenca dos sexos**, Vé-se que esse conhecimento pré-castrativo do casal masculino-feminino pa- rece ser Obvio endo ter valor, para a crianca, de incitago 8 ine vestigagdo. Em suma, esse conhecimento no teria valor pulsional. [Nao é, em absoluto, de maneira espontinea, como se se tratasse de ‘uma necessidade inata de causalidade, que se desperta, nesse caso, © impulso de saber das criancas, mas sob o incitamento das pulsGes ‘egoistas que as dominam quando se encontram diante da chegada de um novo bebé. A distinedo pai-mae nao despertaria, portanto, © desejo de saber, nao suscitaria mais perguntas do que outras distin- es fornecidas pelo mundo dos adultos, e o incitamento s6 chegaré no momento em que se acrescenta um elemento pulsional, precise- ‘mente o citime em relagao a uma outra crianga. E o problema “nt ‘mero um”, aquele a que as criancas procuram responder por meio de suas “teorias sexuais infantis” ou, em todo caso, aquele que est no inicio de todo um encadeamento de teorias sexuais, seria, por- tanto: de onde vém as criancas? Lim ponto interessante nesse enszio, € sobre o qual caberdé abrir um breve paréniese, € a descrigao feita por Freud do conflite psiquico. E, talvez, a sua primeira desctiedo teérica do conflito in- fantil, do conflito que se chama “edi © CONFLITO piano”, no sentido de que estabelece 0 PSIQUICO E. confronto entre a crianga e 0 casal pa: (© SEGREDO rental, Esse conilito edipiano — esse conflito “nuclear”, como é dito aqui — 21. A distinggo entre sexo e género & indispensdvel em psicanélise. Pretendo darthe um sentido preciso, muito diferente dos pressupostos e, fem ulkime insténeia, da confuséo introduzida por Stoller. E insustentivel, sobretudo, situar um dos termos do lado da ansiomia e o outro do lado dda psicologia, Convém designar por sexo 0 conjunte de determinagées fisi- ‘Oe psiquicas, comportamentos, fantesias, etc., ditetamente ligedo 8 fangio e a0 prazer sexuais, E por género © conjunto de determinagées fisieas ou pefguicas, comportamentos, fentasias, etc., ligado 2 distingko masculinofeminino, “A distingao dos géneros val das’diferengas somsticas “Secundiias” até 0 “género” gramatical, passando pelo aspecto tisleo, ‘yestuétio, papel social, ete. ad Slinger © ies come ON etencin CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO a7 centrase na nego de saber. © conflito psiquico seria, no inicio, ‘um conflito em torno do saber e em toro da recusa parental em proporcionar esse saber. A crianga faz uma pergunta verdedein “De onde vém as criangas?” E uma questio talvez mais realista, mais suscetivel de uma resposta objetiva, do que a pergunta: de conde vem a diferenca dos sexos? Ela tem clementos de resposta ‘para essa interrogagdo, na observagao, pelo menos da gravidez © tudo o que acompanha um parto, Ora, a crianga obtém uma res- posta oficial sob a forma nfo de “teorias sexuais”, precisamente, ‘mas de fabulas — como as da cegonha ou do repolho — apresen- tadas pelas pessoas grandes como se fossem uma resposia cientifica, objetiva: “Parece-me decorrer de numerosas informagoes por mim obti- das que as eriangas se recusam a acreditar na teotia da cegonhe mas, depois de terem sido enganadas ¢ rejeitadas uma primeira vvez, passam 2 desconfiar de que existe algo de proibido, de terdito, que as ‘pessoas grandes’ guardam para elas e, por essa razio, as criengas tratam de envolver em segredo suas investi- jgagdes. subseqiientes. [Hé, portanto, um dominio reservado das ppessoas grandes — a prova disso est nessa diferenga entre © que fa erianga pequena pode suspeitar ¢ a teoria verdadeiramente su- méria que Ihe é apresentada — um dominio proibido e, correla tivamente — 0 que é muito importante — constitui-se, do Indo da crianga, uma clivagem semelhante.] Mas também viveram assim fa primeira ocasiéo de um ‘conflito psiquico’ na medida em que opinides, pelas quais sentem uma preferéncia de natureza pulsio- nal, mas que no sfo ‘corretas’ aos olhos das pessoas grandes, centram em oposigdo com outras, baseadas na autoridade de ‘pessoas grandes’ mas que nfo convém as criangas. Esse conflito psfquico pode torar-se bem cedo uma ‘clivagem psiquica’.” ‘Essa clivagem psfquica fundamental, que tem origem, por- tanto, no primeizo conflito psiquico, é a grande clivagem do indi- J? ‘viduo em inconsciente, por um lado, e pré-consciente-consciente, 4 por outro. Em suma, o dominio reservado dos adultos € a garantia do dominio reservado das criancas. Hé de um lado ¢ de outro da 22. Em La vie sexuelle, Paris, PUF, 1977, p. 18 Batre colebetes: ‘comentiios de J. 1. 28 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES teoria oficial (para simplificar, da fébula da cegonha) uma clivagem que faz com que os pais se reservem alguma coisa, ¢ uma clivagem no préprio sujeito, que faz com que a crianga, por sua vez, se reserve uma certa fantasmatizagio dos fatos. Iss0 se observa com bastante freqiiéneia em andlise: 0 fato de que o segredo das pes- sous grandes no & somenie um elemento negativo, algo subtraido 8 crianga, mas € ao mesmo tempo, para cla, a possibilidade, de ‘maneira simétrica, de se conservar na posse de um dominio secreto — ou eventualmente compartithado com outras criangas — que € ‘2 dominio de suas préprias concepgdes sobre a sexualidade. Quais séo essas teorias sexuais infantis? Freud desenvolve principalmente rds dalas (com muitas variantes © fantasias oo- nnexas): em primeira lugar, a fantasia de que todos os seres hu- ‘manos, inclusive os seres femininos, tém um pénis; em seguida, f teotia do nascimento “cloacal” (portanto, pela via intestinal); finalmente, a chamada concepgio “sédica” do coito. Em qual delas se insere a teoria da castracio? De fato, ela estd nas trés, A teoria cloacal: veremos em breve toda a sua importincia em relagdo & ‘questo da castragio. J4 sabemos que os excrementos, nas equa- g6es simbélicas inferidas por Freud, so os precursores da crianga. Igualmente a perda dos excrementos, das fezes, é assimilada sim- hbolicamente a perda da crianga no parto, mas também fornece um prototipo que toma plausivel a possibilidade de uma perda do pénis na castragao. Do mesmo modo, a terceita teoria, a concepgiio sédica do coito, suscita o problema des violéncias ligadas ao coito, da natureza dessas violéncias, 0 que seré principalmente desenvol- ‘vido com a psicandlise do Homem dos Lobos. Veremos, retomando essa andlise do Homem dos Lobos, a significacao da cena primi- tiva ou cena originéria, que implica justamente um certo tipo de violéncia, ¢ mais precisamente uma violéncia que conduz cas tragio da milher ‘Mas 6 evidente que a primeira dessas teo- rias € que evoca mais diretamente a questo da castragio. Ela a evoca, de ‘uma cera maneira, em negative, ou como seu pressuposto, pois é cenunciada nos seguintes termos: (© UNISSEXO... “A primeira dessas teorias esté ligada ao fato de que so ne- gligenciadas as diferengas entre os sexos, negligéncia que, como CASTRACAO: SEUS PRECURSORES F SEU DESTINO 29 sublinhamos desde 0 inicio, era caracteristica da crianga, Essa teoria consiste em atribuir a todos os seres humanos, inclusive os seres jeminines, um pénis, como aquele que © menino conhece @ partir do seu prépric corpo.” (Os dois géneros (chamemo-los assim, e ainda nfo “sexos”) sio admitidos, mas sua distinedo ndo passa pela diferenca sexuada. Essa distingdo entre masculino ¢ feminino, sustenta Freud em ‘outros trabathos, s6 ocorrerd no final, no momento da puberdade. Ele também iasiste no fato de que ela € dificilmente delimitavel © definivel, e de que, na realidade, € uma concepgio compésita © ‘complexa. B feita de elementos biolégicos, sem divida, mas igual- mente de todo tim contexto sociol6gico — as atitudes fixadas para ‘0 género masculino ¢ para o género feminino, os papéis de um & do outro, sao diferentes — e, enfim, de elementos mais enraizados na psicologia individual, portanto, elementos psicossexuzis. Ora, essa distinga0, que Freud coloca como o termo mais ou menos ideal, mais o1 menos normativo, da evolucdo, é pressuposta aqui desde 0 inicio, pelo mundo dos adultos, sem diivida, mas também & admitida como tal pela crianga. Ela néo € questionada pela ‘erianga ¢, afimal, por que 0 seria mais do que outras distingdes? Nem mesmo é relacionada diretamente com uma diferenca na se ‘xualidade, dedo que, do ponto de vista do 6rgao sexual, a crianga considera que “todos os seres humanos, inclusive os seres femin nos, tém um penis”. Portanto, 0 fato de ter um pénis nada implica {quanto 2 distingao de gneros. Outra observacéo quanto a essa teoria: € a nocdo capital da valorizagdo nareisica do penis, sua implantagdo narcisica no corpo, que faz com que yerdadeiramente fa crianga se sinta coagida a admitir que um ser humano possa ser desprovido de pénis. Finalmente, quero lembrar que Freud fala = e, sobretudo no inicio de sua obra, nesse perfodo — essencial- mente a parir da tica da evolugio do menino. Serio os estudos de 1925 que comecatio a questionat a evolucdo da menina. O menino é, justamente, 0 pequeno Hans ¢, em seus didlogos, essa teoria da identidade dos géneros quanto & posse do pénis est claramente presente. © pequeno Hans comega a explorar 0 mundo & sua volta — animais e seres humanos — e a fazer indagagoes quanto & posse por cles desse precioso pénis ou, como ele diz, desse preciaso “faz-pipi". “Eto, por exemplo, diante da jaula de 30 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES tum Iedo, e grita alegre ¢ excitado: eu vi o fazpipi do leo.” A esse respeito, Freud assinala a importéncia dos animais (tanto n0 mito, na lenda, nas histérias ou nos contos, quanto no sintoma — ¢ sobretude nos sintomas f6bicos, como aquele de que vai sofrer ‘© pequeno Hans), na medida em que eles se oferecem, de um ‘modo inteiramente predominante, 2 essa investigacao da crianga. Hans interrogase em seguida a respeito dos objetos inanimados, © cis como a pergunta e a resposta se formulam: “Acs 3 anos ¢ 9 meses, ele vé, na estacio, uma locomotive soltar gua. ‘Olha, diz ele, a locomotiva faz pipi, Onde ¢ que esta © faz-pipi dela?” [E cis como ele resolve @ questio:] Apés um momento, ele arresrenta em tom pensativo: ‘Um cachorro e um cavalo tém faz-pipi; uma mesa e uma cadeira nao tém.’ Assim, ele esta de posse de uma caracteristica essencial para diferenciar 0 vivo do inanimado.” [Essa distingao animadoinanimado desem- penha, portanto, um papel muito importante, como em nossos dias, nna Tingiistica moderna, e & a ela que Hans procura, de inicio, aplicar a diferenga, isto é, a presenca ou auséneia do faz-pi Quanto aos seres humanos, precisamente, ele se recusa a thes aplicar essa diferenga. Bis a seqiéncia do diélogo:] “A sede de conhecimento parece insepardvel da curiosidade sexual, A curiosidade de Hans dirige-se particularmente para seus pais HANS (aos 3 anos ¢ 9 meses): — Papai, vocé também tem um faz-pipi? © PAL: — Claro que sim, naturalmente. HANS: — Mas cu nunca 0 vi, quando vooé se despe Numa outra ocasigo, ele observa, com toda a sua atengéo concentrada, sua mae que se despe antes de deitar. Ela Ihe per gunta: — © que vocé esté othando assim? HANS: — S6 estou vendo se voc também tem um faz-p! A MAE: — Claro, voo8 nao sabia? HANS: — No, eu achava que, como vocé é tio grande, vo’ devia ter um faz-pipi como um cavalo.” [Em Cing payelanalyses, Baris, PUR, 1975, p. 96. Entre colchetes: comentitios de J. L. CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 31 ‘Vése que, nesse momento da investigacio, a percepeio da nudes Jeminira, da mie ou da iemazinha, nao leva & afirmagio de uma auséncia do pénis. E eis como o texto sobre as “teorias sexuais infantis” vem teorizar essa fase: “Quando o menininho vé as partes genitais de uma irmi- vinha, seus comentarios mostram que seu preconceito jé € bas- tante forte para contrariar a percepedo; em ver de constatar a falta do membro, ele diz regularmente, & mancira de consolagio e de conciliagio: & que o “fazpip ainda € pequeno; mas quando ela for maior, ele cresceré bastante. A crianga, portanto, tranqiillizase assim através da presenga do faz-pipi pequeno da menina, que cresceré quando ela crescer. E, a esse propdsito, nfio podemos deixar passar uma digressao muito engragada sobre a anslogia dessa atitude de Hans com a teoria de certos fildsofos. “Faremos mais para salvar a honra do nosso pequeno Hans [quanto & racionalidade, em suma, de sua teoria]. Na verdade, ele no se comporta pior do que um filésofo da escola de Wundt [trata-se da polémica em torno da questo do ‘inconsciente, como estando separado]. Para um tal fildsofo, a consciéncia € a carac- teristica indefectivel do psiquico, tal como para Hans o faz-pipi € 0 eritério indispensivel do ser vivo. O filésofo descobte processos psiquicos que devem ser inferidos, mas dos quais nada é pereebido pela consciéncia — com efeito, nada se sabe deles ¢, no entanio, nio se pode evitar inferi-los [so os fendmenos inconscientes] —, enffo ele no diz que sio processos psiquicos inconscientes, mas qualilica-os como obscuraniente conscientes. O faz-pipi ainda & muito pequeno! E, nessa compatagao, a vantagem ainda esté do Indo do nosso pequeno Hans. Pois, como ocorre com fregiiéncia nna investigagéo sexual das criangas, uma parte do conhecimento exato dissimula-se, neste caso, por trés do erro, A menininha tam- bém possui, com efeito, um pequeno ‘faz-pipi’, que chamamos de litéris, embora no cresca mas permanega atrofiado de maneira permanente.” * ‘24. Em La vie sexuelle, PUF, 1977, p. 19. 25. Em Cing psychanalyses, Paris, PUF, 1975, p. 98, nota 3. Entre colehetes: comentarios de J. L. 32 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES Seré por mero acaso — certamente que néo — que, pela segunda vez, a propésito da castragdo e da diferenga (nitida ou no) que deve separar 0s sexos, vemos aparecer a questéo meta- psicoldgica da clivagem psiquica entre consciente (ou sistema cons- ciente-pré-consciente) € inconsciente? Teremos ocasiio de nos is terrogar mais de uma vez sobre as opgdes filoséficas subjacentes nessa polémica (¢ nao apenas entre Freud e os psicdlogos da escola de Wand), A opgio de Freud, dualista, dialética, filosofia da rup- tura e da contradiglo (nfo, nao na menina; nfo, niio se pode pensar que o inconsciente seja, simplesmente, “o obs- curecimento consciente” e que, por progressio, por contigiiidade, ele se apresente como uma espécie de subconsciente ou, em éltima instancia, de pré-consciente), opde-se a uma filosofia da continui- dade ou da multiplicidade, & recusa da negacio, tal como se ma- nifesta entre os adeptos de Wundt. Mas esse é wm ponto de vista sempre vivo € que me parece ser a mola de uma das criticas mais recentes (na verdade, a mais recente) do freudismo, Refiro-me, pot emplo, & teoria de Deleuze-Guattari, a qual, em mais de um aspecto — teoria dos fluxos, retorno as multiplicidades qualita tivas, horror ao que chama “a imbecil dialética” —, poderia per- amente interpretarse (e se interpreta, por certo, em algumas de suas dimensoes) como uma espécie de neobergsonismo, Seja como for, @ teoria de Hans estd aquém dessas querelas; cla coustitui, simplesmente, uma teoria da unicidade dos sexos. © que, para Freud, nfo esté isento de um fundamento biolégico; ele insiste absolutamente em que essa parcela de verdade, que existiria em toda teoria infantil, soja reencontrada, Nessa primeira fase da teoria infantil, ele pretende detectila pela analogia em- briolégica, ¢ conseqtizntemente bioldgica, entre o penis, de um Jado, 0 clitétis, de outro, em que este nada mais é do que um pénis nio-desenvolvido. Quais sio as conseqiléncias dessa pri- E SUAS ‘meira fase da teoria dos géneros? Em CONSEQUENCIAS primeiro lugar, € a airibuigao a todos os sexes humanos — e muito mais tarde, na vida, nos sonhos ¢ nas fantasias — de um pénis. & praticamente af que, pela primeira yez, coloce-se em primero plano essa imagem quase universal — reencontrada regularmente num momento ou CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO outro, sobretudo nos sonhos — da mulher com pénis: “A. reps sentagio de a mulher com pénis reaparece, mais tarde, nos sonhos do adulto: num estado de exeitacdo sexual noturna, ele derruba uma mulher, despe-a e prepara-se para 0 coito, quando a visio do membro perfeitamente desenvolvido, no lugar das partes genitais femininas, péra 0 sonho ¢ a excitagao.” ®° A segunda conseqiiéncia & através da nogdo de fixagio narcisista no semelhante, a idéia de ‘que se encontra nesta fase o ponto de partida da homossexualidade, Se essa representagdo da mulher com pénis se ‘fixa’ na crianga, resiste a todas as influéncias ulteriores da vida @ torna 0 homem jincapaz de remunciat 20 pénis em seu objeto sexual, ento um tal individuo, com uma vida sexual normal em outros aspectos, tor- arse necessariamente um homussexual © buscaré scus objetos sexuais entre os homens que, por outtas caracteristicas sométicas psiquicas, lhe recordam a mulher.” *" Em contrapartida, e esse €0 terceiro ponto, a mulher real, aqucla que é pereebide com sua anatomia onde justamente ndo esté presente, na percepeio, 0 Pénis, vése objeto, a partir desse momento, de averséo ou mesmo de horror. Esse horror da castragio seré relacionado, pela primeira vez, a um outro elemento que o “precipita”: & a possibilidade de que © individuo, 2m sua inffincia, tenha ouvido uma ameaga, precisa mente, de ser submetido ao ato de castragio, de ser efetivamente castrado por alguém. Em todo caso, aparece aqui essa nogio de horror da castragdo (discutiremos esses diferentes afetos em torno da castrag3o: horror, susto, medo, angistia, talvez desejo), que surge sobre 0 fundo da teoria de identidade narcisica dos sexos ¢ mesmo, nesse estuido, essencialmente sobre 0 fundo da homosse- xualidade, Ele nfo esti ainda generalizado a todos os seres hu- manos: Freud reserva, nessa época, para o termo “complexo de castraco”, como reservard freqilentemente para 0 termo “com plexo”, a nogio de algo parcialmente patol6gico, em todo caso de singular, de individual, no sentido em que atualmente se fala de ter complexos”, 0 que supée implicitamente que se poderia nfo cs ter. Talvez nem todo mundo tenha um complexo de castragao, 26, Em La vie sexuelle, Paris, P 20. Ibid, p. 20. 1977, p39. a4 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES mas 0 homossexual, em todo caso, 0 tem, complexo esse que ¢ leva a esse horror provocado pela percepgio do drgio genital fe- minino. O homossexual 6 quem mais profundamente aderiu a essa identidade do objeto sexual consigo mesmo, com o sujeito, € ele que mais € atingido pelo susto: “As lendas e os mitos testemunham a revolta que transtorna a vida afetiva da crianga, 0 terror que esté ligado ao complexo de castragao; nessa medida, mais tarde, repugnard ainda & consciéacia Iembrarse disso. Ora, as partes genitais da mulher quando, mais tarde, so percebidas ¢ concebidas como mutiladas, evocam essa ‘ameaga e, por essa razo, provocam no homosexual horror em vez de prazer. Nada mais pode ser mudado nessa reagio, mesmo quando © homossexual aprende, através da citncia, que sua hipdtese de crianga, a saber, que a mulher também possui um pénis, nao era tao absurda assim.” Vemos aqui que 0 complexo de castragdo € uma teoria que s6 encontraria seu pleno desenvolvimento no terreno da homosse- xualidade, admitindo-se que a homossexualidade encontra sou pré- prio fundamento,na fase da unicidade sexual, Em contrapartida desse desenvolvimento, apesar de tudo atipico, da problemética da castragio — levando ao horror ¢ & recusa, no homossexual, face & percepgao da feminilidade — temos, no caso de Hans, uma problemética muito mais sutil, muito mais complexa ¢ relativa- mente mais normativa — no sentido da adogio da masculinidade -— ...8e bem que, em Hans, 0 problema da homossexualidade ‘permanece certamente fundamental, e que Freud provavelmente no o tenha enxergado em toda a sua amplitude. Eis um sonho de Hans que é inteiramente caracteristico desse complexo de castracio e de seu desenvolvimento; € 0 sonho do encanador “Hons veio procurar-me pela manh [¢ 0 relato que 0 pai faz a Freud): Sabe, hoje pensei alguma coisa! ["pensei” é, para cle, sonhei]. Primeiramente, ele a esqueceu; mais tarde, cle a conta, mas manifestando uma resistencia consideravel: ‘O enca- nador veio & nossa casa e, primeiro, tirowme o traseiro com um alicate, ¢ depois dew-me um outro, & depois fez a mesma coisa com 0 mew faz-pipi’ Ele disse: ‘Deixe eu ver 0 seu traseiro’, entiio 28, [bid, CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 35 eu tive que me virar e ele o tirou, e entio ele disse: “Agora deixe eu ver o seu faz-pipi.” E importante assinalar que se trata de um sonho de final de tratamento, ou, em todo caso, que marca uma evolugio muito nf tida das fantasias de Hans, pois aqui, o analista trebalhando na propria época da constituigéo do complexo, a cura ¢ a evolugao espontinea da fantasistica esti incessantemente sobrepostas; tra- tase, portanto, de um sonho préximo ao final do complexo de castragio. E um tereeiro quem castra, e é um homem (0 encéna- dor). A castrasio refere-se a0 faz-pipi, mas também a outras partes do corpo ¢, em’ particular — o que € muito importante, pois 0 erotismo anal esti sempre presente nessa observacio — no tra seiro (retiramhe o trasciro ¢, em toca, déo-the outro). A propéeito do “faz-pipi”, 0 relato ¢ formulado com um pouco menos de precisto; Hars diz simplesmente: “B depois fez a mesma coisa com o meu fez-pipi.” Seré porque admitir que Ihe deram também tum outro “far-pipi” € admitir, evidentemente, de maneira frontal, a rivalidade com o pai, quando o complexo de castragio tem por feito principalmente permitir contornar parcialmente esse rivali- dade? Bis a continuagao, quando o pai percebe, também ele, que © mesmo ocorreu a0 “faz-pipi “O pai compreendeu 0 cardter dessa fantas teve divides, por um s6 instante, quanto & t que comporte de desejo € nfo a interpretaglo, © PAL: — Ele te deu um jaz-pipi maior e um traseiro maior. HANS: — Sim. © PAI: — Como os do papai, nfo é, pois vocé gostaria muito de ser 0 papai? HANS: — Sim, e também gosteria de ter um bigode como voot, ¢ também pélos como voce (ele aponta para os pélos do ‘meu peito) [e castragio estendew-se ainda a outras partes do corpo, evidentemente com 0 objetivo, entre outros, de desviar a atengéo do ponto essencial].” # Em conslusio, no que se refere a essa época (1905-1908), ‘vemos que & castragdo impde-se entdo a Freud, essencialmente, 28. Em Cing psychanalyses, Paris, PUP, 1975, p. 165. Entre colehetes: comentévios de J. L. 30, Ibid 36 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES como wma teoria — fantasfstica —, mas uma teoria no verdadeiro, sentido do termo, ou seja, 0 que permite um certo ordenamento| dos fatos. Na medida em que a énfase recai sobre a teoria, 0 que se sublinha é mais a estrutura do que a angtistia. Néo que a questo da engistia estefa ausente, mas ora ¢ explicada por outros processos e nfo pelo medo de castragio, ora, quando se trata verdadeiramente do horror da eastracio, esse horror € considerado, sobretudo, produto de uma evolugio patolégiea — homosexual — da problemitica, Podemos resumir essa teoria em alguns pon- tos: primeiro ponto, a distingao dos géneros, admitida desde que @ crianca ingressou no mundo adulto — portanto, desde as origens fou, em todo caso, e ainda mais, desde 0 momento em que ela reve acesso a um universo simbolico ¢, em particular, @ denomi- nacio dos géneros —, converte-se em diferenca de sexos. O segundo ponto € que essa diferenca dos sexos especificase pela presenga- auséncia do pénis. © terceiro ponto seria que essa diferenca explicase por uma ago de amputago, uma castracio operada por ‘um terceiro (vemos ai esbocar-se a questio da lei). Enfim, 0 quarto ponto: nos casos favordvels, essa amputacio, essa possibilidade de amputacdo, abre o caminho para um processo de restituigio, quando jo para uma promessa de troca. Nos casos desfavordveis, 0 indi- viduo poderia fixar-se em imagos pregnantes, quase indestrutiveis, no inconsciente: imago da mulher com pénis, imago do ferimento, da mutilacdo, suscitada pela visio do sexo feminino — 18 de dezembro de 1973 Avisei que ndo seguiria as etapas linearmente, e salto, portan- to, de momento, a parte central da evolugio do pensamento de Freud, que também € muito interessante, ou seja, a observacio do Homem dos Lobos. Vou diretamente ao outro extremo EVOLUGAO DA do percurso, aos anos de 1925-1925, com SEXUALIDADE os trés grandes estudos que indiquet an- INFANTIL, tes: A organizagao genital infantil; A dis- soluedo do complexo de Edipo ¢ Algumas consegiiéncias psiquicas da distingao anatémica dos sexos. © COMPLEXO DE CASTRACAO NA CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 37 Em primziro lugar, 0 complexo de castragio esté desde entao universalizado, 0 que é um desfecho relativamente tardio. Ainda em 1914-1915, no ensaio sobre o narcisismo, Freud duvida de que se encontte 0 complexo de castracio em todos os seres huma- nos, Somente em 1924, sobretudo numa nota acrescentada 20 caso do pequeno Hans, essa universalidade foi afirmada. Essa universalidade (0 que é mais importante ainda) fundamentou-se na descoberta de uma fase libidinal denominada por Freud a fase félica, ou fase de organizacao genital infantil. No estudo A organi- zagao genital infantil, o pr6prio Freud retraga a evolugio do seu pensamento, a qual se encontra nos diferentes estratos do texto dos Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade (como se sebe, os Trés ensaios foram constantemente reformulados e, de edigao em edigiio, Freud inseriu neles suas descobertas sucessivas). As trés etapas, nessa evolugao do pensamento freudiano, so as seguintes: na pri meira etapa — a de 1905 — opdem-se, de maneira nitida e sumérie, por um lado, a inféncia com a sexualidade infantil, e, por outro, & sexualidade adulta, tal como se desenvolve a partir da puberdade. Essas sexualidades distinguem-se por numerosas caracleristicas: a nGo-organizacio da sexualidade infantil em face da organizagao adulta; a perversidade polimorfa da inféncia, em face do primado de um tipo de atividade sobre as outras no adulto; enfim, a auséncia de objeto — sendo a infiincia considerada um estégio auto-erético — face A escolha de objeto que seria apandgio do adulto. Eviden- temente, tudo isto era muito sumfrio, Seja qual for o significado profundo que isso pudesse conter em germe, era evidente que nfo se podia sustentar, por exemplo, que nao existia objeto na infancia € tampouco que nfo existiam rudimentos, ao menos, de organizaglo da vida sexual, Daf a segunda época da teoria freudiana, aquela em que so efirmadas a5 organizagGes pré-genitais: anal, depois oral. Essas organizagies caracterizam-se, como para o adulto, pela escolha de um objeto e por uma sintese relative da vida sexual sob ‘um certo primado de uma zona sexual, erégena, oral ou anal segun- do os casos, Mas mantém-se que isso constitui apenas uma unifi- cago muito imperfeita e que a unificago genital — dnica orga- nizagdo verdadeira — s6 se opera na puberdade. Finalmente, em 1923, Freud cescobre que convém aproxiriar ainda mais lidade infant da sexuatidade adulta, no sentido de que existe desde 38. CASTRACAO — SIMBOLIZACOES. a inféncia uma organizacdo genital, um primado genital: tanto assim que a sucesséo das organizagies oral € anal culmina, desde a infancia, num tipo de organizacio ja muito préxima daquela do adulto. Eis duas passagens desse estudo sobre “A organizagio genital infantil”: “Ja nao me satisfaria atualmente @ proposigao de que o pri- mado dos 6rgios genitais na primeira infancia s6 se efetuaria de um modo muito imperfetto, ou nem mesmo se efetuaria. A vida sexual da crianga aproxims-se daquela do adulto numa medida muito maior € isso nfo se refere somente ao advento de uma escolha de objeto. Mesmo que nao se chegue a uma verdadeira sintese das pulsdes parciais sob o primado dos drgfas genitais, a0 apogeu do desenvolvimento da sexualidade infantil, o interesse pelos Grgios genitais ¢ pela atividade genital adquire, entretanto, uma importincia dominante, muito pouco inferior & que tem na maturidade, A caracteristica principal dessa organizacdo genital infandil 6, a0 mesmo tempo, o que a diferencia da organizacdo geni- tal definitiva do adulto. Ela reside em que, para os dois sexos, um $6 drgdo genital, 0 drgio masculino, desempenha um papel. Portanio, no existe um primado genital mas um primado do falo.” * Algumas linhas mais adiante, somos devolvidos & questo do complexo de castracdo ¢ & sta ancoragem dat em diante encon- trada nessa fase, 0 que é sublinhado, no estudo, pelo proprio Freud: “S6 se pode apreciar em seu justo valor a significagao do complexo de eastragio com a condigto de se levar em conta o seu surgimento na fase do primado do falo.” A novidade dos anos 20, em relago a0 A FASE complexo de castragio, consiste em situé PALICA lo sobre 0 fundo do que Freud designa por “organizacZo genital infantil” e, mais precisamente, por “organizagio (ou fase) félica”. O significado de fase félica esté associado a um certo néimero de termos (aos quais, teremos que voltar mais demoradamente): primado do felo para 08 dois sexos ou ainda conhecimento ou reconhecimento da exis- tOncia de um s6 sexo, o masculine — tendo como correlative @ 51. Em La vie sowuelle, Pals, PUR, 1977, p. 114 x2) Ibid, p. 115 CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 39 idéia de um desconhecimento pela crianga dos srgios genitais femininos ¢, em particular, da vagina, “o outro sexo” niio sendo definido por um atributo positive que faca parte dos Gros geni- tais femininos, mas unicamente pela auséncia do érgio masculino. Freud situa essa polaridade, que ele designa por “félico-castrado”, numa série de pares de opostos que contribuem para a estruturagao da vida sexual, notadamente 2 polaridade “ativo-passivo” ou ainda, bem diferente, a polaridade “masculino-feminino”. Voltemos @ alguns pontos, acompanhando o texto “A organizacio genital infan- til”, de 1925, e, em particular, um trecho da pégina 114 * “O menino [o proceso é descrito na crianca do sexo mas- culino ¢, ainda por algum tempo. acompanharemos Freud, ace tando a desctigao a0 nivel do menino} certamente percebe a dife- renga entre os homens e as mulheres, mas, de inicio, ele néo tem casio de relacionar essa diferenga com uma diversidade de seus respectivos Grgios genitais.” “Percebe a diferenca”: fot a isso que jé fiz alusdo anterior- mente, ou seja, a polaridade mascutino-feminino, que supostamente deve terminar toda a evolugao, apresenta-se de inicio, entretanto, para a crianga; portanto, antes da fase filica. Ela esté presente, ‘mas como uma espécie de oposi¢ao natural ou social (A semelhanga de muitas outras oposicdes ¢ muitas outras diferengas como, por exemplo, entre scres vivos e seres inanimados, ou ainda entre animais e seres humanos) que tem necessidade de ser baseada em teoria, Os dois termos em que gostaria de in- DIVERSIDADE sistir nesse texto so diferenca ¢ diver- E DIFERENCA, sidade, correspondentes 2 dois termos alemies: Unterschied = diferenga, © Verschiedenheit = diversidade. Essa disting70 é muito importante. A diferenga (Unterschied) implica, desde o comeco, uma polaridade, uma dualidade; ela se coloca sempre entre dois termos. Por outro lado, a diversidade (Verschiedenheit) pode existir, por certo, entre dois elementes, mas também-entre n elementos. Por exemplo, a diversidade de cores: cada uma delas define-se por uma qualidade propria; as cores sfo em niimero infinito € sempre possivel inven- tar novas, na gama do espectro cromético. Nenhuma se define pela 7 (BSB — vol. XVII, pp, 180481. NRT] 40 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES negagio de uma outra, nem mesmo — insisto nisso — 0 branco e'o preto. Diz-se correntemente que © que néo € branco € preto ¢ (0 que nfo € preto é branco, Na realidade, nao se trata ai, no mundo da percepydo sensorial efetiva, de uma diferenca, mas somente de uma diversidade (a menos que nos situemos num sistema que, por convensao, esi reduzido & bicromia, ao sistema branco e preto do cinema ou da televiséo). Num sistema de dois valores, 0 branco define-se pelo ndo-preto mas, no sistema das cores naturais, sistema de 1 possibilidades, 0 nao-branco pode ser preto, sem diivida, mas igualmente vermelho, verde, ete, E uma légica simples e cléssica, ‘mas iremos ver a importancia dessas consideragSes légicas para a fase félica e talvez. inversamente (seria um outro capitulo), a impor- tancia dessa fase félice para o desenvolvimento da Iégica humana, enguanto protstipo de uma certa légica. Trata-se aqui da légica do conceito que define dois tipes de oposigao, a dos contraditérios, por um lado, ¢ a dos contratios, por outro, Os conirdrios nao podem ser ajirmados sSimultaneamente de uni mesmo sujeito. No nosso exemplo das cores, os contrérios sdo a diversidade das cores; niio se pode afirmar simultaneamente de um mesmo sujeito a cor verde ea cor azul, Em contrapartida, a negagdo da cor azul naa temete, por si mesma, & cor verde, mas a uma multiplicidade de cores possiveis. Os contraditérios do podem ser nem ajirmados nem negados. simulianeamente de um mesmo sujeito. Se, por exemplo, nna série de contrérios, de cores, agruparmos num s6 conceito 0 conjunto de cores menos uma, temos desta vez uma oposi¢ao de contradit6rios: no-branco/branco. eto, cores ABC... branco eee ndo-branco Qual € a relacto dessas abstracdes com a sexwalidade? Esta- mos habituados a pensar na sexualidade como bindria, feita de dois pélos: pélo masculino e pélo feminino. Eo que é ela do ponto de vista da natureza? A sexualidade, do ponto de vista biolégico, é uma diversificagdo, uma espécie de especializagio em relagdo a uma certa funcdo. Nada implica que (oda especializacao seja necessariamente bindria, mesmo que um grande numero de especializagdes ou de complementaridades 0 sejam, de fato, no CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO a mundo natural. Existem ciclos naturais, ou ainda mais, talvez, ciclos sociais que exigem a operacdo de mais de dois elementos, de n elementos: pensemos na diferenciacio do trabalho ou ainda das classes sociais. Portanto, apesar do nosso hébito, certemente bem fundado, apesar do que se passa, de fato, na natureza, nada impede que se possa licitamente imaginar a existéncia, nfo de dois sexos, mas de mt sexos concorrendo, por exemplo, pata a procriagao. Jé temos af o slogan para uma “generalizagao” cientifica possivel: um outro planeta, poder-se-ia descobrir a existéncia de uma pro- criagdo que recorre a trés, quatro sexos. Do mesmo modo Freud, precisamente em seu estudo sobre as éeorias sexuais infantis, re- corte & ficgio inversa: uma espécie de marciano que vem & Terra fe se surpreerde por encontrar somente dois sexos. Mas é também uum slogan, retomado, por exemplo, por Deleuze ¢ Guattari, para a reivindicaggo de uma espécie de estado de natureza o qual, em si, néo é inconcebivel e, aliés, é proprio da sexualidade infantil dita polimoria (dispersa numa multiplicidade de zonas erégenas) em stia etapa — ou no conjunto de suas etapas préfélicas. Voltemos a Unierschied (diferenga) ¢ Verschiedenheit (diver- sidade), Existe, segundo Freud, uma diferenca de géneros, uma diferenga entie os homens as mulheres, percebida, mas no con- ceituada, pela crianga: diferenga social, cultural, para a qual falta um fundamento légico. B, tal como o nosso marciano, a crianga procura pars essa biparticdo da vida social um fundamento na feotia, precisamente um fundamento l6gico, Deveré esse funda- ‘mento Idgico ser procurado na anatomia? Se recorrermos a um dos outros trabalhos de Freud desse periodo, pereeberemos que € jus tamente a{ que se situa, de certa maneira, no ambito da teoria adulta (= da teoria psicanalitica), a origem da diferenga dos neros. © préprio titulo desse artigo fala por si mesmo: Algumas consegiiéncics sla diferenca (Unierschied) anat6mica dos sexos... ‘Sim, mas entio, poderdo objetar, no trecho que comentei acima, no era questo de diferenca de sexos mas, pelo contrério, de diversidade dos drgios genitais, Em outras palavras, justificarseia todo 0 barulho que fago em tomo desses dois termos, Unterschied © Verschiedenheit? Haverd em Freud, verdadeiramente, uma linha diviséria corceitual entre diferenca e diversidade? Observarei que Freud fala ce diferenca dos sexos no sentido em que ele entende 42 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES © termo sexo como 0 género humano afetado de tal ou tal sexo. Em outras palavras, a palavra sexo tem dois significados, podendo © sexo feminino designar ora o conjunto das pessoas femininas, ora 0 érgao sexual feminino. De miodo geral, Freud emprega 0 termo diferenca quando se trata da espécie composta pelo conjunto de individuos femininos ou masculinos, e de diversidade a pro- pésito dos drgios genitais. Também neste caso € preciso distinguir DIVERSIDADE varios niveis: nivel da anatomia ou da DOS ORGAOS morfologia, nivel da fisiologia ou da SEXUAIS? funeio e, finalmente, nivel da pulsdo. E falo de snatomia e de fisiologia nao so- ‘mente cientificas mas também “populares” e, num afvel ainda mais profundo, fantasisticas. Ao nivel da fisiologia, sabemos com certeza que existe uma complementaridade no funcionamento (como poderia set de outro modo?): complementaridade no ato sexual, coito, e complemen- taridade nas conseqtiéncias do ato sexual, ou seja, na procriagéo. Portanto, em nossa fisiologia mais elaborada, a de adultos civili zados ¢ formados num certo conhecimento cientifico, existe um verdadeiro dualismo, um certo Unterschied, uma verdadeira dife- renga fisiolégica dos sexos. Entretanto, esse dualismo fisiolégico, sabemos que ele est longe de constituir a lei no que concerne a0 mais intimo das crengas © dos comportamentos. Sabemos que a complementaridade no coito (¢ nés 0 sabemos essencialmente a partir de Freud e das investigagdes psicanaliticas) € 0 resultado de tum processo aleatério, pelo menos no ser humano. A simetria das formas, convexas ou cOncavas, que acreditamos set um dado de origem incontestavelmente natural, é, na realidade, uma oposigéo adquirida ou reconquistada. O pénis, no comego, busca muitos outros lugares de excitagdo que no seu lugar pretensamente na- tural (a vagina). Ele deve, em outras palavras, reencontrar a na- tureza apés um longo processo em que a perdeu. Recordo a titulo de exemplo, entre outros, a Enfase que a psicanélise dé ao auto ferotismo © a todas as excitagées do pénis provocadas por muitas outras manobras que nfo o coito: na crianga, evidentemente, a ma- nipulago, ou mesmo a fantasia, muito freqiente, de que Ihe estiio batendo no pénis, ou ainda a fantasia de encontrar a satis. CASTRAGAO; SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 4a facdo do pénis num coito anal, Portanto, a complementaridade, 90 nivel do coito, € 0 que hé de mais questionével. Quanto A com- plementaridade ao nivel da procriagio, na concepgio, sabemos ainda melhor até que ponto ¢ uma aquisigo (desta vez. mais social do que individual) cientifica bastante tardia, Muitas teorias sobre os chamados povos primitives contradizem essa nogao de comple- mentaridade na procriagio, recorrendo a outros elementos, even- tualmente sobrenaturais, para explicar a concepedo, que, embora se produza em seguida a0 coito, nfo é considerada a conseqiiénciea direta dele. ‘A pulszo, eis um outro elemento sobre o qual se poderia fun- ne um dualisma: deixo provisoriamente essa auestio de lado, pre- cisamente porque vamos ver que ela se apresenta mais como um resultado do que como um pressuposto, Quanto anatomia, 6 preciso agora distingui-la do funcio- namento e da fisiologia, que acabamos de discutir. Ao nivel da anatomia, 20 nivel do sexo (desta vez no sentido dos érgios se- xuais), seria necessério distinguir também a anatomia “adulta” (conhecida ou supostamente conhecida pelo adulto) ¢ a anatomik infantil (tal como a crianga a concebe). Mas o que é a anatomia adulta”, e serd ela verdadeiramente mais objetiva do que a cons- truida pela crianga? Sabemos que o conhecimento das diferencas anatOmicas esta impregnedo de fantasias ¢ que a ciéncia 33 0 cortige parcial ¢ imperieitamente. A psicandlise, tanto em seu inf cio, com seus trabalhos sobre a histeria, quanto em seus deseavol- tes, enfatiza a nogéo de uma anatomia ou de io, corpo onde, notadamente, tudo 0 que esté em seu interior é fantasiado de maneira totalmente extravagante © sem relagdo com as descobertas cientificas. E sabemos que néo basta ser médico ¢ ter adquirido conhecimentos da anatomia cien- tifiea para apagar essés anatomias imaginérias. Seria muito fécil se, por exemplo, bastasse realizar estudos de anatomia cientifica para cortigir um sintoma histérico que, precisamente, despreza a anatomia cientifica. Seja como for, essa anaiomia “popular” do adulto depara-se com érgfos miltiplos, heterogéneos uns em re- Tago aos ovtros e, no nivel sexual, certamente se fala do pénis € dda vagina, mas devese falar igualmente dos seios, talvez do stero e de uma certa concepeio fantasfstica do que pode ser a matriz. 44 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES (Ou nto pensemos ainda no pequeno Hans — na eélebre passagem. da banheira —, que, depois de ter falado de ter um penis grande um traseiro como seu pai, evoca também uma outra caracteris- fica sexual, chamada secundaria, que é a pilosidade: seré que vou ter pélos no peito:como voce? Portanto, € com toda a razio que Freud, 2 propésito desses Grgtos, fala de uma diversidad dvida, “a cada um 0 que Ihe € devido” (ao homem: o pé testiculos, uma certa pilosidade; & mulher: a vagina, 0 titero, 08 seios, um outro tipo de pilosidade, etc., em suma, repartem-se todas, as caracteristicas sexuais primérias, secundétins, sociais), mas nada permite passar da negaco de um & afirmagao do outro. Nao basta dizer (e nada o subentende nesses termos) “ndo-vagina” para dizet “pénis”, ou “ndo-mulher” para dizer “homem”. E nada impede, nesse nivel anatémico, que se imagine um terceiro ou um enésimo ipo de ser humano, um terceiro ou um enésimo género marcado por um erceiro ou um enésimo tipo de étgao. Em outras palavras, 20 nivel da anatomia nfo existe principio do terceito-excluido, ¢ nada impede tampouco que se imagine nfo sé esse terceito érgtio sexual, completamente diferente dos outros dois, mas também um individuo portador, simultaneamente, dos atributos de um ¢ do outro sexo. A imagem do hermafrodita € uma imagem correste, particularmente pregnante tanto no mito quanto no sonho, Acabamos de falar de individuos “portadores de atributos”: isso nos convida ainda a voltar a0 conceit © & contradigdo. Di- ziamos que se tratava aqui de uma légica do conceito. Os légicos, quando enunciam essa légica do conceito, dizem geralmente que ela € inconcebfvel sem sua insergdo numa certa Iogica do julga- mento e da atribuigio. O que significa isso? Significa que as noses de contratio € de contradit6rio nfo s4o nogdes em si. Nio se pode dizer que as cores so contrérias ou contraditérias em si, Para revelar esse cardter de contrério ou de contraditério, € ne- cessério um individuo, um portador 20 qual esses conceitos sejam attibuidos, Mas eu desejaria agora voltar ao seguinte: existe duas maneiras de ser poriador de um atributo. © ATRIBUTO COMO —_Vejamos ainda o exemplo das cores. “Ser QUALIDADE E verde" pode ter dois sentidos: ou tal COMO INSIGNIA objeto ox tal sujeito de julgamento tem a cor verde (a maga é verde), ou entio CASTRAGAO: SBUS PRECURSORES £ SEU DESTINO 45 —e um modo inteiramente diferente de proceder — tal sujeito & portador do verde, nfo como a cor que © pinta, mas como uma insignia. Recerdo 0 epis6dio muito conkecido da hist6ria de Bi zincio: a partir dos jogos de estédio, onde os acampamentos dos cavalos e dos carros de corridas recebiam duas cores (verde € azul), seus partidérios torcedores foram designados como os “yerdes” © 0s “azuis” e, pouco a pouco, toda a cidade estava es- truturada com base nessa distinedo, que se converte, de uma oposigdo esportiva, numa distinedo politica capital, acarretando toda uma série de disputas e de massacres bizantinos. Essa dis- tingdo tornouse uma distingdo entre dois campos — a facclo dos verdes e a facgio dos azuis —, estruturando toda a cidade. Iss0 no signifiea que os verdes fossem verdes (nem mesmo com s¢ diz. que 0s negros, ou os amarelos, ou 05 brancos, ou os peles vermelhas, pouco importa, so brancos, negros, amarelos, etc.). ‘Trate-se, entio, do atributo tomado nfo como qualidade, mas como insfgnia. Eo que € muito interessante nesse caso da insignia, © no exomplo de Bizincio, é que a insignia acaba criando uma distingZio que nio existia de inicio. A insfgnia nio é a imagem de outra coisa, mas-é a insignia que cria aquilo que simboliza. E a atribuigdo da insignia que acaba por criar campos politices ¢ nfo, forgosamente, campos politicos preexistentes que se dio uma in- signia a titulo de sinal de reconhecimento, Eo simbolo que tem aqui uma fungdo verdadeiramente criadora ¢ que modeia inteira- mente uma distingao sociel e politica. Por conseguinte, é impor tante distinguir o atributo como qualidade e o atributo como in- signia. Come qualidade, verde © azul nfo srios. Como insignia, 0 verde e o azul podem tornarse contradit6rios, no sen- tido em que se podia dizer em Bizdncio: “Quem n&o est comigo 6 contra mim, se voc nfo é verde, é necessariamente azul”; no 1h4 opefo para os “vermelhos”. Portanto, se se limita arbitraria- mente a escolha de insignias a dots valores, passa-se da diversida de cores & diferenga de campos. Um ovtro ponto ainda mais im- portante, sempre quanto a essa distincdo entre qualidade © i signia: ao nivel da qualidade, “nfo-verde” na gama das cores (as ‘cores de fruias, por exemplo) & apenas uma abstragao, nfo é uma cor. £ preciso que um objeto fenha uma cor, necessariamente, © =ngo-verde” remete para todas as outras cores. Do mesmo modo, 46 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES no quadro que fiz acima, “ndo-branco” & apenas um conceito abs- trato, forjado para obter uma contradi¢ao, mas “ndo-branco”, no concreto, remete forcosamente a cores diferenciadas: preto, ver melho, etc. Pelo contririo, ao nivel da insignia (e isso € 0 mais surpreendente), 0 “ndo-verde” pode existir no real. O que quero dizer com isso? Vamos desenher 0 portador: desenho um quadrado, mas poderia muito bem ser a famosa yesfeula protoplismica de que Freud fata em dados momentos, uma espécie de limite de um corpo e — por que néio? — também uma espécie de Gestalt que seria um homenzinho. Podemos atribuirlhes, como em Bizincio, duas insignias, verde ¢ azul, e temos um primeito tipo de contradicao (supondo-se que. arbitrariamente, se tenha limitado 0 jogo apenas a duas cores, © que se diga: em nosso jogo de insfgnias temos unicamente 0 verde © 0 azul. O resto nds desconhecemos como insignia). O que indi- quei hé pouco foi que se 0 ndo-verde nao existe na natureza, em contrapartida, a0 nivel da insignia, ele pode perfeitamente ser con- cebido, Isso significa que ndo tenho necessidade de duas séries, de duas coleges de insignias, para repartir a cidade em dois campos. Preciso apenas de um sinal verde e a distingo seré, partir de entio, entre verde e ndo-verde, entre aquelés que portam a in sfgnia verde e aqueles que ndo a portam, entre o termo “marcado” © 0 termo “nfio-marcado”, sendo este denominado ainda, por vezes, “grau zero”, | v Nv LI CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 47 ‘Assim, a0 nivel da insignia, a qualidade de ndo-verde pode tomnar-se algo que pode existir no real, algo que pode ser “perce- ido” (reencontraremos esse problema da percepeio na crianga a0 da fase félica: 0 que ela percebe quando nfo percebe nada, ou quando percebe... nada). Conclusio provis6ria sobre os termos Unterschied © Vers: chiedenbeit. Direi que ha diversidade dos atributos (0s quais, in- discutivelmente, sic em nimero indefinido de n); diferenea rela tiva dos géneros, baseada na escolha de dois atributos ou de duas séties de atributos (que ndo so unicamente anat6micos, mas podem ser igualmente sécio-culturais, psicoldgicos, ete.); mas diferenca absolut quando & mareada pela presenca ou auséacia de um 6 attibuto. Reencontramos assim, por esse atalho I6gico muito sim- ples, o mundo da crianga tal como Freud o descreveu na fase falica, e 0 qual seria estruturado por uma polaridade ou por uma conttadigao absoluta, Fese em que no haveria dois sexos diversos numa série de 1 sexos, ou onde nao haveria sequer dois sexos opos- 0s e marcados por ins{gnias diferentes, mas em que um seria carac- terizado, e unicamente, pelo fato de nao ser marcado, enguanto que © outro 0 &. No fundo, a fase filica nada mais € do que a am- pliagdio da teoria sexual constatada desde 1905. Trata-se, também neste caso, de uma “teoria”, mas o que hé nela de novo em re- lagdo & de 1905? A investigacio centrada no penis € considcrada doravante como a prevalecente (em relagdo & investigagio sobre a crianga rival, que seria, num sentido, derivada em fungao da in- vvestigagio scbre os pais). A investigacio esti ancorada no corpo, na vida pulsional. Bis uma passagem que insiste na origem pulsional dessa investigagio e dessa teoria; a crianga nao cria uma teoria pelo prazer de criar uma teoria, mas é impelida, em sua curio- sidade, por uma excitacao “Bssa parte do corpo, fécil de exeitar, que se modifica e que 6 tio rica em sensagdes, ocupa no mais alto ponto o interesse do ‘menino e atiibui constantemente novas tarefes & sua pulséo de in- vrestigagio. Ele gostaria de vélo também em outras pessoas, a fim de comparélo com o dele, ¢ comportase como se tivesse uma vyaga idéia do fato de que esse membro poderia e deveria s maior, A fora motriz. que essa parte viril desenvolverd mais tarde, nna puberdade [na puberdade, a eredo serd uma verdadeira forca 48 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES motriz em relagéo ao outro sexo], apresentese essencialmente, nessa época, como necessidade premente de investigacao, como curiosidades sexual.” # Nessa medida, a “teoria” que dai resulta € muito mais do que simples teoria, vai adquirir valor estruturante para 0 universo da crianga, no somente, ¢ talvez nem mesmo essenicialmente, para seu universo perceptivo. Ela estruturard seu desejo, que, de simples busca da excitacdo peniana e da descarga, fixar-se-d naquilo que 6 licito chamar de “significante” do sexo em que se converte 0 falo. Concluirei rapidamente esta aula com uma questéo que me foi apiesentada da ‘iltima vez, e que se enquadra aqui muito naturalmente: 0 que se deve pensar dessa distingao entre falo € pénis? £ uma distingao empregada em sentidos diversos (que seria bastante dificil reunir numa unidade absolut) e quem a empregou eis freqiientemente foi Jacques Lacan. Em Lacan, essa distinggo concebese em fungéo da triparti¢fo dos dominios em que sua teoria se desenrola: real, simbélico ¢ imagindrio. Em Lacan, “penis” designa essencislmente 0 Grgio real, mas “falo” (a despeito do que somos tentados a pensar e do que somos induzidos a admitir lendo os trabalhos de discfpulos) nfo significa somente o 6rgi no sentido simbélico, mas também no dominio imagindrio. Sem nos atermos a triade lacaniana (que tem sua existéncia propria ¢ muito complexa), constatamos que a distingo de falo ¢ pénis existe antes de Lacan, por um lado em nossa lingua, senfo a com rente, pelo menos a civilizada; ¢ por outro lado em Freud, visto que ele nos fala, precisamente, de fase fética e nfo de fase peniana. Por que fase félica e nfo fase peniana? Isso se esclarece pelas in- dicagdes precisas que acabamos de propor no que se refere 2 oposicdo Iogica: pénis designa, em Freud, a realidade anatémica fisioldgica, 0 drgéo sexual como lugar de uma excitagio. “Pénis” pode entrar numa série, realmente indefinida, de érgios: vagina, ‘mas também seio, testiculo, mo, anus, elc. A distingdo e a opo- sigdo pénis-vagina sfo puramente adultas, normativas, biolégicas: PENIS E FALO 35. Em La vie sexuelle, Paris, PUF, 1977, pp. 114-115, Entre colche tes: comentitios de J. L. CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES & SEU DESTINO 49 nna realidade, nada implica que 0 pénis encontre na vagina sew destino, nem o lugar nevessério de sett gozo. Falo, pelo conirério, nfo entra numa série indefinida, nfo é um termo entre outros. Sem diivida, veremos que ele pode entrar nas chamadas séries simbé- licas, no sentido de que pode substituir outros érgdos como equi- valentes simbélicos. Mas o falo enquanto marca, enquanto marca de um corpo humano, ¢ tnico, Nao se ope nem a uma série de outros érgios, nem mesmo a um s6 drgi0 que seria, este, 0 Grgio da feminidade; 6 0 que Freud exprime, de forma abrupta, ao de- finir a fase félica: » alternativa, diz ele, no é, pois, entre mas- culino e femirino, mas entre falico e castrado, ou seja, entre félico & niio-falico, “Falo” implica, portanto, por sua presenga ou sua ausénel um critério classificatério maior. Por que, nessa funcio, 0 uso do termo greco-latino? Na Antigiiidade, o falo eta precisamente a representagio figurada e simbélica do érgéo viril, com caracteris- ficas que provam justamente que era considerado um s{mbolo, uma insignia: 0 érgéo visil em eredo, separado do corpo, objeto de veneracéo desempenhando um papel central, por exemplo, nos mistérios © nos ritos de iniciagdo. Em suma, 0 falo é um sfmbolo: “Nessa época recuada, o falo em erecao simbolizava 2 poténcia soberana, a virilidade transcendente mégica ou sobrenatural, © néo a variedade puramente pridpica do poder masculino, a esperanga da ressurteigio e a forga que pode produzi-la, o principio fuminoso {que nfo tolera nem sombras nem multiplicidade, e mantém a uni- dade eternamente pujante do ser. Os deuses itifélicos, Hermes © Osiris, encaraam essa inspiragdo essencial.” * Serfamos evidente- mente tentadss a dizer que, se 0 falo é simbolo, € porque ele sim- oliza alguma coisa. Esse estudo de C. Laurin mostra precisa mente que, na Antigiidade, o falo “simbolizava” toda uma série de qualidades, de poténcias, de- virtudes, a ponto de, por esse fato, cair-se numa espécie de alegorismo, Seré isso 0 que queremos dizer quando falamos do significado simbélico do falo? Podere- ‘mos dizer até que o falo, como s{mbolo, simbotiza uma rea dade que seria a presenga do pénis, do drgéo masculino? f pre- 34. _C. Lautio, “Phallus et soxualité féminine", em La psychanalyse, VIL, avis, PLF, 1964, p. 15. 50 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES ciso tomar, entio, 0 termo “simbolo” numa acepgdo mais depu- rada ou mais distante de sua possibilidade de entrar numa “sim- bdlica”. Quando dizemos que o falo tem valor simbélico, é por- que ele marca 0 corpo humano por sua presenca ou sua auséncia. E 0 essencial do falo, jé na Antigiiidade, & 0 poder de ser desta- cado. Por esse fato de ser representado como destacado do corpo, ppassamos de uma “presenga-auséneia” puramente légica, de uma oposigao Iégica “félico/nfo-félico” a uma oposigéo, agora na vida pulsional, “félico/castrado”. A fase félica nfo é somente uma fase de teoria, Ela é, certamente, uma fase de investigacdo, mas € também uma fase de experiéncia: experiéncia mental, afetiva © pulsional. E precisamente essa experiéncia pulsional que designa- ‘mos como complexo de castragio, — 15 de janeiro de 1974 Nesta colocagao do complexo de castra- ¢f0, seguimos Freud, de momento, sobre- tudo no periodo de 1923-1925, em que 0 complexo de castragio é proclamado como uma realidade universal, enquanto que, até entdo, era considerado apenas um “complexo” particular. Assim, em Sobre o narcisismo: uma in- trodugao, Freud, embora indicando j4 a importincia do complexo de castragdo, sustenta haver casos em que nfo se verifica, em absoluto, a existéncia desse complexo. Alids, nessa mesma época ele engloba na mesma desconfianga a existéncia universal do com- plexo de castragio ¢ a nogdo de “protesto viril”, proposta por Adler; protesto viril e complexo de castragio estavam, por certo, muito préximos um do outro, excetuando-se, porém, na nogdo de protesto viril, a tendéncia pera dessexualizar o problema em re- ago & realidade corporal em que o complexo de castragio est ancorado, Essa dessexualizago, que é por certo 0 ponto fraco do adlerismo, nao basta « Freud, entretanto, nesse estudo, para asse- gurat a yalidade do complexo de castragao. $6 em 1923-1925 é que este seré apresentado como aquilo por que todo ser humano COLOCACAO DO COMPLEXO DE CASTRACAO NO MENINO, CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 51 deve passar, tal como o complexo de Edipo, essa passagem defi- indo uma fase especifica da sexualidade: a fase félica. A fase falica 6 0 fundamento do complexo de castragio ¢ € inseparével deste: so dois aspectos de uma tinica e mesma realidade. Desenvolvemos na viltima vez uma espé- A'LOGICA cic de I6gica da fase félica. Por que uma FALICA, “I6gica”? E que, para Freud, cada uma das fases da sexualidade caractériza-se por um grande par de opostos, ou seja, por uma grande “polari- dade”. Assim, na fase oral, certamente no existe oposigdo interna a pulsdo, a pulso ainda nao estd cindida, mesmo sendo ambiva- lente; pode-se definir uma oposicéo suieito-obieto, mas esta alids, plenamente reversivel, podendo 0 objeto ¢ 0 sujeito da It bido inverter seus papéis de maneira imediata. Foi por isso que, depois de Freud mas inteiramente dentro de sua linha de pensa- ‘mento, falamos de uma “triade otal”, baseando-se a caracteristica dessa fase em trés acdes, verbos ou fantasias: comer, ser comido (estes dois termos revertendose, sem mediagfo, um no outro) & dormir. Quanto a fase anal, ela se define pelo grande par de opostos atividade e passividade, sendo 0 par, desta vez, mais ni- tidamente cindido, uma vez que se tende a dizer (de um modo talvez esquemético) que a atividade se encontra do lado do sa- dismo e a passividade do lado da analidade. Em seguida, a fase genital infantil (aa qual estamos atualmente centrados) define-se pela oposicao félico-castrado, Finalmente, a fase genital adulta, pés-puberdade, corresponderia & oposicio masculino-feminino. Uma “I6gica”, dissemos nds: tratase de “logicizar” a anélise? Néo é certamente esse 0 nosso propésito, nem o de Freud. Com esses termos, tratase de uma ceria ordem num certo diseurso, e, para que haja ums certa ordem ¢ um certo discurso na seqiiéncia dessas Epocas, € nevessério (como dizem os lingtiistas) que exista uma Dateria minima de “significantes” de termos opostos, permitindo que a pulse se formule ¢ se estruture. Vocés nao ignoram que a referencia & linguagem € empregada pelo préprio Freud a pro- pésito.das fases, quando nos diz, por exemplo, que existe uma “Finguagem” da pulsfo oral. Foi nese sentido que demos uma espécie de esquema do uuniverso conceitual, mental, do modo de funcionamento por opo- 52 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES sigdes existente na fase fiilica. NOs o fizemos apoiados num certo mimero de distingdes. Em primeiro Ingar, a distingio (indicada por Freud) entre diversidade e diferenca, em que diversidade im- plica a possibilidade, pelo menos virtual, de m termos, de n di- mensbes, ¢ a diferenca, pelo contrétio, implica uma légica de dois valores. Utilizemos igualmente uma légica simples do conceito que distingue contritios © contraditérios. E, finalmente, uma ter- ceira distingdo apéia-se na idéia de que nao existe I6gica do con- sito sem que ela se baseie, pelo menos virtualmente, numa att buigdo possivel desse conceito a um sujeito. A esse propésito, in- ‘troduzimos uma outra distingdo, que é entre a atribuiggo como qualidade © a atribuigdo como insignia. Ora, essa atribuigio de uma insignia é justamente 0 que caracteriza a fase félica, uma vez que, agora, na realidade fisica, temos simultaneamente um su- jito, um corpo e, atribuidas a esse corpo, em primeiro lugar, in- signias, Vimos que Freud, com efeito, no nega que insignias do género penteado, vestusrio, atitudes, relagdes sociais, etc., estejam presontes para a crianga, antes da fase félica, e, com elas, a dis- tingao masculino-feminino. Mas, desta vez, e chegamos ao proble- ma da fase félica, voltamos ao corpo, portador dos érgios sexuais, «, entre eles, da insignia por exceléncia, sempre suscetivel de ser sublraida, corlada: © pénis, que, a0 mesmo tempo, funciona como falo, Essa “Iégica” da crianga pequena esté ancorada no afeto, na vivéncia pulsional, pois o que pode ser amputado é certamente uma insignia mas, antes de tudo, é um lugar de prazer experi- ‘mentado desde muito cedo. No menino pequeno (acompanhando Freud, deixamos de lado, de momento, o problema da menina), 0 Pénis que pode Ser amputado € um lugar desde muito cedo exci- tado auto-eroticamente na masturbacdo, mas também excitado pelo ‘outro nos cuidados corporais, mesmo que sejam aparentemente inocentes ¢, € claro, sobretudo nos cuidados maternos. Essa in- signia abstrata, esse Grgio principal do prazer, é também, desde os primeiros dias, o lugar por exceléncia da reunifo objetal com & mie, Prazer © unio, prazer e amor, que pricridade dar a um ou ao outro? # provavel que, para Freud, a prioridade soja dada 20 prazer, Para outros, que Freud nfo desaprova, notadamente Ferenczi, seria provavelmente o inverso, no sentido de que 0 pro rio coito e seu aspecto de orgasmo nada mais so do que a re- CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO petigdo, o substituio de um estado originério de reunido com a Uina vez colocado esse fundamento da “Iégica” félica, preciso agora situar 0 complexo de castragZo na sua evolugio, ¢ sso de dois pontos de vista: por um 0S INGREDIENTES lado, 0 ponto de vista de seus “ingre- DO COMPLEXO dientes” e, por outro, 0 ponto de vista DE CASTRACAO de sua fungdo em sua relago com 0 complexo de Edipo. Os ingredientes. Assim designo 0 que entra na sua compo- sigéo mas, evidentemente, é uma composigio irredutivel a uma simples soma. A noc#o de somacio, mais de uma vez evocada em Freud, desde 0 Projeto para uma psicologia cientifica, foi aparen- temente emprestada da neurologia, mas jamais como uma nogio puramente quantitativa, Os neurologistes dizem-nos que, quando 6 estimulos sio subliminares, pode haver substituicdo de um 36 estimulo que atinge o limiar por varios estimulos subliminares. Nao obstante, mesmo em neurologia, 0 fenémeno de somacéo nfo € visto como adi¢go pura e simples. Em Freud, a somago de ingre dientes ou de elementos, ou a somagio traumética, esté submetida a efeitos diversos, temporais: efeitos de precipitagao, efeitos de “tomada” ¢ “reiomada”: retomada de um elemento antigo que adquire uma nova significacdo; tomada, no sentido de que se passa a tomar alguma coisa como um conjunto, quando até entéo apenas havia clementos esparsos, liquids, fluidos. Ora, por exce- lkneia, 0 complexo de castracdo € 0 dominio desses efeitos tem- porais que se agrupam, segundo Freud, sob 0 termo “posterio- ridade"” (apréscoup). Entre os ingredientes do complexo de castracio hé os pre- cursores pré-fdicos (aqueles das outras fases, desde o nascimento, a fase oral e ¢ fase anal). Mais adiante falaremos deles em maior detalhe. Freud conferehes aqui (no momento em que desenvolve 6 esquema do complexo de castracio) um lugar relativamente so- cundério, para concentrar-se especificamente no genital, com uma obstinagio, que vai além da vontade de esclarecimento termino- légico, em reservar a palavra “castragio” para o penis: “Notamos com razio que a ctianga adquire @ representacao de um dano nareisico pela perda corporal, a partir da perda do 54 CASTRAGAO — SIMBOLIZAGOES seio materno apés a mamada, a partir da entrega cotidiana das fezes, e mesmo desde 0 nascimento, a partir da separagio do corpo materno. Entretanto, s6 se deve falar de complexo de castracao @ partir do momento em que essa representagéo de uma parte se liga a0 Orgio genital masculino,” Outro ingrediente ou situagdo de base: 0 narcisismo. Evidentemente, podemos de- finélo, de um modo muito geral, como ‘uma certa relago do eu consigo mesmo. Mas, de fato, na teoria psicanalitica, encontramos duas interpr tages possiveis (as quais, alids, no so absolutamente contra: térias, salvo se admitirmos uma e outra ao pé da letra, sem in- terpretacao). Por um lado, a relagdo narcfsica € concebida como uma espécie de estado anobjetal, monédico, sem mediacao, um individuo fechado em si mesmo e sem relago com © mundo ex- terior; estado evidentemente hipotético, se supusermos que a crian- ga comecou, ao nascer, por encontrar-se nesse estado, visto que, por definicao, nada poderfamos saber. Um tal estado corresponde a ob- servagées certas tanto no dominio do normal (por exemplo, no sono) quanto em estados patolégicas. Por outro lado, na outra in- terpretagdo, mais préxima da prépria origem da nogéo, 0 naxci- sismo é uma relagéo de si mesmo consigo mesmo por intermédio de uma certa imagem do eu; € precisamente isso que indica o mito de Narciso olhandose na agua, O narcsisme, se partirmos da idéia de uma relago com a imagem do eu, implica além disso uma nocao de totalizagio, ou seja, a relagio com a imegem do eu tem por efeito delimitar uma certa unidade. Neste ponto, reportamo-nos a0 que se designa como constituiglo do ego ¢ que € 0 fruto de expe rigncias complexas, Lacan apresentou aqui a nogo da “fase do espetho”, que & exemplar na medida em que a relagio se estabe- lece verdadeiramente com a imagem do outro e na medida, tam- bbém, em que aceleva ¢ propulsiona a tendéncia para uma unifica- Go do individuo em sua propria imagem. Mas existem muitas outras experigncias que levam a essa totalizagio, em particular todas as experigncias de investimento do limite corporal. CASTRACAO E NARCISISMO Em La vie sexuelle, Pavis, PUF, 1977, p. 115, nota, CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 35 ‘Totalizagio da imagem do eu; chegamos aqui, por um lado,¢ A nogio da integridade e, por outro, logo em oposigéo com ela, & possibilidade de um ferimento. Integridade, ferida, aproximamo- nos do problema da castrago, Essa integridade € 2 caracteristica intacta de um invélucro que mantém uma forma e uma totalidade Fisicamente, tratase simplesmente do invélucto corporal, cutfineo. Sem divida mais importantes do que esse invélucro fisico, porém, so todos os invéluctos imaginrios que se formam a partir dele. Estes podem ser miiltiplos ultrapassar imaginatiamente, na fan: tasia, © inv6lucto do corpo, englobar todo um universo de perien- cimentos. .. tudo isso para chegar, se a tomarmos num nivel mais elaborado, & nogo de um ego que se constitui, também ele, como uma imagem, como uma metéfora, como o transporte, no lugar do psiquico, dessa unidade corporal. Com a nogio correlata de ferida (e vamos falar de “ferida narcfsica”), deparamo-nos com a possibilidade ce uma eftago (effraction) do invélucro. Com essa ‘concepeao ainda priméria, elementar, do narcisismo, estamos longe de um narcisismo mais evoluido, mais elaborado, que é precisa: mente o narcisismo félico, onde a integridade corporal inclui, de mancira importante ¢ privilegiada, essa parte do corpo que 0 pénis. Teremos ocasiio de voltar a essa nogo — normal ou pato- Iogica — de entidade “félica narcisica”. Gostaria de sublinhar ainda trés pontos a partir desse narci- sismo: 1) Uma constatagdo que j4 fizemos, e sobre a qual volto a insist, € que a nogio de integridade félica naroisica (a integri- dade de um todo nareisico que compreende o falo como parte es- sencial dessa integridade) € inseparavel de uma permutabilidade entre 0 corpo 2 seu pénis. Do corpo ¢ de seu penis significa que ora um ora outro que é essencial, que & investido do interesse principal (ou ainda, para voltar A nossa “Idgica”, ora um ora ‘outro € que € sujeito ou atributo): © corpo pode ser apéndice do énis, inteiro ele pode ser “falo". 2) O segundo ponto é o significado energético dessa nogio de narcisismo. Nesse sentido, para que haja uma forma fechada, man- tendo-se contra as agressées que possam ferir seu invdlucro, @ psi- ccandlise considera ser nevessario que essa unidade narcisica, essa imagem, seja uma unidade cartegada, “investida", mantendo um EX certo potencial energético. B esse investimento a 56 CASTRACAO — SIMBOLIZAQOES idinal que tem ,ustamente por efeito contrabalancar as tentativas de efragao pro- venientes do exterior. E preciso que a imagem seja carregada, que amada para que seja defendida. Teremos que nos perguntar se 0 que carrega ¢ recarrega a forma narcisica de libido nao seré justamente, como uma espécie de gerador,/a excitagdo do pénis.] 3) Finalmente, 0 terceiro ponto ¢ que o problema do narci sismo permite estabelecer um vinculo com a questo da angéstia —e, evidentemente, da angtstia de castracao. Uma das certezas dda teoria da angistia em psicanlise é de que a angistia deve ser interpretada para além do medo. Que a angiistia seja sempre uma angustia do ego, como diz Freud, s6 pode ter um sentido profundo: € que a angistia esté ligada a uma desestruturagio possivel, a uma ameaga_para_a integridade dessa forma narcisica, A partir dai, a“ameaga qué recai sobre essa totalidade reveste-se de dois aspectos: — um aspecto formal (que diz respeito 2 propria forma da unidade naveisica), quando se trata de uma possibilidade de ferimento, de fragmentagio, até de aniguilamento de seu corpo; — um aspecto“Gnergétog em que esse ferimento, essa frag- ‘mentagao, es8¢ aniquilamento, so a conseqiiéncia de um afluxo energético demasiado intenso que vem por em pe- Figo o nivel energético que tndé e manter essa forma ou, inyersamente, talvez, a ameaga de uma evacuagio, dema- Sindo intense, de umd Brae ab vel eneTgice base. Evidentemente, ¢ numa relago com essa ferida narefsica ‘que sedefine a questo da angiistia de castragdo. Tratase de tina angiisia ou de um medo? Ou ainda, como, na castragio, angistia e medo se articulam? Tratase de uma angistia primordial ou de uma angéstia derivada, reto- mada a partir de angistias mais precoces, Tigadas a peri- gos mais fundamentals, pré-genitais? E justamente essa a grande discusséo que se instaura em 1925: qual € @ am gistia primordial? Seré verdadeiramente a angistia de eastrago, ou nfo haveré uma angistia fundamental, que seria a angdstia oral ou, mais além, a angiistia ligada a0 trauma do nascimento? CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 37 Chego, neste ponto, aos dois ingredientes que Freud consi- dera como principais nesse complexo de castracéc. Em primeiro lugar, & @ percepeao da diferenga des sexos — ou da auséncia de pénis na me- nina? ou da castragao? Sio, evidente- mente, termos que Freud parece, negli gentemente, considerar como sindnimos, mas que, na realidade, possuem implicagées teéricas muito diferentes — em todo caso, percepeo de alguma coisa que vem concretizar a possibilidade de juma subtragdo do pénis. O outro ingrediente principal é @ ameaga de castragio proferida, digamos por agora, pelas pessoas que 0 cercam. Tais so os dois elementos a que Freud retorna incessan- temente, numa espécie de genese eimpiriva, histévica, factual, do complexo de castragio neste ou naquele individuo, Mas, precisa- mente, existe ai, existird ja de inicio, uma grande ambigtiidade, visto que, a cada observagdo clinica, a experiéncia se mostraré inadequada em relagfo As suas conseqiiéncias, Havers necessidade de um complemento para esses elementos empiricos, ¢ até de um duplo complemento: por um lado, o que parece ébvio, o efeito de ‘uma somagic irredutivel a uma adiedo; nenhum desses dois ele- ‘mentos vale sem o outro, Verificase que os dois, tomados em conjunto, adquitem, de repente, uma importéncia que néo tem medida comum com cada um deles. Mas também (¢ este ponto é ainda mais critico) cada um desses elementos deve ser, e constan- ‘temente, mais ou menos completado por algo que ultrapassa o em- pitico, ¢ vivencia individual. Vejamos como Froud apresenta, em primeiro Inger, aquilo ‘que chamo de “ingredientes”. Ele 0 faz em numerosos textos. Eis, ‘por exemplo, uma passagem sobre a percepeiio da diferenga: “ ‘quando o menino percebe, pela primeira vez, 2 regio genital da menina, conduz-se de maneira irresoluta, pouco interessado no co- rego; nao v2 nada ou entfo, por uma negacdo, atenua sua per- cepedo, busca informagées que permitam conforméla ao que ele espera” ®, Também em muitos outros ensaics, inclusive nas obser- vyages clinicas de Freud — 0 pequeno Hans, o Homem dos Lobos A PERCEPCAO EA AMEACA 36. Em La vie sexuelle, Paris, PUF, 1977, p. 127. 38 CASTRAQAO — SIMBOLIZAGOES — percebese a ambigiiidade © a insuficiéncia dessa experiéneia perceptiva, No comego, 0 menino ndo tematiza essa percepeo de uma diferenga, seja porque nega o que viu, seja até porque nega ter visto alguma coisa, Quando ele diz “néo vejq nada”, ¢ evidente que isso tem dois sentidos; mas dois sentidos que vio sobrepor-se © constituir toda a ambigtiidade ¢ igualmente toda a possibilidade de negacio. “Ele nfo vé nada”: isso quer dizer, evidentemente, ‘que ndo viu nada do que esperava ver, mas também que vé que ‘nao ha nada, pois justamente nao ha nada para ver, ndo hé pénis. ‘Como € que, desse “nada para ver”, se passa A nogao de que havia justamente algo a ver e a compreender, que serie, segunda Freud, a realidade da castracdo? E dbvio que a castragio nao é precise. ‘mente uma realidade, mas uma tematizaco desta, Uma certa teo- izagio da realidade que, para Freud, esté de tal modo enraizada nna percepeao que, em dltima insténcia, negar a castraglo seria a ‘mesma coisa que negar a prépria experiéncia perceptiva. Em todo caso, a percepeio por si mesma é insuficiente, incerta e completamente escotomizada; & necessério um outzo ele- mento, a ameaca: “Quando o menino volta seu interesse pata 0 seu drgao genital, ele trai entdo esse interesse 20 manipuléslo ge- nerosamente, ¢ deve em seguida passar pela experiéneia de que (os adultos no esto de acordo com essas ag6es. Sobrevém uma amieaga, mais ou menos claramente, mais ou menos brutalmente: essa parte a que ele dé tanto valor the serd tirada. Na maioria das veres, é de mulheres que parte a ameaca de castragio.”" E, se fizermos uma sintese dos diferentes textos de Freud onde essa ameaga de casttacio € examinada, poderemos rapidamente per- corter um certo nimero de dimensdes. Por um lado, essa ameaca raramente é formulada (e cada vez mais raramente) sob sua forma principal — “a gente vai cortar o seu pénis” — mas mais fre- giientemente percebida através de injungdes mais ou menos ate- nuadas, mais ou menos deslocadas (por exemplo: “a gente vai cortar a sua mio"); ou entdo € deslocada por toda uma série de equivatentes simbélicos: “se vocé continuar, vai ficar doente, vai ficar louco”, ete, Em todo caso, seja qual for a forma atenuada 37. Tbid., p. 118, CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E sel DESTINO 59 ‘ou simbélica sob a qual a ameaca é enunciada, é evidente que a cerianca percebe muito bem a formulagao da ameaga de castragdo. Outro ponto: quem profere essa ameaga? “Na maioria das vezes & das mulheres que parte a ameaga de castragao.” Empiricamente (c cé estamos diante da relagdo entre 0 empirismo e a construgio), portanto, sfc geralmente as mulheres. Mas, j4 acrescenta Freud, “é freqiiente elas procurarem reforgar sua autoridade invocando o pai ou 0 médico, o qual, garantem elas, executaré a punigao”. Assim, 0 empirico caberia ® mulher. Mas, jé na historia concreta, hhé a possibilidade de uma referéncia a ume autoridade que vem ‘em apoio dessa ameaca de castracao, a referéncia ao pai. Freud, porém, vai ainda mais longe. Actescenta que, mesmo no caso em ‘que a ameaga nio é reportada a0 pai, existe um esquema filoge- nético que faz com que, de todo modo, seja quem for que a formule, € sempre ao pai, em dltima andlise, que essa ameaga serd repor- tada, Eis um trecho de O Homem dos Lobos, que € petemptétio desse ponto de vista: “§ absclutamente indubitével que, naquela época, o pai [do Homem dos Lobos] tomou-se esse personagem aterrador que 0 ameagava ccm a castracio. O Deus cruel, contra o qual ele se debatia entio [vemos 0 problema reportado nfo somente 90 pai, ‘mas também a Deus] ... projetou seu caréter terrfvel sobre 0 proprio pai da crianca, que, por outro lado, procurava defender seu pai contra ele. O menino tinha, neste caso, que se adaptar a ‘um esquema filogenético 0 conseguiu, embora sua experiéncia ‘pessoal nao estivesse de acordo com esse esquiema. Pos as ameacas de castrago ou as insinuagdes que the tinham sido feitas partiam, pelo contrério, de mulheres, mas isso néo podia retardar muito 0 resultado final. Afinal de contas, é da parte do pai que ele veio fa temer a castrago. Nesse ponto, o atavismo triunfou sobre as cunstincias acidentais da vida; nos tempos pré-histéricos, devia set 0 pai, certamente, quem praticava a castragio como punigéo, ¢ foi ele quem, ulteriormente, teve que atenud-la, até nao ser mais do que a cirouncisio.” * 38. Im Cing psychanalyses, Paris, PUP, 1975, p. 391. Entre colche- tes: comentarios de J. L. 60 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES Ultimo ponto, sempre a0 nivel empirico, @ propésito dessa ameaga, Vimos que a percepgfo, em si mesma, era insuficiente, pois pode ser escotomizada. Mas a aineaca, se viese sozinhs, seria Finda mais insignificant, ¢ verificamos freqiientemente nas obser ‘vagbes clinicas — as de Freud ¢, cotidianamente, as nossas — & possibilidade, para a crianca, de rir dessa ameaga, na medida em Que é formulada isoladamente. Ha sempre um periodo, antes de 8 Gfianga obedecer ¢ cessar a masturbagio, em que a amenga nio se presta a que se acredite nels, Quando hé uma erenga, € porgue existe uma combinagao das duas; aliés, Freud apresenta a seqtiéncia temporal entre percepsfo e ameaga, ota num sentido, ora no outro: fe veves, é a percepgao que ver antes da ameaga, outras vezes € 0 Gentrério, Digamos que pouco importe: podese super que a per cepgo da diferenga dos sexos vem confirma que @ ameaga é erin, E, inversamente, podese dizer que # ameaga vem, poste- iormente, dar sentido e estruturar uma percepgao por nattreze limbigua (pois hé sempre esse movimento possivel entre “perceber jada” e “nada perceber”; porquanto, por definigao, nada se quer pereeber porque nao se pode peteeber nada). A crianga diz entéo: FEntdo era isso!” (portanto € assim que se interpreta essa diferenga perceptiva), ou seja: cortaram o pénis da menina, — 29 de janeiro de 1974 Depois de ter falado dos “ingredientes” Zo camplexo de cas tragio, chegamos a0 seu impacto no menino. E evidentemente em relacdo a situagao do Edipo que se deve julgar esse impacto. COMPLEXO DE Um dos textos bisicos & A dissoluetio do CASTRAGAO NO compiexo de Edipo, onde se ve que fase EDIPO filica, complexo de castragio © comple: xo de Edipo sio insepardveis. E Freud adverte contra 0 erro que consisttia em pensar que © que est gem questio, com a castragio, é a sexualidade em geral, quando tp sewualidade colocada na situacdo e nas fantasias edipianas: “No devemos set to limitados quanto as pessoas gue, én carregadas de cuidar da crianga, a ameagam de castraglo, ¢ nfo (© IMPACTO DO CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES & SEU DESTINO 6 nos deve escapar que a vida sexual da crianga, nessa época, no 7p gota, em absoluto, na masturbagio (com efit, a ameaga reesi cxplicitamente sobre # masturbagio] . Pode-se demonstrar que esse Shia seaual consiste na atitude edipiana com respeito aos pais ¢ au amas 6 pe 8 Ge ao sexual perteneente ao complexo e dever! 2 essa selagio @ importincie Bue terd no decorrer de todas as épocas ulterores [a lei da cas ffagdo e a ameaga de castraedo vém “aplicarse” ao contedido de complexe de Eéipo, a respeito do qual venho tembrar, da mansirs nals suméria (como Freud o faz constantemente em seus escritos), que, no mening, consiste no conjunto dos desejos ou “movimentos Butzionais” restritos ao tengulo familiar, ¢ repartindo-se em duns eenstclagdes: a constelagio direta — amor A mie, rivalidade com Sal = mas também @ consteluyio inverse, homossexual) © complexo de Edipo oferecia a erianga dues possibilidades de catisfagho, una ativa e cutra passiva. Ela podia, ao modo mas siiline, colocarse no Tugar do Pai e, como ele, ter relagdes com & ine, ¢ nesse caso 0 pai logo era sentido como um obstéctlos oF Gatto queria substitair a mae e fazerse amar pelo pul, © esse ‘caso a mie tornava-se supérflua.” * (© problema exposto por Freud no artigo intitulado A disso- tugao do complexa de Edipo [em frances: Le dispartion du complexe @Oedipe| consiste precisamente em saber qual 6 Geatino do complexo de Edipo no menino, como é que termina. B Sie emprega at 0 termo Untergang, o qual, em minha opinido, ¢ seis forte do que vepressio (rejoulement). Dizse, quando 0 sol we pae, que ele desaparece, die Sonme geht unter: tratese, eles vemente, de um desaparecimento, ¢ no apenas de uma repress: pelo menos, nos casos mais favorecidos. Freud, nesse estudo, comega pelas hipéteses mais abstratas quanto a esse "desaparecimento” do complexo de Edipo; hipoteses seriori, sem levar em. conta, n0 inicio, a clinica. Em primeito fugar, uma constelagio psiquica pode desaparecer por ifo-st jagto: 0 menino, considerando a mie como sua propriedade, per Jo. Em La vie sexuelle, Paris, PUF, 1975, p. 119. Entre colchetes: comentarios de J. L. 62 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES ceebe muito bem que ndo é esse 0 caso, que nio pode possutla, ‘mesmo sem falar da interdicao; nem que apenas por razées fisio- I6gicas, entre outras, ele é incapaz de realizar suas ambigdes. A primeira hipétese, portanto, € que o Edipo desapareceria simples- ‘mente pelo fato de que as aspiracdes edipianas so, por natureza, ‘por esséncia, incapazes de chegar a uma realizacio. Observarei, no entanto, que Freud, em outros textos, € com grande freqiéncia, indica que a néo-satisfagio jamais foi capaz de levar 20 desapa- recimento, nem mesmo ® repressfio, de uma pulsio; que € proprio de uma pulsio o seu irrealismo; que uma pulsio pode repetir-se indefinidamente ¢ que seu desaparecimento, como que por ex- tingdo, € pouco crivel. Outta observacdo, jé que, de momento, falamos do menino: esse tipo de resolucdo, que Faria escorregar por nfio-satisfagdo, para uma outra coisa, seria mais a do Edipo no caso da menina, em que existe, com efeito, ¢ mais precisamente, escorregamento, deslocamento — por exemplo, na escolha de ob- jeto, do pai para um outro homem — e nfo desaparecimento. A outra hipétese abstrata é que o Edipo desapareceria por evoluciio endégena, como um fendmeno que esti programado e cujo dese ‘parecimento também o estaria, Assim, o aparecimento e a queda dos dentes-de-leite esto programados ¢ devem produzirse num momento determinado. Evidentemente, Freud recorre aqui a uma referéncia filogenética: segundo ele, o que se reproduz no indi- viduo € algo que se passou ma histdria da espécie. Farei aqui a observagio de que 0 recurso & filogenia € sempre, em Freud, 0 sinal de outra coisa. Vimos 0 recurso ao pai, por trés da mae (no ‘momento da interdicHo), ele préprio reportado a esse fator here- ditirio, a essa filogenia, Se 0 pai no profbe realmente, se nio é ele quem pronuncia a ameaga de castraca0, o programa hereditério (ou, numa linguagem mais moderna, uma certa necessidade estru- tural faz com que, ndo obstante, seja ao pai que a ameaga é re- portada, Apés essas duas hipdteses abstratas, Freud levanos para o concreto da historia individual, ou seja, para o que, efetivamente, produz 0 desaparecimento do complexo de Edipo. No menino, é sob 0 impacto da ameaca de castragio que © complexo de Edipo vai perecer e, o que € muito importante, em suas duas modalidades: ‘em sua constelagdo direta © em sua constelagao invertida, homos- CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 6 sexual, Em cutras palavras, a ameaca de castrago nio é,especial- mente ur fator que leva & escolha homosexual, mas est implt- cita nas duas possibilidades, em toda possibilidade de realizacio no quadro edipiano. Nos dois casos, a castragdo representa uma ameaga vital. No caso da posicio masculina (0 Edipo direto), a castragio 6 © conseqiiéncia dessa posico masculina: se o menino quer erigirse em rival do pai, incorre na castragdo. No caso da posigiio feminina, a eastraco apresenta-se antes como pressuposto da posigo feminina do que como conseqiiéncia; para poder as- sumir a posicao feminina, é necessério que a crianga aceite, antes, a condigao de ter sido castrada S6 recordarei de passagem, a titulo de lembrete, as conse- aiiéncias desia “morte” da situagio edipiana. Sabemos que €, por tum lado, de um modo muito esquemético, a formagio do superego como herdei:o das interdigdes parentais e, em especial, herdeiro da ameaga ce castragdo; e, por outro Indo, o ingresso, mais ou menos nitido, conforme o caso, no perfodo de laténcia, perfodo de adormecimento da sexualidade até 0 despertar na puberdade. “O processo, em seu conjunto; por um lado salvou o Grgio genital, desviou dele o petigo de perdéo, e, por outro, paralisowo, su- primiu o scu funcionamento.” “ Temos aqui uma espécie de so- lucdo astuciosa, limitada. Nao é 0 “tudo ou nada”, mas a interdicio recai, a6 mesmo tempo espacial e temporalmente, apenas sobre uma parte da atividade sexual. E quem diz adormecimento diz, evidentemente, possibilidade de despertar e possibilidade de um outro tipo de atividade sexual. A partir dai, por minha parte, evocarei uma dupla série de problemas, retomando, como fio condutor, a distingdo que esbocet antes entre & castrago como sangio da lei e a castragio como a propria lei. A castragio como saneao da lei consiste no fato de que, se uma interdigéo, a interdigéo do incesto, é transgredida, hé ameaca de re- vide. Ora, 0 problema que se coloca no impacto do complexo de castracdo sobre © Edipo e, em especial, nas consegiiéncias neurdticas do complexo de Bdipo, € o de saber se é a sexualidade, em seu todo, que & in- A CASTRACAO, SANCAO DA LEI 40. Ibid, p. 120. 64 CASTRAGAO — SIMBOLIZAGOES terditada ou somente una forma, mais ou menos delimitada, da atividade sexual, Hd interdigao da sexuatidade ou hd interdigao do incesto? Acabamos de ver, na passagem que citei acima, que Freud insiste muito em que ndo 5 confundamos, ¢ em que se perceba, por trés da ameaca dirigida contra a masturbagao, uma interdigio que, na realidade, visa a fantasia subjacente, O que, evidentemente, suscita a questéo de saber se pode haver atividade sexual e, em particular, masturbagio, auto-curotismo, sem fantasia, Freud, a propésito de certos momentos da evolugio da mening, coloca essa questio © néo a resolve sempre da mesma maneira. Mas aqui, em nivel edipiano, ndo hi divida de que o auto-erotismo, a mastur- bagio da crianca, funciona com base na fantasia edipiana. Portanto, jd ease elemento nos faz admitir que, embora pruibindo aparente- mente toda atividade sexual, € a atividade sexual incestuosa em relagio & mie que é implicitamente proibida, no inconsciente — ‘a0 mesmo tempo o da crianca € 0 do adulto. Mas 0 essencial ndo € isso, ou melhor, existe um elemento correlutivo, j4 sublinhado: ¢ saber quem interdita. Em outras pa- lavras, saber 0 que & proibido e quem profbe sio dois problemas estreitamente ligades. Se sto os adultos em geral e as mulheres em especial (a mae au, no caso do Homem dos Lobos, Nania, a go- vernanta) quem interdita, € realmente 0 conjunto da sexualidade ida. E aqui se apresenta a imago, nao do pai castrador, mas da mie castradora, muito pouco mencionada em Freud mas que, no obstante, é uma realidade evidente e deve encontrar seu lugar na evolugio das neuroses. Por trés desses adultos e, em par- ticular, dessa mie castradora, Freud quer com veeméncia que a ameaga seja reportada ao pai. Assim, no estudo do Homem dos Lobos, temos todas as evidéncias empiricas, na clinica do caso, indicando a dimensio feminina da interdico: mencionei Nania, mas hé também outras figuras, como Grouscha, Ainda mais, 2 pripria forma sob a qual a fobia ganha corpo, como medo de de- ‘voracao, remete-nos a uma dimensio feminina, a uma interdigio ¢ uma ameaca formuladas por uma mulher, a devoragao encon- trando sua fonte, evidentemente, na relagdo primitiva com a mae e com a “fase oral”, Apesar dessas evidéncias, é indispensavel con- siderar que as mulheres reportam-se mais ou menos implicita- mente ao pai, ao “doutor” c, finalmente, & lei. Sem dvida, fala-se CASTRAGAO; SEUS PRECURSORES F SEU DESTINO 65 freqilentemerte, ¢ néo sem razio, de “androcentrismo” ou de “pa- ternalismo", a propésito desse modo de Freud colocar um pro- bblema, Certamente, isso esté ligado a uma certa forma familiar e cultural; mas penso que nfo se deve deixar de ver o seu sentido, sta dinamice ¢ talvez. sen aspecto positive. E ao famoso mito da horda primitiva que Freud se refere nesse caso: mito de uma horda pré-histérica em que o pai, possuidor das mulheres ¢ notadamente ddas mies, ou da mée, ameaga castrat, ou castra efetivamente, os fithos, Nessa horda primitiva, diz Freud, ha possibilidade de revolta, de subyersfo, de revide; hé possibilidade de os filhios encontrarem uma solugio. Essa interdicao sancionada pela castragdo é, entio, a lei? Mas, na medida em que é a lei do pai e, para Freud, de tum pai “de came ¢ oss0", de um pai empitico ou que 0 fot, ‘de um pai presumivelmente existente, é uma lei que nic se reveste Srico mas, simplesmente, uma lei do mais forte, uma lei da posse. Em outras palavras, se no hhouvesse esse milo, se o pai fosse deus ou profeta, sua interdigao teria 0 sentido de uma lef absoluta, por exemplo, abrangendo toda a sexualidade. Mas, aqui, o pai é um pai rival, um pai que, num certo sentido, esté no mesmo plano do filho ¢ que intervém por ‘motives puramente egoistas; ele € 0 possuidor da mae ¢ a interdita nao por razies sublimes, mas a fim de reservé-la exclusivamente para si, Nesta medida, também a interdica0 no é ou, pelo menos, poderia néo ser uma interdicdo geral, de acordo com uma méxima universal. E uma lei positiva que tem um contetido determinado, ‘um objeto ceterminado — a- mae — e, portanto, abre um campo positivo #. Ela tem seu inverso em vérios sentidos: no sentido do possivel revide —o teu direito, diz o filho na horda primitiva, & to pouco justificado quanto o meu. Mas também tem seu inverso no tempo © no espago. No tempo, ela permite enunciar: jé que chegou a tua vez (a vez do pai), a minha vez também chegard; ¢ no espago — quer dizer, num espaco categorial, o da simultanei- dade das mulheres — essa lei opie ndo a sexualidade em geral a nfo-sexualidade, mas uma categoria de mulheres a uma outra, ptecisamente a mée & toda 2 categoria des nao-maes. Pensemos no “41. Emprego eite termo com a mesma ressondncia que the deu Hegel, ‘quando fala, por exemplo, das “religides positives” i 66 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES espago em etnotogia, na divisio de uma aldeia em olds com regras matrimoniais precisas, a exogamia. Um pouco da mesma forma, @ interdiggo pelo pai, na medida justamente em que é formulada pelo pai rival e possuidor de uma determinada mulher, abre um espaco, o das outras mulheres. O outro aspecto era o da castracio como lei, como insteurago de uma certa ordem (ordem perceptiva, pois que é estabelecida a0 nivel de uma certa “percepedo” da diferenca) e de uma espécie de ldgica, da qual situamos os rudimentos ldgico-félicos. Precisa- ‘mente no momento em que essa [dgica félica ({8-10 ou nfo ter) é instaurada, ela sogobra com 0 falicismo € a fase filica sogobra com © complexo de Edipo. O problema af é 0 de sua continuacio, e devese dizer que Freud nao 0 explorou, em absoluto. Ha nele, verdadeiramente, uma espécie de hiato (e talvez esse hiato se deva, em particular, & prépria situaeo da terapéutica analitica) entre 4 organizagao félica e 0 que ressurgiré na puberdade ¢ na organi- zago adulta, Em outras palavras, o problema consiste em saber como essa Isgica da contradieao (do mais e do menos, do mais do zero) reaparecerd na orgenizagdo do desejo e, em particular, como 0 par masculino-jeminino substituiré 0 par fdlico-castrado. © que subsiste, no par masculino-feminino, da antiga légica? E, para irmos mais longe, poderiamos formular esse outro problema, ‘que tampouco foi abordado, ou apenas foi aflorado por Freud: 0 que resiaré dessa légica félica na [égica humana em geral, ou seja, em nosso modo de pensat? Quero dizer com isso: a cas- tragio, ¢ a teoria que esté vinculada a ela, tem uma funcdo de protétipo légico para todo 0 nosso pensamento ou para um certo modo de pensamento? Ou, pelo contrério, é apenas um exemplo e até, poder-se-ia dizer, um exemplo particularmente aberrante de uma I6gica aterradora, pois se baseia numa interpretagio fantasistica e, digase, perfeitamente errénea do universo perceptive? Essa ‘percepeao é triplamente errénea, visto que, por um lado, a erianga na fase félica s6 percebe a existéncia de um sexo de’ base; em seguida, ela define © outro sexo, nio positivamente, mas pela auséneia de marca; e, finalmente, stribui essa auséncia de marca a um ato violento de emputacao. (Deixo assim colocado 0 programa para uma reflexio ulterior sobre a castragio como lei ¢ do que A CASTRACAO. COMO LEI ® CASTRAGAO; SEUS PRECURSORES & SEU DESTINO 67 esta dela em nosso modo de apteensio de legalidade, inclusive da legalidade logica.) — 5 de jevereiro de 1974 Antes de avancar nesta problemética, desejo apresentar 0 quadzo, ripido mas indispensdvel, da situacdo e da natureza do complexo de castra¢ao na menina, na mulher. Serei forgosamente esquemético, pata recordar que Froud evoluiu nesca matéria, Eesa evolugao esté muilo bem descrita, com a referéncia aos principais textos, no volume XIX da Standard Edition, na introdugdo dos editores a Algumas consegiiéncias psiquicas da distingdo anatémica dos sexos. Com efeito, esse texto marca o momento crucial do pensamento de Freud sobre a sexualidade feminina; é 0 primeiro texto em que sas novas concepedes sfo apresentadas. Em que mudaram suas concepgdes? Até esse artigo, portanto até 1920-1925, Freud preo- cupase essencialmente com 0 Edipo masculino, ¢ sua tendéncia € aceité-lo como modelo da situago feminina, Isso decorre parti- cularmente do fato de que as concepgies de Freud sfo, nessa époce, essencialmente centradas no periodo edipiano, triangular. E se admitimos o esquema triangular, parecer muito simples transpor, por uma permuta dos termos, mutatis mutandis, © que se diz do menino para o que se pode dizer da menina. Freud fale aqui de uma anelogia, para dizer que a recusou em seguida. Para sermos mais precisos, havia ai uma espécie de concepeio imétrica: © Edipo feminino era, muito simplesmente, © simétrico do Fidipo ma:culino. Com efeito, Freud descrevia entio na menina ‘6 inverso e, 20 mesmo tempo, moyimentos idénticos com as posi- g6es invertides, portanto homossexuais, em cada caso. A posi¢ao principal da menina é seu apego a0 pai ¢ a rivalidade, a hostilidade em relagio & mie, j4 com o problema, evidentemente, da posicio do interditor ou da interditora, que 6, entretanto, bastante ambiguo. Em todo caso, numa concepedo “simétrica”, antes do enriqueci- mento da teotia freudiana, era possivel falar de um “complexo de Electra”, Mas Freud recusard justamente esse termo. Nio que © COMPLEXO DE CASTRACAO NA ‘MENINA, 68 CASTRAGAO — SIMBOLIZAGOES ele seja contra a criacio de novos nomes — ou, talvez, que no fenha sido ele quem propos esse nome —, mas, simplesmente, Porque a idéia de um complexo de Electra proporia uma outre Personagem mitica, uma espécie de irmi de Edipo, protstipo de uum complexo que seria simétrico do que, no homem, € 0 Edipo. Freud, portanto, recusard esse amadrinhamento por Electra (0 que certamente € sintomético) para adotar, pouco a pouco, a nogio de um complexo de Edipo feminino é, igualmente, de um pré- Edipo feminino. Isso quer dizer que, se existem simetrias entre © menino ¢ @ menina, também hé semelhancas, ha situagées que so as mesmas, € no em espelho. Isso faz com que, longe de poder efetuar uma transformagdo simples de um no outro (emprego “transformacio” no sentido matemético do termo), pelo contedrio, @ transformagio é particularmente complexa, ssa nova teoria (ou essa primeira teoria verdadeire) da sexua- Tidade feminina desenvolve-se, portanto, a partir de 1925 ¢, essen- cialmente em 1931, no artigo Sexualidade feminina #, Quais sio 8 pontos de partida? Em primeiro lugar, € levar em consideragao ara a menina, © para se compreender 0 que é 0 Edipo feminino, © periodo pré-edipiano (nfo dizemos pré-genital, e Freud nfo 0 diz, mas pré-edipiano). Freud ja levara em consideragio os elementos ré-genitais desde longa data, por exemplo, no artigo “As transfor- magoes do instinto exemplificadas no erotismo anal”, O que esti em causa aqui € um tipo de relagao que nfo é a configuragao ‘triangular, mas uma relagdo preponderante com a mae; relagio essencialmente dual e, aspecto capital, a mesma, com muito poucas diferengas, nos dois sexos, visto que nos dois casos (jé no existe aqui simetria) a crianga pré-edipiana tem uma relagdo preponde- anfe com @ mesma pessoa: a mile. E poderiamos dizer que 0 proprio Freud se surpreende por ndo ter previsto tudo isso a priori © nio se ter colocado mais cedo 2 questio. Com eftito, a questo ¢ importante: 0 menino parece escorregar muito naturalmente do apego pré-edipiano A mie pata o apego edipiano — mas sempre & mae (Portanto, 20 mesmo objeto) —, simplesmente fazendo entrar em jogo a tivalidade com o pai; mas a menina, para entrar #2, Ibid, pp. 106-112. [ESB — vol. XXI 45. Ibid, pp. 159455. [ESB — vol. XVII] CASTRAGAO: SBUS PRECURSORES & SEU DESTINO 69 num complexo de Edipo, deve comecar por mudar de objeto, Dat toda uma série de investigagdes que esto um pouco fora de nosso percurso atual, e que encontramos, principalmente, no artigo Se- xualidade feminina, onde Freud averigua longamente quais sio (05 motivos que levam a menina a desviarse da mae. Numa relago amorosa extremamente estavel mas também, provavelmente, ambi- valente de inicio, o que faz com que 0 componente negativo dessa ambivaléncia passe para o primeiro plano? Outro ponto de partida (cis mais um elemento que nao permite mais pensar em termos de simetria) € 0 fato de que a zona erdgena diretora na menina no € a zona erdgena definitiva; a zona exégena infantil nio é ‘a vagina. Pouco importa, aliés, se a vagina 6 o objeto de conjeturas ‘mals ou menos obscuras, provavelmente confundida com o conduto anal (a chamada teoria cloacal); a questio nfo é realmente essa © que importa é que o drgdo principal que propicia o prazer masturbatério, auto-erstico, a0 nivel genital infantil, € o aparclho externo, o clitéris. E Freud remete-snos para um artigo de que gosta muito e que cle jé citara e ao qual dera muito valor em Trés ensaios scbre a teoria da sexualidade: so as observagoes do pediatra S, Lizdner a respeito do auto-rotismo infantil #. O que Freud aproveita de Lindner, nesse artigo dedicado & “sucglo (dos Isbios, de polegar...), ¢ a simultaneldade, 0 paislelismo, a ppassagem entre a sucgéo © a masturbagio (sobretudo uma mastur- hago peniana do menino e, na menina, uma masturbagio clito- riana), isso de um modo extremamente precoce. Em conclusio, esses dois elementos: mie primeiro objeto nos dois casos, zona falica (ou seja, na menina, o clitéris) excitével nos dois casos, impedem qualquer simeiria entre 0 complexo de Edipo feminino © 0 complexo de Edipo masculino. Como se situa entao 0 complexo de castragdo? A férmula mais precisa, 2 mais fécil de reter, que resume a teoria freudiana 6 dificilmente superdvel, & esta: “Enquanto que 0 complexo de Edipo do menino sucumbe sob o efeito do complexo de castracao, © da menina torna-se possivel ¢ ¢ introduzido pelo complexo de 44.5, Lindner, “Le sugotement chez les enfants", Revue Francaise de Psychanalyse, 1971, n° 4, pp. 595-608. 70 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES castracdo.” Portanto, uma seqiiéncia temporal absolutamente in- versa; 0 complexo de casiracio no menino situa-se no fim, € 0 liltimo ato do perfodo edipieno e, por conseguinte, 0 encerra- mento da sexualidade infantil; pelo contrério, na menina, © com- plexo de castracéo abre a possibilidade do complexo de Edipo. Isso, evidentemente, introduziré a questo de saber se o complexo de fidipo feminino encontra um fim to claro, tio preciso, to marcado, quando Ihe falta justamente esse sinal que é, no menino, a ameaga de castracéo, Entretanto, a0 que parece, através das reflexes de Freud, © complexo de castracio, em seu conteddo, em sua textura, também Retomemos, em especial, o que chamamos de “ingredientes”. Deixo de lado, para desenvolvimentos futuros, 0 problema dos ingredientes pré-genitais, orais ¢ anais, ou ainda o do trauma do nascimento, por exemplo (esses ingredientes pré-genitais s80 prest- mivelmente semelhantes nos dois casos). Mas quero falar, antes de tudo, desses dois ingredientes imediatos no caso do menino: percepeao e ameaca, Parece que, na me- nnina, nfo existe necessidade de ameaca, bastando a percepedo: “As coisas se pas- sam de modo diferente para a menina. [Quanto ao menino, pode nao acreditar “no que vé""]. Ela julgou ¢ decidiu de inicio [o verbo é usado no pasado: assim que viu, ela jé julgou]. Bla viu aquilo, sabe que nao o tem e quer té-lo."# Por conseguinte, enquanto no inicio somente a percepcao podia levar, e levava quase normalmente, a0 que chamamos negagao — negago da castrago (Verleugrung) — ¢ que somente quando se the juntave a ameaga € que o menino era desalojado dessa posigéo de incredulidade, naquilo que Freud nos indica dessa ‘evolugo feminina néo haveria negecto ou, em todo caso, existe uma possibilidade de passar diretamente da percepefo para a renga e da crenca para uma atividade precisa que consiste em querer remediar a diferenca dos sexos. Nao é exato, entretanto, dizer que na menina nfo existe negagzo possivel da diferenca dos AUSENCIA DA AMEAGA? 45. Em La vie sexuelle, Paris, PUE, 1977, p. 150. 46. Ibid, p. 127. Entre colchetes: comentirios de J. L. CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO n sexos. Freud mencionao quase em seguida: também nesse caso existe uma possibilidade de negagio. Ele indica-nos que essa ne- gaco (indicazao muito interessante para bem situar a nocdo de negacdo, sem fabular a seu respeito) pode levat & psicose. Quando se sabe que, ror outro lado, a nogo de negacao foi constantemente retomada e eariquecida no contexto nfo da psicose, mas da per- versio e, em especial, do fetichismo, temos ai uma aproximacao interessante que permite indagar quais sero as relagées, quais sero 0s mecanismos comuns a atitude perversa © & atitude psi- cética, em relagio & castragdo. Seja como for, na menina o com- plexo de castragio seria feito, pois, de um unico ingrediente a percepedo de diferenca; também neste caso, € clato, interpretada numa légica da contradigfo e no da diversidade; nao “ele tem aquilo e eu tenho outra coisa, a vagina”, como pretendem os critics de Freud, sobretudo um certo nimero de analistas que estudam nessa época as fases precoces da sexualidade feminina, como Karen Homey ou Melanie Klein, mas, sim, “ele tem aquilo e eu nfo tenho” Uma outra grande diferenga, no complexo de castracio, entre © menino © a menina, & que a diferenga de sexos € atribuida pelo menino a uma amputacio ativa, a um ato sangrento de cortar, com todo o horror que esti ligado a ele, aquilo a que Freud chama de Kastrationsangst, angistia-ow-medo de castragio. Freud insiste nesse ponto, ¢ insistiré ainda mais subseqiientemente: quando ele se interroga sobre a angéstia, quando coloca justamente em pri- meiro plano a angtstia de castragéo no homem, € para dizer que ela nao é absolutamente universal; © a prova disso é que, na menina, nao existe angiistia de castracio._Iss0 € enunciado de forma totalmente explicita, tanto em Inibicao, sintomas e ansiedade quanto em Novas conferéncias, sempre que Freud retoma a sua “altima teorie” da angéstia, Por qué? Freud mostra-se af “vulgar mente” empirista: a menina conhece muito bem a sua propria hhist6ria ¢ lembra-se perfeitamente de que nunca Ihe cortaram nada. Logo, a ameasa de castracdo ou a anglstia de castragao, que seria is retroativa, ndo teria sentido; a interpretagio dada pela menina ) ndo é a de uma amputagio por um ato, mas de um prejuizo por omissfo: “Néo The derarm.” So R CASTRAGAO — SIMBOLIZACORS E Freud acrescenté, numa notacao capital, que esse “no the deram” encontra sua ressonancia quase imediata na fase oral do desenvolvimento, com a avidez oral ¢ o fato de que, fundamen- talmente, nenhuma amamentagio jamais é satisfatGria, jamais & completa, Assim sdo relacionados, de um modo que adquiriré subseqiientemente toda a sua importancia, em especial em Melanie Klein, esses dois tipos de pulses que so, por um lado, a avidez oral e, por outto, a inveja 20 nivel félico. 1ss0 nos leva a corrigit a nossa afirmagéo de que na menina haveria um dinico “‘ingre- dente”, a simples percepeao, ao passo que no menino haveria dois, percepgo + ameaca; ora, existe, apesar de tudo, algo que s¢ assemetha a um segundo ingrediente, tanto assim que, também na menina, © complexo s6 se precipitaria por somago. percepyao 4 + inveja. Ai temos também um ato mas, desta vez, € um ato do sujeito, Tigando-se a percepedo diretamente a uma busca, a Cuma investigacao. Farei ainda alguns comentirios a respeito dessa auséncia de ameaga € de angtstia de castracdo na menina, Em primeiro lugar, 8 angiistia de castracdo encontre-se relativizada, perde sua univer- salidade, uma vez que somente existiria num sexo. E mais, a prdpria nocéo de castrago como um ato de corte nfo seria uma teoria universal, mas unicamente vélida para 0 sexo masculino. Tanto assim que Freud, ao averiguar qual pode ser a angistia de base na menina, é levado a afirmar, justamente em Inibigdes, sintomas e ansiedade, que ela 6, sobretudo, angistia da perda de amor. Uma outra interrogacdo: isso quer dizer que nfo existe ameaga nem interdicao pesando sobre a atividade félica na menina? Evidentemente, isso seria contrétio a realidade e & observacio, € nfo se podem negligenciar as ameagas e as interdigdes que recaem sobre a atividade sexual da menina, sobretudo a mastur- ago; mas a diferenca estd em que essas ameagas nfo comportam, ‘como sangao, a castragao, implicita ou explicitamente, So ameacas mais globais, mais vagas, a sanco esté menos localidada e, em ‘ltima anélise, talvez se reduzam sempre A ameaca de perda de amor, & possibilidade, por parte do adulto que interdita, de retirar seu smor da crianca. E aqui temos ainda uma outra diferenca entre as intimidagdes proferidas para a menina e para o menino; as ameagas nao sf0 reportadas ao pai, so personagens femininas CASTRACAO; SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO B as que ameacam, que intimidam a menina, Assim, deparamo-nos aqui, certamente, com uma aparente simetria com o Edipo mas- calino, pois poderfamos dizer, neste ponto, que @ interdigéo mente, atribuida & rival, Mas, de fato, as coisas sfo muito diferentes, pois a atividade masturbatéria em questio produz-se numa constelacdo que néo é triangular, mas essencialmente pré- edipiana, ume situagdo a propésito da qual Freud chega por vezes fa sugerit que ela nao comporta fantasies (indiquei hé instantes Freud pergunta-se se essa masturbagao muito precoce da menina, praticamente contemporénea da sucgio e da atividade oral, teré ‘um correspondente fantasistico). Em todo caso, se existe um con- teddo fantasistico, € evidente que o objeto primordial na fantasia € a mae, Ore, se a mie é 0 objeto das fantasias masturbat6rias © € também a interditora, nesse caso (diferenga essencial em re- lagéo ao menino) 0 interditor & o préprio objeto. Tanto que desaparece aqui o que se observava no menino: 0 aspecto riva- fitdrio quanto ao portador da lei (0 pai rival da crianga), esse aspecto limitedo quanto & sancao, esse aspecio, poderiamos dizer, negocidvel da ameaca de castracdo; por mais terrivel que ela seja, € suscetivel de entrar numa espécie de mercado. E tudo isso dé luger a algo muito global (atingindo toda @ atividade sexual) © muito mais destrutivo. O objeto — a mae — foi o indutor da sexuslidade infantil, cla ¢, por definigo, a primeira sedutora (realmente, pelos cuidados que dispensa ao bebé mas, de todo modo, pelo menos fantasisticamente) ¢, neste caso, 0 préprio sedutor quem interdifa, Freud néo descreve tio nitidamente assim a problemética que desenvolvo aqui mas indica mais de um de seus elementes. Chegou ao perigo de uma condenagéo e de uma reniincia muito mais intensas, recaindo sobre a sexualidade em geral ¢ no apenas sobre um objeto determinedo, sobre uma constelagao particular dessa sexualidade. Essa possivel e grave rengncia é ainda favorecida pela ferida narcisica ligeda & “consta taco” da inferioridade do clitéris: 0 sentimento de que, nfo s6 anatomicamente mas sobretudo no plano da atividade e do prazer, a menina jamais poderé igualar a atividade masturbat6ria félica, ‘A partir do complexo de castracio, re- cordo rapidamente quais so, segundo Freud, as trés principais vias que se abrem para a menina, A primeira 6, SOLUGOES DO COMPLEXO 4 CASTRAGAO — SIMBOLIZAGOES portanto, a da rendncia global, perigo sempre possivel. As duas outras vias empenham-se numa busca ativa, orientada pela inveja do pénis, com duas possibilidades para dar uma solugio a essa inveja. Em primeiro lugar, € a atitude de inveja, no sentido pro- priamente rivalitério, culminando no que Freud designa por “com- plexo de masculinidade”, Este é feito de uma dupla atitude, aliés contradit6ria: negagio da castraciio e competi¢ao com aquele que no 6 (ndo seria) castrado, So afirmadas ao mesmo tempo estas, duas posicdes, logicamente incompativeis: “eu o tenho” e “jé que no o tenho, eu o tomarei”. A outra via ativa, enfim, é a do ingress no Edipo, cujo cardter aleatério vé-se aqui. O essencial dele € que a menina, decepcionada pela mie que néo the dew © pénis, afasta-se dela definitivamente. Esse iiltimo dano, esse iiltimo prejufzo vem, de fato, eristalizar toda uma série de razies, de hostilidade evidenciadas na fase pré-edipiana: 0 complexo de castrago ainda age aqui como revelador e prolongamento, quer dizer, na dimensGo psiquica da posterioridade, A menina volta-se enlfo para o outro protagonista, suscetivel de The dar‘um pénis. Esse pénis, ela quer obié-lo segundo diversas modalidades reais, ‘ou simbéticas que, regularmente, sobrepdem-se apesar de sua aparente incompatibilidede: obter o pénis como didiva, isto 6, como filha do pai, obter © pénis paterno no coito, se necessério retendo definitivamente em si, Finalmente, é preciso confessar que, apesar dos elementos pertinentes dessa descricdo, a passagem para o desejo feminino como desejo genital, correlato de um or- gasmo vaginal, é verdadeiramente deixada em branco por Freud. ‘A passagem pelo desejo de ter um filho, mesmo que seja efetiva- mente um elemento importante, é insuficiente para explicé-la. —5 de margo de 1974 Acompenhamos, a pasos largos, a coloca do complexo de castragio em Freud ou, pelo menos, a parte empirica e genética, isto 6, a descoberta numa histéria, 2 da infancia. Descoberta que foi também progressiva em Freud e que se apresenta sob trés aspectos: 1° Descoberta da teoria da castracao como teoria sexual infantil. 2.° Demonstragao da génese dessa teoria, génese na acepso c 'RACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 5 quase experimental, indutiva, hipotética, no sentido de que a erianga, a partir de certas experiéncias, é levada a formular essa teorid da castragio como uma hipétese que ela recusa, que ela nega. Mas, como na prépria cigncia, existe algo que ultrapassa (© empirico, © momento em que a teoria ganha corpo, em que as hesitacdes so suprimidas e em que as posturas passadas se elucidam: o momento do “entio era isso!”. Ao invés de determe nesse elemento de certeza que ultrapassa 0 empitico, preferi deter me até aqui nos “‘ingredientes” empiricos desse complexo de cas tragio e, sobretudo, naqueles dois ingredientes que séo, por um Jado, a perce2cdo €, por outro, certa formulagao de uma lei, de uma interdicao. 3.° Demonstragao de uma articulagao dessa teoria da diferenga sexual com o que chamamos de escola de objeto. ‘A castragio apresenta-se ligada a esse momento importante da es colha de objeio que é 0 complexo de Edipo. A teoria do ser sexua- do — teoria que implica a existéncia de algo de detestavel, presente aqui-ausente ali, portento « relago do corpo com um de seus elementos, com um “objeto parcial” — deve articular-se com a maneira como 0 individuo se fixa num certo tipo de parceito (es- colha de objeto heterosexual ou homosexual, com suas intémeras variantes), em fungéo justamente da presenga ou da auséncia desse objeto parcial, Dever-se-ia dizer, sem divida, de um modo menos simplista, segando es f6rmulas de Freud, um elemento que jamais € presenga nem auséncia, mas sempre algo de uma coisa e da outra, uma presenca sobre fundo de auséncia, uma auséneia com, apesar de tudo, uma fantasia de presenga, uma fantasia da presenca do falo onde, no real, ele néo existe... Concretamente, portanto, © camplexo de castracio ¢ indissocidvel do complexo de Bdipo. Aqui, tivemas que colocar obrigatoriamente em correspon: déncia a histéria do menino @ da menina, com seus elementos muito dissemethantes em um e outra. Freud fala essencialmente, em primeiro lugar, do menino, quando descobre 0 complexo de castragio. Ele se redime, entretanto, por volta de 1920, ¢ coloca também 0 complexo de castragHo (ou o que The equivale, a questao permanece aberia) na mening, principalmente sob a influéncia das primeiras psicanalistas mulheres. Essa colocagao da feminina acompanha de perto as exploragdes do pré-edipiano (pro- blema que jé evocamos ao falar dos “precursores” do complexo de castragio, ¢ a0 qual voltaremos em breve). Ac 16 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES essa evolugéo da sexualidade feminina, quisemos sobretudo insistir no fato de que, se no comeco, para Freud, a evoluggo da menina, de um modo um pouco superficial e répido, era concebida como simétrica & evolugio do menino, logo se veria que a situagao era muito mais complexa. Tampoueo se pode dizer que os elementos do Edipo feminino sejam idénticos aos que existem na evolucso do menino. Encontramos, simullaneamente, elementos de simetria ¢ elementos de paralelismo ou, se assim se pode esquematizar, uma posigdo quase idéntica no comeco (na relacio pré-edipiana com f@ mac) para chegar a uma quase-simetria no final. Para nds, que estamos centrados no pro: DIFERENSAS DO blema da castracdo, a questo consiste. COMPLEXO DE em primeiro lugar, em saber se 0 fermo CASTRAGAO NO complexo de castragao pode ser empre- MENINO E NA gado para os dois sexos. Na medida em MENINA que Freud se autoriza a fazélo, € com diferengas tais que a propria definicio se vé cindida:-“O complexo de castragio no menino é a angtistia ddo penis. (Penisangst), ao passo que na menina 6 a inveja do pénis Wenisneid).”*?-Retordamos essas diferencas do complexo de cas- ‘rigio em um e outro sexo, quanto & fungio e quanto a0 con- tesido, Diferenca de fungdo. Como essa teoria (ou essa fantasia) da castrago, que viria conferir justificagao ¢ universelidade a dife- renga dos géneros masculino e feminino (e nfo somente dos sexos), se situa em relagéo & escolha de objeto? No menino, essa teoria da castragio situase apds a escolha de objeto edipieno (a mae) © a ameaga de castracdo, precisamente a angtistia pelo pénis, conclui essa escolha sem lhe modificar o tipo. Quero dizer com isso que, a partir da escolha da mie, j4 6 0 tipo feminino (por- tanto, heterossexual) do objeto que é escolhido; a ameaca de castraco vem simplesmente interditar wma das mulheres, a mae, © por af mesmo propor, abrir ao campo do desejo as outras mu- theres. Quanto & menina, pelo contrério, diz Freud, € pelo com plexo de castragdo que ela ingressa no Edipo, Tanto que, no caso 47. Cl. ibid, p. 972 CASTRAGAO; SEUS PRECURSORES £ SEU DESTINO 1 dela, essa fantasia justificativa da diferenga sexual surge antes da escolha de objeto heterossexual, genital ¢ edipiano — antes da es- colha do objeto paterno. Na menina, © complexe de castracio determina una vitada radical, no — como no menino — de uma mulher para todas as outras, mas no proprio tipo de objeto, pois € este quem determina o fato de a menina, apegada inicialmente a mfe, como todas as criangas, yoltar-se doravante para pai, ingressar no Edipo direto, positive. A mie nao foi capaz de dat o pénis, a menina yoltase entio para o pai como aquele que seria capaz de dio. Em contrapertida, na fase ulterior, no declinio do Edipo (cis nesse caso € mais adequado falarse de dectinio do que de supressio), a passagem do pai para os outros homens nio seré marcada por um corte radical (ao contrario daquele que se supée ter introduzido a ameaca de castracio). Iss0 se confirma, por exemplo, na diferenca que existe (tanto na fantasia quanto a atuagio [pastage & Vacte]) entre a ratidade do incesto mée-filho ea relativa freqiiéncia do incesto pai-ilha Diferenca de conteiido. Ela se formula da maneira mais nitida nna oposigao Penisangst-Penisneid: angistia pelo pénis-inveja do pénis. E 0 fato € que essa diferenga é ancorada, para Freud, no empirico, no perceptivo. Lembro-lhes 0 proprio titulo de um de seus artigos: Algumas consegiiéncias psiquicas da distineao ana- tOmica dos sexos, Nele, Freud parte daquelas evidéncias percep- fas que fazem cada crianga constatar @ presenca, ou uma certa auséncia, do pénis, nela e na outra, Mas é a partir daf que intervém a diferenga maior. O menino interpreta a diferenga nos seguintes termos: cortaram o pénis da irmfzinha (das mulheres em geral), de onde ele depreende que a ameaga de cortarem seu proprio pénis nfo é irreal: podem muito bem cortar-me o pénis. Remeto o Ieitor a andlise do Homem dos Lobos, que est no centro da evolugio do pensamento freudiano sobre a castragio. © Homem dos Lobos pensa que, se quer continuar a amar © pai, a submeter-se ao coito por parte do pai, a condicdo prévia € que seja castrado; do mesmo modo que percebeu, na realidade ou na reconstituigic de uma cena primitiva, que sua mae, para submeter- se a0 coito por parte do pai, néo devia ter pénis. Na menina, a percepgdo é interpretada de forma inteiramente diferente; nfo de maneira simétrica, nfo "“cortaram-me o pénis" (© € af que esté 8 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES a grande diferenca, a de que ndo hé uma simetria), mas “no me deram 0 pénis”. A idéia de castracdo, no sentido préprio, como amputacao sangrenta, ativa, néo estaria presente, pois, no caso do complexo de castragdo feminino. Podemos utilizar aqui as distingSes introduzidas por Lacan, a respeito de diferentes moda- lidedes da falta, numa sistematizacio que interpreta a castragio como sendo do registro do simbélico (ou seja, submetida a uma ceria lei universal), oposta a dois outros tipos de falta: a frus- tragao e a privagao. A privagdo € a auséncia real de um elemento, mas & ela, talvez, a que causa maiores problemas, visto que, como jd assinalamos, uma das maiores ambiglidades decorre do fato de uma auséncia’ real ser, por definigdo, impossivel de constatar. Estamos af diante de um problema filoséfico fundamental, desde Parménides até a eritica da idéia de Nada, por Bergson. Para nos limitarmos & diferenca anatémica dos sexos (dos Srgios genitais externos), existe uma ambigiiidade e uma passagem que so, 20 mesmo tempo, uma realidade e um sofisma entre “nada ver” “yer nada”, “ver que ndo existe nada”. E, na verdade, 6 impos. ivel ver nada: a tinica possibilidade, a partir de “nada ver”, € concluir, num certo sistema, que nfo existe nada. Quanto ® frus- tragio, & concebida como uma acéo imaginéria, como roubo ou dano. © complexo de castrag3o na menina seria, portanto, uma designagio errénea, dado que nfo giraria em torno de uma cas- tragio universalmente postulada como lei (como amputacdo que marca um certo tipo de individuo) mas de um suposto dano, de tum suposto prejuizo, logo imaginério, 0 qual estaria ne origem dessa falta real, dessa ptivagdo to dificil de constatar. Portanto, estarfamos usando neste caso os dois registros: 0 da frustracdo © 0 da privagao. 0 fato de que, pelo menos no comego nessa concepeio em- pirica do complexo de castracio, a nocfo de castraefio como lei desapareceria na menina em proveito da nocdo de um dano, corroborado em dois outros aspectos desse complexo. Em primeiro lugar, se a castragdo é concebida como lei, a lei € universal. Ora, como sublinha Freud, muite mais na menina do que no menino, a falta do pénis nfo é concebida como destino geral, estendendo-se a todos os seres femininos, mas como um “infortinio individual”. Nao hé e durante mito tempo nfo haverd universalizacao. Foi CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 9 contra_essa menina, € somente contra ela, que se cometeu essa ‘injustigaye sé a cla se deve uma reparagdo. O outro aspecto que “Syemtambém corroborar o desaparecimento da lei da eastragéo & que, precisamente, uma lei promulgada como Jei da castragio seria um yeredito do tudo ou nada, enunciando-se na oposi¢ao freudiana: félico-castrado. Ora, no caso da menina, nao se parte dessa oposigdo absoluta e, durante muito tempo, nao se permanece nela, No comego, néo se tem “absolutamente nada”, tem-se um 6rgio masculine em potencial, 0 clitéris, algo suscetivel de dar prazer, algo que deve ser mais comparado do que oposto ao penis como uma austneia absoluta. Por conseguinte, em vez da descon- tinuidade radical, em vez dessa “I6gica” falica do terceito exeluido, existe a possibilidade de um outro modo de pensamento légico (mas, desta vez, num sentido muito mais amplo), pensamento da ccontinuidade que na menina, pelo menos durante wm certo tempo, ‘ocupa o lugar da l6gica da oposigao. Com efeito, j4 existe um rudimento, um elemento de pénis, com todas as possibilidades de se consolar de sua eventual inferioridade (ele crescerd, ele no € tao pequeno assim... etc.) e, igualmente, com a possibilidade de uma coexisténcia de solugdes contraditérias. So essas solugSes contraditérias para A INVEJA DO PENIS responder & constataglo de uma certa disparidade dos érgios genitais que fo- ram agrupadas sob 0 termo inveja do pénis, termo cujo cardter equivoco, multivoco (que deve set conservado), tem sido freqiien- temente sublinhedo: tanto é a inveja de ter um pénis no lugar pubiano quanto o desejo de receber um no coito, por exemplo, ou ainda a yontade de arrancélo do outro, ou a vontade de recebé-lo ou de produzir um substituto dele, por exemplo, sob a forma do filho. Esse equivoco do termo “inveja do pénis” signi- fica justamente essa coexisténcia possivel, na menina, daguelas solugSes contradit6rias que Freud, por mais de uma vez, enumera quando fala das solugdes do complexo de castracao feminino. Eis as principais (que podem, uma vez mais, estar simultaneamente presentes). A primeira solugo € a negacdo: néo, néo é verdade que eu nao tenho um pénis, na realidade eu 0 tenho, a percepgao esté me enganando. Outra solugo é a atenuagéo: ele nfo € tio pequeno assim e, de qualquer modo, cresceré. Terceita solusio, que Freud designa por um termo especial porque, para ele, trata-se 80 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES de uma soluedo extremamente importante e freqiente: o “complexo de masculinidade”, ou seja, ao constatar que nfo o tem, trataré de obié-lo a todo custo, de adquii-o, em particular pela via das equivaléncias simbélicas. Ainda uma outra solugdo é a rentincia, a solugio da decepeao absoluta, que é muito importante e, eviden- temente, muito catastrofica, porque, diferentemente da rendncia no menino, que, como vimes, é rentincia a um objeto particular em proveito de outros objetos, na menina @ com ela toda a sexualidade, pelo menos toda para 0 objeto. Outra solu. ameaga levar a Sextialidade voltada ainda, que pode também coexistir com as precedentes: 2 f7inganca)eontra o homem, ou. seja (iremos ver daqui a instantes), &-Vontadé de retirar do homem esse elemento dde superioridade. E, ‘enfin, sltima solugéo, evidentemente consi- derada por Freud como a mais normativa: 0 ingresso no Edipo, © que faz 2 menina voltar-se da mae para o pai. Remeto o leitor, 18 propésito de todas essas solucdes (teremos, talvez, oportunidade de fazer alusio a elas), a um estudo particularmente rico por suas observagdes clfnicas, ¢ que ¢ justamente do mesmo periodo. Nao se trata apenas de uma pardfrase © de um comentério ao pens: mento freudiano, j4 que contém contribuigdes originais, Trate-se do estudo de 1920 de Karl Abraham intitulado “Manifestagdes do complexo de castraco na mulher” *. Ja que estamos tratando dessas diferengas do complexo de astragio na menina e no menino, a citima diferenca, enfim, j assinalada: ser 0 agente da castragao, aquele que castra, o mesmo? Vimos que no caso do menino a castracéo esté, segundo Freud, relacionada com o pai, No caso da menina, 0 autor do dano ( se pode dizer aquele que castra, mas aquele que ndo deu) é a mae, evidentemente. Isso leva 8 pergunta: 0 que acontece A no¢ao, apesar de ser téo importante em psicandlise, utilizada e repetida em tantas observagdes clinicas, de mae ou de mulher castradora? E ums ilusio? E uma superestrutura? E alguma coisa que tem © seu lugar, nfo obstante o fato de Freud nao the ter reservado nenhum? Ora, essa questo do pai castrador ou da mae castradora leva-nos a uma interroga¢o mais geral. Freud parece descrever-nos 48. Cf. K. Abraham, Oeuvres completes, Paris, Payot, 1966, tomo II, pp. 101-126 CASTRAGAO: SEUS PRECURSORS F SEU DESTINO Bi fa génese, a estruturagio de duas formagées fantasfsticas muito diferentes, de dois complexos — entendendo por complexo, simul- taneamente, sentimentos (angistia ou inveja), representacdes e, enfim, atitudes (pensemos tanto nas solugGes positives quanto nas atitudes reativas) — portanto, dois complexos isolados um do outro — o do menino e o da menina — aparentemente sem qual- quer comunicaggo das fantasias. Em suma, temos ai uma espécie de geneticismo quase monédico, solipsista, em que a fantasia dos outros, principalmente a dos pais, mas também a das outras erian- gas, néo parece, & primeira vista, ser levada em conta. Nas grandes deserigses do complexo de castragdo nos principais artigos que so a nossa referéncia, é assim que se coloca, e essa é, sem diivida, ‘uma das fraquezes da descricao freudiana. Ora, um artigo vai além desse isole- mento de cada um dos sexos nas suas Fantasias e na experiéncia petceptiva que essas fantasias organizam. O tabu da virgindade, artigo de 1920, € um texto situado na linha das chamadas obras de etnografia psicanalitica, violentamente ct cadas em nossos dias ¢ criticdveis, por certo, do ponto de vista do especialista. Ai encontramos facilmente as generalizagSes abu- sivas, a auséncia de preocupagéo em levar em conta 0 contexto proprio de cada civilizagéo, a passagem de uma civilizagéo e de ‘uma époce para uma outra sem qualquer transi¢go. Também en- contramos ai, muito visada em nossos dias, a analogia a que Freud, pelo menos por momentos, parece ater-se de modo um tanto irre fletido, a trilogia analégica: crianga, primitivo, neurStico. De tudo isso encontraremos a critica na literatura etnol6gica contempordnea, por exemplo, em Lévi-Strauss e, principalmente, em alguns textos de sua dltima coletinea, Anthropologie structurale II, onde a © TABU DA VIRGINDADE propria nogao de “primitivo” € questionada. Aqueles a quem cha- mamos primiivos e que seria preferivel, sem diivida, chamar de povos sem escrita, sio povos que possuem uma longa evolucéo e uma longa histéria atr extrapolagdo desses pri deles, de modo que, principalmente, a tives para os nossos primitivos, que sé0 49. Em La vie sesuelle, Patis, PUF, 1977, pp. 6680. (ESB — vol. XT] 82 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES (08 nossos ancestrais, para a préhistéria (portanto, @ aproximagio entre etnologia e pré-hist6ria), € muito questiondvel. Quanto & ttilogia ctianca, primitive, neurético, Jean Pouillon, num breve artigo que se encontra no final do livro de Bettelheim, Les blessures symboliques ™, repOe em seu lugar, ¢ de um modo éspero e vigo- 1050, essa comparacio, quando a faz sucumbir em face da evi déncia de que aqueles a quem chamamos primitives possuem eles préprios suas criancas e seus neurdticos — objecdo essa que, por si 86, destréi todo o suposto paralelismo, Freud, apesar de tudo, no artigo O tabu da virgindade, nfo é estranho a esse tipo de verdade nem fechado a essa critica, que ele formulou antes que outros a desenvolvessem, no que se refere ao termo “primitive”. Bis, procicamento, um pequeno irecho onde 6 evocada a aproxi ‘macao possivel entre 0 tabu contemporaneo, etnogrifico, ¢ a teoria de Totem ¢ tabu, que € uma teoria pré-histérica: “Nao nos cabe examinar a origem e a significacdo dltima das prescrigdes tabus. Eu o fiz em meu livro Totem e tabu, no qual reconheci que uma ambivaléncia origindria era a condicao do tabu e defendi a idéia de que ele nasceu em processos histéricos que levaram a fundacdo da famflia humana, Jé nao podemos reconhecer essa significagao primeira nos costumes de tabu observados em nossos dias pelos, primitivos. [Conviria ter escrito aqui “primitivos” entre aspas, voo8s verdo por qué.] Esquecemos com excessiva facilidade que os povos mais primitivos também vivem numa civilizagao muito distante dos tempos arcaicos, uma civilizacdo to velha no tempo quanto a nossa e que corresponde, também ela, a um estdgio de desenvolvimento posterior, embora diferente do nosso. Entre os primitivos de hoje, constatamos que o tabu jé ¢ tecido na trama de um sistema hébil, inteiramente semelhante ao que se desen- volve nas fobias dos neursticos.” $1 Vemos que a neurose intervém aqui, mas de um modo bem diferente que na famosa trade: no como sinal de primitivismo mas, pelo contrétio, como sinal de elaboracdo cultural. Entretanto, em seus textos de etnologia psice- nalitica, Freud no toma as precaugdes que se imporiam 20 se 50. B. Bettclheim, Les blessures symboliques, Paris, Gallimard, 1971, Em La vie sexuelle, Pais, PUR, 1977, pp. 7275. Entre colehetes: comentétios de J. L. CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 83 considerar cada cultura, cada grupo, como unidade especitica. Séo estudos em que abundam o transculturalismo, 0 comparatismo, escorados na certeza quase « priori da existéncia de certas estru- turas psiquicas universais ¢, em especial, a universalidade tanto do complexo de Edipo quanto do conjunto de sentimentos que giram em torno da castracéo. © problema em O tabu da virgindade ¢ 0 da atitude de ‘certos povos 2rimitivos (aceitemos este termo, por que nfo? terfa- mos nés mesmos tabus?) em relacao & virgindade ¢ & defloracao. Freud faz aqsi uma comparagio com 0 que se produz na civili- zacg&o moderna ocidental, onde existe uma certa superestimacéo, ‘um certo valor especial atribuido a virgindade da esposa, Essa superestimagio esti tio vinculada @ nog de monopdlio munu- gamico — o que faz com que a possessio de uma mulher se estenda nido s6 ao presente mas também ao passado dessa mulher — quanto a “sujeigio sexual”, isto 6, aos lacos particularmente {ntimos, de verdadeira stjeicio, que se estabelecem entre dois parceiros que reram centre eles suas primeiras relagGes sexuais. A essa superes- timagio correlativa da virgindade parecem (digo “pazecem” porque Freud mostra que, na realidade, essa oposicao nio é radical) opor-se ‘0s costumes daqueles povos primitivos onde 6 praticada a “deflo- racdo ritual”. Isso quer dizer que a supressfo da virgindade, longe de ser uma pretrogativa do esposo, deve ser, pelo contri, prat cada antes dz consumagio do casamento por uma pessoa estranha: ‘uma ancid, ou ainda uma personagem mais ou menos vinculada 2 hierarquia sagrada (sacerdote), ou por vezes o proprio pai da noiva. Um ovtro elemento, presente com bastante freqiiéncia nesses ‘costumes, é cue no hé somente defloracdo ritual (instrumental ou manual), mas também o “coito cerimonial”, no decorrer da ceri- ménia nupcial, praticado por outros homens que no © noivo. Freud cits, neste ponto, um certo niimero de textos, principal ‘mente do etaélogo Crawley, para quem remeto os Ieitores. Séo textos extremamente curtos, e Freud queixase, aliés, de nfo ter 8 sua disposigfio maior miimero de relatos diretos (ele escreveu esse artigo durante a guerra de 1914, ¢ uma grande parte da lite- ratura de lingua inglesa no Ihe era acessivel naquele momento). © problema que se coloca 6, portanto, o de saber por que aqui a virgindade € tabu no sentido de que nao pode ser tocada, de 84. CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES que 0 noivo nfo pode colocar a méo sobre ela. Isto, evidentemente, nfo significa, em absoluto, que a virgindade seja desvalorizada e cai a nossa oposigio inicial entre a apreciagio moderna e a apreciagdo dos povos primitivos: nos dois casos hé, obviamente, uma valorizagéo da virgindade mas, no caso do tabu, ¢ uma valo- rizagio sagrada, Qual é 0 sentido desse tabu? Para comegar, Freud enumera tum certo nimero de hipéteses, que ele mesmo propée ov que retoma dos etndlogos; aliés, ele as accita com uma certa amplidao, nfo considerando nenkuma delas como absolutamente suficiente, mas pensando, nao obstante, que elas concorrem para esse tabu da virgindade. Uma primeira hipétese consiste em relacionar 0 tabu da virgindade com um tabu geral do sangue, uma vez que 0 ato de defloragio é um ato sangrento, Freud considera.a insuficiente, fo que, diz ele, em certas circunstincias, principalmente nos ritos de circunciséo, esse tabu é transgredido. Uma segunda idéia 6 a de um tabu getal das premisses, tanto ao nivel dos periodos temporais quanto ao nivel da cultura, etc, Freud refere-se aqui a duas nogées que ele desenvolve em outros momentos: “a inquie~ tante estranheza”, toda premissa, toda iniciaglo, todo inicio com- porta esse elemento de inquietagio; e, por outro lado, a teoria nfo da fobia, mas da neurose de angistia, com a possibilidade de uma angistia flutuante que escolhe, justamente, para se fixar, elementos inesperados, elementos de novidade. Terceira hipétese, enfim, sugerida por Crawley, consiste em relacionar o tabu da virgindade com o tabu geral da sexualidade nos povos primitivos. E lembra toda uma série de observacies em que a prépria relagao sexual, ot toda uma série de elementos ligados & vida sexual, so considerados tabus. Esse tabu da sexualidade e, portanto, em parti cular, o da virgindade, € explicado por Crawley e, sem déivida, na sua esteira, por Freud, pelo ““temor essencial em face da. mulher’ “Talvez esse temor se baseie no fato de que a mulher € iferente do homem, de que aparece como incompreensivel, cheia do sogredos, estranha e, por isso, inimiga. O homem receia ser enfraquecido pela mulher, ser contaminado por sua feminidade © mostrarse entfo incapaz [evidentemente: impotente]. O efeito entorpecedor, relaxante, do coito pode ser 0 protétipo dessa inquie- CASTRAGAO, SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 85 tagdo. ..", etc, E, explorando essa idéia de um tabu geral da sexualidade, Crawley, © Freud depois dele, prolongea sm taba a diferenca, levando-nos evidentemente a influéncia do complexo de castracio: “Seria tentador, estendendo esse ponto de vista, de. svar desse ‘narcisismo das pequenas diferencas’ [trata-se, eviden temenie, de diferenca sexual] a hostilidade que, como constatamos, combate vitoriosamente, em toda relaggo humana, o sentimento de solidariedade, .. A psicanélise acredita ter descoberto que uma parte capital do que motiva a atitude de rejeigao naresica, mistu, rada com muito desprezo, por parte do homem pela muller, deve ser atribuida ao complexo de castragio e A influéncia desse. com: plot sabre ojulgtmento que é fet da mulher." Freud néo vai muito mais longe nesse sentido. Coisa curios, ele também nfo explora a signifeagio fsica do ato de pees enquanto derramamento de sangue, destruigao do himen, porlanto algo que se interpretaria facilmente como um ritual de mercagio, comparivel acs rituais de circuncisdo' em que Freud vé, alide, o equivalente simbélico de uma castragio. O ritual de defloraggo nfo ¢ diretamente relacionado (ele 0 seré por um caminho bem diferente) com um ritual de castracio simbélica * Conservando para si, portanto, essas primeiras explicagée damente psicoligico, mas também intersubjetivo (0 que nele é suflfentemente ao pn que sea nolo), no sentido de que, pra explicar esse costume : SaEA ee astume ds omens, vamos ter que pss de psc — 19 de margo de 1974 A rapide comparagio do complexo de castragdo no menino @ na menina perecia mostrar que as analogias se esfumavem ef Gificitmente se poderd falar de amputagéo, e ainda meios de medo 32. Thi,» 71, Rate eolebees: comenthon 53. Tid; 2.72 Ene ithe: coments de 71S 86 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES cou angistia de castragGo. Assim sendo, se nos ativermos a esse ptimeito enfoque (que chamei de enfoque ““empitico”), estaremos fem presenga de dois mundos fechados, aparentemente sem grande comunicagio, Por isso recorti ao texto O tabu da virgindade, que me parece fornecer um ponto de vista algo diferente. A explicacao que Freud procura apéia-se, como nos autros estudos etnogréficos, nas hipdteses de sua época; e ndo se pode certamente pensar que Freud, em seus trabalhos etnogréficos, nfo se baseasse num traba- tho sério de investigagdo. Longe de se considerar absolutamente inovador em relacio a esses trabalhos e louge de os rejeitar siste- maticamente, ele examina com compreensio as explicagées desse tabu, Entretanto, elas Ihe parecem insuficientes, no sentido de que reduzem a particularidade da virgindade a uma causa mais geral. ¥, pois, para um caminho decididamente INTRODUCAO DO intersubjetivo que Freud nos orientard, PONTO DE VISTA uma vez que, para explicar o tabu da INTERSUBJETIVO virgindade no homem, ele sente a neces- sidade de passar da psicologia do homem para a da mulher. © homem, diz ele, pelo tabu da virgindade, pelo fato de no tocar na virgem, protege-se de um perigo. Que perigo é esse? “A mulher reconhecida como uma fonte de perigos € 0 primeiro ato sexual com ela representa um perigo particular mente intenso.” Para estudar esse perigo, Freud iri esclarecé-lo através da psicologia sexual da mulher e, em especial, pelas obser- vvages de neuroses contemporfineas: ““Penso.que: obteremos alguns esclarecimentos sobre 0 que & esse grande perigo © por que ele ameaca, precisamente, o futuro marido, se estudarmos mais rigoro- samente 0 comportamento, nas mesmas circunsténcias, de mulheres do nosso estigio de civilizagdo e que vivem em nossos dias. Prevejo que 0 resultado desse estudo serd que existe realmente um perigo que 0 primitivo, portanto, defende-se, através do tabu da virgin- dade, contra um perigo que ele pressente, corretamente, ainda que seja um perigo psiquico.” “ Ele recorda entio a reagéo de um certo nimero de mulheres, reagdo neurdtica as vezes transit6ria © as vezes duradoura, as primeiras relagBes sexuais, sendo a mais tipica dessas reagdes a auséncia de prazer sexual, a frigidez, “Muito 54. [bid p. 73 CASTRACAO: SEUS PRECURSORES F SEU DESTINO 87 freqiiemtemente, ele significa para a mulher apenas uma decepco; 8 mulher permanece fria ¢ insatisfeita e, em geral, é preciso mais tempo ¢ a repetigao freqiiente do ato sexual para que, também para a mulher, a satisfagao se instaure. Ha toda uma série de casos que vao dessa frigidez do inicio das relagies, frigidez passageira, ao resultado penoso de uma frigidez bem instalada,..""* A expli- cacio, digamos, “grosseira” de Freud para essa frigidez é que esta constitui um sintoma de inibigéo devido (como a maioria das inibigSes) a uma ambivaléncia. A prova dessa ambivaléncia, nas primeiras relecdes sexuais, encontra-se em certos casos em que, jus famente, essa ambivaléncia, em vez de se combinar num sé sintoma, que € 2 frigidez, decompée-se em seus dois elementos. Além disco, estes separamse um do outro de modo sucessivo, difésico. Seri em suma, a frigidez que se dissolveria sob os nossos olhos nesses casos, para car Iugar a uma dupla reagéo sucessiva: primeiro, reagio de prazer e, segundo, reagio de agressio. Eis um caso que certamente esté Ionge de ser tinieo: “Por outro lado, acredito Que certos casos patolégicos elucidam o enigma da frigidez fem na; refiro-me aos casos em que, apés a primeira relacao © mesmo a cada nova relagio sexual, a mulher exprime abertamente sua hostilidade para com 0 homem, injuriando-o, levantando a mo contra ele ou, realmente, batendo-the. Era o que acontecia mum caso surpreeniente desse tipo, que pude submeter a uma andlise profunda, em que a mulher amava muito seu marido, costumava ela mesma exigit 0 coito © obtinha nele, inequivocamente, uma grande satisfazio.” ® Ora, € esse elemento de hostilidade nas pri- melras relagoes sexuais — 0 qual pode estar intricado na frigidez ou desintricado num caso particularmente exemplar — que Freud supée situar-se na origem do perigo de defloragio. Mas 6 preciso entio procurar as equsas dessa hostilidade (desta vez estamos do lado da psicologia feminina) e, uma vez sais, Freud oferece-nos aqui uma explicagdo pluralista. A primeira causa, que The parece dificil de reter (se bem que, no comeso, ela tenha aparentemente uma ceria verossimilhanga), é a dor da defloracdo, a dor das primeiras relagSes sexuais. Como essa expli- 35. Ibid, pp. 75.74, 36. Ibid, 5.74, 88 CASTRACAO — SIMBOLIZAGOES cago puramente fisica no the parece Jevar muito longe, Freud yoita-se logo para 0 ferimento psiquico ea dor psiquica, associados {a dilaceragao orgénica do himen. Nao seria a propria dor da defloragdo que estatia em causa, mas o ferimento narcisico vin- culado a todo ¢ qualquer atentado contra a integridade corporal, ‘a toda a perda ou diminuigio dessa integridade, em suma, & dete- riorago, & perda do valor narcisico. Tal explicaséo ainda ¢ insu- ficiente, diz Freud, sobretudo pelo fato de que, se Ievarmos em conta os riluais de certas populagées primitivas, pereeberemos que © que se quer poupar ao esposo néo é apenas a reagéo da mulher A defloracdo, mas também a sua reagdo a0 primeiro coito, dado que 2 defloracéo ritual somase. com freaiiéncia, 0 coito ritual cerimonial, Faz-se necessario, pois, encontrar outras explicagées, avangando do mais banal para o mais psicanalitico. A decepsio, fem primeiro lugar, pode estar ligada & inadequago do ato em decorréncia da inabilidade das primeiras relagSes, comparada com a expectativa de prazer sexual. Mas Freud vai imediatamente além dessa ideia: trata-se menos da inadequagao no ato do que da ina dequagio no objeto, uma inadequagéo nfo de fato mas de natureza, visto que 0 objeto, o esposo, é por definiggo inadequado a0 objeto edipiano, o pai. Estaria af 2 explicacao maiot para essa decepe%o, ‘que seria absolutamente obrigatétia, E 0 fato de que, nas primeiras relagGes sexuais, o esposo entra numa rivalidade forgosamente des- ‘vantajosa em relagio ao objeto edipiano explicaria justamente certas particularidades dos rituais de defloracdo, ¢ que estes sejam exe- cutados, com freqiiéncia, por personalidades paternais, divinas: “Q costume dos primitivos de confiar a defloracao a um velho, a um sacerdote, a um homem santo, em suma, a um substitute do pai, parece levar em conta o motivo de um desejo sexual antigo."®? Convém relacionar com 0 mesmo desejo edipiano o “direito da primeiza noite” do senhor feudal, na Idade Média, ou ainda certos rituais de defloragdo instrumental, operados por estétuas ou falos de pedra, considerados como falos divinos. Todos esses rituais em que intervém uma imagem simbélica do pai prepa- rariam, em suma, a transi¢lo desse pai, objeto edipiano, para um substituto forcosemente decepcionante. Mas, enfim, essas explica- 57, Ibid, p. 76. CASTRAGAO: SEUS PRECURSORES & SEU DESTINO 89 ‘es parecem ainda insuficientes ¢ 0 que, em ultima andlise, & destacado nessa hostilidade € a reativagdo na mulher, no momento de suas primeiras relagGes sexuais, do complexo de castragao ¢ da inveja do pénis. Esta levaria, quase obrigatoriamente, nas pri- ‘meiras fases, ao desejo de apropriar-se do pénis castrando 0 esposo. Freud cita aqui um fragmento de andlise: “...0 sonho de uma jovem casade, sonho que se podia reconhecer como uma reacao 4 sua defloragZo. Ele denunciava sem constrangimento 0 desejo que mulher tinha de castrar 0 seu jovem esposo e de conservar para ela o penis dele” *, tabu da virgindade teria por objetivo, pois, evitar ao homem © conjunio dessas reacdes da mulher aos primeiros atos sexuais. Todas essas reagGes serdo ilustradas pela hist6ria biblica de Judite ¢ Holofernes: Judite introduz-se junto 20 general assitio inimigo, © seduz e aproveita essa sedugo para cortar a cabeca do gigante Holofernes. Freud apdiase ai num estudo do psicanalista Sadger, ‘que se debrugou no s6 sobre o mito biblico mas também sobre 2 tragédia de Hebbel, inspirada nesse mito. O estudo de Sadger é interessante ro sentido de que é justamente nas passagens do mito primitivo para o modo como Hebbel o transcreve que a signifi- ‘ca¢do aparcczré mais claramente. Assim, por exemplo, a Biblia disfargou parcialmente o fundo sexual da hist6ria, porquanto nao supde que Judite teve relagdes sexuais com Holofernes. Pelo con- trério, Hebbel restitui esse fundo sexual: Judite, na tragédia, é efetivamente deflorada por Holofernes, ¢ & nesse ferimento que ela encontra a energia que Ihe permite cortar a cabega do gigante (endo 2 decapitacdo 2 imagem transparente da castragdo, tanto mais que a heroina apropriase dessa cabeca e leve-a part 0 set acampamento, exatamente como a jovem casada queria apropriar-se e conservar rela o pénis do esposo). Sutileza suplementar de Heb- bel, dizem-ncs Sadger e Freud: Judite ¢ apresenteda na tragédia como vitiva de um primeiro casamento que ndo se consumara. Em resumo, é uma vitiva virgem, pois 0 primeiro marido tinha sido alingido de impoténcia, angtistia e morte em sua primeira noite de népcias. Sadger da para isso a seguinte interpretacdo: trata-se realmente da retomada de uma imago infantil, de um desejo in- 58. Ibid, p. 77. 90 CASTRACAO — SIMBOLIZACOES fantil, que faz com que a mae seja considerada como nio tendo sido tocada pelo pai, o cite infantil fazendo da mae uma virgem intact Em suas consideragdes terminais, Freud recorda que, em nnossos dias, o tabu da virgindade assumiu aparentemente um sen- tido oposto: no Tuger da interdicéo de tocar, obscrvase uma superestimacao da virgindade, um bem precioso que, pelo contra- rio, deve ser reservado para o primeiro parceiro, para 0 esposo. Mas, apesar de tal inverso das relagdes, 0 problema subsist: “Nos estigios mais altos da eivilizagao, a valorizagao desse perigo cede lugar & promessa de sujeicao ¢, sem diivida, a outros motives © omtras atrativos; a virgindade é considerada um hem a que o hhomem nao deve renunciar. Mas a anélise dos desacordos conjugais ‘mostra que os motivos que impelem a mulher @ vingarse de sua defloragdo parecem nao estar inteiramente extinios, na vida mental da mulier civilizada.” Em outras palavras, Freud compara aqui 0s resultados dos primeiros casamentos e dos segundos casamentos, para dizer que, nos primeiros, existe com freqiiéncia um né inex- iricdvel entre essa sujeigéo que 6 procurada da mulher ao homem —e também, inversamente, do homem & mulher — ¢ o édio, fe que esse né paralisa completamente, muitas vezés, a vida amo- rosa. De sorte gue os primeiros casamentos so os mais apaixo- nados e se, com freqiiéncia, so impossiveis de romper, € mais ‘em fungo do ddio do que em fungzo do amor, visto que, quando © ddio nao € mitigado, a personagem do vingador retorna incessan- iemente, ligada pelo néo-cumprimento de sua vinganca. A anélise mostra, diz ele, que essas mulheres ainda se encontram numa reagio de sujeicio em face do primeiro marido mas que jé nao € por ternura, Em outras palavras, é uma sujeicéo vinculada & ambivaléncia, da qual o individuo nao pode libertar-se porque nic pperpetrou sua vinganca, Nos casos’ surpreendentes, a nocd de ‘vinganga nem mesmo chegou A consciéncia. E reencontramos aqui, sem divida, a tese de Freud de que toda peixfo amorosa (com fo elemento que ele designa justamente por Verliebtheit: “enamo- ramento”), toda a relago passional, ¢ alimentada por uima ambi- valéncia, 59, Ibid, p. 78. CASTRACAO; SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO a1 Farei ainda algumas observagdes sobre esse texto. 1° En- ‘quanto vimos que no complexo ieminino aparentemente faltava 2 castragao como amputacio, nés a vemos aparecer aqui no sentido proprio (0 de amputecéo) do lado do desejo feminino, O desejo de receber, 0 édio, o ressentimento por nfo ter recebido, transfor- mam-se em desejo de apropriar-se ativamente do pénis, castrando co homem, tomandoo dele, guardando-o. 2° © que € menos evi- denciado por Freud, ¢ que me parece ter sido, talvez, um pouco omitide nesse texto (embora algumas alusGes the sejam feitas), é a idéia de que a defloracao constitui um ato a ser colocado em ressondncia com a castracdo e, sobretudo, que havcria um paralelo interessante ¢ estabelecer entre essas defloragées rituals eo grande ritual de iniciacdo que é a cireuneisio. 3.° A psicologia do homent ji ndo esta aqui, em suma, fechada sobre si mesma (0 que € novo), mas relacionada com a vida fantesistica da mulher, nesse caso a esposa. E vemos entéo surgir essa figura da mulher castradora, & qual, até agora, nfo tinhamos atribuido um lugar, com Freud, na constelagao do complexo de castragdo masculino. Essa figura da mulher castradora, da MULHER CASTRADORA mulher que quer o pénis, até mesmo que E MULHER FALICA tem o pénis, 6 uma imagem que nfo esté desprovida de ambigiidade e que certa- mente 6 méltipla (como toda vez que nos encontramos no plano da imago). O ponto focal dessa imagem € 0 préprio 6rgao genital feminino, apresentado como perigoso na medida em que concretize © recorda ao homem a possibilidade de castracao. Hé um outro texto interessante de Freud, a que apenas fago aluséo. Trate-se de A cabeca de Medusa (1922), no qual se ilustra a passagem da imagem castradora do éxgio genital feminino — ou da mulher — para o plano do simbolo (que € precisamente a cabeca da Medusa). Como sempre que se trata da elucidagéo de um sfmbolo, convém no tentar estabelecer uma relacio biunivoca entre o simbolizante © 0 simbolizado, ou seja, existem miiltiplas vias que conduzem de um a0 outro — e vias que, com freqiiéncia, so aparentemente contradit6rias. O simbolo, por natureza, ¢ plurideterminado, ¢ feito de multiplos deslocamentos, € uma condensacdo. E as vias que Tevam do que deve ser simbolizado (0 rgao genital feminino castrado e caitradot) até essa figuracao cléssica, visual (que encon- tramos em tio numerosas figuracées da Antigiiidade), so mél- 92 CASTRAGAO — SIMBOLIZAGOES tiplas, Freud enumera apenas algumas e nele encontramos, por certo, todas as yias habituais do deslocamento psicanalitico, se- guindo a metéfora, a metonimia ou a inversio. Portanto, essa cabega de Medusa simboliza o érgio genital feminino como cas- trado, e de miltiplas maneiras, Bis alguns desses vinculos, coexis- tentes na superdeterminacdo. F uma cabega de Gérgona que foi cortada: logo, em sua prépria separacio, € 0 simbolo da castragio. [Em seguida é, mais precisamente, nesse rosto cercado de abundante cabeleira, 0 simbolo do érgao genital feminino adulto rodeado de sua pilosidade. E, depois, algo que se apresenta como contradi- trio € que essa cabeca castrada (esse Orgd0 genital feminino) est cercada de méltiplas serpentes, uma vez que toda essa cabe- lira se transformou num emaranhado de’serpentes (simbolos evi- dentemente félicos): a castragio, diz Freud, é representada pelo seu inverso; além disso, elemento interessante nessa representacéo pelo inyerso, 0 falo tinico que foi cortado & substitufdo por uma pluralidade de serpentes; a prépria multiplicagdo de falos € uma supercompensagao para o temor de ter 0 6rg90 genital cortado. Essa representacdo © essa supercompensacdo da perda por uma pluralidade constituem um modo freqiiente e reconhecido de simbo- lizacdo nos sonhos. Ainda um outro elemento é 0 proprio efeito dessa cabeca de Medusa sobre aquele que ousa olhé-la (como 2 crianga que ousasse olhar o 6rgo genital feminino): ele sera petri- ficado, transformado em estétua. Af temos, através desse pavoroso destino, um elemento de reasseguramento' final, visto que, longe de provocar a castraclo, essa visio provocaria, a0 contrétio, uma erecdo, O que Freud néo indice ou nao sublinha (0 que s6 ocorreu nos desenvolvimentos pés-freudianos) € 0 fato de, nessa petrifi cago, ser todo 0 corpo que se identifica com 0 falo, endo apenas uma ersgdo de uma parte do corpo. Enfim, também nao € & toa que_ essa cabeca da Medusa se encontra gravada no escudo de Atena, o escudo da virgem intangivel e, por conseguinte, como imbolo por exceléncia de sua virgindade, Deparamonos, neste onto, com o tema da virgindade como ativa, como guerreira, como perigosa e como castradora. Assim, 2 partir da mulher castradora, escoregamos rapide mente para uma outra imago (nese complexo conjunto que se presta, com demasiada freqiiéncia, a divagagies): a da mulher falica, imago que também se reencqntra com evidéncia na clinica, CASTRACAO; SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 93 principalmente dos sonhos, sobretudo nos do homem: uma mulher portadora do érgio félico, eventualmente em erecao. Essa imagem esté cheia de ciladas ¢ sua explicagio certamente nio é simples. A explicagio que ocore de imediato a Freud mas que, apesar de tudo, € um tanto simplista, consiste em dizer que essa imagem da mulher com falo seria, simplesmente, uma reminiscéncia da fase (precedendo teoricamente 0 complexo de castracio) em que ‘© menino imaginaria que todo ser humano, inclusive todo ser animado, possui como ele um pénis. Outros autores, com maior sutileza, corrigiram essa explicaeao. Ruth Mack Brunswick, nota- damente, indica que, mais do que essa espécie de retorno a uma fase pré-castradora que tivesse verdadeiramente existido antes da castrago, € muito mais provével que essa imago da mie félica surgisse, ‘pelo contrério, num momento de diivida, justamente quando € questionada essa universalidade da posse do falo. Se- gundo essa autora, uma tal imago se constituiria “.. para asse- gurar a posse do penis pela mae e, assim, surgitia provavelmente no momento em que a crianca comega a nfo ter a certeza de que a mie efetivamente o possui” ®, Tal como na constituigio da imagem da Gérgona com sua coroa de serpentes, essa imagem também tepre- senta um reasseguramento — e uma forma de reconstituir poste- riormente o que deveria ter existido, Tal como a cabeca da Medusa, a mulher félica seria construfda posteriormente (aprés-coup), como) simbolo da castracdo e como forma de se reassegurar, contra cl Freud e todos os que falam dessa imagem da mulher com falo sifo levados também a evocar, nesse ponto, 0 processo, muito conhe- cido ¢ muito estudado, do~fetichisnio;squando se cria também, como forma de reasseguramento "contra a percepgao da castracio feminina, essa espécie de simbolo ambiguo da castrago e da ndo-castrago que € 0 fetiche. Existe um parentesco evidente entre a cabega da Medusa e 0 fetiche. Tudo isso seré plenamente satisfatorio? Gostatia de voltar ainda A questio do tabu da virgindade e do tabu em geral, Aludi acima a0 tabu dos mortos. Em sua discussdo, Freud en- contra o caminho aberto, ele nada inventa quando afirma que 60. _R, Mack Brunswick, “The Preoedipal Phase of the Libido Deve lopment”, em The psychoanalytic Reader, 1940, p. 240. 4 CASTRAGAO — SIMBOLIZACOES © motto € uma personagem perigosa. & um fato reconhecido por todos os etnélogos ¢ por todos os que se debrugaram sobre 0 culto dos defuntos ¢ sobre o tabu ligado, eventualmente, a esse culto. O morto, diz por exemplo Wundt (que procura aplicar uma certa psicologia & etnologia, e Freud retoma, de uma certa forma, essa explicacio), pelo proprio fato de ser morto converie-se em deménio, Nao existem, em suma, bons mortos, salvo depois de um Tongo processo que € 0 do Iuto, apés o qual 6 possivel recupetat a imagem de um bom morto, Freud admite essa tese, admite, sem divida, que o tabu seja feito para proteger contra hostilidade do motto (exatamente como o tabu da virgindade € feito para proteger contra a hostilidade da virgem). Mas é ai que ocorrerd uma diferenca entre 0s dois autores. No caso do ‘morto, Freud vai mais longe: essa hostilidade do morto, por sua vez, néo € um fato final — e € af que Wundt se enganaria. lids, essa hostilidade do morto nem é um faio real: 0 motto pode ter sido alguém perfeitamente bondoso e, mesmo no caso de ter sido relativamente hostil, essa particularidade nao é suficiente para setvir de base a essa espécie de universalidade da malevoléacia, Nao se pode fundamentar essa hostilidade numa realidade; ela s6 pode basear-se em todo um proceso intra-subjetivo de parte dos sobreviventes (processo intra-subjetivo onde se reconhece algo que seré desenvolvido por Melanie Klein, a propésito da constituicao do objeto mau, por exemplo do seio mau). Esse processo pode ser rapidamente descrito da seguinte mancira: ambivaléncia a res- Peito das pessoas queridas, tanto mais forte e tanto mais disfargada quanto mais queridas forem essas pessoas. Segundo tempo: no momento da morte dessa pessoa quetids, exacerbacdo dessa ambi- valencia, e exacerbacdo das tendéncias contradit6rias; certemente do amor, visto que se perdeu 0 objeto, mas também do édio, pois © sujeito vé satisfeito, enfim, o seu desejo de morte e tem até muitas raaes para supor que essa morte talvez seja a conseqiigncia do seu proprio desejo secretamente alimentado por tanto tempo. A partir desse momento, a ambivaléncia tora insuportével, em yazio mesmo da exacerbagio quantitativa dessas duas mogSes con- traditérias, e a nica maneira de lidar com essa ambivaléncia (a Xinica maneira, como dizem os ingleses, de deal with) € um pro- cesso duplo: processo de clivagem (clivagem do objeto entre 0 bom ¢ © mau, e clivagem pulsional do amor e do édio), e meca- CASTRACAO: SEUS PRECURSORES E DESTINO 95 nismo de projecdo, que permite expulsir para o exterior tudo 0 que € mau, projetar a hostilidade do sujeito no morto e, em suma, desembaracar-se dela, para no ter que a ver retornar do exterior. “Entre esses dois sentimentos opostos é inevitével um conflito [eu dizia ser impossivel lidar com a ambivaléncia, por-um lado por causa da intensidade das mog6es e, por outro lado, em virtude das duas mogées, do ponto de vista t6pico, ndo estarem no mesmo el e “a hostilidade ser em grande parte inconsciente”. Assim, fa idéia banal segundo a qual se poderia dizer “eu gostava muito dessa pessoa mas, por outro lado, eu a detestava, vejamos se numa espécie de soma aritmética ou algébrica ainda gosto dela um pouco font a detesta vm pouco” ... essa maneira (que, na verdade, jamais se produz) de tratar os sentimentos numa espécie de conciliacao matemética é em todo caso, impossfvel...]; 0 conflito nao se pode resolver por uma subtragio das dues intensidades, com acei- taco conscieate da diferenga, como, por exemplo, nos casos em que se perdor a uma pessoa amada uma injustiga de que ela se tomnou culpada em relagio Aquele que a ama. O processo termina, antes, com a entrada em ago de um mecanismo psiquico parti cular que se designa habitualmente, em psicenélise, pelo nome de projegao. A hostilidede, sobre a qual nada se sabe ¢ nada se quer saber, ¢ projetada da percepedo interna para o mundo exterior, ou scja, destacada da propria pessoa que a sente para ser atribuida 4 outra, J4 ndo somos nds, os sobteviventes, que estamos contentes por nos desembaracarmos daquele que jé no existe; muito pelo contrério, choramos sua morte, mas foi ele que se tornou um mau deménio que se alegraria com 0 nosso inforttinio ¢ procura fazer- nos perecer. Também os sobreviventes devem defender-se contra esse inimigo; 36 se libertaram de uma opressao interior para trocé-la por uma angistia que tem uma fonte exterior [esta tltima frase 6 importante para a teoria da angtstia: € o perigo exterior que se explica pela projegio do perigo interior].”* Recorri ao tabu dos mortos porque, aparentemente, temos duas concepeses diferentes no tabu da vitgindade e no tabu dos G1. Totem et tabou, Pavis, Payot, 1965, pp. 76-77. Entre colchetes: comentirias de J. L. 7 We mtbinn SEE nme wens & sheitdada pat CASTRAGAO — SIMBOLIZAGOES mottos. No tabu dos mortos teriamos uma concepgao centrada no sujeito (uma concepgao “solipsista” do problema), uma vez ue os perigos exteriores so essencialmente reduzidos a projegdes — projesses do perigo pulsional interno. E néo foi gratuitamente que me referi a Melanie Klein e também as eritcas que possam ter sido feitas a ela por fazer surgir tudo do interior. Pelo contrat, em O tabu da.virgindade, Freud contradiz essa busca de uma projepio e mesmo # idgia de uma ambivaléncia, Ele retorna, pode- slamos dizer, a uma idéia préxima daquele dos etnélogos e de Wenct, que ele erieava em relagio 60 tabu dos mottos, Em utras palavras, ele devolve a voz a0 perigo real, explora o lado Sh hoslidede fal da mulher: core’ ehosvasies elias em que a mulher € que € observada em suas reagoes pessonis © nao mulher au imaginapto do‘homem, Ele pentsla, portent, ua | mulher realmente perigosa, realmente castradora. Pode-se ver que, | de um certo lado, temos uma tese essencialmente do imaginévio e da projegio do imagindrio; e, do outro lado, uma tese que seria mais a do real. Iss0 nos leva, evidentemente, a indagar (em O tabu dla virgindade a questo nao se coloca e, com mais fortes razées, 0 do petigo rs abu? Sera na de indugio que Taz com que se petceba que os noives, ou os jovens esposos, seriam agrestivas? Manifestamente néo ¢ disso que Freud nos fala: provavelmente, com efeito, © que ele vé por trés da esposa, nessa espécie de psicologia intersubjetiva, & 0 primeiro objeto, o objeto maternal. E nesse caso, evidentemente, somos conduzidos numa linha que no é indicada por Freud, mas simplesmente sugerida por esse texto, e que_constitui um de seus pontes de interes de uma‘intuigdo}ona crianga masculina, do complexo de eastracio materna, Isso obviamente nos leya por um eaminho que foi desde | entio desenvolvido mes que talvez convenha explorar também com prudéncia: o de uma constituicdo dos complexos infantis a partir ( dos desejos parentais e, em particular, do desejo matemno. E ev dente que, se 0 desejo’ matemo esti. influenciado pela inveja do , pénis, temos af uma origem do complexo de castracio da crianga, em particular do menino, a qual nao foi sublinhada, nem mesmo considerada, por Freud. | CASTRAGAO; SEUS PRECURSORES E SEU DESTINO 97 — 16 de abrit de 1974 Retomemas 0 nosso problema do significado e da génese do complexo de castragio. Interpusemos uma apreciacio do texto © tabu da virgindade, que expe um ponto de vista insélito na obra de Freud, ponto de vista cuja originalidade ressalta melhor fem comparagéo com 0 fabu dos mortos. O interesse dessa compe- ragio estava em mostrar que, no tabu dos mortos € na explicasio geral do tabu, o perigo era projetado, imaginério, ao passo que no texto sobre 0 tabu da virgindade” Freud parece admitir um fundamento objetivo, um ““perigo real'} contra o qual 0 esp0so se protegerla mediante esses ritos-se defloragso. Nao obstante, esse real néo & 0 de uma realidade material, & uma realidade ppsiquica, € a realidade de um contradesejo, de um desejo oposto, por parte da parceira: desejo de castragdo, desejo de apropriar-se do pénis de que ela propria fot frustrada, E 0 que nos pareceu interessante resse artigo foi essa introdugéo de um ponto de vista intersubjetivo nesse problema da castragio, que Freud com fre- aiiéncia tende (como no caso de muitos outros problemas) a tratar seja apenas nos limites da historia individual, seja para amplis-lo diretamente a uma hist6ria coletiva. ‘A partir desse lembrete, volto & nossa problemdtica. Se qui- sermos conservar a especificidade do complexo de castragio subli- hada por Freud, set preciso admitir um certo mimero de coorde- nadas ¢ de yontos de definicao. 1° E um complexo que aparcee, predomina € caracteriza uma certa fase, que & como um prolongs mento, um certo desenvolvimento: portanto, terd que set neces- sariamente situado a partir de um ponto de visia genético. 2.° E ‘uma “teorie’ (no sentido geral em que Freud emprega esse termo), tum certo onlenamento do universo. 3.° & um ordenamento que implica vetores novos, uma espécie de nova dramatizagéo, a que se poderia chamar “ortodramatizago” ® do desejo e segundo dois vetores; por um lado, o vetor heterossexual €, por outro, © G2. 0 termo foi introduzido por Lacan « propésito da cura, ¢ nema perspectiva explicitamente normativa

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