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CARLO GINZBURG Olhos de madeira Nove reflexdes sobre a distiincia Tiadusio Eduardo Brandao 2 renmpredo men PETRA Copyright © 998by Carl Gincburg/ Giangiacomo Feltrinell Eitore, Milano Tul original| Occhisccdilegno—Noveriflessoni sulla distanes Capa Too Baptista da Costa Aguiar sole deta de A cei rn Ens, eos tela de Caravaggio. (National Gallery, Londees) Indiceonoméstco Carla A.dosSantos Preparagio Jose Feria {Cauda Catarn Rovio Carlos Abert nada Isabel Jorge Cary Dads Inc de ag ne abn (o) Ind pr cy tenn {20011 “Todosos diritos dest edicoreservados’ ‘Rua Bandera Palista70ac.2 ‘432-002 — Sto Paulo— st “THlefone(11)3846-0801 Fax) 3846-0814 ‘nw.companhiadasietras.combr aAmos Funkenstein Pirra e seus descendentes (Koi todg && anbt@v yeveoAoyEtv), observou ironicamente que as “genealogias” gregas eram pouco mais do que“contos de crianga” (nariSeov [...] #O8v)."” A identi ficagao entre mito e genealogia chega a Boccaccio, que recolheria a exposigdo dos mitos da Antigtiidade sob o titulo Genealogia deo- ‘rum gentilium. Arist6teles, para quem (Poética, 1455b) 0 autor de ‘uma tragédia s6 deveria inserir os nomes das personagens apés ter elaborado a trama, parece sugerir o contrétio.™ Mas essa afirma- <0 € contradita por outro trecho da Poética (1453a), em que Ai 16teles registra que as tragédias passaram a girar sempre em torno dos mesmos nomes e das mesmas familias. “Basta pronunciar 0 nome de Edipo que todo o resto ja se sabe”, escreve Ateneu, citando as palavras do comedidgrafo Antifanes, “seu pai Laio, sua mae Jocasta, os fills e as filhas, o que acontecer com ele, o que fez. O mesmo se da com Alcméon: basta nomeé-lo, ¢ as criangas logo dizem que, enlouque lo, matoua mae?” Os nomes, verdadeiros microcontos,* resumiam os mitos, fornecendo ao grupo partici- pante um poderoso instrumento de identificagao que excluia 0 estranho: uma fungdo desenvolvida paralelamente pelas genealo- sgias nao miticas, O nome isolado, “nem verdadeiro nem falso”, a que Arist6te- lesassociou o verbo isolado, 60 nticleo do mito.""“A filha de Minos ‘ede Pasifae’,o tinico verso que o esnobismo parnasiano de Bloch (0 amigo do narrador da Recherche) salvava em toda a obra de Racine, porque tinha o mérito de “nao significar absolutamente nada’, é, de todos os versos de Pheédre, o mais denso de contetido nftico."* © mito é, por definigao, um conto que jé foi contado, um. conto que ja se conhece. 8 3. Representac¢ao A palavra, a idéia, a coisa 1. Nas ciéncias humanas fala-se muito, e ha muito tempo, de “representagio’, algo que se deve, sem diivida, a ambigitidade do termo, Por um lado, a “representagao” faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a auséncia; por outro, torna visivel a realidade representada e, portanto, sugere a presenga. Masa con- traposigao poderia ser facilmente invertida: no primeiro caso, a representagao é presente, ainda que como sucedaneo; no segundo, claacaba remetendo, por contraste,a realidadeausente que preten- de representar.' Nao entrarei nesse aborrecido jogo de espelhos. Basta-me fazer entender o que, em tempos recentes, os criticos do positivismo, os pés-modernistas céticos, os cultores da metafisica da auséncia, volta e meia encontraram no termo “representaca0”? A oscilagdo entre substituigao e evocagao mimética jé esta registrada, como observou Roger Chartier, no verbete représenta- tion do Dictionnaire universelde Furetiere (1690). Nele, sio citados tanto os manequins de cera, madeira ou couro que eram deposita- dos sobre o catafalco real durante os funerais dos soberanos fran- 85 ceses ¢ ingleses como o leito finebre vazio e coberto com um len- {gol mortuario que mais antigamente “representava” 0 soberano defunto. A vontade mimética presente no primeiro caso estava ausente no segundo; mas em ambos se falava de “representacoes” Partamos daqui. 2.0 testemunho maisantigo de um catafalco vario num fune- ral régio remonta a 1291, Nesse ano, informa-nos um documento conservado nos arquivos de Barcelona, os sarracenos que viviam nna cidade aragonesa de Daroca atacaram os judeus agrupados em toro de um esquife “que estava ali representando [int representa tionem)” Afonso,osoberano que acabara de morte.’ Jaa utiliza- gio do manequim nos funerais dos reis é bem mais tardia: na Inglaterra, remonta a 1327 (quando da morte de Eduardo 1); na Franga,a 1422 (quando da morte de Carlos vi) Desses manequins — objetos frageis, destinados a um uso efémero— pouquissimos restaram, quase sempre grosseiramente restaurados.* Ernst Kantorowicz sustentou queo manequim exibido nos fu- nerais dos soberanos ingleses e franceses ao lado do cadaver exprimia de forma palpavel ateoria juridica do duplo corpo do rei De um lado, o manequim, 0 corpo eterno do rei, associado a uma instituigao publica (dignitas); de outro, o cadaver, o corpo efemero do soberano como individuo.* A demonstragao é convincente, ainda que seja forgoso recordar que, pelo menos na Franca, 0 cos- tume de exibir nos funerais uma efigie do defunto, chamada preci- samente de representacion, nao se limitava aos soberanos.’ Mas como surgiu ohabito deexibirambos? Segundo Ralph Gieseyado- tou-se o manequim como “substituto do corpo” por motivos de ordem pratica: as técnicas de embalsamamento se encontravam, ‘to pouco evoluidas que, se nao se quisesse expor um cadaver semi- putrefato, era preciso recorrera um manequim de madeira, couro ou cera." Trata-se, no entanto, de uma explicagéo pouco convin- 86 cente. Teria sido possivel recorrer ao catafalco fiinebre coberto com um engol mortuario: uma alternativa baseada numa evocagao nao nimética, ¢ consagrada pela tradi¢ao,’ Jé em Londres, em 1327, d de ligno ad similitudinem dicti domini Regis, uma imagem de madeira que se parecesse com o rei morto, Eduardo 1, Por qué? E. or que essa inovacao seria adotada na Franga um século depois, prolongando-se por tanto tempo em ambos os reinos?” {diu-se pagar um artesio para que fizesse quandam ymaginem Falei de “inovacao’, termo talver ilegitimo. As imagens de cera utilizadas durante os funerais dos imperadores romanos nos séculos 11 e 11 eram muito semelhantes — notou Julius von Schlosser —aquelas de cera, madeira ou couro dos reis franceses igleses exibidas em circunstinciasandlogas um milénio depois. Devemos supor uma filiagdo ou uma redescober'a espontinea? Schlosser inclinava-se paraa primeira hipétese, se bem que os tes- temunhos de tal continuidade sejam mirrados." Pela segunda hi- sey. Ele nao nega as semelhangas (sobre as quais voltarei em breve) entre os funerais dos res franceses e ingleses eos dos imperadores p6tese pronunciaram-se outros historiadores, entre eles romanos; mas a comparagao entre ritos pertencentes a culturas tao distantesentressilhe pareceu “facil, porém estéril” deum ponto de vista historico.” Eacrescentou:“Do ponto de vista da antropo- logia cultural, as semelhangas sao estimulantes, mas as conexdes historicas sao frigeis™” Stese que orienta estas paginas ¢ exatemente oposta. Procurarei demonstrar que as semelhangas transcalturais podem ajudara compreender a especificidade dos fendmenos de que par- tiram. £ um caminho laborioso, que demanda uma quantidade significativa de vaivéns espaciais e temporais. Os manequins dos reisfranceses eingleses servirdo de ponto de referencia. 3.0 proprio Giesey revela ter partido, por sugesto de seu mestre Kantorowic7, claro, do ensaio de Elias Bickerman sobre a apoteose dos imperadores romanos (1929).""Em paginas brilhan- icas vigorosas, Bickerman analisou os ritos tes, que suscitaram da consecratio, baseada em uma dupla incineragio: a do corpo do imperador e, dias depois, a da sua imagem de cera. Gragas a esse furtus imaginarium a esses “fanerais da imagem’, o imperador, ‘que a havia abandonado seus despojos mortais, era recebido entre 6 deuses. Bickerman salientava exatamente as analogias entre cesses ritos e os fendmenos ingles ¢ francés da Idade Média tardias, ‘numa nota, também aludia aos ritos funerdrios estudados por Frazer. Aparentemente, escapou-lhe a “Contribuigao para um estudo sobre representagao coletiva da morte” que Robert Hertz havia publicado em Année sociologique (1907)."" Eno entanto, no fim do primeiro parigrafo do ensaio de Bicker man podemos ler ‘uma afirmagao que poderia ter sido subscrita por Hertz: nao constitui o fim da vida do corpo no mundo: nao é fato biol6- ‘gico, mas oato social —os funerais —que separa os que se vao dos, que ficam’." O espléndido ensaio de Hertz investiga, numa pers- pectivabastanteampla,oritododuplosepultamento.estudado por Bickerman no contexto romano, Hertz mostra que a morte, toda morte, é um acontecimento traumético para a comunidade: uma verdadeira crise, que pode ser dominada mediante a adocao de ento biolégico num processo ritos que transformam 0 acont social, controlando passagem do cadaver putrescente (objeto ins- tavel eameacador por exceléncia) a esqueleto. Entre esses ritos esta co sepultamento provis6rio ou, em outras culturas, a mumificacao a cremagao, as vezes combinadas: solugdes especificas, segundo Hertz, de um problema extremamente difuso.” Na Roma dos Antoninos, assim como na Inglaterra ena Franga do Quatrocentos edo Quinhentos, os funerais do corpo dos imperadores ¢ dos reis, ‘tinham uma funcdo comparivel a dos sepultamentos provisorios 88 analisados por Hertz. Em ambos os casos, eram seguidos dos fune- rais das imagens, ou seja, de um rito nao apenas definitivo, mas, eternizador. 0 imperador era consagrado deus;o rei,em virtude da afirmagao da perenidade da fungéo monarquica, nao morria nunca. Asimagensimperiaisde cera eas efigies reais, queconsuma- vam a morte dos imperadores como processo social, equivaliam, num plano diferente, 3s mtimias ou aos esqueletos. Ja ha algum tempo, Florence Dupont chegot a mesma conclusao, seguindo outro roteiro de pesquisa." Nesse horizonte amplo, transcultural, ¢ possivel avaliar me- Ihor a especificidade da solugao idealizada quer na Roma dos Antoninos, quer na Inglaterra e na Franga do Quatrocentos e do Quinhentos. Neste iltimo caso, sabe-se queaesfinge mostravaorei “vivo”; mas também em Roma a imagem er inscrita no que foi definido como uma“ficcao da soberania post mortem." Uma pai na bem conhecida da Histéria romana de Dion Cassio descreve a ‘estitua de cera do imperador Pertinax, falecido em 193,adornada ‘com habitos triunfais”; diante dela, “um jovem escravo espantava «as moscas com um leque de plumas de pavaio, como se o soberano estivesse dormindo’" Herodiano descreve com ainda maior rique- za de detalhes as cerimdnias que se seguiram a morte de Sétimo Severo: durante sete dias a imagem de cera do imperador, acomo- dada num grande leito de marfim com cobertura dourada, foi visi- tada por médicos que constatavam que o doente estava “cada vez ior’ Essas descrigdes certamente lembram o que aconteceu na Franga em 1547, depois da morte de Francisco 1. Por onze dias, foram realizados banquetes, primeiro junto do cadaver, depois junto da efigie do rei: comia-se junto dele, bebia-se junto dele, ¢ “bacias de égua limpa [eram] oferecidas ao trono do supracitado Senhor, como se ainda ali estivesse sentado, vivo" Giesey observa que o texto de Herodiano comegou a circular na Franga por volta de 1480 e que os mais antigos testemunhos franceses sobreo costu- 8 ime do banquete fiinebre remontam ao fim do Quatrocentos;con- Como salientaram vigorosamente Mare Bloch e Claude Lévi tudo, como vimos, ele nfo acredita que essas analogias com a Strauss a propésito de questdes totalmente distintas, 0 contato “Antighidade romana se devessem a imitagdo consciente:" (se éque houve contato, o que neste caso nao é seguro) nao expli- Asargumentagées de Giesey as veres dao margem a diividas: aa permanéncia.* ‘um detalhe discordante, como o inicio do banquete fiinebre em honra de Francisco 1ao lado do cadaver, nao basta parademonstrar 4, Por que, entao, em Roma ¢ em outros lugares, eram cons~ truidas imagens dos imperadores ou reis falecidos? Florence Du- pont deu uma resposta, partindo do uso, proprio das familias aristocréticas romanas, de confeccionar mascarasde cera dosante- que os habitos franceses eram totalmente independentes dos usos romanos." Mas uma cria¢o auténoma nesse ambito certamente cera posstvel, até mesmo em sociedades mais distantes no espago do {que a Roma de Sétimo Severo e a Franga de Francisco 1 no tempo. passados (imagines). A imago era considerada equivalente dos o5- Um relatorio de Francisco Pizarro, o conquistador do Peru, confi 508, porque se acreditava que uma e outros eram uma parte com mado por outros testemunhos, informa que nas circunstancias respeito ao todo, o corpo.” Recordemos que Marcel Mauss, anali- mais solenes os incas exibiam as miimias de seus reis, por eles con- sando a nogéo de pessoa, jé havia salientado a estreita relacio que servadas com grande cuidado, ea elas ofereciam banquetes ¢ brin- existia na Roma antiga entre a imago e 0 cognomen, isto é, a parte mais pessoal do sistema dos trés nomes.” Entretanto, 0 uso das miscaras dosantepassados nao se restringia ds familias aristocrati- cas." Bickerman cita uma lei, que remonta aos anos 133-6,em que des.” Uma analogia espantosa, que talver seja possivel explicar, pelo menos hipoteticamente. No Peru, o patriménio dos sobera- nos defuntos se constituia no palacio real de Cuzco, em gado ¢ escravos, bensadministrados por um grupo formado pelos herdei- tum colégio ou uma associagdo de Lantivio se reservava o direito de 0s homens, com excegao do rei, que nada de material herdava do celebrar um funus imaginarium, “funeral da imagem’; no caso de soberano que o precedera.* Portanto, em teoria, os soberanos um patrono malyado nao conceder o corpo de um escravo mem- defuntos conservavam o poder —e os incas mantinham com suas bro do colégio.* _mtimias relagées de reciprocidade que se exprimiam no banquete Neste tiltimo caso, a imago funerdria substituia 0 cadaver ausente. Esse dado converge com o ponto de chegada de uma dis- custo quesse originou de um tema circunscrito —o significado da palavra grega kolossés—,mas que seampliou atéalcangar oestatu- to da imagem como tal. Quem a iniciou foi Pierre Chantraine (1931),com uma nota sobrea etimologia da palavra kolossés,quea seu ver devia ser investigada fora do Ambito indo-europeu. No en ritual. Na Franca também, uma ficgao legal atribuia 0 poder ao soberano falecido, se bem que por um tempo limitado, que coinci- diacom operiodo—que Giesey definiu como‘interregno cerimo- nial” — imediatamente precedente a coroagio do novo rei ‘outras palavras, injungoes andlogas produziam,em circunstincias totalmente heterogéneas, resultados convergentes. ‘Tudo isso ajuda a reformular o problema que varias vezes foi tanto, a0 corrigir o rascunho do artigo, acrescentou que lei sagra- levantado a propésito dos funerais reais na Franca do Quinhen- da de Cirene, publicada havia pouco, mostrava que o significado original de kolossés nao era aquele com que nos familiarizamos devido ao colosso de Rodes — o de “estatua de grandes dimen- Em tos. A alternativa entre “imitagao dos modelos romanos e inven- «a0 independente” concerne somente a um lado do problema. 90 o ses” —, mas simplesmente o de “estétua”. Dois anos depois, um artigo de Emile Benveniste orientou a pesquisa em outra diregio. Deacordo com alei sagrada de Cirene (segunda metade do século 1), quem acolhia em sua casa suplicantes estrangeiros devia invo- car trés dias seguidos o nome da pessoa que os protegia. Se essa pes- soa estivesse morta ou fosse desconhecida, aquele que pronuncia- va a invocagio devia confeccionar kolossof, fantoches de madeira ou de argila, de sexo masculino e feminino, que seriam posterior- ‘mente “plantados numa mata virgem’. Tal explicagdo pareceu estranha para virios estudiosos, se nao pura e simplesmente ilogi- a, Mas, objetou Benveniste, “quem sabe a admissao de que um ser vivo desconhecido ¢ como se nao existisse nao obedece a uma logi- camais profunda?”, Data conclusio: “Eis significado auténtico da palayra: estatuetas funerdrias, substitutos rituais, duplos que to- mam o lugar dos ausentes e continuam sua existéncia terrena’,” Poderfamosacrescentar: representagdes. Entre os kolossof gre- {405 €as efigies funerdrias de cera, couro, madeira, dos soberanos franceses ou ingleses, as analogias sio impressionantes— tanto no que concerne a forma como no que diz respeito a fungao. A lei sagrada de Cirene previa explicitamente um banquete ritual com as estatuetas funerdrias, como o que seria celebrado mais tarde no Quinhentos, em Cuzco ou em Paris. Em Esparta, informa-nos Herddoto (vi, 58), quando um rei morria na guerra, fazia-se seu simulacro (e¥5@Aov), que era exibido entao num leito adornado, ‘Tal utilizagao foi comparada por Jean-Pierre Vernant com aquela prevista na lei sagrada de Cirene." Devem ser evitadas aqui as rel réncias 8 magia, que nao explicam nada." Porém, as observagoes sobrea ligagao entre imagens funerdriase imagens em geral permi- tem reler de um ponto de vista novo o ensaio de Ernst Gombrich, Meditations on a hobby horse, assim como o nao menos importan- tede Krzysztof Pomian sobre sua colegio. Também Gombrich par- tiu da representacao. Suas reflexdes sobre 0 cavalo de pau como 2 “substituto de um cavalo” o levaram a salientar a fungao da substi- tuiggo nos arranjos funerarios: “O cavalo ou o servo de barro, sepultados nos ttimulos dos poderosos, substituem os cavalos ou. 0s servos vivos”, Essa observacao, referida por exemplo ao Egito antigo, € projetada por Gombrich, hipoteticamente, num plano ais geral:“A substituigdo precede a intengao de fazer um retrato, eacriagao, a de comunicar”. Somente em algumas sociedades —a Grécia, a China, a Europa do Renascimento — uma mudanga de fungdes acabou gerando o surgimento de uma arte diferente, liga- daa*idé termo”, Der anos mais tarde, es rntido moderno do da imagem como representagao nos \s formulas répidas e brilhantes foram desenvolvidas pelo proprio Gombrich em seu fundamental Arte eilusio.” Pomian, por sua ver, para entender 0 que unifica os objetos aod tas funerérias: nelas reconheceu, assim como nas reliquias, nas curiosidades, nasimag spares que encontramosnascolegdes, partiu dasofer- .“intermedidriosentreoaquém eoalém, entre o profano eo sagradb [...] objetos que representam o distan- te, 0 escondido, o ausente [...] intermediarios entre o espectador {que os mira co invisivel de que provem [...Nomomentoem que sao subtraidosdoambito dosobjetosde uso para serem isoladosno espago a parte do ttimulo ou da colegio, esses objetos se tornam ado.” A substituigdo precedeu a imitagao, supunha Gombrich, Tanto nos kolossoi como nas representationes funerarias,o elemen- to substitutivo prevalece nitidamente sobre o elemento imitativo. Antes de discorrer sobre este titimo, quero salientar que todas as ppesquisas mencionadas até aqui, além de tratarem de temas bem. diferentes, foram realizadas de maneira independente. As conver- “semidforos’, portadores de signifi géncias que assinalei se mostram, portanto, ainda mais significati- Devemos associé-las as caracte cas universais do sinal e da imagem, ou a um ambito cultural especifico? E, neste timo caso,a qual? 93 A alternativa que apenas delineei esta no centro de um ensaio em que Jean-Pierre Vernant retomou, desenvolvendo-o,0 trabalho de Benveniste sobre o kolossds. Vernant mostra que o kolossés aria parte de um grupo de termos (“alma’, “imagens oniricas’,“som- bra’, “aparigdes sobrenaturais”) acerca das quais “temos 0 direito de falar [...] de uma verdadeira categoria psicolégica,a categoria do ‘duplo} que pressupde uma organizagao mental ‘nossa’, Contudo, no fim do ensaio, Vernant muda repentinamente detom: vrente da ‘Talvezestejamos abordando aqui um problema que vai muito além do caso do kolossés e que corresponde a uma das caracteristicas essenciais do signo religioso. O signo rel joso nao se apresenta como simples instrumento de pensamento, nao visa apenas evocar rna mente dos homens a poténcia sagrada a que remete, mas quer sempre estabelecer também uma verdadeira comunicasio com cla, inserir realmente sua presenga no universo humano, No entanto, procurando assim construir uma ponte ligando ao divino, ele deve a0 mesmo tempo ressaltar a distancia, revelara incomensurabilida- de entre a poténcia sagrada e tudo o quea manifesta, de um moclo necessariamente inadequado, aos olhos doshomens. Ness sentido, © kolossés um bom exemplo da tensa que existe no interior do signo religioso e que Ihe proporciona sua dimensio prépria, Para a sua fungio operatéria e eficaz, 0 Kolossdstem aambigao deestabcle- cer, com 0 além, um contato real, de realizar sua presenga aqui, Todavia,nessa mesmattentativa,ressaltoo que oalémdamortecom- porta, para o vivo, de inacessivel, de misterioso, de Fundamental- mente diferente." Deum lado,a organizagao mental dosgregos, queera diferen- te da nossa; de outro, as tensbes intrinsecas ao signo religioso, que podemos encontrar tanto na Grécia como em nossos dias. Essa 94 oscilagao entre uma perspectiva historica e uma perspectiva uni: versalista, que inspirou as fecundas pesquisas de Vernant, é mais que compreensivel, tendo em vista a relagao de todo especial, um isto de distancia ¢ filiagao, que nossa cultura mantém com a igrega.”” Mas no caso da imagem, como em outros, verificou- centre n6se os gregos uma fratura profunda, que deve ser examina- dade perto. 5, Voltemos a consecratio dos imperadores romanos, Florence Dupont salientou que tal rito implica um paradoxo. Em Roma, para consagrarum morto énecessério |... tiré-lo dotimulo de mo- do ainseri-lo no espago sagrado em ques situaré seu templo. Issoé impensivel, tanto do ponto devista do morto,que ficaria sem sepul- tura, como do ponto de vista do espago sagrado, que seria horrivel- mente contaminado com a presenga de um cadver [..]-Os timu- los sio expulsos para fora da cidade [..] € proibido edifici-los no chao puiblico em que os templos s40erigidos. Ja se viu como o obsticulo foi superado: ois corpos possibilitam a presenca do morto em dois espagos dis- tintos, 0 dos tdimulos ¢ dos templos, nos dois tempos incompati- veis dos cultos funeratios e dos cultos pablicos. 0 imperador per- manece presente entre os homens depois da sua morte de duas maneiras diferentes.” ssa situagao foi subvertida pela vit6ria do cristianismo. Os cemitérios,ascidades dos mortos, foram inseridos dentro das cida- des dos vivos. Nessa “aboligdo milenar da proibigto religiosa de praticar o sepultamento intramuros’, Jean Guyon reconheceu “0 sinal de uma verdadeira mutagdo hist6rica’s" Porém, alguns desses 95 ‘mortos possutiam um status especial aos olhos dos figis: os marti- res Peter Brovn insist vigorosamente na presenga do mart em geral, do santo, por meio das reliquias. O status meto: que se quis atribuir a imago dos imperadores romanos se mostra, neste caso, totalmente justificado. A alma de Martinho, lia-se na inscrigao gravada em seu ttimulo em Tours, esté ao lado de Deus (cuius anima in manu Deiest);e no entanto Martinho hie totus est Praesens manifestus omni gratia virtutum (esté aqui, demonstram milagres de todo tipo). inteiro, como A fungao atribuida as reliquias dos santos no mundo « deve ter modificado profundamente a atitude em relagio as ima- gens. Essa hip6tese & um simples corolério daquela anteriormen- teformulada, quesugeria aexisténcia de uma relacioestreitaentre imagens ¢ 0 além, Mas as r Ambito que nao conhecemos em sua totalidade." Antes de mais, s mesmas faviam parte de um. nada, hao fendmeno que os polemistascristios chamaram deido- latria, Deverfamos levé-lo finalmentea sério, admitindo duas coi- sas: que sabemos muito pouco a seu respeito e que esse pouco que éconhecido éde dificil interpretagao.§*A sobrevivencia (eas meta- morfoses) dos deuses antigos de um ponto de vista artistico foi esclarecida faz tempo por estudiosos como Fritz Saxl, Erwin Panofsky, Jean Seznec, ligados primeiro a Warburg Bibliothek e depois a0 Warburg Institute.” Mas ainda permanece largamente inexplorada a gama das rea (absorgoes, metamorfoses, rejei- ‘$®es) provocadas no plano religioso pelo encontro entre essas, imagens, inclusive as popularescas, e as tendéncias parcialmente nao icOnicas, se nao explicitamente antiicénicas, arraigadas na tradigio hebraico-crista Para ilustrar a complexidade desse encontro basta 0 exemplo de santa Fé, que segundo a lenda foi martirizada aos doze anos de idade, no inicio do século tv. Sua imagem, conservada no tesouro. dda igreja de Conques (ilustra¢ao 7), 6 considerada uma obra fun- 96 damental da escultura e da ourivesaria carolingia. A mesma ima- gem desempenha uma fungao importante no Liber miraculorum sanecte Fidis, 0s dois primeiros livros desse texto hagiogratfico foram redi- gidos entre 1013 e 1020 por Bernard’ Angers, um clérigo queestu- dava na escola de Chartres. Bernard, devoto fervoroso de santa Fé, saira em viagem com um amigo, um escolar de nome Bernier, com. destino a Conques: as reliquias da santa se encontravam ali fazia uum século e meio, isto é desde quando haviam sido subtraidas de uma basilica erigida especialmente para elas em Agen.** Durante a peregrinagao, Bernard ficou impressionado com a abundancia de estétuas de ouro, prata e outros metais, na regido da Auvergne e de Toulouse, que continham reliquias de santos. Para pessoas cultas como ele e seu amigo, tratava-se de uma supersticao, algo que re- ‘endia a paganismo, se nao a cultos diabélicos. Ele havia visto num altar uma estitua de sio Geraldo, coberta de ouro e de pedras pre~ ciosas, que parecia olhar para os camponeses ajoelhados em prece com olhos brilhantes, Bernard voltou-se para 0 amigo e pergun- tou-lhe em latim (Latino sermone), com um sorriso malicioso: “Irmio,o queacha deste idolo? Jupiter ou Marte teriam considera~ do uma estatua como esta indigna deles2”. As tinicas estatuas que podia admitir, observou, eram os crucifixos. Pintar santos numa parede — imagines umbrose coloratis parietibus depicte— também ‘era admisstvel. Masa veneragao das estétuas dos santos Ihe parecia um abuso inveterado de gente ignorante: se ele tivesse dito por ali o ‘que pensava da estatua de so Geraldo, t-lo-iam tratado comoum, criminoso. ‘Trés dias depois, Bernard e Bernier chegaram a Conques. A imagem da santa, denominada “majestade de santa Fé” (Majestas sancte Fidis), estava conservada numa saleta, que se encontrava cheia de gente de joelhos. Nao podendo imitar o exemplo daquelas pessoas, Bernard exclamou: “Santa Fé, de cujo corpo hé um frag- 97 mento conservado nesta estétua, ajuda-me no dia em que eu for julgado!”. E, enquanto dizia essas palavras, olhava para 0 amigo com o rabo do olho. Suas palavras estavam carregadas de desprezo pela estatua-relicario da santa, como se ela fosse um simulacro de ‘Venus ou de Diana, um {dolo a que sao oferecidos sacrificios. Mas isso tudo pertencia ao passado. No momento em que escrevia, Bernard disse ter compreendido seu erro, gragas aos mila- _gres de santa Fé descritos na antologia. Conta a hist6ria de um tal de Ulderico, que havia falado em tom zombeteiro da estatua de santa Fé, Na noite seguinte, a santa Ihe apareceu agredindo-o com um porrete: “Por qué, celerado, ousaste insultar minha imagem?”, Bernard concluiu quea estitua nao podia nem prejudicara é cris- tinem fazer temer uma recaida noserros dosantigos. Ela havia sido erigida em honra a Deus, para conservar a mem6ria da santa.” Peter Brown observou que a célerae a vinganga manifestadas por santa Fé s2o, por assim dizer, a correlagao dos sentimentos dle justica da comunidade: “Ela eraa vor grave do grupo" Isso éine- gavel. Contudo, os milagres de santa Fé, transmitidos pela cultura oral, estao encerrados num texto escrito que contém trechos como 08 citados acima, centrados numa série de oposigdes assimétricas: individuos cultos/camponeses; latim/linguas vulgaress pintu- ra/escultura; Cristo/santos; religido/superstigao (sem contar a ‘oposigao, nao declarada mas onipresente, entre homens ¢ mulhe- res). las podem ser reduzidas a uma dupla oposigao, cultural ¢ social: de um lado, a oposicao entrecultura escrita (em atim) ecul- tura oral (em lingua vulgar); de outro, entre cultura escrita eima- gens.” Noambito das imagensse insinua uma nova hierarquia, que remontaa tradigao judaica:asestétuas s20 muito mais perigosasdo que as pinturas, uma ver que servem de incentivo a idolatria.”* E verdade que, no fim do capitulo, Bernard reconhece ter se engana- do; a devosao dos camponeses pelas estatuas de sio Geraldo e de santa Fé nada tinha de supersticiosa, logo suas atitudes religiosas 98 devem ser toleradas (permittantur). Mas 0 olhar do douto, oriun- dode um ambiente bem diferente, como era o do Norte da Franca, permanece indulgentemente hierarquico." 6. Aestitua de sto Geraldo, que sugerira a Bernard a compa- ragdo, entre irénica e escandalizada, com os idolos de Jupiter e de Marte, se perdeu. Entretanto, a restauracao da esttua de santa Fé, também comparada por Bernard aos {dolos de Vénus e de Diana, revelou que em fins do século xo corpo havia sido adaptadoa uma cabega muito mais antiga, que remontava ao século 1V ou ao inicio do século v:a cabesa de ouro, coroada de louros, de um imperador romano divinizado. A primeira reagio de Bernard d’Angers nao fora, pois, de todo injustificada.” A cronologia da estatua de Conques e das modificagdes que sofreu foi muito discutida, Jean Taralon, que a restaurou, propos ‘uma datagao alta, préxima ao fim do século 1x. No ambito do “tenascimento da escultura tridimensional daera pré-romanica’,a de santa Fé seria “a maisantiga estatua do Ocidente que chegou até nds’ Bernard d’ Angers informa que as estatuas-relicérios desan- tos € santas eram muito difundidas na Franga meridional. As Madonascom o menino Jesus em majestade podem ser considera- das variantesdo mesmo tipo.*Sua fungaode relicérios nada tem de marginal:ao que tudo indica,ela constitui uma espécie dedlibipara © retorno a escultura tridimensional.” O fragmento do corpo de santa Pé, evocado em tom vagamente cinico na prece de Bernard «Angers, permitia confiar aos camponeses de Conques o invélu- «ro que encerravaa reliquia: a boneca dourada de olhos brilhantes, com 0 manto incrustado de pedras preciosas, representando a maértir menina, Noscontosmilagrososrelatados por Bernard d’ Angers, ima- gem de santa Fé aparece envolta em uma ambivaléncia caracte tica. De um lado, atraia a hostilidade eo sarcasmo dos detratores; 99 de outro, se manifestava nas visdes dos figis.* Os monges a trans- portavam em procissao para que, segundo o costume, tomasse posse de um terreno doado ao mosteiro e injustamente usurpado.” Para. gente de Conques,entre a imagem de santa Fée a santa pro- priamente nao havia nenhuma diferenga.A argumentagao propos- ta por Bernard d’ Angers para evitar o risco de idolatria — a ima- ‘gem como auxilio para a meméria — podia atingir apenas uma exigua minoria de fis. As perplexidades que a imagem de santa Fé provocavam em Bernard d’ Angers desapareciam quando se falava de Cristo no cru- cifixo. A Igreja difande crucifixos esculpidos ou em baixo-relevo, ‘observou Bernard, para manter viva a meméria da Paixio."* E no centanto, as imagens de Cristo também podiam estar sujeitas a um olhar iddlatra. Em toda a Europa, de Venera a Islindia ou 4 No- ruega, encontram: imagens de sto, em cruz ou em majestade, acompanhadas de disticos latinos como este, que remonta pelo menos ao século xu Hoc Deus est, quod imago docet, sed non Deus ipse Hane recolas, sed mente colas, quod cernis in fla (Oquea imagem ensina é Deus, mas ela nao é Deus ‘Medita sobre imagem, masadora em espirito © que vés nela.)” Medo dasimagens e desvalorizagao dasimagens—essa atitu- de ambigua prevalece em toda a Idade Média européia, Contudo, imago (como figura) é palavra de miltiplos significados.* Um tre- cho, novamente extraido do Liber miraculorum sancte Fidis, sera suficiente para darmos uma idéia de uma série de temas aqui ape- nas esbogados. Ao citar o exemplo de um cavaleiro punido por seu orgulho, Bernard d’ Angers exclama, ditigindo-se a si mesmo: 100 Deves ser feliz, 6 douto, por teres visto o Orgulho ndo em imagem \imaginaliter|, como leste na Psicomaguia de Prudéncio, mas na sua auténtica e corpérea presenga [presentialiter corporliteque roprie)* As conotagies sacramentais desse trecho sao sem dtivida in- voluntarias,e por isso mesmo reveladoras. Havia muito que imago era uma palavra associada ao Evangelho:“Umbrain lege, imago in Evangelio, veritas in caelestibus” (a sombra na lei, a imagem no Evangelho, a verdade nas coisas celestes), havia escrito santo Ambrésio.* Mas no trecho que citamos acima, imago evoca a fic- 0, talvez a abstragao; em todo caso, uma realidade palida e empobrecida. Presentia, ao cont io — palavra ligada ha tempos as reliquias dos santos —, teria sido cada ver mais associada & A oposigao entre eucaristia ereliquias é explicita no De pigno- ribus sanctorum, o tratado sobre reliquias de Guibert de Nogent, concluido em 1125." Guibert nao se limitava a repelir as falsas reli- quias, como o suposto dente de k pelos monges de S deixada por Cristo era a eucaristia, Isso 0 levava a desvalorizar as 1e do menino Jesus ostentado int-Médard. Acreditava que a Ginica meméria reliquias substitutivas (repraesentata pignora) ¢ as sinédoques, como figura lingiiistica cara aos ignorantes." Vemos delinear-se a tendéncia que conduziria, em 1215, proclamagao do dogma da transubstanciagio, ‘A importancia decisiva desse acontecimento na historia da percepgao das imagens jé foi salientada por outros estudiosos.* Mas suas implicagoes nao sao totalmente claras. Tentarei formular algumas delasa luzdo que foi dito até aqui.A descontinui lepro- funda entre as idéias que se distinguem por tras do kolossésgrego e 4 nogao de presenga real salta imediatamente aos olhos. Claro, trata-se, em ambos os casos, de signos religiosos. Porém, seria impossivel relacionar a eucaristia o que Vernant falou do kolossés, isto 6, que, “para a sua fungao operatéria e eficaz, 0 Kolossés tem a ambigo de estabelecer, com o além, um contato real, de realizar sua presenga aqui” A luz da formulagao do dogma da transubstan- iagao nao se pode falar simplesmente decontato”, mas sim de pre- senga no sentido mais forte do termo. A presenga de Cristo na hés- tia & de fato, uma superpresenga. Diante dela, qualquer evoca 0 ‘ou manifestagao do sagrado — reliquias, imagens — empalidece, pelo menos em teoria. (Na pratica, as coisas sao diferentes.) Ashipéteses, mais ou menos ousadas, que seguem darao idéia de alguns possiveis desdobramentos destas paginas. Depois de 1215,omedo da idolatria comegaa ciminuir. Aprende-se a domes- ti Fas imagens, inclusive as da Antigitidade paga. Um dos frutos dessa reviravolta hist6rica foi o retorno & ilusao na escultura e na pintura. Sem esse desencantamento do mundo das imagens, nao teriamos tido nem Arnolfo di Cambio, nem Nicola Pisano, nem, Giotto, A idéia da imagem como representagao no sentido moder- no do termo’, de que Gombrich falou, nasce aqui. Esse processo teve repercussdes sanguinolentas. A ligagao entre os milagres eucaristicos e a perseguigio dos judeus é bem conhecida.® Supds-se que a acusagao de sacrificio ritual langada contra os judeus a partir da metade do século xi tivesse projetado para o exterior uma angtistia profunda, relacionada a idéia de pre- senga real vinculada a eucaristia." Alguns elementos da polémica antijudaica tradicional assumiram entao um novo significado: a acusagio deidolatria centrada no conto biblico do bezerrodeouro, ow a de excesso literal na interpretagao da palavra de Deus. 0 dogma da transubstanciagao, na medida em que negava os dados sensfveis em nome de uma realidade profunda e invisivel, pode ser interpretado (pelo menos por um observador externo) como uma vit6ria extraordinaria da abstragao, 102 A abstragao também triunfa, no mesmo perfodo, no ambito dda teologia e da liturgia politica. Na grande pesquisa de Kantoro- \wicz sobre o duplo corpo do rei, as alusdes a eucaristia sao curiosa- mente marginais.” E provavel, porém, que o dogma da transubs- tanciagao tenha desempenhado, nesse processo hist6rico, uma fungdo decisiva. Vou me limitar a um exemplo, retirado da descri- ‘¢io das ceriménias que se realizaram em Saint-Denis pot ocasiao das exéquias do condestavel Bertrand du Guesclin (1389). O monge autor da crénica de Saint-Denis relata uma cena que vit com os préprios olhos: obispo de Autun, que estava celebrando a missa, ao chegar ao ofert6rio, sa encontro de quatro cavaleiros que, na entrada do coro, exibiam as armas do defunto “com a finalidade de mostrar, por assim dizer, a presenga corpérea dele [ut quasi jus corporalem presenciam de- ‘monstrarent]":" As implicagdes sa extraordinaria comunl ae eqitestre (de norma, reservada a bardes € principes) se explicam facilmentea luz da hipétese que proponho. Ea presenga real, conereta, corpérea de Cristo no sacramento que possibilita, entre o fim do Duzentos e 0 prinefpio do Trezentos, a do altar com o rei para ir a0 sucaristicas di cristalizagdo do objeto extraordinério de que parti, até fazer dele o simbolo conereto da abstragao do Estado: a efigie do rei denomi nada representagio, 103

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