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HELOISA BUARQUE DE ALMEIDA. ROSELY GOMES COSTA - MARTHA CELIA RAMIREZ ERICA RENATA DE SOUZA (Organizadoras) ——— GENERO EM MATIZES Coordenagio: Maysés Centro de Doctimentacio e Apoio i Pesquisa em Coordenaio: Marcos Cezar de Freitas da Educagio- CDAPH ‘Ana Waleska Mendonga Livia Lippi Oliveira Carlos Roberto Jamil Cury Luciano Mendes de Faria Filho pe Serpa Maria Chagas de Carvalho io Fernandes Correspondéncias para: "Nicleo de Distibuiehoe Divulgaeo - EDUSF 4 Universidade Sao Francisco - EDUSE ‘A Aracy Lopes da Silva, 48 Daniel Schroeter Simido ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da pritica. In: ORTIZ, R. (Org), Pierre Bourdieu: Sociologia. Sio Paulo: Atica, 1994, p. 7-29. PAOLI, Maria questo do ga 191 PISCITELLI, Adriana. Tensdes: fern Perspectivas contempordneas de género. Cam PONTES, A. Do paleo aos b (Mestrado em Antropologia Social) ~ In Humanas, Unicamp, Campinas. PONTES, Heloisa A. Durkheim: uma simbélicos da vida social e dos fundamen Cadernos de Campo, Sao Paulo, n.3, p. 8 RODRIGUEZ, AS ciéncias sociais, os movimentos sociais ¢ a Novos Estudos, Sao Paulo: CEBRAP, n. 31 mos intemacionais€ 1s, 1997. Mimeografado. jidores. 1986. Dissertagio to de Filosofia e Ciéncias ise dos funda sociais do simbolismo. SCOTT, Joan. Género: uma categoria ise histbrica Educagio e realidade, Porto Alegre, n. 16, nov.idez. 1990. usos do género verso das organizagbes 1999. Dissertagao (Mestrado em Antropologia So Humanas, Unieamp, Campinas, de Filosofia e Cigncias STOLCKE, Verena. Sexo esté para género assim como raga para einicidade? Estudos Afro-Asic STRATHERN, Mary i. Problems with women society in Melanesia, Berkeley: University of California Press, 1988. TELLES, Vera da Silva. Sociedade is ‘Sao Paulo, 1995 YUDELMAN, Sally. The integration of women into development projects: observations on the NGO experience in general and in Latin America in particular. World Development, Londres, v. . p. 179-187, 1987. ireitos e espagos piblicos. Mulher em Campo 49 MULHER EM CAMPO: REFLEXO) EXPERIENCIA ETNOGRAI isa Buarque de Almeida Em Junho de 1996, sai de So Paulo para fazer um trabalho de campo em Montes Claros, cidade de aproximadamente 250 mil objetivo de fazer uma etnografia de recepgao da no toda sua exibigao, do A partir da experiéncia de trabalho de campo nessa cidade, busco compreender como se dé a leitura ¢ a interpretagio da novela, para discutir 0 que a televisio significa no contexto de sua recepgao, de pessoas variadas. © foco deste artigo nao é, no ise de recepgdo da novela, mas sim 0 proceso de ico, com atengio & questio do sénero. Muitos estudos se fazem sobre midia e recepe%o que aos campos da comunicagao ou dos estudos culturais denominam etnografia aquilo que na antropologia chamamos de entrevistas em profi longo proceso de observagao participante num universo ou -omunidade”. Foi essa longa insergio ~ sete meses em campo ~ que me permitiu vari televisio com diversos aspectos daqui esse mesmo processo que me levou a reflexdes mais profundas sobre questdes de género, motivadas inclusive pela renitente sensagao de desigualdade entre homens e mulheres, e por uma aproximagao maior € identificago com outras mulheres durante o trabalho de campo. Mulher é uma gente muito infeliz Marcela sentowse na cama e mostrou a Biblia aberta: estava rezando. Perguntei se estava tudo bem, e ela, Comecou a falar que nestes ti i 10. mesmo e perguniou se eu acreditava no 50 Heloisa Buarque de Almeida poder da oracdo. Por que ela rezava tanto? Porque pre se livrar de muitos pec rezava para proteger os filhos, sempre pedindo a Deus que eles niio se envolvessem com drogas, como seu marido. Orava 1a busca de respostas, e para ter mais paciéncia e paz. Sua sensacdo ruim era talvez 0 que eu chamaria de angistia, mas ela ndo usou este termo. Ficamos conversando, e ela foi aos poucos revelando alguns fatos sobre as quais sempre parecia querer conversar, mas nunca tinha falado diretamente antes. Falou que era muito infeliz no casamento, que se casou aos dezesseis anos, grévid thos (muitas das mulheres que conheci ali se casaram grévidas). Disse que estava cansada do marido, que as vezes achava que ndo gostava mais dele. Quando ela falava em se separar, ele ficava apaixonado, a procurava, corria atrds dela. Owras vezes, ela achava que gostava dele e entdo ele a tratava mal. Ele bebia, usava cocaina. Pergunte' infeliz, por que ndo se separava. Que ni nao tinha um trabatho, que ner A conversa era entrecortada por grandes e desconfortéveis silencios. Uma tristeza profunda. Percebi que se eu falasse a respeito de separagdo ela reagia no sentido oposto, entdo eu falava que ela devia ficar com ele e tentar melhorar a relagdo, mas dai respondia que finha jeito. Qualquer coisa que eu falasse, a levava a reagir na direcdo oposta. Achei melhor ouvir. Eu owia, pela via da fofoca, que ela ¢ 0 marido tinham uma relacdo violenta, Falavam que ele as vezes batia nela e ela “descomtava” nos fihos — era isso 0 que se comentava, Parecia estar num redemoinho de relacdes caver = mas, pela fofoca, eu ouvia uma historia violenta. Nao sei 0 que era verdadeiro, o que era jem conta um conto, aumenta um ponto), mas no is relatos eram verossimeis exagero contexto, Muther em Campo 31 Ela falou que ndo era 0 caso de se separar, porque se culpada por no dar c ‘mae, por ndo ser boa dona de por ndo ter um trabalho... e foi se definindo pela falta, pela auséncia, Disse que néo sabia o que fazer com 0 filho mais vetho e se preocupava com ele — menino “quieto ". Voltow a falar na culpa que sentia por seus pecados. ‘para a menstruagdo descer’” em algumas ocasides. Perguntei ‘como evitava a gravider agora ¢ ela disse que ndo evitava. ue era comum isso, que ndo devia se se inham feito algum abort. fo, teve uma hemorragia 6 um jeito de fazer. sem que 0 marido soubesse. Queria compensar, para ficar “quites” com Deus, vai ‘um filho ~ mas nao agora, quando tiver 30 anos. Diz ater paciéncia, ter mais paciéncia com tudo, com 0 que pret com os casos amorosos que ele teve durante esses anos todos. Duro era ficar ali, com ela, tentando mostrar que deveria haver alguma solugdo. Seu olhar no vazio, sua sensazao de vida perdida, seu ar de alguém que néio sabe o que fazer com tanta angtistia — ¢ eu ndo sabia mais 0 que dizer. 10 — volta e meia eu me via ouvindo confidéncias das mulheres, conversas ‘compridas, as vezes cheias de siléncios, como a de Marcela ~ mas ndo tdo angustiadas. Depois, voltava para minha ‘tenda”, meu quarto de pensdo, ¢ eu me sentia angustiada. Para esquecer, ia até o telefone piiblico ¢ ligava para a minha casa, em Sao Paulo. Para matar as saudades e lembrar que 32 Heloisa Buarque de Almeida eu finha uma outra vida, longe dali e que, ao final da pesquisa de campo, ia volar para casa, de Marcela acima nao era a mais nao ser 0 trabalho eventual de ajudar 0 marido as outras mulheres de camadas médias e populares de Montes ‘com quem convivi trabalhavam ~ mesmo que a fonte de rendimentos fosse um trabalho dentro de casa, como costura, ou fazer salgados e bolos para festas. Ainda assim, seu exemplo pode ser um pouco mais extremo (embora nao raro) pela questio da violéncia, mas a sensago Muitas mulheres de classe média, e com menor freqléncia al mais jovens de camadas populares, sempre remeti . Em varios ensaios de coletanea que de antropélogas em campo, organizada por videncia-se, por exemplo, como & complicado de pais comportam vezes & possivel romper com o comportamento ‘opera, dado que se trata de uma mulher que & de fora.’ Pretendo destacar aqu inicio, para ser bem accita em certos grupos, € preci adequar-se ao comportamento esperado por uma mulher de fa ento meu acesso ao espago dom: , na hora ne num momento de também a chamada onda pés-moderna na acerca do trabalho de campo. O livro de Paul Fieldwork in Moroet pologia e sua reflexio 1, Refl (1977), é a fonte central deste questi Mulher em Campo 53 neste artigo. Rabinow prope que se compreenda melhor o lugar do pélogo como um lugar liminar, que busca fazer a ponte entre as uras, construido por uma relagao intersubjetiva e pess eram um tanto nna medida em que ja que sofriam um processo de elaboragao obj que viviam, por vezes, de modo quase marginal. O processo comunicativo do trabalho de campo cria um sistema de significados compartilhados et ygrafo, um mundo liminar ¢ & parte de ambas as Proponho aqui que talvez esse espago liminar permita & pesquisadora romper as aparentes fronteiras do fazendo passagens entre universos considerados masculinos local permite que parte das restrigdes impostas & ria das mulheres seja rompida - conclusio semelhantes a de ‘mesmo tempo, de ser bem aceito e manter relagdes com pessoas que so consideradas respeitaveis no grupo social estudado, Sao estas 4questées inspiradas nos trabalhos de Rabinow, Landes e Golde, entre ‘outros, e na minha experiéneia de campo que Género é pensado aqui no como conseqilén 4 Heloisa Buarque de Almeida hist6rico e cultural —tudo é rel de género reelaboradas nas . So estas reelaboragdes que permitem & antropsloga ir além das restrigdes normalmente impostas 4s mulheres na sociedade estudada, struido, sendo as atribuigdes produsdo cultural (como a televisio e as num dado contexto nao ha representagao drias correntes nesta construgao do gf 1a (ou algumas) constitua parte do discurso hegeméni ruses de género da televisio interagem com as construgdes is €, nesse processo, 0s comportamentos sociais masculinos ¢ também se modificam. ‘gerando um receio inicial de me expressar abertamente. Esta reflexo inclui aspectos subjetivos do trabalho de campo que podem ser reveladores das construgdes de género. Embora eu . as distingdes entre homens & que tem, no minimo, wrés iso e seus prog dde uma “antropéloga paulista” (como muitas vezes , ides. possiveis. Mas espero também demonstrar como ha uma heterogeneidade e uma mudanga de valores em processo. Mulher em Campo 35 AEXPERIENCIA DO TRABALHO DE CAMPO, 5 Claros num préximo a0 centro da cidade que facilitava a minha locomogo por varios bairros ¢ servia de referéncia para ir aos poucos conhecendo mais pessoas na cidade. O meu quarto, logo na entrada da casa, separado do resto, parecia uma metifora da minha sensagao inicial de s inevitavel perceber 0 quanto a oportunidade de fazer uma no sentido tradicional de viagem a meu cotidiano em Sao Paulo, onde campo ~ gerava uma situaeao de fragilidade emocional. Ao mesmo tempo, configurava-se como a idéia do nar. Nesse proceso, nao hex no fosse tio distant, ¢ a televisio intermediando, gerando rmecenedo algumas referéncias comuns. egui contatar algumas familias que nao s6 costumavam assistir & novela das oito — objeto de reflexdo da etnografia ~ como aceitaram a minha presenga em momentos strui uma rede de pessoas ¢ fa € pessoal. Primeiro, conversgndo no pensfonato onde morava. Al oportunidade de assistir a televistio com as jovens do pensi ato e a cempregada doméstica que morava na casa, uma adolescente vinda da zona rural do norte mineiro. rupo de pessoas com quem as © outro grupo que muitas vezes clos nessas apresentacdes tornaram-se também parte do meu de campo de forma menos direta (muitas destes sequer uns deles eram professores ou da Universidade Estadual de alunos do curso de Ciéncias 56 Heloisa Buarque de Almeida Montes Claros que me procuraram, ¢ event fe me ajudaram a fazer uma rede de conhecidos. Outros eram vizinhos que no se interessavam pela pesquisa em si, mas pela minha pessoa, ou pela proprio tomar-se objeto de estudo. oga de Sao Paulo, associada a nomes carregados de lade e autoridade (como USP, onde fiz 1a pessoa conhecida 05 professores da Iguns amigos e parentes do cidado mais famoso s Claros, Darcy Ribeiro, por outro, na vizinhanga ¢ no circuito das familias que se tormavam meus poucos que me tomei conhecida. Ainda qui sentia-me as vezes um tanto observada. Em termos de técnica de pesquisa, para refletir sobre o papel nao fosse uma aldeia, interagia com a TV. itando regularmente algumas fa 4 novela com eles, ¢ conforme a conversa comecava, eu apenas incentivava que as pessoas dessem sua opinido e refletissem sobre os conteiidos e programas. Parecia uma simples visita (eu no levava gravador nem fazia anotagdes ali) mas todos sabiam que néo era. Alguns estranharam que eu nio fizesse perguntas diretas, entio labore’ algumas perguntas para poder ser encaixada na categoria de pesquisadora , depois de quatro meses em campo, comecei a fazer entrevistas em profundidade com 0 gravador — j equipada do material de varias conversas, € muitas vezes, relembrando na entrevista 0 ico. A figura feminina outro lado, ao sair da casa das pessoas noite, gerava alguns Mulher em Campo 37 pei protegao ~ estav: vulneraveis e possiveis vitimas. Nesse sen ser mulher, comportar-me adequadamente ~ nao e: 1a mulher casada, mas que . 0 que parecia ser adequado para a familias de diferentes estratos soca eestilos com as quais eu conservadores, ou ea outrat 0s pais eram da minha idade Ficou evidente que o fato de ser mulher e simpatica facititava essas entradas, mas tal comportamento também fazia parte do processo de conquistar os informantes — usar a simpati de parentesco ¢ amizade através das quais fui contatando essas pessoas. O fato de ser apresentada por um amigo ou parente era um ponto fundamental e o que mais fa as residéncias no periodo noturno. Alguns acasos no planejados per imagem de boa moga, de fn intimidade no espago. dor acompanhada de uma das’ c im a criaglo de uma tube como negar 0 pedido, mas i. que ao levi-la comigo poderia atrapalhar a pesquisa. Logo percebi que andar acompanhada de uma crianga me tormava mais respeitdivel do que a figura de uma mulher sozinha, e abria portas. As 58 Heloisa Buarque de Almeida isso na Bahia dos anos trinta, O fato de eu ser casada mas no ter dar com as criangas denotaria ide, a0 cuidado com elas, a uma postura de seriedade e de responsabilidade.” Havia uma aparente facilidade de abordar certos temas em campo se 0 tema era considerado feminino ou doméstico. A televisto ino no possam pesquisar o tema, apenas que meu interesse pelo tema era considerado normal e menos questionado.) tas. Nesse contexto, aparecer na 10s € levar mais uma crianga, para que brincassem juntas, completava a sensagao de apenas uma criando um ambiente agradavel e menos “artific para escrever as observagdes posteriormente, também pareceu acertada para permitir que as pessoas se acostumassem com a minha presenga, E preciso esclarecer aqui que uma mulher sozinha vinda de Sao Paulo eta ao mesmo tempo, também, perturbadora. Na medida em que os valores dominantes. q chocavam com 2 imagem da situagio del ‘numa familia na qual consegui certa intimidade com a mae ea raramente conversava comigo, dando a entender que nao gostava muito de minha presenga. Houve outros casos, como um homem que me conheceu no bar, num contexto em que mens além de mim, rei wo deveria ser uma iam 4 vontade para dizer 0 que pensavam © as vezes precisavam explicar que ali era diferente de Sa0 Paulo, principalmente na hora de expressar opinises, por exemplo, a favor da virgindade para mogas até o casamento. Para entender esse eventual desconforto com a minha presenga, & preciso explorar algumas construgdes de género no “mulher de fam Mulher em Campo 59 explicam a s opinides acerca de mens e mulheres. mas como sexualidade e Montes Claros € outra realidade (Laura) Isso que eu te falei, Montes Claros ainda é muito ruosa. E isso que eu quero te dizer. E a realidade da lade grande, mostra uma realidade, que para 0 indade, eu estou falando com os adolescentes: isso falam os meninos: “tenho que paquerar todas. ‘Mas casar, vou casar com uma menina que & virgem, niio vou casar com uma que jé foi.” Voce acredita? (..) Eu ougo isso dos meni regio, criticando-o, e tentava mostrar 0 quanto gostaria de mudar essa destacava que educava suas filhas de modo diverso a forma qui sido educada em sua familia de origem. Ela OU-se a0S 18 ia querer promover outra opgi0 is, para que elas pudessem ser mais maduras ao se casar, do casamento, No entanto, sentia-se como excegao se comparada maioria das mies de adolescentes e percebia que essa idéia nao era bem aceita na cidade. mentos de se assistir as novelas. Por exemplo, Graga, manicure, casada, mae de quatro filhos, era contida enquanto ‘no impor 0 meu estilo de conversar a pessoas que muitas vezes 60 Heloisa Buarque de Almeida nversam de outras formas: pelos gestos, olhares, sorrisos e até léncios (como mencionei na conversa com Marcela), mas também ido casos aparentemente distantes ou widou para tomar uma cerveja no bar ao lado de sua casa. Como seu marido nfo costumava beber ~ situago bastante atipica se comparada com os outros casais — era no bar que tinhamos conversas mais intimas e “de mulher” Embora muitas vezes os bares, & noite, sejam lugares masculinos, com Graga era um espago de conversa feminina, principalmente pela chance de estar longe dos filhios € do marido, Mas isto se dava sempre num horario em que o bar era ainda familiar ~ mais tarde da noite, ele poderia tomar-se um ambiente exclusivamente masculino, No bar 20 lado de sua casa, Graca (e as vezes alguma de suas amigas) falava do machismo local, das dificuldades no casamento ou na educagio dos filhos, € fazia perguntas muito diretas sobre meu casamento, como meu marido fosse para Montes Claros ete. Essa observa corrente. As pessoas sempre se espantavam quando eu dizia ter um companheiro. Afirmavam que meu marido devia ser muito bom por permitir que eu viajasse a trabalho © que isso s6 podia mesmo acontecer porque eu no tinha Ihos © porque vinha de Sao Paulo — onde tudo é mais moderno, casada e nao tivesse filhos, @ no ser qu assim que por ter um marido que me deixava Por nao ter filhos, por ter coragem de encarar tal trabalho, e por vir de 0 Paulo, eu era categorizada como uma mulher atipica para o contexto. conhecido se comparada as mulheres iagem que algumas pessoas expressavam, Entretanto, cabe ressaltar que conheci muitas mulheres que também nao se encaixavam no modelo tradicional, am 0 estatuto de pessoas diferentes, excegdes & regra, alvo de fofocas e piadas. Era preciso que tivessem alguma Mulher em Campo 61 qualidade que as destacasse para nao ficarem simplesmente mal “marginais” na sociedade so muitas vezes ideai sobre a sociedade em que vive, suas regras sociais, seus padrées, exatamente porque muitas vezes os questionam. Também algumas dessas mulheres, a0 lado de outros grupos fora do padiio hegeménico adolescente rebeldes — formavam grupos especi mesmo u Quase todas as mulheres e varios homens falavam do machismo reinante, ¢ elas ainda lamentavam-se da infidelidade e dos imes ~ dois tragos associ com mais de 40 anos, os como algo negativo por oposigdo entre um aqui tradicional (termo que eles usavam) © um li ‘moderno (Sao Paulo de onde eu vinha, ou a cidade grande da novela) era pardimetro para se discutit questdes de gén novela, e o papel social da tel vivido em Sio Paulo. Por outro a © meu objeto de estudo ja em comparagdo com a televisio € certamente algumas dessas reflexdes foram sendo feitas medida que eu estimulava meus informantes a pensar nesses problemas. A referéncia costumava ser como a familia é mostrada nas cenas de O Rei do Gado, ¢ como em Montes Claros era diverso. Se 0 protagonista da narrativa aceitava a traigao de sua mulher, na vida real, € 0 2 Heloisa Buargque de Almeida De qualquer forma, era a situagdo da pesquisa que promovia essa intensa reflexao sobre o tema, como lembra Rabinow: Quando um antropélogo se insere numa cultura, ele treina as pessoas a objetivarem seu mundo da vida. Em todas as culturas, com certeza, jd existem processos de objetivasdo & reflexdo sobre si mesma Mas essa traduydo consciente explicita para um meio externo é rara. O antropélogo provoca um acréscimo de consciéncia. Assim, a anélise antropolégica deve incorporar dois fatos: primeiro, que nds préprios estamos historicamente situados através das questdes que perguntamos ¢ da maneira que buscamos entender e vivenciar 0 mundo; € segundo, que 0 que recebemos de nosso informantes sto interpretacGes, igualmente mediadas pela histéria e pela cultura. Consegiientemente, os dados que coletamos sao duplamente caso, pela tematica s (relagdes de amor e fai iam para muitas pessoas reflexiio comparativa. As pessoas ja costumavam ter uma reflexio sobre estes temas a partir da comparagiio com a televisio, que era parte de seu cotidiano ha muito tempo. Considerando este universo de mediagdes, é preciso destacar que a propria televisdo € construtora de categorias do género € de sexualidade que estavam sendo pesqu Certamente, minha insisténcia no tema foi 0 que provoco dessas ol (Ponto também demonstrado em outras anilises de recepgao de Mulher em Campo 6 telenovelas). Mesmo qu era 0 caso de O Rei do as formas de relagdes tuniverso dos padres comportamentais de uma cidade grande e na tinham a ver com a reali interior, como Montes Claros. Nessa oposig&o, as variagSes internas ‘cada contexto eram apagadas em nome de uma generalizagao. ‘Ainda que destacassem uma desigualdade, mencionada cor freqtiéncia pelas mulheres (c que era melhor percebida pela compara ), a maioria das mulhere grividas revela). MUDANGA SOCIAL E AS FRONTEIRAS, amb im fora e st na verdade, como vai construgto de género, Mesmo assim, Carlos revela como su educagio era diferente do controle que softiam suas irmas. Ao pass pois duas delas casaram-se grividas e depois se divorciaram Embora revelem ter uma relago mai 64 Heloisa Buarque de Almeida € 0 fato dele querer controlar seus decotes e minissaias, e implicar ‘com sua amizade com rapazes homossexuai Eu era com freqéncia definida pel tuma forma de categorizar como alguém de estava la de passagem e que ao mesmo tempo me permitia maior liberdade. Aproveitando esse diferencial ine ndo 0 escopo da pesquisa ao permanecer as vezes mais tempo com os homens no bar, conversando também mais longamente com alguns deles, especialmente alguns que se tormaram meus amigos, como Carlos. Essa situagdo também aconteceu casualmente — passando ma frente de um bar, al de origem: a palista— amigos. Estas conversas homens, por exemplo, no criavam problemas na medida em que eu também me comportava, a0 mesmo tempo, de modo apropriado ~ nao estava “dando bola” para ninguém, mas ficava no bar, apenas conversando, vendo futebol, tomando uma cerveja, e puxando conversa. Todos comportamentos bem aceitos para mulheres casadas, mas que exigem, de preferéncia, que 0 marido ou um parente esteja por perto, Essas conversas eram reveladoras: os homens também faziam desabafos e revelavam suas angistias, lamentavam —algumas circunstincias da vida e faziam fofocas — estas reveladoras sobre os padres morais, sobre o que era visto como desvio, incluindo terriveis a algumas mulheres consideradas mas. Por no bar até tarde s6 com os rapazes, gerava fofocas desagradav mim) a meu respeito. Carlos contou-me que um ou outro cor Ihe haviam perguntado, com m: poderiam ser apenas amigos — ainda mais considerando a amizade que eu tinha com sua esposa. O professor iversitirio também me avisava para tomar cuidado com a lingua do povo. Ainda que o bar tenha seu horario familiar, de fato, depois de certa hora da noite, ele tornava-se um ambiente masculino e parecia Mulher em Campo 65 que enquanto os homens passavam o tempo na rua, as suas esposas io cada vez mais comuns, mas nem sempre bem Vistas pelos mas velhos. Ser ruira é um adjetivo negativo a uma mulher ‘Alguns trabalhos etnograficos (como vi surpreender a idgia de que a antroy ‘com mais facilidade fazer as passagens para universos masculinos do {que 0s homens pesquisadores. Miguel Vale de Almeida afirma: ‘Agora que a experiéncia de campo jé pertence ao passado, ia de que tudo teria sido mais facil se fosse estrangei em nota na mesma pagina: 6.) em comtextos de forte divs situagdes de contato imer-sex necessariamente 0 srreno relatada por algumas colegas parece indicar que a investigadora & mais facilmente ‘assexuada’ pelo informantes, para nao dizer ‘masculinizada’, 0 que se prende, naturalmente aos esteredtipas de género universo de masculino para feminino (ou vice-versa), de acordo com 0 66 Heloisa Buarque de Almeida a pesquisa © porque ele nem sempre era tio di ‘to exclusivamente masculino, mas pode ser muit outros casos. 86) comenta em sua pesquisa com 05 beduinos que, para ser act ha que ser adotada por uma familia © comportar-se como filha, Naquele contexto, qualquer atitude fora dos padres de comportamento feminino colocaria em cheque a honra da propria familia que a acolhera, mas, por outro lado, nesse universo ddesse ideal de comportamento feminino muito testrito, acesso a certas quesies das conversas masculinas, mas que 0 mesmo nao se daria se fosse um pesquisador do sexo masculino: Minha wndo das mulheres poderia também ser considerada uma limitagéo. No entanto, de muitas ‘maneiras, meu acesso a ambos os mundos era mai equilibrado do que se fosse um homem. Excel raras, pesquisadores do sexo masculino em sociedades em que hi segregacto sexual tém muito i mulheres do que eu tinha aos homens. Meu anfitri com status de clientes eram todos fregitentes ao mundo das mulheres, com os quais eu podia ‘conversar de modo relativamente livre. Ademais, a estrutura de fluxo de informagdes entre o mundo dos homens e das mulheres néio era sir Devido ao padrao hierdrquico, os Iheres, mas 0 ens jovens & de status ‘or informavam suas mies, tias, avds e esposas sobre os negécios da esfera dos homens, enquamo ninguém levava as noticias aos homens adultos. Uma conspiragao de excluia os homens do mundo das mulheres. (1986, p. 23) " Mulher em Campo 67 Vale de Almeida certamente encontrou dificuldade semelhante, um contraponto 4 descrigdo de Abu-Lughod. Mas talvez sua essidade de se tomar mais & vontade devido ao tema de seu trabalho (mase progressivamente, aos olhos os informa considero que & possivel buscar alguns espagos néo marcados pelo género, ou que “ultrapassem” as aparentes fronteiras locais de 0, para conhecer mel pesquisado bora seja importante do pesqi tuma questo. mais comp! sociedades onde a segregagao sex: er, ou seja, ter menor status, facilite 0 trabalho de pesquisa. Em Montes Claros, uma outra construgao de a centralidade da figura feminina e materna nas inclusive sair com criangas pode facilitar a circulagao da antropéloga. jogo de poder o fato de em a desigualdade sao maiores, ser Ruth Landes Ainda assim, a ma caracteri 947) a respeito das ja permanece de que da mulher e da sua Bahi muitas coisas, como por exemplo, a inf trata-se de uma concepgdo de que a mulher & mais forte do que 0 homem. Ser mais forte, no entanto, leva-as a ter uma “carga maior para levar nas eostas”. No discurso de muitas mulheres, ndo & sexo I, mas o forte, o que pode nao ser nada vantajoso. eres fortes e corajosas que muitas ideradas. Esse conceito de forca 1a & ambiguo € leva a dois extremos opostos: por um lado, a Especialmente para ia de que a portante, a que almejam e que explica muitas vezes 0 esforgo no campo do estudo, principalmente das mogas das 68 Heloisa Buargue de Almeida familias de camadas populares. Como uma antropdloga que estava batalhando na profissio eu era bem aceita e até admirada por algumas mulheres nessa categoria de “batalhadora” com a qual muitas se identificavam, além de apontar para os tipos femininos nas novelas. Iho nem sempre se trata de uma profissio especifica, mas um modo de se virar — se muitas mulheres tém profissdes definidas ao longo de toda a vida, principalmente no campo que homens atividade e buscando novas formas de sustentar a fa © mulheres sobrevivem no mercado de trabalhio, muitas vezes no mercado informal. Batalhar € uma linguagem entendida pela maioria das mulheres, quase todas trabalham fora eo sustento familiar depende de seus rendimentos. Note-se que o termo refere-se a uma luta, a luta da vide coditiana, da labué Por isso mesmo, parecia-me marcante a liberdade arte dos homens principal dade, inclusive com a valorizagio da “tradigao” de que a mulher deve se casar virgem. Certamente isso no significa que as res de fato se casem ainda virgens, Mas € nesta esfera da sexualidade, em que a maior desigualdade entre homens e pode ser notada, que surge uma reflexdo e um discurso bastant quanto a televisdo, que estaria rompendo com valores tradicionais, Nota-se no discurso dos espectadores a percepeao de que mudangas de valores em termos de familia ¢ sexualidade se daria pela pelas heroinas independentes e sexualmente ivres das novelas, pelo excesso de cenas de sexo e nudez. 1880 foi mencionado de modo renitente no inicio do trabalho de campo, como uum aspecto ruim da TV, su negativa e perversa — oui como izer alguns Mas ainda que I EXCESSOS este aspecto de liberalizacio de costumes associado a cia pode ser visto como algo 0, pelas pessoas que valorizam essas mudangas como parte da diminuiggo de um machismo tradicional (como era o caso de Fernanda). Algumas dessas mudangas eram entio positivadas ¢ destacadas inclusive nas historias de vida: ga de uma maior separei. (...) Alberto [ex-marido] foi o primeiro homem na ‘minha vida, ele tinha uma seguranca que eu seria mulher dele 0 resto da vida, ele tinha certeza disso, que eu munca teria coragem de separar. Eu sempre fui assim... com ele eu era submissa, Eu nao era muito de discutir com ele niio, porque ele era mi xo. Entéio, para eu nao escutar, ew nao falava. Ele nunca iria esperar que eu tomasse essa Heloisa: Por isso foi tdo dificil a separaciio? Marta: Foi, muito, porque eu queria separar dele quando eu tive a Isadora. Nao consegui separar por causa da familia Heloisa: Sua familia ndio queria que voce separasse? Marta: Nao, ¢ eu era muito nova ve anos, ndo consegui. Emtdo foi por min mesmo, eu “nao adianta que eu nao quero, pronto, acabou. Minha mde nao vai vi minha vida e deixar p ji te € sete, se ‘aos quarenta, eu jé esta eu estava vegetando, Ni com aquela preocupacdo que eu tinha que arrumar iomem, nao é isso. Eu queria me libertar, porque além de tudo, da maneira dele me trqtar, ele era muito ciumento, possessivo, nao deixava eu conversar, ndo deixava e nao deixava eu fazer nada. Ele era conta que sempre trabalhou. Como ja disse, a forca ferinina pode estar no aspecto da luta para mudar a © exemplo a respeito de si que passa da wer que decide 70 Heloisa Buarque de Almeida mas diferentemente de Marcela e quase como uma protagonista da novela, destacava a sua atuagdo e sua escolha individual de campo, comecei a Idade de género e daquilo que formava um retrato um tanto ie a pessoas destacassem € repetissem essa nogaio, sempre se opondo aos contetidos da televisio. Sea tradicao familiar fosse tio poderosa mesmo, nao haveria tantos conflitos, mulheres divorciadas, ou as que se consideravam independentes, nem as essoas que conversavam comigo criticando esses tragos mais conservadores da vida nessa cidade, como Laura. Percebi entiio que a es que levavam a espalha sutilmente pela fofoca ‘Ao mesmo tempo, na novela io da narrativa uma personagem vista como , a situacdo de que ela comeca a apanhar de seu novo marido, um cafajeste (como diziam as espectadoras) que vive as custas do dinheiro dela, gerou muitas discussdes quando assistiamos & novela. A partir destas cenas, muitas mulheres expressavam seu descontentamento, considerando-as como “mau exemplo”, j4 que Léia Mulher em Campo 1 no reagia (1 io). Por outro lado, a partir do caso de Léi comentavam casos de pessoas conhecidas, mutheres que permaneciam numa relagao violenta. Todos que relatavam tais casos em terceira pessoa eram unénimes em criticar tal passividade, em dizer que a ‘mulher no deveria aceitar isso, devia largar do marido, devia reagie. Estaria, portanto, nas méos das mulheres tomar uma atitude para separando-se — imp! Infelizmente, mas também de modo revelador, Marcela nunca conversou sobre 0s personagens Léia e Ralf—a que acompanhassem a novela, niio se sent vontade com a minha presenea. Um certo estranhamento primeira visita, ou nas. primeiras, era considerado normal. Mas algumas pessoas se se ente to incomodadas com minha presenga — por exemplo, ninguém falava nada durante a novela nem durante o comercial, e mesmo pouea conversa depois ~ que eu havia excluido tais grupos de Se minha presenga era to perturbadora (0 motivo, eu ndo saberia dizer) considerei que nao era o melhor contexto para entender, a relago com a televisio com um pouco mais de “ de forma que demonstrasse algo que eu buscava, porque assim os comentirios sobre a novela e a televiséio saiam com mais facilidade e toda uma gama de material sobre o tema da pesquisa ia surgindo aos poucos, de forma crescente a cada visita. Parecia que apenas as fan momentos de grande conflito se sentiam mais a vor minha R Heloisa Buarque de Almeida presenga, mas por outro lado, Marcela por exemplo, insistia para que eu fosse ver a novela com ela. Certamente ela buscava uma amiga, como amiga e confidente — no era tao rara essa expectativa com relagao A minha pessoa, uma vez que essas conversas com as mulheres eram uma fonte importante de dados para minha pesquisa e cu as incentivava. Mas no caso de Marcela surge um tema I de tratar sem parecer confessional demais para reflexdes eu nvio me sentia & vontade perto de seu marido, especialmente dentro da casa dele, Ble tentava ser simpatico e puxar conversa comigo ~ mas eu me sentia desconfortavel e as vezes até com receio. Para entrar num momento de preciso mais do que conquistar @ confianca ‘membros de uma fat simpatia precisava conceito claro ~ talvez seja 0 que alguns autores, como Ral subjetivo, No entanto,¢ uma rela central para um bom trabalho de caso de uma pesquisa que trata de temas sobre iduos, como relagdes f a importincia do rapport apenas com a mpo. Além da simpatia, é preciso lembrar que ha, de fato, algumas situagdes de risco e petigo para a/o pesquisador/a em campo. E preciso lembrar que o trabalho de campo i \imeras situagdes incdmodas ¢ desconfortiveis — sem falar no eventual desconforto fisico, pessoas, mais 4 vontade e desenvolvendointimidade com alguns. Alem yr Mulher em Campo B disso, o trabalho de campo exige também que © pe: pelos informantes, € nio tenha controle o tem) em seus afazeres uisador seja levado itas € inha uma a rede de informantes ¢ uma local. Mesmo assim, algumas dessas s eram ineémodas ou mesmo assustadoras, ¢ geravam “sera que eu deveria estar aqui?”, “o que estou fazeni “serd que eu disse alguma bobagem?”. HA certamente riscos de ordem emoci muito préxima, cuja amizade foi central, sofreu tragédia com a morte repentina de uma mulher exatamente da mi idade, num acidente de carro. O filho dela, um meni bastante de minha pesquisa ficou imersa n de eu mesma al — uma fami eres € com alguns grupos de pessoas ~ como de jovens homossexuais © artistas, algumas pessoas que haviam deles nem sequer assistissem & novela oi conversa revelavam aspectos da sociedade lo m um tanto marginalizados, que explicitavam com maior destaque as regras sociais ~ especialmente através de criticas, como desenvolve Rabinow sobre alguns informantes no Marrocos. "4 Heloisa Buarque de Almeida PASSAGENS, A frase de Guimaraes Rosa que € dita Grande Sertao Veredas (*Mulher & uma gente mu tum conceito comum sobre a dureza e infelicidade maior da vida feminina numa sociedade em que o homem é visto como superior. Rosa refere-se ao sertio, ao espaco masculino dos jagungos e da léncia armada, em que resta pou a mulheres que nao ime remetem & descrigdo que fiz de Marcela acima. Mas isso nao é um dado inescapavel, uma condigao sem saida. Séo construges histéricas es ina, mas que também se transformam nese mesmo cotidiano, como o proprio personagem iadorim, uma mulher mem, revela, Diadorim nao se escapou (como nao poderia) das condigdes sociais violent mesmo espago social masculino. Dentro destas cor entanto, Diadorim ultrapassou a aparente fi se socialmente homem, E uma metafora do que a antropologa pod que fazer em campo. Mas Diadorim era ainda assim uma mulher sofia, ¢ por isso “ele” mesmo dizia a Riobaldo: ir que o lugar liminar, 0 Rabinow fala a respeito do etnégrafo em campo acaba sendo também semelhante a certa liminaridade em termos de género que é ali criada e sem a qual nao seri lar © pesquisar de modo mais amplo. Ambas as, Jo de todas as partes envolvidas — erreflexdo. No Janeiro. Pela aproximagio entre iO € comportamentos das cidades grandes, eu também era entendida e aceita como diferente porque de fora. Mulher “ampo 75 acesso a espagos masculinos; por outro lado, diante das desigualdades intidade feminina se destacava, sendo que € da angistia era muitas vezes o lugar da proximidade com outras mulheres. Nao fui a campo para fazer uma etnografia feminista, mas voltei do campo muito mais feminista em rminhas conviegdes do que eu poderia imaginar. A. postura de tentar ultrapassar os limites do género fa da pesquisadora, como individuo, sua capacidade de famentos baseados em seu proprio género — como fizeram Vale de Almeida ¢ Abu-Lughod citados ‘As mulheres que me tomavam como confidente revelavam historias quase secretas de suas vidas, suas an; . talvez, estivessem aproveitando a oportunidade para falar, a chance de ter alguém que quisesse ouvir e discutir seus problemas. Estas situages me expunham ao softimento e as dificuldades cotidianas, com 0s quis, pesquisa como & minha sobrevivéncia emocional durante 0 periodo. ‘No entanto, seria impossivel esquecer de outras diferengas © desigualdades nesse encontro. Por um lado, a diferenga entre ser a pesquisadora e ter uma visdo mais geral do trabalho, com a chance de sait diferengas de ck de raga e também de contextos 10s, Ser “de fora” era, muitas vezes, um grande alivio, e Fernanda rcebia isso quando estava se despedindo de mim: Held, agora vocé vai embora, Vai voltar para Sao Paulo, escrever a sua tese, e vai esquecer da gente. E a gente vai sempre falar em vocé, nas conversas, vamos lembrar de 1ac6. Mas vocé vai esquecer da gente. De fato, vim embora ¢ a sua realidade nao faz. mesmo parte de Mas mal sabe ela que a marca deixada por aquela 6 Heloisa Buarque de Almeida porque ¢ relembrando os acontecidos em Montes Claros que escrevo a tese. Voltar do trabalho de campo toma a pesquisadora mais segura, sem diivida, porque finalmente a experiéncia tradicional do campo me constituiu como antropéloga. Ainda mais, como lembram quase todos 08 autores que citei aqui, ha mesmo uma constituigao interna, da vida Pessoal, que se modifica com essa experiéncia, mente na hora em que escrevo a tese e revejo varios acontecimentos que assisti ¢ vivi no periodo em questo, percebo que a experiéncia de Montes Claros ainda néo sai do pensamento. A sensagao de esquecimento de Fernanda, entretanto, tem muito sentido = basta atentar para o que 0 processo da escrita académica faz com a “vida vivida” que observamos. Na hora de escrever sobre as pessoas € suas vidas, tanto disso fica diminuido, tanta vida (e morte) desaparece diante dos problemas e questdes tedricas, da erescente bibliografia, do arranjo légico de um argumento, um texto, uma tese. NOTAS, ' Tratava-se do projeto “ Social da Televisio sobre 0 Compor- tamento Reprodut ‘no qual eu me inseri como pesquisadora do Esta pesquisa contou com profissionais das areas de antropologia, demografia e comunicagdo de varias instituigdes (Cebrap, USP, UFMG © Universidade do Texas), foi financiada pelas fundagdes Hewlett, MacArthur ¢ Rockefeller, ¢ contém vérias outras etapas, 'm de trés etnografias de recepgdo realizadas em Montes Claros, So Paulo © Macambira (nome ficticio de uma pequena cidade de 2 mil habitantes no serio do Rio Grande do Norte). Agradego aos participantes do. projeto. Durante essa pesquisa de campo, elaborei meu projeto de doutoramento que visa discutir género, televisio © consumo, pensando diferentes esferas — 0 30 da producdo comercial da televisao, por um lado, e a recepcao da a ficcional, por outro. © doutoramento conta com 0 apoio dla FAPESP. = Fundagio de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo. Azradego a Guita in Debert os comentitios ea discussao sobre este artigo, * Por exemplo, & 0 caso relevantes, mas Sem levar és se dia recepgao: AN autores cujas referéncias tedricas. parecem as conseqiéncias o contexto social em que Watching Dallas: soap opera and the Mulher em Campo 7 ‘melodramatic imagination London: Routledge, 1985: varios ensaios BROWN, Mary Ellen (Ed.). Television and Women's Culture: the polities of the popular. London: SAGE, 1990; artigos em LULL, James (Ed.). Inside Family Viewing: ethnographic research on television's audiences. London: Routledge, Television - cultural power and domestic leisure. London: Routledge, 1993 (1986); SEITER, Ellen et al Remote Control: Television, audiences and cultural power. London and New York: Routledge, 1989. Os trabalhos brasileicas que realizam com maior Profundidade a emografia de recepelo, por exemplo, so 0s de LEAL Ondina Fachel. 4 Leitura s etrOpolis: Vozes, 1986 s. Mulher de novela e mulher de verdade. Rio de * “Muther é uma gente muito infeliz” & uma frase de Diadorim em Grande Sertao: Veredas. Agradego a Aline Mendonga por chamar a minha atengao quanto a esta frase e a outras mengdes & obra de Guimaries Rosa. Agradeso mais ainda a todos de Montes Claros que permitiram essa pesquisa, que partilharam de suas vidas e intimidade com “Cr. por exemplo, BRIGGS, Jean. “Kapluna Daughter", CODERE, Helen. Idwork in Rwanda, 1959-1960", FREEDMAN, Diane. “Wife, Widow, Transylvanian village", GOLDE, WEIDMAN, Hazel H. “On Ambivalence " NADER, Laura, “From Anguish to Exultation”, todos em GOLDE, Peggy (ed.). Women in The Field: anthropological experiences. Berkeley: University of California Press, 1986 (1970). * Outras etnografias, as vezes definidas como feministas, ou mesmo textos considerados literirios e de fiego inspiram este trabalho ¢ tocam em temas semelhantes, além de trabalhos que discutem especificamente questdes tedrico-metodolégicas quanto & etnografia, CE. R, Ruth. Translated Women. Boston: Beacon Press, 1993 e The Vulnerable Observer. Boston: Beacon Press, 1996; BOWEN, Elenore Smith. Return to Laughter. New York: Doubleday Anchor, 1964; CAL experience: gender Okely, Anthropology and Autobiography: CLIFFORD, Jam Jeorge. Writing Culture: The ss of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986: Critique of Anthropology (Special Issue on Women Writing Culture). vol. 13, n. 4, December, 1993; GEERTZ, Clifford. Works and Lives: the anthropologist as author. Stanford: Stanford University. Press, 8 Heloisa Buarque de Almeida MEAD, Margaret. Coming of Age in Samoa, New York: Morrow 1961 (1928); SHOSTAK, Marjorie. Nisa: The Life and Words of a 'Kung Woman. New York: Vintage Books, 1983; VISWESWARAN, Kamala, Fictions of Feminist Ethnography. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994, © ‘Teresa De Lauretis, em seus trabalhos recentes, com base em uma Perspectiva foucaultiana, eneara as concepgdes de género construidas em varias esferas da vida cotidiana (inclusive na midia e seus textos) como “Teenologias do Género” (1994). Cf. mais sobre género em diferentes Pesquisas em STRATHERN, Marilyn and MacCORMACK, Carol. Nature, Culture and Gender. Cambridge: Cambridge University Press, Cf. mais sobre as questdes que Ruth Landes enfrentou no trabalho de campo em HEALEY, Mark. “Os desencontros da tradigio em Cidades das Mulheres: raga e génery na etnografia de Ruth Landes". Cadernos Pagu, ‘Campinas, n, 6/7, 1996, p.153-199, * Novela das oito da Rede Globo que foi objeto central da andlise de ecepeio. Exibida entre Junho de 1996 e Fevereiro de 1997, foi escrita por Benedito Rui Barbosa, ° Gutmann (GUTTMAN, Matthew. The Meanings of Macho: Being a man in Mexico City. Berkeley: University of California Press, 1996), que em seu trabalho de campo viajou com sua familia, comenta que a presenga de sua filha, ainda bem pequena, tomou-se um meio de acesso conversa sobre Daternidade (um dos seus temas de estudo). No entanto, ele néo explora todas as conseqiiént da atuagao de sua filha e de sua espasa no bairro ‘em que faz sua pesquisa sobre masculinidade. centers a culture, he trains people to objectify m. Within all cultures, of course, there is already objectification and self-reflection. But this explicit self-conscious translation into an external medium is rare. The anthropologist creates a doubling of consciousness. Therefore, anthropologi is must incorporate two facts: first, that we ourselves are historically situated through the questions ‘we ask and the manner jn which we seek to understand and experience the world; and second, that what we receive from our informants are interpretations, equally mediated by history and culture. Consequently, the data we collect is doubly mediated, first by our own presence and then by the second-order self-reflection we demand from our informants.” (1977, p. 119) ‘My concentration in the woman’s world might also be considered a imitation. In many ways, however, my access {0 both worlds was more Mulher em Campo 9 balanced than a man’s would have been. Except in rare instances, male researches in sex-segregated societies have far less access to women than Thad to men. Not only was my host an extremely articulate and generous informant about himself and his culture, but his younger brother, sons and nephews, and the client-status men were all frequent visitors in the world with whom [ could speak relatively freely. Furthermore, of information flow between the men’s and women’s worl ‘was not symmetrical. Because of the pattern of hierarchy, men spoke fone another in the presence of women, but the reverse was not true. In addition, young and low-status men informed mothers, aunts and grandmothers, and (for the latter) wives about men’s affairs, whereas no fone brought news to the adult men, A conspiracy of silence excluded men from the women’s world.” (1986, p. 23) tnicipais, um desses casos aconteceu enquanto I, que havia jogado um ovo num dos candidatos perdo ao candidato diante das cimaras de televisd0, apareceu afogado num rio nas redondezas. Todo mundo desconfiava que nto fosse nenhum “acidente”. No entanto, cabe destacar que a violencia eleitoral era muito maior nas cidades pequenas da regio, do que em Montes Claros. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS, ABU-LUGHOD, Lila. Veiled Sentiments: honor and poetry in a bedouin society. Berkeley: University of California Press, 1986. BRIGGS, Jean. Kapluna Daughter In: GOLDE, Peggy (Ed.). Women in The Field: anthropological experiences. Berkeley: University of California Press, 1986. CODERE, Helen. Fieldwork in Rwanda, 1959-1960 In: GOLDE, Pegey (Ed The Field: anthropological experiences. Berkeley: University of California Press, 1986. DE LAURETIS, Teresa. A Tecnologia do Género. In: HOLLANDA,

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