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capitulo 3 Ciclo de politicas ptiblicas O processo de elaboragao de politicas publicas (policy-making process) tam- bém € conhecido como ciclo de politicas piblicas (policy cycle). O ciclo de Politicas publicas é um esquema de visualizacao e interpretagao que organiza a vida de uma politica pablica em fases sequenciais e interdependentes. Apesar de varias vers6es jé desenvolvidas para visualizacao do ciclo de po- liticas publicas, restringimos 0 modelo as sete fases principais: 1) identifica- a0 do problema, 2) formacdio da agenda, 3) formulacaio de alternativas, 4) tomada de decisiio, 5) implementagao, 6) avaliac&o, 7) extingdo. Identificagio | problema Extingo \ Formagaio da =F agenda Avaliagao. Fels i —! = alternativas Implementacao Tomada de deci " Figura 3.4 - Ciclo de politicas piblicas, Apesar de sua utilidade heuristica, 0 ciclo de politicas ptiblicas raramente reflete a real dinamica ou vida de uma politica publica. As fases geralmente se apresentam misturadas, as sequéncias se alternam. Wildavsky (1979), por 34 Politicas publicas exemplo, sustenta que em alguns contextos a identificagao do problema esta mais relacionada ao fim do processo do que ao inicio, e as fases de avaliacao geralmente acontecem antes do escrutinio do problema. Cohen, March e Ol- sen (1972) elaboraram o “modelo da lata do lixo” para descrever que solu- goes muitas vezes nascem antes dos problemas. Alguns académicos afirmam que nao hé um ponto de inicio e um ponto de finalizacao de uma politica pu- blica, e que 0 processo de politica publica é incerto, e as fronteiras entre as fases nao sao nitidas. Apesar de todas essas ponderacées, 0 ciclo de politicas ptiblicas tem uma grande utilidade: ajuda a organizar as ideias, faz que a complexidade de uma politica publica seja simplificada e ajuda politicos, administradores e pes- quisadores a criar um referencial comparativo para casos heterogéneos. Veremos, a seguir, cada uma das fases do ciclo de politica publica sepa- radamente. 3.1 Identificagado do problema Um problema é a discrepancia entre o status quo e uma situagio ideal possi- vel. Um problema ptiblico é a diferenga entre o que é e aquilo que se gostaria que fosse a realidade ptiblica. Um problema ptiblico pode aparecer subita- mente, por exemplo, uma catastrofe natural que afete a vida de pessoas de determinada regido. Um problema piiblico também pode ganhar importncia a0s poucos, como o congestionamento nas cidades ou a progressiva buro- cratizacéo de procedimentos e servicos ptiblicos. Um problema ptiblico pode estar presente por muito tempo, mas nao receber suficiente ateng&o porque a coletividade aprendeu a conviver com ele, como o caso da favelizacdo das periferias das grandes cidades. Um problema nem sempre é reflexo da deterioracéo de uma situagao de determinado contexto, mas sim de melhora da situacao em outro contexto. Por exemplo, a falta de acesso pavimentado de um pequeno municipio & ma- Iha vidria estadual passa a ser percebida como um problema relevante a par- tir do momento em que o municipio vizinho é contemplado com esse tipo de obra. As vezes, se meu vizinho compra um carro novo, eu comego a perce- ber meu carro como velho. ‘A lata do lixo serve como metafora da anarquia decisoria nas organizagdes. Segundo Cohen, March e Olsen (1972), as organizagdes produzem muitos problemas e muitas so- lugGes para esses problemas. Intimeros problemas e solugdes sio descartados diaria- mente em uma lata de lixo. Os tomadores de decisdo recorrem a essa lata de lixo quando necessitam combinar salugdes a problemas. Ciclo de politicas pablicas 38 Para Sjdblom (1984), a identificagao do problema publico envolve: + apercepgao do problema: um problema piiblico nao existe sendo na ca- bega das pessoas. Um problema publico, portanto, é um conceito sub- jetivo ou, melhor ainda, intersubjetivo. Uma situacaio publica passa a ser insatisfatoria a partir do momento em que afeta a percep¢ao de muitos atores relevantes. + adefinigao ou delimitagao do problema: a delimitacao do problema envolve definir quais so seus elementos, e sintetizar em uma frase a esséncia do mesmo. No momento de delimitagao de um problema também so criados os norteadores para as definigdes do conjunto de causas, solucées, cul- pados, obstaculos, avaliagdes. Exatamente por isso a delimitacdo de um problema publico é politicamente crucial no processo de elaboracdo de uma politica publica. Ha de se destacar, no entanto, que qualquer defini- Gao oficial do problema é temporaria. Nas fases sucessivas de formulacao das alternativas e, principalmente, na implementacao, os problemas pt- blicos sao redefinidos e adaptados por politicos, burocratas, e os préprios destinatarios da politica puiblica. + aavaliacao da possibilidade de resolugao: costuma-se dizer que um pro- blema sem solucao nao é urn problema. # claro que nem sempre as poli- ticas ptiblicas sao elaboradas para resolver completamente um problema, e sim apenas para mitigé-lo ou diminuir suas consequéncias negativas. No entanto, dificilmente um problema € identificado socialmente se nao apresenta potencial de solugao. Os partidos politicos, os agentes politicos e as organizacdes nao gover- namentais sao alguns dos atores que se preocupam constantemente em identificar problemas publicos. Do ponto de vista racional, esses atores enca- rar o problema ptblico como matéria-prima de trabalho. Um politico encontra nos problemas publicos uma oportunidade para demonstrar seu trabalho ou, ainda, uma justificativa para a sua existéncia. A partir do momento em que uma espécie da fauna entra em extincao, e isso vem a conhecimento publico, surge a oportunidade de criagéo de uma entidade de defesa daquela espécie. A partir do momento em que um produto importado comega a atrapalhar um setor industrial, surge a oportunidade politica de defender os interesses desse setor industrial. Se um problema é identificado por algum ator politico, e esse ator tem interesse na resolugio de tal problema, este poder entao lutar para que tal problema entre na lista de prioridades de atuagao. Essa lista de prioridades € conhecida como agenda. 36 Politicas puiblicas 3.2 Formagao da agenda Aagenda é um conjunto de problemas ou temas entendidos como relevantes, Ela pode tomar forma de um programa de governo, um planejamento orga- mentério, um estatuto partidario ou, ainda, de uma simples lista de assuntos que 0 comité editorial de um jornal entende como importante (Secchi, 2006). De acordo com Cobb e Elder (1983), existern dois tipos de agenda: * agenda politica: conjunto de problemas ou temas que a comunidade politica percebe como merecedor de intervengao publica; * agenda formal: também conhecida como agenda institucional, é aquela que elenca os problemas ou temas que o poder ptiblico j4 decidiu enfrentar. Existe, ainda, a agenda da midia, ou seja, a lista de problemas que recebe atengao especial dos diversos meios de cormunicagao. O poder que a midia possui sobre a opiniao piiblica 6 tamanho que, nao raras vezes, a agenda da midia condiciona as agendas politicas e institucionais. Os problemas entram e saem das agendas. Eles ganham notoriedade e relevancia, e depois desinflam. Como destaca Subirats (1989), a limitagao de re- cursos humanos, financeiros, materiais, a falta de tempo, a falta de vontade po- Iitica ou a falta de pressio popular podem fazer que alguns problemas nao per- manegam por muito tempo, ou nem consigam entrar nas agendas. As agendas listam prioridades de atuacao, e como ja dizia um ex-candidato A Presidéncia da Republica do Brasil: “a maior dificuldade para o politico nao 6 estabelecer quais sero as prioridades. A maior dificuldade é ordenar as prioridades”. Segundo Cobb e Elder (1983), existem trés condigdes para que um pro- blema entre na agenda politica: + atengdo: diferentes atores (cidadaos, grupos de interesse, midia etc.) de- vem entender a situacao como merecedora de intervencao; + resolubilidade: as possiveis agdes devem ser consideradas necessarias e factiveis; * competéncia: o problema deve tocar responsabilidades puiblicas, Geralmente, quando académicos ou jornalistas mencionam “agenda”, eles se referem & agenda formal. 3.3 Formulagdo de alternativas A partir da introdugao do problema na agenda, os esforcos de construgao e combinagao de solugées para os problemas so cruciais. Idealmente, a for- Ciclo de politicas piblicas 37 mulacao de solugdes passa pelo estabelecimento de objetivos e estratégias e o estudo das potenciais consequéncias de cada alternativa de solugao. De acordo com Schattschneider (1960, p. 68), “a definicdo das alternati- vas € o instrumento supremo de poder, porque a definicao de alternativas é a escolha dos conflitos, e a escolha dos conflitos aloca poder”. A formulagao de alternativas de solugdo se desenvolve por meio de es- crutinios formais ou informais das consequéncias do problema, e dos poten- ciais custos e beneficios de cada alternativa dispontvel. O estabelecimento de objetivos é 0 momento em que politicos, analistas de politicas publicas e demais atores envolvidos no processo resumem 0 que esperam que sejam os resultados da politica ptiblica. Os objetivos podem ser estabelecidos de maneira mais frouxa (por exemplo, melhorar a assisténcia social do municipio, diminuir o nivel de desemprego) ou de maneira mais con- creta (por exemplo, reduzir em 20% o mimero de sequestros, no municipio X, nos préximos seis meses). Quanto mais concretos forem os objetivos, mais facil serd verificar a eficdcia da politica piblica. No entanto, sabemos que em muitas ocasides o estabelecimento de metas é tecnicamente dificultoso, como Nos casos em que resultados quantitativos da politica publica nao con- seguem mensurar elementos qualitativos mais importantes. O estabelecimento de metas também pode ser politicamente indesejavel, como nos casos em que as probabilidades de sucesso so baixas e a frustragao de metas traria prejuf- zos administrativos e politicos insuportaveis. Nao obstante, o estabelecimento de objetivos ¢ importante para nortear a construcdo de alternativas e as pos- teriores fases de tomada de decisao, implementagiio e avaliacao de eficdcia das politicas ptiblicas. A etapa de construgao de alternativas é 0 momento em que sio elabora- dos métodos, programas, estratégias ou agdes que poderao alcangar os ob- jetivos estabelecidos. Um mesmo objetivo pode ser aleancado de varias for- mas, por diversos caminhos. Exemplo: Alternativas para enfrentar a pichagao nas grandes cidades Pensemos no problema da pichacao de muros e paredes em espacos ptiblicos das grandes ci- dades. Se o objetivo é a redugio das pichagdes ou o desconforto visual causado pelas picha- Oes, 0 policymaker pode construir estratégias totalmente diferentes: a) criar leis mais severas Para os infratores; b) garantir que as leis vigentes sejam efetivamente respeitadas e aplicar pu- nigdes do estilo tolerancia zero; c) instalar mais cameras de vigilancia; d) fazer campanhas de conscientizagao junto a comunidade pichadora; e) desenvolver mecanismos de recompensa ma- terial para delatores; f) criar espagos propicios para que os pichadores possam expressar-se; 8) criar escolas de conversdo artistica dos pichadores; h) destinar verba piblica continua para 2"Tradugao livre a partir do original em inglés. 38 Politicas ptiblicas @ recuperacao constante de muros e paredes; i) revestir todos os iméveis ou muros com uma tinta especial nao aderente aos aerossdis comercializados atualmente, Esse mesmo problema pode ser definido de forma inversa: j) a pichagao é uma arte, e 0 pro- blema estd na falta de sensibilidade artistica da populagao. Nesse caso, a alternativa seria fa- zer campanhas de conscientizagao para que a Populacdo passasse a perceber a pichagdo como uma arte de vanguarda. Para que cada uma dessas alternativas nasca, faz-se necessario um esforgo de inspiragao e, posteriormente, de imaginacdo dos contornos e detalhes pra- ticos da proposta. Cada uma das alternativas vai requerer diferentes recur- sos técnicos, humanos, materiais e financeiros. Cada ‘uma das alternativas ter. chances diferentes de ser eficaz. O policymaker tem a disposigao quatro mecanismos para indugao de com- portamento:? 1, Premiac&o: influenciar comportamento com estimulos positivos, como no caso das alternativas e, f e g do exemplo anterior. 2. Coergao: influenciar comportamento com estimulos negativos, como no caso das alternativas a e b do exemplo dado. 3. Conscientizagao: influenciar comportamento por meio da construcao e apelo ao senso de dever moral, como nas alternativas d ej do exemplo an- terior. 4, Solugdes técnicas: nao influenciar comportamento diretamente, mas sim aplicar solugées praticas que venham a influenciar comportamento de forma indireta, como nos casos das alternativas c, he ido exemplo dado. Cada um desses mecanismos também tem implicagGes nos custos de ela- boracao da politica e nos tempos requeridos para perceber efeitos praticos so- bre os comportamentos. Alguns mecanismos sio mais Propicios em certas si- tuagGes e desastrosos em outras. Usar mecanismo de premiacao para a coleta seletiva de lixo ou para a economia de energia elétrica pode se demonstrar efi- caz. Jé uma politica priblica que se baseia na conscientizacao como mecanismo para a reducio da criminalidade pode se revelar absolutamente frustrante. A avaliagio ex ante das posstveis solugdes para o problema ptiblico é um trabalho de investigac3o sobre as consequéncias € os custos das alternativas. Os especialistas e pessoas que possuem competéncia técnica para abordar o problema em questo s&éo muito importantes nessa etapa. Nessa fase de * A base desses mecanismos so as trés formas de poder: poder econémico, poder poli- tico e poder ideolégico (Bobbio, 2002). As solugées técnicas potencializam os trés meca- nismos anteriores. Ciclo de politicas ptiblicas 39 comparagao das alternativas, a manutenc&o do status quo também é colocada como uma das possiveis opgées. Esse trabalho pode ser feito com o suporte de trés técnicas (Dunn, 1993): + Projegdes: prognésticos que se baseiam na prospeccao de tendéncias presentes ou historicamente identificadas, a partir de dados apresentados em forma de séries temporais. As projecées sfio eminentemente empitico- -indutivas, ou seja, baseiam-se em fatos passados ou atuais experimen- tados em dado setor de politica ptiblica ou entre setores similares. Esse trabalho depende de fontes seguras de informag6es quantitativas e qua- litativas, tais como tendéncias de crescimento populacional, tendéncias de crescimento econémico, tendéncias na arrecadacio tributaria, varia- GOes no indice de desenvolvimento humano (IDH) ete. + Predic6es: baseiam-se na aceitaciio de teorias, proposicdes ou analogias, e tentam prever as consequéncias das diferentes politicas. Esse trabalho € eminentemente teérico-dedutivo, ou seja, parte de axiomas ou pressu- postos jé consolidados para tentar “prever” resultados, comportamentos, efeitos econdmicos. Dentre os métodos disponiveis para realizar predigdes estao a teoria dos jogos, o método Delphi, as estimativas de eficiéncia eco- nomica (input versus output), a programacao linear, a andlise de cor- relacoes e regressoes estatisticas, a estimaciio de parametros, as arvores de decisao. + Conjecturas: sao juizos de valor criados a partir de aspectos intuitivos ou emocionais dos policymakers. Bssa técnica, por ser intuitiva, geralmente se baseia no conhecimento de street level bureaucrats, profissionais que atuam na linha de frente e que ja tém experiéncia suficiente para entender as nuangas de dada area de politica publica. Reunides, debates e f6runs sao os meios mais utilizados para a realizacdo de conjecturas. Exemplos de fer- ramenta mais estruturada de elaboracaio de conjecturas sao a andlise mul- ticritério e o chamado brainstorming, ou tempestade de ideias. A disponibilidade de técnicas para construgdo e avaliagao ex ante de al- ternativas é notéria, como também sio notdrios os custos e as dificuldades para a realizacao desse tipo de tarefa. Projecées, predicdes e conjecturas so utilizadas para conseguir melhor aproximagéo dos acontecimentos do futuro por meio de um carinho menos adivinhatério ou baseado na sorte. Alguns dos maiores problemas para todo esse esforco sao a instabilidade e comple- xidade das condi¢oes sociais que dificultam qualquer trabalho de previsao, a falta de informagées atualizadas, consistentes e confidveis, e a falta de re- cursos financeiros e ternpo para a realizacdo de estudos mais elaborados. Por conta desses obstaculos, as conjecturas nao estruturadas acabam sendo a técnica largamente utilizada quando nao estéo disponiveis sufi-

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