Você está na página 1de 25
A OBRA DE ARTE NA EPOCA DE SUAS TECNICAS DE REPRODUGAO* Nossas belas-artes foram institufdas, assim como os seus tipos e priticas foram fixados, num tempo bem diferente do nosso, por homens cujo poder de agdo sobre as coisas era insignificante face aquele que possuimos. Mas o admirdvel incremento de nossos meios, a flexibilidade e precisio que alcancam, as idéias e os habitos que introduzem, assegu ramnos modificagdes préximas e muito profundas na velha indiistria do belo. Existe, em todas as artes, uma arte fisica que ndo pode mais ser encarada nem tratada ‘como antes, que ndo pode mais ser elidida das iniciativas do conhecimento e das potencialidades modernas. Nem a matéria, nem o espago, nem o tempo, ainda sio, decorridos vinte anos, 0 que eles sempre foram. E preciso estar ciente de que, se essas tao imensas inovagdes transformam toda a técnica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a prépria invengao, devem, possivelmente, ir até ao ponto de modifi- car a prépria nogao de arte, de modo admiravel. (Paul Valéry, Pidces sur I’Art, Paris, 1934; “Conquéte de 'Ubiquité”, pp. 103, 104.) + Traduzido do original alemlo: “Das Kunstwerk im Zeitalter sine technischen Reproduzierbarket™, em caer erasktuc am Main, 1961, ubrkamp Verlag, pp. 148-184, A presente tradugdo foi publicada seat ta do Cinema, Rio de Fanczo, Eitora Civlizagio Brasileira, pp. 35.95 a Preimbulo Na época em que Marx empreendeu a sua andlise, o modo de produgio capi talista ainda estava em seus primérdios. Marx soube orientar sua pesquisa de modo a the conferir um valor de prognéstico. Remontando as relagdes fundamen- tais, pode prever 0 futuro do capitalismo. Chegou a conclusao de que, se a explo- ragdo do proletariado continuasse cada vez mais rigorosa, 0 capitalismo estaria preparando, ao mesmo tempo, as condigSes de sua propria supressio. Como as superestruturas evoluem bem mais lentamente do que as infra-es- truturas, foi preciso mais de meio século para que a mudanga advinda nas condi- ges de produgao fizesse sentir seus efeitos em todas as Areas culturais. Verifi- camos hoje apenas as formas que elas poderiam ter tomado, Dessas constatagdes, deve-se extrair determinados prognésticos, menos, no entanto, dos aspectos da arte proletaria, apds a tomada do poder pela classe operaria — a fortiori, na sociedade sem classes — do que a respeito das tendéncias evolutivas da arte den- tro das condigdes atuais da produgdo. A dialética dessas condigdes esta também mais nitida na superestrutura do que na economia. Seria erréneo, em conse- qiiéncia, subestimar 0 valor combativo das teses que, aqui, apresentamos. Elas renunciam ao uso de um grande nimero de nogdes tradicionais — tais como poder criativo ¢ genialidade, valor de etenidade e mistério — cuja aplicagio incontrolada (e, no momento, dificilmente controlével) na claboragio de dados concretos toma-se passivel de justificar interpretagdes fascistas. O que distingue ‘as concepgdes que empregamos aqui — e que sao novidades na teoria da arte — das nogdes em voga, é que elas no podem servir a qualquer projeto fascista. Sao, em contrapartida, utilizaveis no sentido de formular as exigéncias revoluciondrias dentro da politica da arte. A obra de arte, por prinefpio, foi sempre suscetivel de reprodugdo. O que al- guns homens fizeram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tem- pos, a discipulos copiarem obras de arte, a titulo de exercicio, os mestres reprodu- zirem-nas a fim de garantir a sua difusdo e os falsdrios imita-las com 0 fim de extrair proveito material. As técnicas de reprodugdo so, todavia, um fendmeno novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da hist6ria, mediante saltos sucessivos, separados por longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rapido. Os gregos 36 conheciam dois processos técnicos de reprodugao: a fundigao € a 6 BENJAMIN cunhagem. Os bronzes, as terracotas ¢ as moedas foram as tinicas obras de arte que eles puderam feproduzir em série. As demais apenas comportavam um tinico exemplar e ndo serviam a nenhuma técnica de reprodugdo. Com a gravura na madeira, conseguiu-se, pela primeira vez, a reprodugdo do desenho, muito tempo antes de a imprensa permitir a multiplicagio da escrita. Sabe-se das imensas transformagdes introduzidas na literatura devido 4 tipografia, pela reprodugio técnica da escrita. Qualquer que seja a sua importancia excepcional, essa desco- berta & somente um aspecto isolado do fendmeno geral que aqui encaramos a0 nivel da histéria mundial. A propria [dade Média viria aduzir, & madeira, o cobre ©. égua-forte e, 0 inicio do século XIX, a litografia. Com a litografia, as técnicas de reprodugao marcaram um progresso decisi vo. Esse processo, muito mais fiel — que submete o desenho A pedra calcdria, em vez de entalhé-lo na madeira ou de gravé-lo no metal — permite pela primeira vez as artes gréficas no apenas entregar-se ao comércio das reprodugSes em sé mas produzir, diariamente, obras novas. Assim, doravante, pide o desenho ilus- trar a atualidade cotidiana. E nisso ele tomou-se intimo colaborador da imprensa. Porém, decorridas apenas algumas dezenas de anos apés essa descoberta, a foto- grafia viria a suplanté-lo em tal papel. Com ela, pela primeira vez, no tocante & reprodugdo de imagens, a mo encontrou-se demitida das tarefas artisticas essen ciais que, dai em diante, foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva. Como, todavia, 0 olho capta mais rapidamente do que a mao ao desenhar, a reprodugio as imagens, a partir de entdo, pide se concretizar num ritmo tdo acelerado que chegou a seguir a propria cadéncia das palavras. O fot6grafo, gracas aos apare- Ihos rotativos, fixa as imagens no estidio de modo to veloz como 0 que 0 ator ‘enuncia as palavras. A litografia abria perspectivas para o jornal ilustrado; a foto grafia ja continha o germe do cinema falado. No fim do século passado, atacava: se © problema colocado pela reprodugao dos sons. Todos esses esforgos conver- gentes facultavam prever uma situagdo assim caracterizada por Valéry: “Tal como a figua, o gas e a corrente elétrica vém de longe para as nossas casas, aten- der as nossas necessidades por meio de um esforgo quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e auditivas, passiveis de surgir e desaparecer 20 menor gesto, quase que a um sinal”, Com 0 advento do século XX, as técnicas de reprodugao atingiram tal nivel que, em decorréncia, ficaram em condigSes nao apenas de se dedicar a todas as obras de arte do pasado ¢ de modificar de modo bem profundo os seus meios de influéncia, mas de elas proprias se imporem, como formas originais de arte. Com espeito a isso, nada é mais esclarecedor do que o critério pelo qual duas de suas manifestagGes diferentes — a reprodugao da obra de arte e a arte cinematografica — reagiram sobre as formas tradicionais de arte "Valery, dees sur l’Art,“Conquite de YUbiqit A OBRA DE ARTE 7 1 A mais perfeita reprodugao falta sempre algo: 0 hic et nunc da obra de arte, fa unidade de sua presenga no proprio local onde se encontra. E a esta presenga, {inica no entanto, ¢ s6 a ela que se acha vinculada toda a sua historia, Falando de hist6ria, lembramo-nos também das alteragdes materiais que a obra pode softer de acordo com a sucesso de seus possuidores.* O vestigio das alteragdes mate- Fiais s6 fica desvendado em virtude das andlises fisico-quimicas, impossiveis de serem feitas numa reprodugdo; a fim de determinar as sucessivas maos pelas quais passou a obra, deve-se seguir toda uma tradigao, a partir do proprio local onde foi criada. hic et nunc do original constitui aquilo que se chama de sua autentici- dade, Para se estabelecer a autenticidade de um bronze, toma’se, as vezes, neces- sdrio recorrer a andlises quimicas da sua patina; para demonstrar a autenticidade de um manuscrito medieval é preciso, as vezes, determinar a sua real proveniéncia de um depésito de arquivos do século XV. A propria nogdo de autenticidade néo tem sentido para uma reprodugio, seja técnica ou ndo.? Mas, diante da reprodu- ‘gio feita pela mao do homem e, em principio, considerada como uma falsificagao. © original mantém a plena autoridade; nao ocorre 0 mesmo no que concerne & reprodugao técnica. E isto por dois motivos. De um lado, a reprodugio técnica esta mais independente do original. No caso da fotografia, € capaz de ressaltar aspectos do original que escapam ao olho € séo apenas passiveis de serem apreen- didos por uma objetiva que se desloque livremente a fim de obter diversos angulos de visio; gragas a métodos como a ampliagdo ou a desaceleragdo, pode-se atingir a realidades ignoradas pela visio natural. Ao meSmo tempo, a técnica pode levar 1 reprodugao de situagdes, onde o proprio original jamais seria encontrado. Sob a forma de fotografia ou de disco permite sobretudo a maior aproximagio da obra ‘a0 espectador ou ao ouvinte. A catedral abandona sua localizagao real a fim de se situar no estiidio de um amador; 0 musicémano pode escutar a domicilio 0 coro executado numa sala de concerto ou ao ar livre, Pode ser que as novas condigdes assim criadas pelas técnicas de reproducao, em paralelo, deixem intacto 0 conteédo da obra de arte; mas, de qualquer mane: ra, desvalorizam seu hic ef nunc. Acontece 0 mesmo, sem divida, com outras coi sas além da obra de arte, por exemplo, com a paisagem representada na pelicula cinematografica; porém, quando se trata da obra de arte, tal desvalorizagao atin- 2 Byidente que a histiria de uma obra de rt io se limita a eses dois elementos: a da Gioconda, por exem: plo, deve também levar em conta @ mancira com que a copiaram nos séeulos XVII, XVIII e XIX e a quant fade de tas cpias. 5 E precisamente porque a autenticidade escape a toda reprodugio que o desenvolvimento intensivo de a: fzuns processs tecnicos de reprodugio permitiram fxar ruse difeeaciagdes dentro da prSpria autem “ade. Com respeito isto, o coméreio da arte desempenhou papel importante. Mediante a descoberta da ra ‘yura em madeira, pode-se dizer que a autenticidade das obras foi atacads na raz, antes mesmo de atingi¢ vin Moreseer que deveria mais ainda enriquecPa. Na realidade, na época em que fi fit, uma Virgem ds Idade ‘Média sinda ndo era “auténtioa”: ela asim se tornou no decorrer dos Séculos segints, talvz, sobretudo,n0 séeulo XIX. 8 BENJAMIN ge-a no ponto mais sensivel, onde ela é vulnerével como nao 0 sao os objetos natu. -m sua autenticidade. O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que cla contém ¢ é originalmente transmissivel, desde sua duragdo material até seu poder de testemunho hist6rico. Como este proprio testemunho baseia-se naquela duragao, na hipétese da reprodugao, onde o primeiro elemento (durago) escapa aos homens, o segundo — o testemunho histérico da coisa — fica identi camente abalado, Nada demais certamente, mas 0 que fica assim abalado é a prd- pria autoridade da coisa. # Poder-se-ia resumir todas essas falhas, recorrendo-se & nogio de aura, dizer: na época das téenicas de reprodugao, o que é atingido na obra de arte é a sua aura, Esse processo tem valor de sintoma, sua significagao vai além do terr no da arte, Seria impossivel dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodugdo separaram o objeto reproduzido do ambito da tradi¢o. Multiplicando as cépias, elas transformam o evento produzido apenas uma vez num fenémeno de massas. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se a visio ¢ & audigo, em quaisquer circunstancias, conferem-the atualidade permanente. Esses dois processos condu- zem a um abalo considerdvel da realidade transmitida — a um abalo da tradigao, que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade ea sua renovacdo atual. Esto em estreita correlagdo com os movimentos de massa hoje produzidos. Seu agente mais eficaz é 0 cinema. Mesmo considerado sob forma mais positiva — ¢ até precisamente sob essa forma — no se pode aprender a significago social do cinema, caso seja negligenciado o seu aspecto destrutivo ¢ catartico: a liquidagao do elemento tradicional dentro da heranga cultural. Tal fendmeno é peculiarmente sensivel nos grandes filmes histdricos ¢ quando Abel Gance, em 1927, bradava com entusiamo: “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven fardo cinema. Todas as legendas, toda a mitologia e todos os mitos, todos 08 fundadores de religides e todas as préprias religiGes aguardam sua ressurreicdo luminosa ¢ os heréis se empurram diante das nossas portas para entrar”® convidava-nos, sem saber, a uma liquidagdo geral. m1 No decorrer dos grandes periodos histéricos, com relagio ao meio de vida das comunidades humanas, via-se, igualmente, modificar-se 0 seu modo de sentir © de perceber. A forma orginica que é adotada pela sensibilidade humana — 0 meio na qual ela se realiza — nao depende apenas da natureza, mas também da histéria. Na época das grandes invasdes, entre os artistas do Baixo Império, entre «A plor representapio de Faust, num teatro de province, jé superior a um filme sobre o mesmo te raquilo em ue ela, pelo menos, rivaliza com a apresentagdo oficial de Weimar. Toda a substin ional sugerida a nbs plo desempenho dos atores se esvaza, na tela, de todo valor. * Abel Gance: “Le Temps de "image est Venu”, (‘rt Cinématographique Il, Paris, 1927, pp. 94:96). A OBRA DE ARTE 9 os autores da Génese de Viena, nao € apenas uma arte diversa daquela dos antigos que se encontra, mas uma outra maneira de perceber. Os sabios da Escola Vienen se, Riegel ¢ Wieckhoff, ao se oporem a todo o peso da tradigao classica que havia desprezado essa arte, foram os primeiros a terem a idéia de extrair as inferéncias quanto ao modo de percepgao proprio ao tempo ao qual se relacionava. Fosse qual fosse a dimensio da descoberta, ela ficou reduzida porque os pesquisadores contentaram-se em esclarecer as caracteristicas formais tipicas da percepgio do Baixo Império, Nao se preocuparam em mostrar — 0 que, sem divida, excederia todas as suas esperangas — as transformagGes sociais, das quais essas mudangas do modo de percepgio nao eram mais do que a expressio. Hoje, estamos melhor situados do que eles para compreender isso. E, se & verdade que as modificages que assistimos no meio onde opera a percepgao podem se exprimir como um declinio da aura, permanecemos em condigdes de indicar as causas sociais que conduziram a tal declinio E aos objetos histéricos que aplicarfamos mais amplamente essa nogio de aura, porém, para melhor elucidagdo, seria necessario considerar a aura de um objeto natural. Poder-se-ia defini-la como a tinica aparigio de uma realidade longinqua, por mais proxima que esteja. Num fim de tarde de verdo, caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas ‘montanhas, desse galho. Tal evocacdo permite entender, sem dificuldades, os fato- res sociais que provocaram a decadéncia atual da aura, Liga-se ela a duas circuns- tancias, uma ¢ outra correlatas com o papel crescente desempenhado pelas massas na vida presente, Encontramos hoje, com efeito, dentro das massas, duas tendén- cias igualmente fortes: exigem, de um lado, que as coisas se lhe tornem, tanto hu- mana como espacialmente, “mais prximas” *, de outro lado, acolhendo as repro: dugGes, tendem a depreciar o carter daquilo que é dado apenas uma vez. Dia a dia, impde-se gradativamente a necessidade de assumir 0 dominio mais proximo possivel do objeto, através de sua imagem e, mais ainda, em sua c6pia ou reprodu: do. A reprodugao do objeto, tal como a fornecem o jornal ilustrado ¢ a revista semanal, é incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A imagem associa de modo bem estreito as duas feigdes da obra de arte: a sua unidade e a durago; ao passo que a foto da atualidade, as duas feigSes opostas: aquelas de uma realidade fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente. Despojar 0 obje- to de seu véu, destruir a sua aura, eis 0 que assinala de imediato a presenga de uma percepgio, to atenta aquilo que “se repete identicamente pelo mundo”, que, gragas & reprodugo, consegue até estandardizar aquilo que existe uma s6 vez. Afirma-se assim, no terreno intuitivo, um fendmeno anélogo aquele que, no plano da teoria, é representado pela importancia crescente da estatistica. O alinhamento * Dizer que as cosas se tomam “humansimente mais préximas” pode sigifear que no se leva mais em conta a sua ungio social. Nada garante que um retratista contemporine — quando representa ur cturgiio cflebrefazendo ums refeigdo ou dentro do seu eiculo familiar — apreenda mais exatamentea sua fungdo so. ial do que um pintor do séeulo XVI, que, como o Rembrandt, da Ligéo de Anatomia, apresentava 20 blico de sua €poca os médicos no pripio exerci de sua at, 10 BENJAMIN da realidade pelas massas, 0 alinhamento conexo das massas pela realidade, cons- tituem um proceso de alcance indefinido, tanto para o pensamento, como para a intuigao. Vv A unicidade da obra de arte ndo difere de sua integragdo nesse conjunto de afinidades que se denomina tradigao. Sem divida, a propria tradigdo é uma reali- dade bem viva e extremamente mutavel. Uma estatua antiga de Vénus, por exem- plo, pertencia a complexos tradicionais diversos, entre os gregos — que dela fa- ziam objeto de culto — ¢ 0s clérigos da Idade Média, que a encaravam como um fdolo maléfico. Restava, contudo, entre essas duas perspectivas opostas, um ele- mento comum: gregos e medievais tomavam em conta essa Venus pelo que ela encerrava de ‘nico, sentiam a sua aura. No comego, era 0 culto que exprimia a incorporagao da obra de arte num conjunto de relagdes tradicionais. Sabe-se que as obras de arte mais antigas nasceram a servigo de um ritual, primeiro magico, depois religioso. Entdo, trata-se de um fato de importéncia decisiva a perda neces- séria de sua aura, quando, na obra de arte, nao resta mais nenhum vestigio de sua fungao ritualistica. ” Em outras palavras: 0 valor de unicidade, tipica da obra de arte auténtica, funda-se sobre esse ritual que, de inicio, foi o suporte do seu velho valor utilitério. Qualquer que seja 0 ntimero de intermedirios, essa ligagao funda- ‘mental é ainda reconhecivel — tal como um ritual secularizado — através do culto dedicado a beleza, mesmo sob as formas mais profanas.® Aparecido na época da Renascenga, esse culto da beleza, predominante no decorrer de trés sécu los, guarda hoje a marca reconhecivel dessa origem, a despeito do primeiro abalo grave que sofreu desde entio. Quando surgiu a primeira técnica de reprodugao verdadeiramente revolucionaria — a fotografia, que & contemporanea dos primér- dios do socialismo — os artistas pressentiram a aproximagao de uma crise que rninguém — cem anos depois — poder negar. Eles reagiram, professando “a arte pela arte”, ou seja, uma teologia da arte. Essa doutrina — da qual, em primeiro lugar, Mallarmé deveria extrair todas as conseqiiéncias no ambito literério — conduzia diretamente a uma teologia negativa: terminava-se, efetivamente, por > Ao define a aura como “a iniea apariglo de uma realidad longingua, por mais préxima que ela este bs, simplesmente, Rzemos a transposigo para as eategorias do espago © Go tempo da formula que designs © valor do culto da obra de arte. Longinquo opie tea proxi. O que est essenciaimente longe éinatingivel De fato, a qualidade principal de uma imagem que serve para o culto& de sr inatingivel, Devido a sua pr pra nature, ela esth sempre “longingua, por mais proxima que possa estar. Pode se aproximar de sua rea Tidade material, mas sem se aleangar0‘cardterlnginquo que ela conserva, a parte de quando aparece. 1 Na medida em que o valor de culo da imagem se seculariza, representa-se de modo ainda mais indetermi nado osubstrato do qual ela se faz uma realdade, que € dado apenas uma ver. Cada ver mais, oespectador fe inclina a substtur a unicidade dos fendmenos dominantes na imagem de culo pela unicidade empirica do ftistae de sua aividadeeriadora. A substtuigo nunca € integral, sem divida; a nogdo de autenticidade ja ‘mais cesa dese remeter a algo mais do que simples garantia de originalidade (o exempio mais significativo aguele do colecionador que se parece sempre com um adorador de fetches e que, mediante a propria posse 4 obra de arte, participa de seu poder de cult). Apesar de tudo, © papel do conceito de autenicidade no ‘ampo da arte € ambiquo; com a scularizagao desta Ultima, 2 autenticidade tomas substituto do valor de culo, A OBRA DE ARTE un conceber uma arte pura, que recusa, ndo apenas’ desempenhar qualquer papel essencial, mas até submeter-se as condigdes sempre impostas por uma matéria objetiva. : A fim de se estudar a obra de arte na época das técnicas de reprodugao, & preciso levar na maior conta esse conjunto de relagdes. Elas colocam em evidén- cia um fato verdadeiramente decisivo € 0 qual vemos aqui aparecer pela primeira vez na histéria do mundo: a emancipagdo da obra de arte com relagao A exis téncia parasitaria que the era imposta pelo seu papel ritualistico. Reproduzem-se~ cada ver mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzi- das.* Da chapa fotografica pode-se tirar um grande nimero de provas; seria absurdo indagar qual delas é a auténtica. Mas, desde que o critério de autentici dade nao é mais aplicavel A produgdo artistica, toda a fungao da arte fica subver tida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de praxis: a politica. v Caso se considerem os diversos modos pelos quais uma cbra de arte pode ser acolhida, a énfase é dada, ora sobre um fator, ora sobre outro. Entre esses fatores existem dois que se opdem diametralmente: o valor da obra como objeto de culto €0 seu valor como realidade exibivel.'® A producdo artistica inicia-se mediante * De modo diverso do que ocorte em literatura ou em pintura, a téenica de reprodusio no & para o filme tuma simples condigdo exterior a facultar sua difusio maciga; a sus tfonica de produgio funda diretamente sua ténica de reprodugo, Ela no apenas permite, de modo mais imediato, a difusdo maciga dome, mas fexigea. As despesas de produgio sio to altas que impedem a0 individvo adquiri um flme, como se com prasse um quado, Os céleulos demonstraram que, em 1927.3 amortzagéo de uma grande ita implicava na sua exbigio para nove milhies de espectadores. De inicio, & certo, a invengo do cinema falado diminuiy provisoriamente a difusio dos flmes por causa das fontcras lingisticas na propria época em que 0 fas ‘ismo insistin aos inteestesnacionais, Essa resess2o, em breve atenuada pela dublagem, deve importar-nos fmenos do que-o seu eo com 0 fascitmo, Os dois fendmenos sio simultinans porque esto ligados & crise fconémica. As mesmas perturbagées que «g70550 moso, conduziram a procura dos meios de grant, pla forga, 0 estatuto da propriedade, apressaram os capitalistas do cinema a conerstizarem © advento do filme falado, Essa descobereatrouxeIhes um desafogo passagero,contribuindo pars propiciar is massas 0 goto peo cinema, sbretudo, vneulando os eapitas dessa indistria aos novos capita provenientes da inlstria ric Assim, visto de fora, o cinema faladofavoreves aos iteresses nacional, mas, visto de dentro, prove ‘04 uma maior intemasionalzapio dos interesses, "6" Essa opasigdo escapa necessariamente @ uma etéica idealist a idéia de beleza, desta iltima, somente aadmite uma duaidade indeterminada — e,em conseqiéncia,recusasta qualquer decisio, Hegel, no entanto, ‘entrevu o problema, anto quant Ihe perma seu idealism. Disse, em Vorlesungen liber dle Philosophie der Geschichre: “As imagens exsiem ja bd muito. A piedade sempre as exigia como cbjtos de devogio, mas no tinha necessidadealguma de imagens belas. A imagem bela contém, asim, um elemento exterior, porém & na medida em que & bela que o seu espirito fala aos homens ora, com a devordo, tata se de uma necesidade sssencial a existéncia de uma relagio a uma coisa, pois, por si prpria, ela no € mais do que o entorpe mento da alma... A Bela Arce... nasceu dentro da Igreja.-.. embora aarejéhaja emergido do principio dda ate”. Uma passagem de Vorlesungen iber die Aesth indica igualmente que Hegel ressenia a exis: téncia do problema: "Nio estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino As obvas de arte, onde se podia dedicar Ines pres; a impressio que elas nos transmitem & mais dscreta ea sua capacidade de emo. ‘Sonar ainda requer uma peda de toque de ordem superior”. A passagem do primeiro modo para o segundo ‘condiciona em geral todo process hstéico da eceplvidade as obras de ate. Quando se est desprevenido, feast por principio, «a cada obra particular, condenado a oselar entre esses dois meios oposos. Apés o$ 2 BENJAMIN imagens que servem ao culto, Pode-se admitir que a propria presenga dessas ima- gens tem mais importancia do que 0 fato de serem vistas. O alce que 0 homem fi- gura sobre as paredes de uma gruta, na idade da pedra, consiste num instrumento magico. Ele esta, sem divida, exposto aos olhos de outros homens, porém — antes de tudo — é aos espiritos que ele se enderega. Mais tarde, & precisamente esse valor de culto como tal que impele a manter a obra de arte em segredo; algu- imas estituas de deuses 56 sio acessiveis ao sacerdote, na cella, Algumas virgens permanecem cobertas durante quase 0 ano inteiro, algumas esculturas de cate- drais goticas sao invisiveis, quando olhadas do solo, Na medida em que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, as ocasides de serem expostas tornam-se mais numerosas. Um busto pode ser enviado para aqui ou para la; torna-se mais exibivel, em conseqiiéncia, do que uma estétua de um deus, com seu lugar delimi- tado ao interior de um templo. O quadro é mais exibivel do que © mosaico ou 0 affesco que Ihe precederam. E se se admite que, em princfpio, a missa foi tBo exi bivel quanto a sinfonia, esta iltima, entretanto, apareceu num tempo em que se poderia prever que ela seria mais facil de apresentar do que a missa. As diversas técnicas de reproducdo reforgaram esse aspecto em tais propor- ‘ges que, mediante um fendmeno andlogo ao produzido nas origens, desloca- mento quantitativo entre as duas formas de valor, tipicas da obra de arte, transfor- mouse numa modificagdo qualitativa, que afeta a sua propria natureza. Originariamente, a preponderancia absoluta do valor de culto fez — antes de tudo — um instrumento magico da obra de arte, a qual s6 viria a ser — até determi nado ponto — reconhecida mais tarde como tal. Do mesmo modo, hoje a prepon- derancia absoluta do seu valor de exibigdo confere-Ihe fungdes inteiramente novas, entre as quais aquela de que temos consciéncia — a fungio artistica — poderia aparecer como acess6ria.'* E certo que, a partir do presente, a fotografia ©, mais ainda, o cinema testemunham de modo bastante claro nesse sentido. trabalhos de Hubert Grimm, sabe-se que a Virgem de Sio Sisto foi pintads para fins de exposigdo. Grimm indagava-se a respeito da fungio da tira de madera, que no primero plano do quar, serva de apoio a duas figuras de anjos; pergumtava-se 0 que poderia ter levado um pintor como Rafel a fazer com que 0 ca pat rasse sobre dois suportes. Sua pesquisa revelou-lne que essa Virgem hava sido encomendada para o sepulta mento solene do papa. Essa ceriménia desenrolou se numa cape lateral igreia de Sao Pedro. O quadro ‘ava instalado no fundo da capela, que formava uma espécie de nicho, Rafael representow a Vitgem, por assim dizer, saindo daquee nicho, dlimitado por suporte verdes, afim de avangar, sobre as nuvens, em dite ‘0 do caixdo pontifical. Destinado para os funerais do papa, 0 quadro de Rafael, antes de tudo, possuia um Valor de exposigdo. Pouco mais tarde, dependuraram-no sobre o altar mor daigrela dos monges negros em Plaisance. O motivo desse exlio foi que o ritual romano proba a veneragao nim altar mor de imagens texpostas no decorer de funerais. Tal presrigdo trou um pouco do valor comercial desta obra de Rafael. A fim de, no entanto, vendéis pelo seu valor, a Caria resolveu tora tacitamente que os compradores pudes sem expé-le num altar-mor. Como ndo se desejava a repercussio do fata, enviou-se 0 quaco a uns trades, ‘uma provincia afastada, 7 Em nivel diverso, Brecht apresentaconsideragbesanéloges: “Desde que a obra de arte se tomna mercado: ria, essa nogio (de obra de arte) jnlo se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos, com prudéncia «© precaugio — mas sem receio — renunciar & nogio de obra de arte, casa desejemos preservar sua fungao dentro da propria coisa como tal designada. Trata-e de uma fase necessris de ser atravessada sem dssimu: lagées: essa virada ndo € gratuita, ea conduz a uma transformagao fundamental do objeto e que apaga seu passado a tal ponto, que, caso a nova nogdo devareencontra seu uso —e porque nio? nao evocara mal aualquer das lembrangas vineuladas sa antiga sgnficasio” A OBRA DE ARTE 13 VL Com a fotografia, 0 valor de exibigao comega a empurrar o valor de culto — ‘em todos os sentidos — para segundo plano. Este tiltimo, todavia, néo cede sem resisténcia — sua trincheira final é o rosto humano, Nao se trata, de forma algu- ‘ma, de um acaso se o retrato desempenhou papel central nos primeiros tempos da fotografia. Dentro do culto da recordagao dedicada aos seres queridos, afastados ou desaparecidos, 0 valor de culto da imagem encontra 0 seu tltimo refiigio. Na expressio fugitiva de um rosto de homem, as fotos antigas, por iltima vez, substi tuem a aura. E 0 que Ihes confere essa beleza melancélica, incomparavel com qualquer outra. Mas, desde que 0 homem est ausente da fotografia, o valor de exibigdo sobrepde-se decididamente ao valor de culto. A importancia excepcional dos clichés, tomados por Atget, no século XIX, nas ruas vazias de Paris, existe justamente porque cle fixou localmente essa evolugio. Declarou-se, com azo, que ele fotografou essas ruas tal como se fotografa o local de um crime, O local de um crime também € deserto — o cliché que dele se tira ndo tem outro objetivo senio 0 de descerrar 0s indicios. Para a evolugao, aqueles legados por Atget cons~ tituem verdadeiras pegas de convicgao. Assim sendo, eles tém uma significagéo politica secreta. Ja exigem serem acolhidos num certo sentido, Nao se prestam mais a uma consideragao isolada. Inquietam aquele que os olha: a fim de capta- los, o espectador prevé que Ihe & necessario seguir um determinado caminho. Ao mesmo tempo, 0s jomais ilustrados comegam a se apresentar a ele como indica- dores de itinerario. Verdadeiros ou falsos, pouco importa. Com esse género de fotos, a legenda tornou-se, pela primeira vez, necesséria. E tais legendas detém, evidentemente, um cardter bem diverso do titulo de um quadro. As orientagdes {que 0 texto dos jomais ilustrados impde aqueles que olham as imagens far-se-a0 logo ainda mais precisas e imperativas mediante 0 advento do filme, onde, pelo visto, nfo se pode captar nenhuma imagem isolada sem se levar em conta a suces- sio de todas as que a precedem. vit ‘A polémica que se desenvolveu no decurso do século XIX, entre os pintores €.08 fotdgrafos, quanto ao valor respectivo de suas obras, da-nos hoje a impressiio de responder a um falso problema ¢ de se basear numa confusio. Longe de, nisso, contestar a sua importancia, tal circunstancia sé faz enfatiza-la. Essa polémica traduzia de fato uma perturbagdo de significado historico na estrutura do universo e nenhum dos dois grupos adversérios teve consciéncia dela. Despregada de suas bases ritualisticas pelas técnicas de reprodugio, a arte, em decorréncia, nao mais podia manter seus aspectos de independéncia, Mas o século que assistia a essa evolugio foi incapaz de perceber a alteragdo funcional que ela gerava para a arte, E tal conseqiiéncia, até durante longo tempo, escapou ao século XX, que, no entanto, viu 0 cinema nascer e se desenvolver. Gastaram-se vas sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou nio arte, la BENJAMIN porém nao se indagou antes se essa prépria invengao nao transformaria o carter geral da arte; 0s tebricos do cinema sucumbiriam no mesmo erro. Contudo, os problemas que a fotografia colocara para a estética tradicional nao eram mais que brincadeiras infantis em comparago com aqueles que o filme iria levantar. D: essa violéncia cega que caracteriza os primeiros te6ricos do cinema, Abel Gance, por exemplo, compara o filme & escritura hieroglifica: “Bis-nos, devido a um fabuloso retorno no tempo, de volta sobre 0 plano de expressio dos egipcios... A linguagem das imagens ainda néo chegou @ maturidade porque ndo estamos ainda feitos para elas. Inexiste ainda atengdo suficiente, culto por aquilo que elas exprimem”. Séverin Mars escreveu: “Que arte teve um sonho mais elevado. . . mais poético e, em paralelo, mais real? Assim considerado, 0 cinematdgrafo tornar-se-ia um meio de expresso de fato excepcional ¢ em sua atmosfera somente deveriam mover-se personagens de pensamento superior, nos momentos mais per- feitos e misteriosos de sua existéncia”.** Alexandre Amoux, por seu turno, ao término de uma fantasia a respeito do cinema mudo, nao teme concluir: “Em suma, todos 0s termos aleatérios que aca- bamos de empregar nao definem a prece”?" * E bem significativo que o desejo de conferir ao cinema a dignidade de uma arte obriga seus tedricos a nele introduzir, através de suas proprias interpretagdes e com uma inegavel temeridade, elementos de carater cultural. E, no entanto, na mesma época em que publicavam’ suas especulagdes, ja se podiam ver nas telas obras como A Woman of Paris (Casa- ‘mento ou Luxo?) e The Gold Rush (Em Busca do Ouro). O que nao impedia Abel Gance de se arrisear na comparagao com os hieréglifos e Severin Mars de falar sobre cinema no tom adequado as pinturas de Fra Angelico! E ainda caracte- ristica hoje em dia a tentativa dos autores especialmente reacionérios de inter- pretar o cinema dentro de uma perspectiva de género idéntico e a continuarem a Ihe atribuir, seno um valor exatamente sagrado, pelo menos um sentido sobrena tural. A propésito da adaptagdo cinematografica de A Midsummer Night's Dream (Sonho de Uma Noite de Verdo) feita pot Max Reinhardt, Franz Werfel afirma que apenas, e sem divida, a cépia estéril do mundo exterior, com suas ruas, seus interiores, suas estagdes, scus restaurantes, seus automéveis © suas praias impediram até agora ao cinema ascender ao nivel da arte: “O cinema ainda ndo apreendeu seu verdadeiro sentido, suas verda- deiras possibilidades. . . Elas consistem no poder que ele detém intrinse- camente de exprimir, por meios naturais, e com uma incompardvel capa- cidade de persuasdo, 0 feérico, 0 maravithoso, 0 sobrenatural”.** Abel Gance, le. lt. p. 100 "2 Séverin Mars, cit por Absi Gance, oe. tp. 10. "4 Alexandre Arnoux, Cinéms, Paris. 1929. p. 28 +» Brana Werfels “Ein Sommemnachistraum”, Newes Wlener Journal nov. 1935, A OBRA DE ARTE, Is Vu No teatro é, em definitivo, 0 ator em pessoa que apresenta, diante do piiblico, a sua atuagdo artistica; j4 a do ator de cinema requer a mediagio de todo um mecanismo. Disso, resultam duas conseqiiéncias. O conjunto de aparelhos que transmite a performance do artista a0 piblico nao est obrigado a respeité-la integralmente. Sob a diregao do fot6grafo, na medida em que se executa o filme, 9 aparelhos perfazem tomadas com relagdo a essa performance. Essas tomadas sucessivas constituem os materiais com que, em seguida, 0 montador realizard a montagem definitiva do filme. Ele contém determinado niimero de elementos m6. veis que a cémara levara em consideracdo, sem falar de dispositivos especiais como os primeiros planos. A atuago do intérprete encontra-se, assim, submetida a uma série de testes épticos. Essa é a primeira das duas conseqiiéncias a gerar a mediagao necessaria dos aparelhos entre a performance do ator ¢ 0 piblico, A outra refere-se ao fato de que 0 intérprete do filme, nao apresentando ele proprio a sua performance, no tem, como o ator do teatro, a possibilidade de adaptar a sua atuagio as reagGes dos espectadores no decorrer da representaco. O piblico acha-se, assim, na situagao de um perito cujo julgamento nao fica perturbado por qualquer contato pessoal com o intérprete. $6 consegue penetrar intropaticamente no ator se penétrar intropaticamente no aparélho. Toma, assim, a mesma atitude do aparetho: examina um teste. ® Nao se trata de atitude & qual se possa submeter 05 valores de culto. Ix No cinema, é menos importante o intérprete apresentar ao piblico uma outra personagem do que apresentar-se a si proprio. Pirandello foi um dos primeiros a sentir essa modificagao que se impde a0 ator: a experiéncia do teste. O fato de se limitarem a sublinhar 0 aspecto negativo da coisa no elimina em quase nada 0 valor de suas observagdes que podem ser lidas em seu romance: Si Gira. Menos ainda 0 fato de ai se tratar apenas do filme mudo, pois 0 cinema falado, no tocante a isso, nao traz. nenhuma modificagdo fundamental: “Os atores de cinema” — escreveu Pirandello —, “sentem-se como se estivessem no exilio. Exilados nao sé da cena, mas deles mesmos. Notam *£ “0 filme... propicia(podera propiciar, ano detahe, conelusde eis respito ds condutas hua ras. A partir do cariter de um homem ni se pode deduzit nenhum dos seus motivos de comportamento, a vida interior das pessoas nunca &escencialc, raramene, cla consiste no resultado mais importante de suas conduias” (Brecht, Versuche, Der Drelgroschenoperproress). Ampliando © campo do teste, © pape dos ap ethos, na representagio dos filmes, desempenh, para 0 iadividyo, uma fangio anloga agus do conjunto de cireunstancias econimicas que aumentaram de modo extraordindro os terenos onde ele pode se estado Verifiea se asim, que os testes de crientagao profssional da a gia, ganfiam mais inportaneis. Consstem rium determing nimero de decupagens dae performances do individuo. Tomads cinematogrieas, provas de orienta profissional, amas se desenvoivem diane de um aredpago de tsnicos,O diretor de montagem encontra-se em seu esti exatemente na mesma stuagio gue o controlador de testes, or ocasizo do exame de orienta peofssona 16 BENJAMIN confusamente, com uma sensagao de despeito, 0 vazio indefinido e até de decadéncia, ¢ que os seus corpos so quase volatilizados, suprimidos e privados de sua realidade, de sua vida, de sua voz e do ruido que produ- zem para se deslocar, para se tornarem uma imagem muda que tremula um instante na tela ¢ desaparece em siléncio... A pequena méquina atuaré diante do piiblico mediante as suas imagens ¢ eles devem se con- tentar de atuar diante dela”:*? Existe af uma situagio passivel de ser assim caracterizada: pela primeira vez, ¢ em decorréncia da obra do cinema, o homem deve agir com toda a sua persona- lidade viva, mas privado da aura, Pois sua aura depende de seu hic et nunc. Bla nao sofre nenhuma reprodugao. No teatro, a aura de Macbeth é insepardvel da ‘ura do ator que desempenha esse papel tal como a sente o piblico vivo. A toma- da no estiidio tem a capacidade peculiar de substituir 0 piblico pelo aparelho. A aura dos intérpretes desaparece necessariamente e, com ela, a das personagens que eles representam. "Nao se deve ficar surpreso que, precisamente um dramaturgo como Piran- dello, através de sua andlise do cinema, atinja de modo involuntério aquilo que & basico na crise atual do teatro, Nada se opie mais radicalmente do que 0 teatro A obra inteiramente concebida do ponto de vista das téenicas de reprodugao, ou melhor, aquela que, como o cinema, nasceu dessas proprias téenicas. Isso Se con- firma mediante qualquer estudo sério do. problema. Desde muito tempo, os bons conhecedores admitem, como escrevia Amheim em 1932, que, no cinema, “€ quase sempre interpretando 0 minimo que se obtém mais efeito. .. A diltima esca- la do progresso consiste em reduzir o ator a um acessério escolhido pelas suas caracteristicas. .. e que se utiliza funcionalmente”.*® Outra circunstncia liga-se a esta de modo mais estreito: se o ator teatral entra na pele da personagem repre- sentada por ele, € muito raro que o intérprete do filme possa tomar idéntica atitu- de, Ele no desempenha o papel ininterruptamente, e sim numa série de 27 Luigi Pirandello, On Tourne, citado por Léon Pierre Quint, “Significtion sraphique, Il, Pais 1927p. 14s) "2 Rudolf Arahcim: Film als Kurs, Berim 1932, pp, 176 s, Dentco dessa perspectiva,eertas particular dades aparentemente sesundiras, que distinguew a dregdo cinematografia eo experimento teal, tomam: se mais interessante: enre outras, a tentativa de alguns dietores — Dreyer em sua Jeane d'Are — de ‘suprimir a maguilagem dos stores. Dreyer demorow meses para conseguir reunir os quatena intérpretes que

Você também pode gostar