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21/05/2004 - 23:12 | Edição nº 314

reportagem de capa

Psicopata: você conhece um

Estudo mostra que pessoas com desvio de caráter e comportamento problemático


podem sofrer de "psicopatia comunitária"

PAULA MAGESTE

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Adolescentes rebeldes, maridos que não param


no emprego, mulheres permanentemente
endividadas, jovens que não conseguem
concluir nenhum curso. Há 15 anos, o
consultório do neurologista carioca Ricardo de
Oliveira Souza era a última esperança de
famílias às voltas com 'pessoas-problema'. O
médico conta que seus diagnósticos iniciais
eram depressão, transtorno bipolar ou distúrbio
de déficit de atenção. 'Cheguei a dizer a uma
mãe que o problema do filho dela era falta de
limite', arrepende-se. Infelizmente, o veredicto de muitos desses casos é bem mais
complexo e deverá causar polêmica - como todas as descobertas relacionadas ao cérebro
- a partir do momento em que for apresentado à comunidade científica durante a
conferência Neurologia da Violência e da Agressão, de 10 a 12 de junho, no Rio de
Janeiro.

Oliveira vai compartilhar com colegas do mundo todo os resultados preliminares de


seus estudos sobre o mapeamento das emoções no cérebro, realizado em parceria com o
neurorradiologista Jorge Moll Neto. O trabalho é inédito e foi mostrado a ÉPOCA com
exclusividade. Oliveira vai apresentar o conceito de 'psicopata comunitário', aquele
indivíduo que pode não ser um serial killer, mas causa estrago por onde passa. 'É gente
que nunca foi presa, mas que tem muito em comum com os psicopatas mais perigosos,
desde traços de comportamento até o funcionamento de circuitos cerebrais', alerta.
Podem estar nessa categoria tipos como o malandro golpista 171, o sujeito que não tem
emprego e vive de rolo, aquele que cultiva amizades por interesse e descarta as pessoas
depois de obter o que deseja, o sujeito que vive de explorar a tia velhinha, o executivo
inescrupuloso que desfalca a firma. Este último, também conhecido como psicopata
corporativo ou do colarinho-branco, será o tema da conferência, no Rio, de um dos
maiores especialistas do mundo, o canadense Robert Hare.
Pouco depois de receber os pacientes-problema em
Comportamentos que
consultório, Oliveira começou a dar atendimento
parecem falhas morais
psiquiátrico no Instituto Philippe Pinel e pôde
podem ser doença
acompanhar de perto psicopatas clássicos, aqueles que
violam repetidamente os direitos alheios, sem remorso.
Em casos extremos, matam a sangue-frio, com requintes de crueldade, sem medo nem
arrependimento. 'Comparei com meus pacientes e vi que existia uma semelhança',
conta. Para tirar a prova, Oliveira aplicou o teste de verificação de psicopatia (PCL)
elaborado por Hare, e utilizado pelo FBI para diagnosticar serial killers. Constatou que
muitos freqüentadores de seu consultório preenchiam vários quesitos do teste, até então
utilizado quase unicamente em criminosos. 'Percebi que aquelas pessoas-problema
também eram psicopatas. Não faziam picadinho de ninguém, mas agiam de maneira
agressiva, sem moral, como parasitas, prejudicando muita gente.'

Nos últimos cinco anos, Oliveira e Moll avançaram nesse mapeamento. Os dois
classificaram os principais tipos de agressividade encontrados em 279 pessoas com
distúrbios neuropsiquiátricos. Por meio de um teste desenvolvido por Moll, batizado de
Bateria de Emoções Morais (BEM), e com a tecnologia da ressonância magnética
funcional, concluíram que o cérebro de alguns indivíduos responde de forma diferente
da de uma pessoa normal quando levado a fazer julgamentos morais, que envolvem
emoções sociais, como arrependimento, culpa e compaixão. Diferentes das emoções
primárias, como o medo, que dividimos com os animais, as sociais são mais
sofisticadas, exclusivas dos humanos - têm a ver com nossa interação com os outros. Os
resultados preliminares do estudo sugerem que os psicopatas têm muito pouca pena ou
culpa, dois alicerces da capacidade de cooperação humana. Mas sentem desprezo e
desejo de vingança. 'As imagens mostram que há pouca atividade nas estruturas
cerebrais ligadas às emoções morais e às primárias e um aumento da atividade nos
circuitos cognitivos. Ou seja: os psicopatas comunitários, assim como os clássicos,
funcionam com muita razão e pouca emoção', traduz Oliveira.

LISTA DE SINTOMAS
Elaborada pelo canadense Robert Hare, ela é um instrumento importante de diagnóstico (seu
uso isolado, no entanto, não basta para determinar se alguém é psicopata ou não)
Desembaraço/charme superficial
Sentimentos insuflados de importância pessoal
Busca por estimulação/sensibilidade à monotonia
Mentira patológica
Manipulação e chantagem
Ausência de remorso ou culpa
Emoções superficiais
Ausência de empatia com os outros
Estilo de vida parasita
Controles comportamentais precários
Promiscuidade sexual
Problemas graves de comportamento na infância
Ausência de objetivos de longo prazo
Impulsividade
Irresponsabilidade
Incapacidade de se responsabilizar por suas ações
Casamentos/relacionamentos de curta duração
Delinqüência juvenil
Violação de condicional
Versatilidade criminal

#Q:Psicopata: você conhece um - Continuação:#

É claro que todo mundo tem seu dia de fúria e um pecado para esconder - uma trapaça
no jogo, uma mentira, uma baixaria no trânsito. Estar agressivo e violento é muito
diferente de ser agressivo e violento ou, em última análise, um psicopata. A doença se
caracteriza pela repetição, desde a infância ou há pelo menos dois anos, de atos anti-
sociais que lesam os outros, sem remorso nem culpa. 'O psicopata assassino é frio e
calculista, mas o comunitário é afável, agradável, sedutor, carinhoso. A gente consegue
reconhecê-lo quando algo dá errado e ele fica agressivo', destaca Oliveira.

Essa ampliação do conceito de psicopatia para além dos muros das prisões leva a uma
conta pouco animadora. Se a doença, em sua forma mais crônica, afeta 3% da
população masculina e cerca de 1% da feminina (mais que o diabetes, com 1% a 2%),
os psicopatas comunitários devem ser bem mais numerosos. Além disso, eles passam
muito bem por cidadãos comuns com pequenos problemas de conduta ou falhas de
caráter. Principalmente em sociedades mais permissivas, como a do Brasil, que, não por
acaso, durante muito tempo foi a terra do jeitinho. 'Não acredito que existam mais
psicopatas comunitários aqui do que nos Estados Unidos, mas, num sistema que reprime
a violência, eles vão ter menos oportunidades', pondera Oliveira. 'Eles fazem a festa
justamente onde a estrutura social não é muito definida: em mudanças de regime, como
paladinos da justiça; nas igrejas, como sedutores líderes religiosos; na política, nos
ambientes ligados ao misticismo.'

MAPEAMENTO DAS EMOÇÕES


Indivíduos normais e psicopatas comunitários foram submetidos
ao teste Bateria de Emoções Morais (BEM) enquanto
eram colhidas imagens de seu cérebro por meio de
ressonância magnética funcional
Quando uma pessoa normal (à esq.) faz julgamentos morais,
ativam-se as áreas pré-frontais (laranja e roxo), responsáveis
pelos aspectos cognitivos - frios e racionais - do julgamento.
Também são ativados o hipotálamo (azul), relacionado às
emoções básicas, como raiva e medo, e o lobo temporal
anterior (vermelho), ligado às emoções morais, tipicamente
humanas. Resultados preliminares mostram que, no cérebro
do psicopata (à dir.), diminui sensivelmente a ativação das
áreas relacionadas tanto às emoções primárias (azul) quanto
às morais (vermelho) e aumenta a atividade nas áreas pré-
frontais (laranja e roxo), ligadas aos circuitos cognitivos, de razão pura
Infográficos: Letícia Alves

O estudo de Oliveira e Moll será publicado no fim do ano, e os pesquisadores pensam


em criar uma cartilha para ajudar o cidadão comum a reconhecer e se proteger dos até
então incógnitos psicopatas comunitários. 'A defesa é negar empréstimos, não deixar
que ocupem posições de decisão, não os mandar fazer pagamentos nem lhes confiar
objetos de valor', diz Oliveira. Em termos científicos, outro desdobramento seria um
teste diagnóstico para detectar precocemente indivíduos com potencial agressivo e
violento. 'Pessoas com tendências anti-sociais poderiam ser identificadas e até
reabilitadas antes de causar danos', afirma Moll. Mais controvérsia à vista: conhecer os
circuitos danificados no cérebro do potencial psicopata permitiria fazer intervenções
cirúrgicas e desenvolver drogas que estimulassem regiões específicas, alterando seu
comportamento. 'Isso é muito delicado, e cabe à sociedade discutir que uso será dado a
essas novas ferramentas', pondera o neurorradiologista.

O conhecimento é bom, mas o cenário que ele desenha lembra momentos pouco
inspirados da História, como os primórdios da Psiquiatria, com a onda de lobotomias e a
política de higienização dos nazistas. Lembra também Minority Report, livro de ficção
científica de Philip K. Dick, transformado em filme por Steven Spielberg, em que se
prendia o assassino antes de ele cometer o delito. 'Vai haver uma grande polêmica, uma
discussão ideológica com argumentos de nazismo para baixo', reconhece Oliveira. 'Mas
a possibilidade de identificar precocemente um psicopata é reconfortante para o cidadão
normal, que sai para trabalhar e quer voltar vivo para casa.'

''A família adoece''


O depoimento do pai de uma psicopata comunitária
''Tenho três filhas, e todas foram criadas nos melhores colégios do Rio de Janeiro, com amparo religioso.
A do meio ia muito bem até entrar na faculdade. Largou um curso, começou outro, que largou também.
Saía à noite todo dia, bebia, levava multas de trânsito, punha os pontos na carteira de todo o mundo.
Também não queria saber de trabalhar. Inventou de morar num sítio, e eu achei que era um momento de
crescimento pessoal dela, de independência. Mas depois tive de resgatá-la, pois só participava de raves e
se drogava. Voltou a morar aqui, vivia de biscate e de baladas. Acordava todo dia às 3 da tarde. Uma
vez, trouxe dois pivetes de rua para casa. Colocou em risco a vida de todos nós. Eu resolvi tirar o carro
dela e aí ela ficou agressiva comigo. Ela sempre se irrita quando eu a contrario. Procuramos os
Narcóticos Anônimos, psicoterapia, tudo, para ver onde tínhamos errado. Fomos vendo que independia
de nós. Nossas outras filhas têm vida normal. A do meio se acha normal, diz que a sociedade é que é
complicada. Agora estamos tentando outro tratamento. Fiquei assustado com o diagnóstico de psicopata
comunitária, porque ela é muito doce e cativante. Mas aceito qualquer coisa que possa reverter esse
quadro.''

#Q:Os comportamentos agressivos-violentos:#

TIPOS DE COMPORTAMENTO AGRESSIVO-VIOLENTO

Todo o mundo sente raiva, é agressivo ou perde o controle de vez em quando. O que diferencia a
pessoa normal da psicopata são a intensidade e a freqüência das crises, a desproporção entre o
motivo da explosão e a violência da reação. Os comportamentos ao lado são síndromes (conjuntos
de sintomas) que podem ter diversas causas - de uma simples noite maldormida a depressão. Mas,
nos casos extremos, indicam psicopatia

1) Síndrome de descontrole episódico: o sujeito tem pavio curto, rompantes que podem ser motivados
por coisas tão irrelevantes quanto uma colher que cai no chão. Durante o surto, ele perde o controle,
grita, ofende, vai na ferida, é mordaz. É capaz de agressão física e até de matar alguém. Depois da crise
fica cansado, envergonhado, moralmente arrasado. No caso das mulheres, há um subtipo, o descontrole
verbal episódico: elas falam sem parar, de forma agressiva. Também chamado de distúrbio exclusivo
intermitente, antes era conhecido como embriaguez patológica, porque a crise pode ser deflagrada por
pequenas doses de álcool. Há tratamento com inibidores de recaptação de serotonina (drogas da família
do Prozac).
Exemplos: Renato Mendes, vivido por Fábio Assunção, em Celebridade; pitboys, que não
necessariamente procuram briga, mas reagem violentamente por muito pouco
2) Indivíduo continuamente agressivo: encrenqueiro, tende a reagir
com agressão a tudo. É um perigo no trânsito, porque procura confusão,
provoca, pode até matar. Esse tipo e o descontrolado episódico são
passionais: seus atos são profundamente carregados de ódio e ira.
Exemplos: skinheads (foto) e integrantes de gangues, que saem
procurando briga

3) Agressividade fria: é o comportamento do psicopata clássico, capaz


de cometer atrocidades sem nenhum medo, culpa nem remorso.
Calculista, premedita seus crimes. É sádico, tem prazer na dor do outro.
Exemplos: Fernandinho Beira-Mar, Elias Maluco (foto), Nero,
Calígula, Bonnie & Clyde
4) Irritação defensiva: ocorre quando a pessoa tem dor ou dorme mal,
por exemplo, e responde de forma ríspida a qualquer estímulo. É o
padrão mais freqüente de agressão. Pode ser sintomático de uma
distimia, uma depressão contínua e discreta. Chamada também síndrome
do mau humor crônico. Tratável com antidepressivos.
Exemplo: o Zangado da Branca de Neve

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