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T / CG: SD PARA ALEM DA IDENTIDADE Fluxos, movimentos e transitos Luiz Paulo da Moita Lopes Liliana Cabral Bastos Hewanitas | Organizadores Em recorte multidisciplinar, este livro retoma uma das questdes DC CSC ORAL p SES ear I) e Humanas nos ultimos tempos: a tematica identitaria. Compreendendo ECM mS) RUT fluxo, movimento e transito, os autores ede LeU MUL M CCI ea Pee esc UE ML cocci de se refletir sobre um mundo pés- SUC R Ase e eC korg Pr Te ns ch aes) PCPA MS Clete OM Meh Pie eee eS CML ge RUN ULCER Arc questionam uma visao da vida social restrita a bipolandades (somos isto PARA ALEM DA IDENTIDADE a a al FLUKOS, MOVIMENTOS E TRANSITOS fo contingente, nas opacidades, nas Pere MO Cee portanto, em um tornar-se continuo Porc ea ie ecm 0 texto extrapola o discurso acadé- Ese BB e co el eey 7 Poet fe cont EE meee) ref Leticia Frage $80 as confluéncias e hibridizagoes Dee Pern sem Se @ades © femniidades, imigranies e te BeULie yg PE hoe eS DM tot etd Dee ee ee De CMe eu CL ay Bcc eur DCL MeL histéria, periferia e tecnologia. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Rermoe Ronaldo Clélio Campolina Diniz ‘Vice-Rerron Racksane de Carvalho Norton EDITORA UFMG Disetor Wander Melo Miranda Vice-Disrtora Silvana Céser CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Miranda (presidente) Flivio de Lemos Carsalade Heloisa Maria Murgel Starling Marcio Gomes Soares Maria das Gracas Santa Barbara Maria Helena Damasceno e Silva Megale Paulo Sérgio Lacerda Beirio Silvana Coser Luiz Pauto pa Morita Lopes LiniANA CaBRAL Bastos ORGANIZADORES. PARA ALEM DA IDENTIDADE FLUXOS, MOVIMENTOS E TRANSTTOS A Dré Leticia Fraga onp UEPG Belo Horizonte Editora UFMG 2010 © 2010, Os autores © 2010, Editora UFMG Este lio ou parte dele mio pode ser reproluzide por qualquer meio sem autonzaciee escrita do Editor. Para algm da identidade : Muxos , movimentos e trnsitos / Luiz Paulo a Moita Lopes, Liliana Cabral Bastos, orginizadores. — Belo Horizonte : Felton UEMG, 2010. P21 319 p. il = Humanitas) Goletinea de trabalhos apresentados no I! Simpdsio Nacional Discurso, Klentidacle ¢ Sociedade, realizado no Rio de Janciro em 2006, Inctui bibliografia. ISBN: 978-85-7041-855-1 1. Sociologia ~ Coletinea, 2. Lin Luiz Paulo da. 1. Bastos, Liliana Cabral. INL Simpdsio Nacional Discurso, Kent dade e Sociedade (2. : 2006: Rio de Janeiro, RD IV. Série. istica, 3. Kdentidacle social. 1. Motta Lopes. DD: 49) CDE 316 Elaborada peta DITTI - Setor de Tratamento da Informacao da Bibliowea Universitiria da UFMG Este livro recebeu apoio do Programa de Pés-graduagdo em Linguistica Apli- cada da UFRJ ¢ do programa de Pés-graduagio em Letras da PUC-Rio. DIRETORA DA COLEGAO Heloisa Maria Murgel Starling ASSISTENCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclidia Macedo EDITORAGAO DE TEXTO. Maria do Carmo Leite Ribeiro REVISAO E NORMALIZACAO Danivia Wolff REVISAO DE PROVAS Nathalia Campos PROJETO GRAFICO. Gloria Campos ~ Manga FORMATACAO E CAPA. Diégo Oliveira PRODUGAO GRAFICA Warren Marilac EDITORA UFMG Av. Anténio Carlos, 6,627 ~ Ala dircita da Biblioteca Cen Campus Pampulha ~ 31270-9091 - Belo Horizonte/MG Tel: + 55 31 3409-4650 Fax: + 55 31 3409-4768 yew editora.ufmg.br editora@ufmg br erte0 SUMARIO APRESENTAGAO, Luiz Paulo da Moita Lopes Liltana Cabral Bastos INTRODUCAO- A EXPERIENCIA IDENTITARIA NA LOGICA DOS FLUXOS Uma lente para se compreender a vida social Luiz Paulo da Moita Lopes Liliana Cabral Bastos CONSTRUGAO IDENTITARIA NA OTICA DA TRANSDIFERENGA Heidrun Krieger Olinto JANELAS INDISCRETAS Eneida Maria de Souza REDES DE MEMORIA E HISTORIA NA BAIXADA FLUMINENSE Priticas discursivas, processos de configuraciio € reconfiguragio das identidades sociais Ana Lucia $. Enne TEMPO, ESPACO E IDENTIDADE EM NARRATIVAS DE IMIGRAGAO Anna de Fina POLITICAS DE ACAO AFIRMATIVA Discurso, identidade e inclusio social Anna Elisabeth Balocco IDENTIDADE E (IN)DEFINICAO LINGUISTICA Galego e/ou portugués Xodn Carlos Lagares & - 61 107 129 IDENTIDADES EM EXCLUSAO 8 personagens femininas de Tony Morrison e Maya Angelou Cldudia Maria Ceneviva Nigro MARGINALIDADE, Exclusio e identidade autoral Karl Erick Schollhammer DO LITERARIO AO IDENTITARIO Espaco ¢ tempo nas representagdes da AmazOnia ribeitinha Edir Augusto Dias Pereira VIAJANTES POS-MODERNOS II Guacira Lopes Louro SEXO E PODER NAS TRAMAS POS()IDENTITARIAS Reflexdes sobre a prostituig3o masculina Henrique Caetano Nardi ENTRE DISCURSOS, JEITOS E GESTOS, Performance de género e sexualidade no mercado erstico de travestis e crossdressers Leandro de Oliveira TEXTUALIDADE DA CIDADE CONTEMPORANEA NA EXPERIENCIA HOMOEROTICA Marcelo Santana Ferreira 4 DINAMICA DOS (RE)POSICIONAMENTOS DE SEXUALIDADE EM PRATICAS DE LETRAMENTO ESCOLAR Entre oscilacdes € desestabilizagdes sutis Branca Falabella Fabricio Luiz Paulo da Moita Lopes SOBRE OS AUTORES 1st 167 181 203 261 283 31S APRESENTACAO Este livro € constituido por trabalhos selecionados entre 111 artigos submetidos para publicagao dentre os 334 trabalhos apresentados no II Simpésio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade, coorganizado pelos Programas de Pés-graduacao em Linguistica Aplicada da UFRJ e de Letras da PUC-Rio, com apoio da Capes e Faperj. Tal evento teve grande repercussio nao s6 pelo interesse que a temdtica das identidades desperta no mundo académico e fora dele atualmente, mas também pela singularidade de sua natureza multi e transdisciplinar. Ainda que na academia € nas agéncias de pesquisa frequentemente se reconhegam a necessidade e a relevancia de epistemologias que atravessem varias Areas do conhecimento, os limites dos departamentos universitérios e das associagées cientificas normalmente nao possibilitam espacos para trocas entre areas do conhecimento e nem fomentam percursos de investigacao de tal natureza, o que vem explicar o interesse despertado pela proposta do evento. A problemitica da identidade continua atraindo, neste inicio de milénio, um grande niimero de pesquisadores, em um mundo que se repensa continuamente, provavelmente como efeito das sociedades altamente reflexivas em que estamos situados. Vivemos sob um leque de possibilidades identitérias que questionam muitas das hist6rias que nos contaram sobre quem poderiamos Ser € que se constituem agora como projetos contingenciais sobre quem pocemos ser, levando a incertezas, indagagdes e questiona- Mentos cotidianos, Paralelamente a priticas sociais que defendem politicas de identidades, defrontamo-nos hoje com configuragdes Pos-identitirias, apontando novas formas de sociabilidade, que constitiem, em muitos circulos, o grande Projeto politico contem- Pordineo. Nao € de se estranhar, Portanto, que tal temitica parte da agenda de pesquisa de praticamente toda A conhecimento nas Ciéncias Humanas e Sociai ao Design, da Geografia 8 Administragao, da Literatura 3 Coletiva, conforme evidenciado no evento e neste livro, Este volume, especificamente, contém artigos de pesquisaclores que atuam nas dreas de Linguistica Aplicada, Linguistica, Liter- ura, Sociologia, Psicologia, Antropologia, Educacio e Geografia, mas Cuja pesquisa — n3o somente pela temitica enfocada mas também pelo tratamento transdisciplinar do objeto de inves iga ~ € de interesse para o amplo espectro das Ciencias Sociais ¢ Humanas. Mais importante do que a area de filiago dos autores € 2 pesquisa que realizam e os insights que esta produz. Espe- ramos que um livro dessa natureza possa ser ttil para fomentar 3 producio de conhecimento transdisciplinar, uma das grandes metas das agendas contemporineas de Pesquisa. Este volume apresenta reflexdes que tratam da questo da identidade sob a l6gica do tansito, da fronteira ou dos entrelugares, Somos gratos pelo apoio de nassas universidades, dos programas 08 quais estamos filiados, da Capes e da Faperj, que possibilitaram 2 realizacio do evento. Em especial, queremos agradecer a Lucia Pacheco de Oliveira (PUC-Rio), Branca Falabella Fabricio (UFRJ), Ines Kayon de Miller (PUC-Rio), Miriam Brito Correa Nunes (CFR), Maria do Carmo Leite de Oliveira (PUC-Rio), Maria da Graca Dias Pereira (PUC Rio), Ana Paula Kiffer (PUC Rio), Roberto Ferreira da Rocha (UFRJ) e Alexandre Montaury (PUC-Rio), pelo apoio na organizacao do evento. Também niio podemos deixar de expressar nossos agradecimentos aos 58 membros da comissio Gentifica multidisciplinar que levou a efeito o trabalho de arbitrar os Tesumos submetidos ao evento. A escolha final dos artigos incluidos neste volume 6, Porém, nossa. Os organizadores LUIZ PAULO DA MOITA LOPES LILIANA CABRAL BASTOS ; INTRODUGAO A EXPERIENCIA IDENTITARIA NA LOGICA DOS FLUXOS UMA LENTE PARA SE COMPREENDER A VIDA SOCIAL Nossa existéncia hoje esté marcada por uma tenebrosa sensacao de sobrevivéncia, de viver nas fronteiras do “presente”, para as quais no parece haver nenhurn nome adequado (...) Encontramo- “fos no momento de transito em que espaco e tempo se cruzam. Para produzir figuras complexas de diferenca e identidade, Passado € presente, interior e exterior, inclusao € exclusao (...) Isso porque ha uma sensagio de desorientagdo, um distirbio de direcdo no “além": um movimento exploratorio incessante, que © termo francés au-deld capta to bem ~ aqui e la, de todos os lados, fort/da, para la e para c4, para frente e para tris, Homi K. Bhabha De perspectivas tedricas diferentes, com enfoques transdisci- plinares e com objetos de estudo diversificados sobre as priticas identitarias, os capitulos que constituem este livro se apoiain em visdes sobre a vida social que desejam questionar posigdes fincac em binarismos fechados, homogeneizados ¢ bem delineados sobre quem somos. O livro, portanto, ambiciona refletit sobre a Vida social com base em um projeto tedrico que almeja apontar alternativas para compreendé-la, ao mesmo tempo que sinaliza Novas configuragdes sobre quem somos ou podemos ser. Tal projeto escapa da dtica do “somos isto ou aquilo” (homens ou mulheres, brancos ou negros, heterossexuais ou homosse- Xuais ete), que se apoia na ideia de que ha somente dois tinicos lugares para se ocupar no mundo social, com diferencas bem marcadas e determinadas entre eles, e com um tinico espacgo entre os dois que os demarca. Tal visio abandona a Otica da identidade (a da mesmidade ou do igual a0 mesmo em opos 2 outridade/alteridade, portanto), prestigiando uma l6gica que, ao desvalorizar os tradicionais binarismos identitdrios bem delimitados, procura sentido nos €spa¢os opacos, nos meandros Pouco claros, nas fronteiras em que as ideias, as pessoas e as culturas em fluxo se entrecruzam e se misturam. Langa, desse modo, um olhar para além da identidade, colocando sob foco 0 que no tem nome, ou seja, © que nao estd incluido nos lugares polarizados disponiveis, Ou, como diz Skliar: G..) os inominaveis sto os que nio so nem isto nem aquilo. Aquilo que nao se presta ao jogo da oposigao nem de sua l6gica, Aquilo que deixa 2 ordem sem efeito, que a desordena. Os inomindveis fragilizam todo conhecimento, toda determinacdo, Sio, por isso mesmo, a indeterminacao, o adiamento do conhe. cimento, o deixar para depois ~ e sempre para depois — toda classificacao, toda definigao, toda catalogacao.! Ou ainda, como pergunta o mesmo autor: ) acaso todo 0 humano esté aprisionado numa relacio de excluso/inclusio? E toda voz, todo corpo, cada gesto, cada olhar, todo espago ¢ todo tempo exclusio e/ou inclusio? Nao € este binGmio uma forma perversa de olhar, de representar-se ¢ agir no mundo e, também, um modo de esconder/obscurecer o hibrido, 0 inclassificavel, o indeterminavel, o ambiguo, o ambivalente , enfim, a contradigio? Somos de opiniiio de que (al intravisto pode fomecer caminhos Outros para a compreensio da vida social ao formular uma epis- temologia altemativa que era objetos de estudo diferentes e outras interpretacdes e compreensdes. O que se Propde é um convite a pensar diferente, semelhante aquele que nos faz Mignolo (2000), NO contexto especifico da teorizagao pés-colonial, quando nos exorta a caminhar pelo que chama de uma epistemologia de 10 fronteira, que parece ser mais adequada ao mundo de barreiras e€ limites porosos em que vivemos, Esse convite, que também é feito neste volume, ecoa o pedido de Kearney (1998, p. 368), quando fala da “necessidade ética de imaginar de modo dife. rente”, produzindo outras maneiras de se pensar, que fogem de estradas epistemoldgicas j4 atravessadas, Trata-se, portanto, de uma convocagio para ir além, em que G.) “além” significa distincia espacial, marca um progresso, Promete o futuro; no entanto, fas] sugestées para ultrapassar a barreira ou 0 limite —o proprio ato de ir além ~ so incogniciveis, irrepresentaveis, sem um retomo ao “presente”, que no proceso de repeticao torna-se desconhecido ¢ deslocado? Nao é de se estranhar, portanto, que os capitulos cologuem sob andlise processos de hibridagao, de ambivaléncia e de ambiguidade, entre outros, nos quais 0 privado e 0 piblico, o masculino € o feminino, o imigrante € o entrevistador, variedades linguisticas hegemdnicas e nao hegeménicas, atores centrais e marginais, o heterosexual e o homossexual, o branco e o negro, a légica monocultural e a multicultural, 0 texto eo hipertexto, 0 memorialista e o historiador, a periferia e a tecnologia etc. estejam em um movimento de confluéncias e misturas. Colocar o pé, por assim dizer, nos dois lados de tais bina- rismos ao mesmo tempo € colaborar na construgio de uma epistemologia que, ao prestigiar a fronteira ou o fluxo entre os dois polos, oferece uma lente alternativa para compreender a vida social em transito, em movimento ou nos entrelugares. Tal metifora parece dar conta, mais adequadamente, dos modos por meio dos quais nos situamos cada vez mais nas praticas sociais, ja que este € um mundo dos fluxos, como diz Appadursi (1996). E um mundo “caracterizado por objetos em movimento, [quel incluem ideias ideologias, pessoas ¢ mercadorias, imagens e mensagens, tecnologias € téenicas”.* Isso nao quer dizer, por outro lado, que em outros momentos da hist6ria, os movimentos, os transitos, os fluxos nao fossem constitutivos de quem somos, ja que “‘existir’ seria existir sempre em movimento, em meio a oscilagées entre continuidades e tupturas”.> No entanto, tal devir ficou mais exacerbado e muito mais facilmente identificavel nas prdticas em que vivemos, devido 40s avangos tecnologicos (midiiticos e outros), que possibilitam a al | compressio do espaco e a rapidez do tempo, quentes deslocamentos, muitas vezes sem que seja nec sairde casa, por meio dos discursos que as telas dos computador por exemplo, nos trazem. A exarcebagio dos fluxos identitiriog também se tomou mais visivel devido a politicas epistemo- logias contestatérias de visdes homogeneizadoras de no: sociabilidades — evidentes em movimentos sociais € teorizag = pés-coloniais, feministas, queer, antirracistas etc. -, surgidas em um mundo que faz a critica aos ideais da modernidade de progresso, cientificidade e racionalidade, que apagavam 0 corpo e sua histéria. Essas Oticas tém nos aproximado cada vez mais de outras narrativas sobre quem podemos ser, trazendo questionamentos sobre os limites alteritérios para dentro de nossas casas, aumen- tando e desafiando nossos repertérios de sentidos, bem como provocando incertezas, desequilibrios ¢ ambiguidades em para- digmas bindrios e polares sobre como estar na vida social, e nos colocando, assim, na fronteira, no fluxo e em um continuo devir, Por outro lado, tal vis’o nao acarreta a compreensio de que as referencias identitérias bindrias tenham deixado de existir:° muitas Sdo as reagdes essencialistas (algumas raivosas!) que persistem, apesar dos movimentos de desestabilizagao das tradicionais Polaridades identitérias encontraveis em toda Parte. Este volume colabora, especialmente, com a desconstrugio de visdes essencialistas sobre nossas sociabilidades, nao somente Pela desessencializacao de compreensdes homogeneizadoras ¢ binarizadas da vida social, mas, principalmente, por meio da focalizagao tedrica que constréi objetos de estudo nos entrelu- Bares dos binarismos, ao colocar sob escrutinio os fluxos. Assim fazendo, «tia novos t6picos de investigacao e prestigia o transito identitario, que parece estar muito mais préximo de como, de fato, vivemios nossas praticas sociais, nos compondo e recompondo continuamente nos discursos a que, incessantemente, nos vincu- lamos € dos quais nos desatrelamos. Talvez seja til metaforizar a aa como uma cozinha, como o faz, na verdade, Tolentino 2007) — uma compara¢2o pouco comum e talvez inesperada em um émic ii texto académico, mas que bem itustra nosso continuo tomar-se. Conforme ele diz, 12 (...) a cozinha é a metéfora da propria existéncia, pois distin- gue-nos uma certa capacidade dle viver na transformacdo, numa mobilidade que nao € 86 geogrifica mas total. (...) A cozinha € 6 lugar da instabilidade, da procura, das solugdes criativas mais imprevistas. Por isso se desarruma tantas ve7es, porque vive nessa laténcia de recomposigao. Na cozinha, torna-se claro que a transformacaio que damos &s coisas reflete aquela que acontece no interior de n6s.7 Como consequéncia do enfoque deste volume em uma légica do fluxo identitirio, para além da identidade, vale ressaltar que ‘os artigos aqui publicados nos apresentam a um instrumental te6rico-analitico e metodoldgico inovador que possibilita o empreendimento da pesquisa de modo responsivo & mobilidade identitéria ou ao mundo dos fluxos contemporaneos. Tal caracte- ristica torna possivel considerar se os percursos te6rico-analiticos e metodol6gicos de investigacao, elencados nos capitulos, sao apropriados as éticas de fluxo com as quais pretendem dialogar. Convidamos os leitores a se envolverem nesse percurso nas paginas seguintes, nas quais passamos a delinear os argumentos principais dos varios capitulos. DESFIANDO A TRAMA DOS CAPITULOS No Capitulo 1, Heidrum Krieger Olinto discute a questio da identidade do texto literario a luz das novas configuragdes que vém tomando na rede digital, as quais requerem teorizagdes alter- nativas para compreendé-lo. Seu ponto de partida é, desse modo, a necessidade de reteoriz4-lo. Sugere para tal o construto tedrico de transdiferenga que tem sido aventado para compreender os processos de hibrida ia que experimentamos. Argu- menta que situar a identidade na égide da tansdiferenca constitui um ganho epistémico singular para avancar para além cos limites de compreensdes binarias, ao ressaltar processos hibridos ou de fronteiras culturais (inter, trans € multiculturais), possibilitando lidar com a complexidade da contemporaneidade. Olinto aponta que 0 construto da transdiferenga nao é apenas uma metifora ambigua e pouco esclarecedora, mas que de fato toma visiveis at, COM SUA espacos opacos que o construto da diferenca elimi logica do “isto ou aquilo”. A légiea da tansdiferenca prestigia 13. a ambivaléncia ¢ a instabilidade da performance na fronteira ¢ Portanto, do vir a ser, 0 que por sua vez sé existe a partir de : Posides explictas de diferenga. Ao conctuir, discute a relevinas de tal instrumental tedrico para dialogar com 0 status connteeat ¢ do sistema literirio no mundo digital e no das multimedialidades (am mundo wans), ao enfocar a quest4o da autoria dispees: 4, sampling, linearidade textual, categorias dla historia da lnersean multimodalidade, literatura performatics ete, 7 FABRICIO, 2006, p. 46. © ROLNIK, 1997. 7 TOLENTINO, 2007, p. 28. REFERENCIAS APPADURAI, A. Modernity at large: Cultural dimensions of globalization. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996. APPADURAI, A. (Org.) Globalization. Durham: Duke University Press, 2001. BHABHA, H. O focal da cultura. Trad. Myriam Avila, Eliana L. Lima Alves © Glducia Renate Goncalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. FABRICIO, B. Linguistica aplicada como espaco de desaprendizagem: redescrigdes em curso. In: MOITA LOPES. L, P. (Org.) Por uma linguis- tica aplicada indisciplinar. Sao Paulo: Parabola, 2006. KEARNEY, R. The wake of imagination. Minneapolis: University of Min- nesota Press, 1998. LABOV, W.; WALETSKY, J. Narrative analysis: oral versions of personal experience, In: HELM, J. (Org,). Essays on the verbal and visual arts, Seattle/Londres: University of Washington Press, 1967, MIGNOLO, W. Local bistories/global designs. Coloniality, subaltern knowledges and border-thinking, Princeton: Princeton University Press. 2000. ROLNIK, S. Toxicmanos de identidade: subjetividade em tempo i D. (Org.) Cultura e subjerividade. saberes 1s, 1997. nOmades. Campin: SKLIAR, C. Pedagogia (improvavel) da diferenca: ¢ se © outro no estivesse a? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, TOLEN TING, 9. Prelecn. 4 Biola: tonuesic: peius Albiatied Lemenactanyy ae“ uetra Gas. Layermias Lshivgs Aasitin « Aivan. ZO, zou Tet Fotupratu & \atte Uma HEIDRUN KRIEGER OLINTO CONSTRUGAO IDENTITARIA NA OTICA DA TRANSDIFERENCA Como falar, hoje, de identidade em relagao ao fendmeno lite- ririo, a sua situacdo comunicativa, sua historicidade e possiveis formas de sua teorizacao? Essa questo ser abordada a pastir da concepgao de literatura como sistema social e cultural complexo. que, nas tiltimas décadas, expandiu as suas fronteiras além dos limites tradicionais do género como unidade textual especifica. Novas configuragées intermidiaticas — entre elas, a transformagao_ da midia impressa em escrita na rede digital - tiveram consequéncias para a nossa compreensio de literatura e para as opgdes de suas formas historiogrificas, que precisam ser percebidas e discutidas, porque elas esto alterando tanto os nossos habitos de ler e de escrever, quanto os nossos habitos de lidar com produgdes. simbélicas, de modo geral. Se adicionarmos a essas mudangas a crescente ocupacao de espagos inter e tansdisciplinares, ensaiada tanto no quadro dos estudos de literatura quanto em suas aliancas com estudos culturais, multiculturais e pés-colonisis, ficard evi- dente a necessidade de revisio do proprio instrumental teérico para tornar visivel a situaco alterada. AS questées que, no 4mbito dessas preocupagées, gostaria de submeter a uma reflexdo referem-se a uma avaliagao desses tépicos temdticos e 4 sua conceituagao numa perspectiva que se aproxima do idefrio implicado no conceito de transdiferenca, que, na qualidade de elemento tedrico, surge como proposta de compreender processos identitarios hibridos, entre eles, 0 sistema literdrio. | i TOLENTINO, J. Preficio, A Biblia Comtada pain sateen 1 Alling Lowenco na Quinta da» Lagrimas. Fe = cote & : Ushoa: Assia ¢ Alvim, 2077, a. HEIDRUN KRIEGER OLINTO CONSTRUGAO IDENTITARIA NA OTICA DA TRANSDIFERENCA ; Como falar, hoje, de identidade em relacao ao fenémeno lite- Pa rario, a sua situacao comunicativa, sua historicidade e possiveis formas de sua teorizago? Essa questo sera abordada a partir da | concepeio de literatura como sistema social e cultural complexo que, nas Gltimas décadas, expandiu as suas fronteiras além dos ! limites tradicionais do género como unidade textual especifica. Novas configuragées intermidiaticas — entre elas, a transformacao { da midia impressa em escrita na rede digital - tiveram consequéncias | para a nossa compreensio de literatura e para as opgdes de suas i formas historiogrificas, que precisam ser percebidas e discutidas, | porque elas esto alterando tanto os nossos habitos de ler e de escrever, quanto os nossos habitos de lidar com produgdes simbélicas, de modo geral. Se adicionarmos a essas mudangas a crescente ocupagio de espagos inter e transdisciplinares, ensaiada tanto no quadro dos estudos de literatura quanto em suas aliangas com estudos culturais, multiculturais ¢ pds-coloniais, ficara evi- dente a necessidade de revisio do proprio instrumental teérico para tornar visivel a situagdo alterada. As questdes que, no Ambito dessas preocupacdes, gostaria de submeter a uma reflexdo referem-se a uma aval desses tépicos tematicos e a sua conceituagdo numa perspectiva que se aproxima do idedrio implicado no conceito de transdiferenga, que, na qualidade de elemento teérico, surge como prop de compreender processos identitirios hibridos, entre eles, o sistema literdrio. & I Um primeiro olbar sobre um projeto recente que situa a problemitica da identidade sob o signo da transdiferenca permite enxergar a sua indole processual em contraste com modelos de oposigio bindria. Concebida como pensamento alternative, Proposta entende construgdes identitarias a partir de Processos: - diferenca aliados — concomitante e necessariamente — A coprodu co de transdiferenga. Nesta perspectiva, uma teoria da oH i. renga legitima os seus contornos indicando Pontos de contato € distingdes conceituais, em didlogo com modelos tedricos que acentuam igualmente processos hibridos inter, trans ¢ muhious turais em suas propostas de configuracdo identitaria, Os idealizadores do projeto, Breinig e Lasch, pretendem, desse modo, ocupar um lugar novo nos discursos atuais de identidade € diferenca, ao propor a manuten¢ao de fronteiras e aoa a0 mesmo tempo, a crescente dindmica interativa de _ € eventos pertencentes a muiltiplas esferas afetivas e cognitivas, geralmente invisiveis em molduras teéricas centradas sobre meca- nismos de redugdo de complexidade, que ocultam referéncias 4 Beteaiaa ee e impedem ou dificultam a sua recuperacao,! Br i © conceito doing identity, no contexto de uma Te- ae ie ee Permite enxergar fendmenos complexos Soe ee aes — tis como Processos socioculturais ame eee Producto reprodugao cultural e de Seen — lentidade e representagao simbélica case noe nie apenas Para a sua construtividade histori ee também, multiplos pertencimentos ao nt rnomenos de transdiferenga, contrariando a Sear ra oe Pela inclusao de agdes dissicentes, ae oo €/ou assimilagao, precisam ser (re)ne- el uando a sua entidade e respectiva identidade Trata-se je pretendesnlizaro pene eo a A minha leitura dos primeitos ee cod esse Projeto tedrico, a partir mento distinas ae an censas de areas de conheci- ae ransdiferenca em didlogo com 0 "a, publicados na coletanea Differenzen anders. i denken (Um modo diferente de pensar diferengas).? Qual seria, entio, a vantagem de se usar um neologismo para uma investigagao cientifica de processos identitarios, que pelo acréscimo do prefixo trans, arrisca ser apenas mais um termo metaférico e indeterminado, carregado de ambiguidades e, por isso, de teduzido potencial explicativo na discussio de identidade/ diferenga? Ou seja, em que consiste afinal a alegada especificidade de sua proposta? Para os americanistas da Universidade de Erlangen, na Alemanha, Helmbrecht Breinig e Klaus Lésch, 0 termo sransdiferenca deve © seu nascimento ao desejo de complementar o pensamento da diferenga ~ em seus extremos polares, facilmente confun- divel com modelos bindrios ou homogeneizantes - por uma focalizagio mais complexa dos processos periféricos ativos nas esferas culturais intersticiais, que se afastam dos centros reais ou simb6licos. Nesse sentido, o conceito de transdiferenca pretende enxergar o que permanece invisivel em modelos de diferenga, ou seja, aquelas zonas indcterminadas de multipla pertenca, marcadas por estruturas tacitas de poder. Central nessa proposta — e aparentemente paradoxal - € o reconhecimento enfatico da diferenga como forca geradora de orientac4o. Em outras palavras, a proposta ndo pretende subsumir a diferenca em uma unidade mais elevada, mas tampouco preserva-la apenas como forma de orientac4o indispensdvel. Nesta 6tica, tanto o foco exclusivo sobre a diferenca quanto a sua desconstrucio radical sio questionados em fungao do restrito potencial explicativo na investigacao de praticas, situagdes e fenémenos atuais concretos. Trata-se de uma concep¢do, de certo modo, em sintonia com a substituigio da ideia de diferenga-na-unidade por unidade-na-diferenca, proposta por David Theo Goldberg em seu ensaio introdutério 4 coletinea Multiculturalism. Interrogando tanto o modelo monocultaralista da assimilacio, que orientou durante longo tempo o sistema politico norte-americano, quanto 0 modelo de integracdo, expresso no termo melting-pot — baseado no comportamento normative do. cidadao americano na esfera ptblica e na tolerancia da conduta particular do etnoamericano na esfera privada -, 0 autor favo- rece um projeto de incorporacao. De indole tansgressiva, com acento afirmativo sobre a diferenga entendida numa perspectiva processual, esse modelo, por definig’o, se caracteriza pela infragdio das normas do status quo monocultural, pela promogao de novas iniciativas politicas de negociagio € pela contestagao da pureza obsessiva a partir do acento positivo sobre a energia criativa do impuro. Transdiferenca como concept in progress (conceito em desen- volvimento), com énfase no prefixo trans, pretende, dessa forma, cialogar com conceitos vizinhos de diferenca ~ e diferenga ng unidade ~ nao a partir de gestos de transgressdo de linhas fronteirigas anteriores, mas, dando relevo a ambivaléncia por elas produzida, sublinhando nesse proprio ato de confirmacao. performativa a sua inerente instabilidade. Homi Bhabha, de ao modo, sinalizava uma bivaléncia fundamte similar, a0 compreender fronteiras culturais como esterestipos fundados sobre continui- dades € estabilidades que demandam, na dimensdo espacial ¢ temporal simultaneamente, constantes formas de afirmacio e de repeticao, mas com énfase sobre a diferenca. Em outras palavras 608 processos operativos permanentes em espacos fronteiricos nao Tepresentam garantia de estabilidade, mas, antes, entendem-se como ameaga a continuidade de fronteiras e. por isso, necessitam de reiteradas estabilizagdes, pelo menos discursivas. O autor de O local da cultura articula o discurso Pos-coloniat contemporineo com a diéspora de intelectuais do chamado Terceiro Mundo, marcados por histérias de deslocamento. A sua dupla inscrigo cultural, conferindo-thes simultaneamente identidades plurais e parciais, esta presente tanto na elaboragio de repertérios tedricos complexos quanto em obras litertrias de ssutitonss bifenados, que, em suas respectivas produgdes raduzem ess condigzo pelo destaque dado a configuracdes hibridas. Termos como entrelugar, entremeio e entreiempo, nese imbito, ircunsorevem fendmenos e vidas oscilantes sixeados em expacos fronteirios, numa esfera do alm, formulada por Bosnia com “momento de tinsito em que espago € tempo se cuzem Peahair guras complesas de diferenca e ikavalaie"* Kees ‘ais de cuturt ed ane atual no represencim nem hoczoniee owes. nem o abandon s = com rea comm, ore 10 do pasado, mas demundam uma cons saci ayuda das posigdes concreus - de niga. enero. jocal Excraional, orientaglo sexual, locuikdade geopolzeca — dos Skettes que os habitum, a Ee . = a oo _ ao) dasemo. forercuitoral mas * 7 Snuigio de coatlito em seu interior. Culturis SSSatES SO se lamam visiveis contra Pano de fundo ss Smaart Os disientes es tes, pelo menos Gurunte certo tempo. podem movimentar-se em territérios localizados no entremeio das culturas, sem que esse lugar hibrido se transforme em terceiro espaco, em lugar alternativo estavel e duradouro. Um dos argu- mentos de Breinig e Lésch, balizado por numerosos exemplos, cita a condicao dos indigenas no mundo dos brancos, que nele se sentem como estranhos e nao se entendem necessariamente como defensores de direitos humanos liberais, mas tampouco como criticos de fronteiras culturais. E precisamente 0 carater precdrio € provisdrio desse lugar que encontra uma explicacio tedrica mais pertinente no conceito de transdiferenca, Ao mesmo. tempo, o seu préprio grupo transforma-os em estranhos, a medida que autoridades indigenas tendem a ver essa ambigua posicao transdiferente como ameaga ao seu sistema juridico e administrativo institucionalizado. E € em contextos como esses — impossiveis de serem explicados por modelos de desconstru- ¢4o ou de homogeneizagio ~ que o conceito de transdiferenca pode representar mais uma op¢io contra a légica excludente do “isto ou aquilo”, e ser capaz, em certo sentido, de satisfazer os dois lados.? Nesta argumentacao, o dissenso nao € celebrado, portanto, como saida a favor de um terceiro espaco, inaugural, independente, uniforme e estavel, mas como tentativa permanente de perturbar 0 conhecido com o germe do inaugural. Desse modo, 0 conceito de transdiferenca permite explicitar situacdes complexas, enxergando, pela critica de conceitos monoculturais, processos de intercmbio entre culturas distintas como regra ¢ nao como exce¢io. Em suma, um dos pontos de partida significativos para o conceito de transdiferenca encontra-se no questionamento do pensamento binario e da ideia subjacente a processos de trans- formagao lineares. Nesse sentido, afasta-se tanto da visio de grupos culturais, como portadores de determinadas identidades culturais claramente distinguiveis, quanto da compreensao da contingéncia cultural limitada & perspectiva diacr6nica, dando relevo 2 uma complexidade € heterogeneidade do sincrénico. A primeira opgio diz respeito 2 organizaglo espacial, enquanto a segunda se refere 2 ordem temporal, ambas vistas em sua condi¢ao interativa no modelo da transdiferenga. Ou seja, a condigio de transdiferenga inexiste sem a marca da diferenca. Os autores, idealizadores do projeto, esclarecem, em reiterados momentos do seu programa-manifesto, que o conceito pretende 29 a ma EE calories visualizar tudo que € refratirio, que se rebela contra a insergig em polaridades de diferencas bindrias, porque atravessa, por assim dizer, as fronteiras e torna oscilante a diferenca inscrita, sem todavia dissolvé-la. O conceito, embora interpelando a validade de constructos bindrios de diferenga, nao se entende tampouco como a sua superacio. A diferenca, por assim dizer, colocads, entre parénteses, € preservada como indispensavel ponto a referencia: nao ha transdiferenca sem diferenca. Deste modo, ransdiferenca nao pode ser entendlida como elim. nagio de diferenga, como forma de desdiferenciac3o ou sintese mas descreve, 20 contririo, situagdes em que construgdes de diferenca, fundadas sobre lgicas dicotémicas, se tomam fly. tuantes 20 suspender temporariamente a sua validade sem, no entanto, serem desconstruidas de forma definitiva.(..) Em outtas palavras, mansdiferenca se articula de modo suplementat e nic substitutive com relagdo ao conceito de diferenca* Até que ponto o potencial te6rico desse termo permite uma descrigao adequada da condigio em transito do sistema literirio hoje ser uma das questées em destaque na reflexao proposta, ptt O acento sobre fendmenos hibridos e estruturas heteroté- Picas, hoje constante nos debates em diversos territérios disci- Plinares, revela necessidades € desejos por modelos capazes de tomar compreensiveis caracteristicas Dbasicas de sociedades contemporineas funcionalmente diferenciadas. Na esfera dos estudos literirios, essas novas questées, nascidas no contexto de mudangas significativas, iniciadas na década de 1960 e intensi- ficadas nos anos subsequentes, sinalizaram igualmente transfor- magGes expressivas. Processos identitarios de crescente complexidade passaram a ser tematizados com maior frequéncia a partir das transformacées Paradigmiticas iniciadas com Propostas da chamada Estética da Receppio, colocando em questio a propria existéncia de uma ennidade integrada, essencial, auténoma, chamada literatura’ Nessa ioe ee a Circular trabalhos teGricos que questionam a "sao exclusiva do fendmeno literdrio como artefato verbal » assimilado pelo leitor numa atitude contemplativa, a favor do processo interativo que funde as instancias do texto e do leitor, de que a Estética da Recep¢ao representa apenas uma das Propostas sugestivas iniciais. Uma teoria da literatura envolvendo o leitor numa ago produtiva de construgio de sentido corresponde ao confronto do leitor com uma experiéncia alheia, em que o texto representa o efeito potencial que mobiliza faculdades perceptivas e imaginativas do leitor. Esses efeitos € respostas nao sdo propriedades nem do texto nem do leitor, mas ocorrem no entrelugar que se produz durante 0 processo de leitura. Nos anos subsequentes, o interesse dos estudos de literatura desloca-se ainda mais nitidamente para uma perspectiva pragmatica, no sentido de contextualizar e historicizar processos de comunicacg4o literaria. NogSes processuais como disseminagio, dialogia, heteroglossia, completadas por belas metiforas como rizoma, nomadismo, creolizagao, mestigagem e hibridacao, ainda que de campos semanticos distintos, circulam hoje como uma espécie de antidoto contra um pensamento fundado sobre sistemas bindrios excludentes, onde um dos pares conceituais se torna necessaria- mente totalizante e 0 outro invisivel. Nesta situago, em que se mesclam conviccdes epistemol6gicas € projetos politicos, 0 acento de sinal positivo é atribuido, de modo geral, a modelos que enfatizam dominios inclusivos, esferas intermezz0, espacos in-between, que privilegiam heterarquias e heterodoxias, mas que atendem, igualmente, as necessidades de construir campos conceituais de altissima complexidade e mobi. lidade, capazes de enxergar os modos de experiéncia vivencial nas sociedades contemporaneas a partir de seus proprios modelos de representagdo. Estes, nesse caso, podem ser aproximados do idedrio proposto pelo conceito de transdiferenga. Uma das marcas visiveis no Ambito dos estudos de literatura atuais nao revela apenas um campo de investigagao sem fronteiras precisas, quando se trata de abordar o (ainda) chamado fenmeno literdrio, mas igualmente uma dispersio da responsabilidade autoral, que afeta o formato e 0 estilo dos préprios manuais da teoria da literatura e de sua escrita historiogrifica, que, de modo cada vez mais acentuado, estio se transformando em coletineas de ensaios e antologias de miltipla autoria ou de autoria ané- nima e temitica dispersa. Ao mesmo tempo, o estilo rigoroso caracteristico da reflexdo tedrica cede espago para experimentos 31 declaradamente lidicos e mais ousados em suas Cindisciplinadas) travessias disciplinares. Siegfried J. Schmidt, por exemplo, inicia um dos seus livros recentes sobre questdes construtivistas, empiricas e cientificas, Die Zalbmung des Blicks(A domesticagao do olhar), com algumas obser. vagdes prévias que situam a sua indagacio acerca de conceitos de realidade no 4mbito de argumentos desenvolvidos em outros contextos disciplinares de orientacao construtivista similar 3 sua, oferecendo, ao mesmo tempo, um espaco multidimensional 3 sua argumenta¢ao ao procurar correspondéncias entre literatura ¢ artes plasticas."” A observagado comparativa de propostas distintas de filésofos e cientistas pretende ainda configurar empre. endimento numa espécie de formato hipertextual, em fungio de numerosas sugestdes de conexées laterais que parecem Jinks de uma rede digital." O proprio Schmidt — tedrico da literatura, conhecido por uma elaborac¢ao conceitual sistematica e precisa do fenémeno literirio -, nesse experimento multivocal, propo- sitalmente sem promessa de unidade e harmonia, se empenha na criago de uma atmosfera literario-ensaistica perpassada de aforismos, poemas, desenhos, grificos e fotografias que nao se somam em uma proposta teérica integrada.” Segundo o autor, a opcao por padrdes de estilo variados, sem sintese — entre eles descontextualizacio e sampling -, sintoniza-se no apenas com © tempo esgotado das superteorias uniformes, mas toma-se uma estratégia produtiva condizente com 0 presente, que se apresenta sob o signo da indeterminagio e da contingéncia." Para ilustrar e tomar plausiveis alguns desses argumentos no quadro da transdiferenca, um olhar retrospectivo sobre projetos, manifestos e producdes literdrias, sobre a sua problematizacio tedrica inicial e sobre algumas formas de historiografia experi- mental em sintonia com novas expectativas e interesses Parece-me Sugestivo. A historia da literatura, além de revelar: explicitamente desejos condizentes com essa perspectiva, oferece intimeros experimen- tos que hoje sio lidos reiteradamente como antecipagio das Possibilidades radicais oferecidas pela escrita virtual em redes digitais." Um deles, 0 classico projeto utdpico da obra em movi- mento, realizado no século XIX, Le livre, de Mallarmé — ainda que apenas idealizado como objeto mével, plural, composto de elementos polimorfos e ilimitados, reforcando a percepgio de 32 um mundo de simultaneidades e metamorfoses continuas -, junto com a exortagdo de Lautréamont de que a poesia precisava transformar-se em empreendimento coletivo, deixando de ser uma produgao restrita a um sujeito autoral nico, inaugura, de algum modo, incontéveis projetos perseguidos reiteradamente e de diversos modos durante o século XX. Entre estes, merece destaque o romance experimental Composition J, do escritor francés Marc Saporta, que, em 1962, exibia as novas convicgdes de modo exemplar e radical, a partir de sua explicita configuragio material aleat6ria, transformando em manifestacao literaria concreta esses projetos ut6picos, antes apenas imaginados na forma de manifestos. O experimento lendario, consistindo de 150 folhas soltas sem numeragio, foi vivenciado na época como “verdadeiro pesadelo bibliotecario”.° © escritor, ao libertar as paginas do romance de sua encademacao, rompia com uma das convengdes mais tradicionais do livto impresso: a sua leitura linear, imposta pelo principio de sequencialidade das palavras. Um pequeno manual de instrugdes dirigido aos eventuais usuarios convidava-os a embaralhar as paginas como o fazem os jogadores com suas cartas, a0 acaso, antegozando as pequenas tens6es € surpresas na construcao de sua prépria histéria mutante, imprevisivel, sem principio ¢ fim. Segundo o autor, como a vida. Naquele momento, o experimento foi simultaneamente ironizado ou celebrado como forma visiondria, ao indicar 0 meio que permite ao romance superar a sua, até entio inevitavel, linearidade, levando as Ultimas consequéncias a possibilidade real de infinitas combi- nagoes. Na mesma época, comecaram a ser questionadas tanto a integridade quanto a estabilidade dos textos impressos no nivel da prépria teorizacao, pelo acento colocado sobre o papel ativo do leitor no circuito de comunicagao do livro, nao constrangido, necessariamente, por principios de linearidade, eventualmente idealizados por uma suposta intencao autoral. Hoje, esses € outros experimentos sao lembrados nostalgica- mente como precursores de novos modos de ler e de escrever. No final da década de 1960, Umberto Eco publicou o seu ensaio, hoje classico, “A poética da obra aberta”, em que propée explicita- mente um modelo tedrico para o fendmeno literiirio, nao fundado sobre a forma verbal objetiva e auténoma da obra, mas sobre a relacao fruitiva entre ela e seus possiveis receptores. O resultado, uma obra indefinida, plurivoca, aberta se oferece ao leitor como feixe de possibilidades fruitivas, ransformando-o em centro ati- vo de uma rede de relagdes inesgotaveis, “sem ser determinado por uma necessidade que Ihe prescreva os modos definitivos de organizagao da obra fruida”."* Eco compara esta situagao 3 do ouvinte de uma composicao pés-dodecafénica, descrita por Pousseur dh seguinte maneira: “A medida que os fenémenos nic mais se encontram concatenados uns aos outros segundo certo determinismo causal, cabe 20 ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de relagdes inexauriveis."” Como situar nesse contexto, por exemplo, altemativas interes. santes e aceitdveis, de acordo com esses NOVOS Pressuposios, para no desistir da escrita de hist6rias da literatura, tradicionalmente configuradas em modelos de linearidade temporal, seguindo uma classificarao em épocas ou geracdes? Entre diversos expe. Fimentos hisioriogrificos em sintonia com essas novas posturas e Pressupostos alterados, a Columbia literary bistory of the United States permite ilustrar 0 novo cendrio de quesides tedricas. Os editores da obra coletiva — entre eles, T. Eliott — diferenciam o seu Projeto de propostas anteriores, pela escolha de uma metifora arquiteténica emblemitica.™ Essa nova histéria da literatura, Por eles entendida como modestly postmodern (modestamente pés-modema), € constuida formalmente segundo o modelo de uma galeria de arte. Varias entradas disponiveis garantem o acesso a diversos comedores, que podem ser percorridos ou nao. Fm Contraste com outras historias, de carater monumental e optando Por um modo de representagao linear e uniforme do passado, os seus principios estruturais acentuam diversidade, complexidade € contingéncia, portanto, padrées avessos a Perspectivas globais, homogeneizantes. A partir desses compromissos, os editores assumem as Contribuigdes dos distintos autores em sua forma original, sem intervengio sintetizadora que possa transformar a coktinea de autoria e compromissos teGricos e exéticos diversos €m narrativa linear € coerente. Ao leitor, permite-se, dessa forma, a experiéncia paradoxal do confronto com elementos arti- culados aleatoriamente numa esirutura sem simtese, sem inicio © sem fim, condizente, portanto, com hipéteses e diagnésticos reeentes. Assim lemos, por exemplo, que hoje inexistem visdes uniformes de uma identidade nacional e, Por conseguinte, € Preciso represeniar a muhtiplicidade coexistente das perspectivas Ga investigacio contemporinea, reprimindo 0 desejo de vé-las 4 unificadas. Nesse sentido, comparecem, lado a lado, tanto autores da linhagem canonizada e autores de tradicdes tio divergentes, quanto escritoras e escritores indo-americanos, afro-americanos, sino-americanos, hispano-americanos e judeu-americanos.” Uma situago que obviamente profbe falar de uma tinica hist6ria da literatura americana, o que o proprio titulo exibe com énfase pela substituigo da “Historia da literatura americana’ por “Historia da literatura dos Estados Unidos’, Por outro lado, os editores home- nageiam com esse projeto as mudancas fundamentais ocorridas nas tendéncias teéricas dos estudos de literatura desde os anos 1960, motivadas, entre outras, por provocagdes alemis, francesas, inglesas e americanas, no campo dos pressupostos tedricos e epistemoldgicos, que transformaram o ambiente da discussao académica em cenrio aberto e flexivel. Portanto, © livro historiografico € concebido para produzir efeitos de heterogeneidade e dispersio, ao problematizar as categorias tradicionais da maioria das historias de literatura, que, ao contrario, procuram a sintese. E é precisamente essa opgao que diferencia esse € outros experimentos de historiografia literaria das marcas tradicionais dos congéneres anteriores, tanto em sua Proposta tematica quanto estrutural. E, desse modo, leitores — leigos e profissionais — siio estimulados a compor o seu préprio menu individual e a participar de um circuito comunicativo por principio aberto e interativo. Em suma, trata-se, em ultima andlise, da transforma¢ao em pritica historiografica das reflexdes episte- molégicas, te6ricas e metodolégicas que mobilizaram tedricos e historiadores da literatura nas tltimas décadas em busca de novos quadros explicativos. A exploragao do conceito de transdiferenga certamente poderia oferecer uma alternativa na construgio de modelos complexos € mutantes necess4rios para descrever € compreender fenémenos hibridos, compésitos. Em todo 0 caso, os exemplos apontados de uma nova escrita historiografica, além de exibirem de forma inquestionavel o desejo de diminuir o descompasso entre uma teorizacdo complexa e uma pratica — ainda timidamente presente em discussdes atuais nas esferas da teoria da historia e da teoria da literatura —, permitem antever algumas das dificuldades que acompanham os questio- namentos teéricos, quando abandonamos o ainda confortavel espago da tecnologia mit = Iv Se, nesse contexto, 0 conceito de transdiferenca sera capaz de oferecer uma nova estratégia para encaminhar essas questoes vai depender também do seu poder explicativo e persuasivo, No momento, segundo os proprios idealizadores, trata-se apenas de uum concept in progress (conceito em desenvolvimento) promis. sor, cujo valor, no entanto, precisa ser testado em confronto com investimentos te6ricos que, na constru¢ao identitéria, apostam na forca do proprio conceito de diferenca para explicar “entre- lugares”. No Ambito dessa discussao, parece-me oportuna, de qualquer maneira, uma Ghima indagacao acerca dos modelos de pen. samento, percepcdo, representagao € comunicacao adequados para dar visibilidade a fendmenos literdrios atuais que escapam 3 cultura exclusiva do livro impresso e que, Por extensdo, sina- lizam elos com problemas de nossa experiéncia atual. Hoje se toma urgente, ainda, a elaboragio de modelos comunicativos altemativos, simultaneamente sensiveis a Processos de autor- reflexo, sinestesia ¢ multimedialidade, que permitam lidar com configuragdes tecnolégicas digitais do fendmeno literatio que afera profundamente a sua producio e as opgdes de sua teorizacdo pela ampliacao de sistemas comunicativos monossensoriais em diregao a formas multimidiaticas. A presenca de tecnologias multimidiaticas digitais provoca questionamentos acerca do estatuto fluido de textos Literarios, que nao s6 demandam processos Perceptivos e interpretativos ‘apazes de construir sentido das novas interficgdes, mas igualmente a redefinicio de conceitos de realidades ficcionais e factuais, ‘Quando 0 texto literirio migra do livro impresso para ociberespaco, aterando-se: © Greuito comunicativo de sua produgao, mediaczo, kkinura e anilise critica, emergem desafios significativos para estudos & Incratura, baseados na relacio simbiotica entre teorizacdo & experiencia pritica. Xas ‘Ghimas duas décadas, discutiram-se muito, e de modo pokemon, as consequéncias da midia digital para a sociedade. > Giscurso académico, prevaleceram, antes, reflexdes sobre as es getais promovidas pelo advento s omatica digital, geralmente explicitadas a partir % da projecio de sucessivas viradas ~ linguistica, pictorial, ciber- nética —, como tradugdes emblemiaticas de nossa experiéncia contemporanea, com reflexos sobre os nossos sistemas de Ppensamento e as nossas formas de construir conhecimento. A suposta passagem da modernidade para a p6s-modernidade, na 6tica de hoje, parece relativamente suave, comparada a passagem classificavel como cybernetic turn (virada cibemética), que est provocando mudangas tao abrangentes e radicais que excedem e desafiam as nossas capacidades de entendimento. As suas consequéncias nao s6 tangem as nossas condigdes cognitivas e comunicativas, sociais e individuais, naturais e artificiais, estéti- cas € cotidianas, mas afetam as préprias condigdes e habitos de percepgio e observacaio.” Em nossa Area de estudos de literatura, existem, por enquanto, poucas reflexdes teéricas e investigacées empiricas acerca de fendémenos concretos que emergem como formas especificamente tecnodigitais. Entre estas, os exemplos mais visiveis correspondem 4s novas formas literarias sem possibilidade de tradugo para o formato do livro, porque resultam do uso do computador e de sua rede, tentando explorar esteticamente potencialidades ofertadas por esses processos mididticos e seus modos de comunicacao. Os papéis e conceitos tradicionais atribuidos ao leitor, ao autor e a0 texto, como componentes desse circuito do fenémeno literario, precisam ser ajustados quando passamos da estrutura discursiva linear da tecnologia impressa ~ preto no branco — para a forma multimidiatica da tecnologia digital. O hipertexto distingue-se ainda da noga4o usual de texto pela sua organizacao discursiva ndo linear — ou melhor, multilinear -, libertando-se, portanto, do principio organizativo Unico — a sequéncia — e questionando o prdéprio estatuto formal do texto fixo e uniforme estruturado segundo principios de inicio, meio e fim baseados em conceitos de linearidade e sequencialidade. Em configurag6es hipertextuais, torna-se dificil ou impossivel definir essas marcas, porque inexistem palavras iniciais ou terminais em sentido tradicional, e qualquer texto pode transformar-se em multiplicidades. Hipertextos nao definem inicios e fins e tam- pouco outras fronteiras. Inseridos numa rede de outros textos, eles libertam a literatura da ideia da obra como objeto absoluto € fechado. Nesta ética, o hipertexto traduz, de modo radical, a materialidade da nogdo de obra aberta, que funda a possibilidade 7”

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