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Milton Santos Por uma outra globalizag4o ’ do pensamento nic? a consciéncia universal @ EDICAO ese HDITORA RECO Mol DI JANrino. + Sho PATE 01 INTRODUGAO GERAL 41. © mundo como fabuta, como perversidade e como poss ‘Vivernos num mundo confuso e confisamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicaggo? De um lado, é busivamente mencionado oextraordinério progresso das, ciéncias ¢ das téenicas, das quais um dos frutos sio os novos rmateriaisartificiais que autorizam a precisioea intencionalidade, De outro lado, hi, também, referencia obrigatGria a accleragao contemporinea todas as vertigens que cria, a comegar pela prépria velocidade. Todos esses, porém, sio dados de um mun- do fisico fabricado pelo homem, cuja utilizaczo, aliés, permite que 0 mundo se tome esse mundo confuso ¢ confusemente percebido, ExplicagSes mecanicistas sfo, todavi Ea maneira como, sobre essa base material, se produz a hi humana que ¢ a verdadeira respons4vel pela ctiagdo da torre de babel em quevive anossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possivel a criacio de um mundo veraz, m7 ‘Micron Santos que imposto aos espiritos é um mundo de fabulaghes, que se aproveita do alargamento de todos os contextos (M. Santos, A vza do espace, 1996) para consagrar um discurso tnico, Seus fundamentos sioa informagao e o seu império, que encontram alicerce na procugdo de imagens ¢ do imaginétio, ¢ se poem ao servigo do império do dinheiro, findado este na econcmizagio © na monetarizacio da vida social e da vida pessoal De fato, se desejamos escapar a crenga de que esse mundo assim apresentado € verdadciro, e nfo queremos admitira per manéncia de sua percepeio enganosa, devemos considerar @ existéncia de pelo menos trés mundos num s6, O primeiro se- tia o mundo tal como nos fezem vé-lo: a globalizagio como f%- bula; 0 segundo seria o mundo tal como ele é: a globalizagio como perversidade; ¢ © terceiro, o mundo como ele pode ser uma outra globalizagio. ‘© mundo tal como nos fazem crer: 4 globalizagio como fabula Este mundo globalizado, visto como fébula, erige como ver~ dade um certo mimero de fantasias, cuja repetigéo, cntretanto, acaba por se tornar uma base aparentemente sblida de sua inter pretacao (Maria a Conceicio Tavares, Destuigio nao criadora, 1999). A miquina ideoldgica que sustenta as ages preponderantes da atualidade feita de pegas que'se alimentam mutuamente e POern em movimento os elementos essenciais & continuidade do sistema, Dames aqui alguns exemplos. Fala-se, por exemplo, em aldeia global para fizer crer que a difasio instantines de noticias realmente informa as pessoas. A partir desse mito e do encurti- POR UMA OUTRA GLOBALIZACAO. mento das dist€ncias — para aqueles que realmente podem viajar -— também se difiunde a nogio de tempo e espago contrafdos, B como se 0 mundo se houvesse tomado, para todos, 20 alcance da ido. Um mercado avassalador dito global ¢ apresentado como ‘capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferengas locais sto aprofiundadas. Hi uma busca de uniformidade, ao ser- vigo dosatores hegembnicos, mas mundo se toma menos unido, tormando mais distante osonho de ume cidadaniaverdadeiramente universal, Enquanto isso, 0 culto a0 consumo é estimulado, Fula-se, igualmente, com insisténcia, na morte do Estado, mas o que estamos vendo é seu fortalecimento para atender 203 reclamos da finanga e de outros grandes interesses internacio- nais, em detrimento dos cuicados com as populagées cuja vida se torna mais difteil, Esses poucos exemplos, recolhidos num: permitem indagar se, no lugar do firm da ideologia proclamado pelos que sustentam a bondade dos presentes processos de globalizagio, nao estarfamos, de fito, diante da presenga dewma ideologizacéo macica, segundo a qual arealizagio do mundo atual cxige como condigio essencial o exercicio de fabulagoes. ta intermindvel, ‘© mundo como ¢:a globalizacdo como perversidade De fato, para a grande maior parte da humanidade a globalizaciocesté se impondo como uma fibrica de perversidades. O desomprego crescente torna-se crénico, A pobreza aumenta es clisses médias perdem em qualidadede vida, O salério médio tendea baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os centes, Novas enfermidades como a SIDA se instalam ¢ 20 MuLTON SaNTos has doengas, supostamente extirpadas, fazem seu retorno fgressos médicos e dainformagéo.A educaciode qualidade 6 cada vez mais inacessfvel, Alastram-se e aprofundam-se males espi- , COMO Os egofsmos, os cinismos, a corrupgio, A perversidade sistémica que est na raiz dessa evolugo negativa da hiamanidade tem relagio com a adesto desenfreada 4s comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as agées hegetmOnicas, Todas esses mazclas sio direta ou tamente imputéveis a0 presente processo de globalizagio. © mundo como pode ser: uma outea globalizagéo ‘odavia, podemos pensar na construgio de um outro mun= do, mediante uma globalizagio mais humana. As bases materi- ais do perfodo atual so, entre outras, a unicidade da técnica, a convergéncia dos momentos e © conhecimento do planeta. B nnessas bases téenicas que o grande capital se apéia para construir a globalizacfo perversa de que falamos acima. Mas, essas mes ‘mas bases técnicas poderdo servir a outros objetivos, se forem postas 20 servico de outros fundamentos sociais e politicos. Pa- rece que as condigées hist6ricas do fim do sécuilo XX sponta. ‘vam para esta tiltima possibilidade. Tais novas condigées tanto se dio no plano empfrico quanto no plano teérico. Considerando o que atualmente se verifica no plano empirico, podemos, em primeiro lugar, reconhecer um certo niimero de fatos novos indicativos da emergtncia de uma nova st6ria, O primeiro desses fenémenos 2 enorme mistura de ovos, ragas, culturas, gostos, em todos os continentes. A isso POR UMA OUTRA GLOBALIZAGAO 2i Se acrescente, gragas aos progressos da informagéo, a “mistura” de filosofias, em detrimento do racionalismo europeu. Um ou- tro dado de nossa era, indicativo da possibilidade de mudangas, 6a produgio de uma populagdo aglomerada em dress cada vez menores, o que permite um ainda maior dinamismo aquela stura entre pessoas ¢ filosofias. Asmassas, de que falava Ortega ragio exponencial ¢ de s de umaverdadeira soci 2 popitlar que se serve dos meios ¢ aemergéncia de uma ci técnicos antes exclusivos da cultura de massas, permitindo: exercer sobre esta fltima uma verdadcica revanche ou vinganga. Esobretaisalicerces que se edifica o discurso daescassez, afi- nal descoberta pelas massis. A populagao aglomerada em poucos pontos da superficie da ‘Terra constitui uma das bases de recons- trugdo ¢ de sobrevivéncia das relagées locais, abrindo a possi dade deutilizagio, 0 servigo dos homens, do sistema técnico atval. No plano teérico, o que verificamos é a possibilidade de produgéo de um novo discurso, de uma novametanarrativa, um novo grande relato, Bsse novo discurso ganha relevancia pelo fato de que, pela primeira vez na hist6ria do homem, se pode comstatara existéncia de uma universalidade empfrice, A univer- salidade deixa de ser apenas uma elaboracio abstrata na mente }ésofos para resultar da experitncia ordindria de cada ;odo, em um mundo datado como © nosso, a de categorias de cia APRODUGAO DA GLOBALIZAGAO. rodugio A globalizacio , de certa forma, 0 épice do processo de acionalizagio do mundo capitalista. Para entendé-la, como, le resto,a qualquer fase da historia, hi dois elementos fundamen- (ais a levar em conta: o estado das técnicas ¢ 0 estado da politica. Hié uma tendéncia a separar uma coisa da outra, Daf muitas apreiagSes da histéria a partir das técnicas. B, por outro lado, nteypretac6es da hist6ria apartir da politica, Na tealidade, nunca vena histéria humana separagio entreas duss coisas, Astéc~ cas so oferecidas como um sistema ¢ realizadas combina nente através do trabalho e das formas de escola dos mo- jentos e dos Jugares de seu uso. B isso que fez a historia, No fim do séculoXXe gragas aos avangos da ciéncia, pro- -se um sistema de técnicas presidido pelas técnicas di «0, que passaram a exercer um papel de elo entre as de \do-as ¢ assegurando ao novo sistema técnico uma presenga planetéri forn MILTON SANTOS S6 que a globalizagio nao é apenas a existéncia desse nove ma de técnicas, Bla € também o resultado das agdes que asseguram a emergéncia de um mercado dito global, respon- car a arquitetura da idade da técnica, a convergéncia ade do planeta ea existéncia de , representado pela mais-valia globalizada. Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avancadas resulta nessa globalizagio perversa, Isso poderia ser diferente se seu uso politico fosse outto. Esse 6 0 mais relevantes. 2. A unicidade técnica © desenvolvimento da hist6ria vai de par com o desenvol- vimento das técnicas. Kant dizia que a histérie é um progresso sem fim acrescentemas que é também um progresso sem fim das técnica, A cada evolucio técnica, uma nova etapa hist6rica se toma possivel, As técnicas se dio como familias. Nunca, na histéria do homem, aparece uma técnica isolada; 0 que se instala sio gru- pos de técnicas, verdadciros sistemas. Um exemplo banal pode 25 POR UMA OUTRA GLOBALIZAGAO ser dadocom foice, aenxada, oancinho, que constituem, num. dado momento, uma familia de técnicas. Essas familias de técnicas transportam uma hist6ria, cada sistema técnico representa uma época. Em nossa época, o que & representative do sistema de técnicas atual 6a chegada da técni- cada informagio, por meio da cibernética, da informética, da eletrOnica, Elavai permitir duas grandes coisas: a primeiraé que 43 diversas técnicas existentes passam a se comunicar entre elas. A técnica da informagio assegura esse comércio, que antes néo vel, Por outro lado, ela tem um papel determinante sobre indo, em todos os lugares, a convergén- cia dos momentos, assegurando a simultaneidade das agbes e, por conseguinte, acelerando 0 processo hist6rico. ‘Ao surgit uma nova familia de téenicas, as outras nfo desa- Jaresem, Continuam existindo, mas 0 novo conjunto de ins trumentos passa a ser usado pelos novos atores hegem6nicos, juanto os nio hegemdnicos continuam utilizando conjuntos nos atuais e menos poderosos, Quando um determinado ator flo tem as condigdes para mobilizar as técnicas consideradas is avangadas, torna-se, por isso mesmo, um ator de menor orténcia no perfodo atual. Na hist6ria da humanidade 6 a primeira vex que tal conjunto dotécnicasenvolve oplanetacomoum todo fazsent tncia des outras técnicas, mais atrasedes, As técnicas caractersti- ca do nosso tempo, presentes que sejam em um s6 ponto do jo, tém uma influéncia marcante sobre o resto do pais, 0 26 Muro Santos lade de cada pats, diteta ow indiretamente, Cada lugar tem acessoao acontecer dos outros, O principio de seletividade se dé também como principio de hi- crarquia, porque todos os outros lugares sf avaliados e devem se referir Aqueles dotados das técnicas hegemonicas, Esse € um fe= nOmeno novo na histéria das técnieas e na histéria dos territori= os. Antes haviatécnicas hegemsnicase néo hegeménices; hoje, as técnicas no hegemsnices sto hegemonizadas, Na verchde, pox 6m, a técnica nio pode ser vista como win dado absoluto, mas Como técnica jé relativizada, isto 6, tal como usida pelo homem, As técnicas apenas se realizam, tomando-se histéria, com a i i ca das empresas e da ta ou Separadamente, Por outro lado, o sistema técnico dominante no mundo de haje tem uma outra caracteristica, isto é, a de ser invasor, Ele ndose contenta em ficar ali onde primeiro se instala e busca es palhar-se, na produgao e no territ6rio. Pode nfo o conseguir, mas Eessa sua vocagio, que ¢ também fuadamento da acio dos atores ‘tegem6nicos, como, por exemplo,as empresasglobais, Estas fin- cionam a partir de uma fregmentacdo,j4 que um pedago da pro- dugio pode ser fe Outro na Malisia, outro ainda no Paraguai, mas isto apenas 6 possfvel porque a téc -a hegemOnica dle que falamos € presente ou passfvel de presenca em toda parte, ‘Tudo se junta ¢ articula depois mediante a “inteligéncia” da ma, Seno nfo poderia haver empresa transnacionzl, Hg, pois, uma telagio estreitaentre esse aspecto da economia da globalizacioca tureza do feundmeno téenico correspondente a este perfodo his ‘rico. Sea produgdo se fragmentatecnicamente,hi, dooutro lado, « unidade politica de comando. Essa unidade politica do co- 7 POR UMA OUTRA GLOBALIZAGO. lo funciona no interior das firmas, mas nfo hé propriamen- ‘a unidade de comando do mercado global, Cada empresa as operacdes dentro da sua respectiva de lugares da sua ago, enquanto a igGes supranacionais nfo basta para a as respect ler-Se-ia dizer que 0 mercado global nao existe como tal. Hé uma relagio de causa ¢ efeito entre 0 progresso té 1 ¢ as demais condigées de implantagio do atual perfodo £ ir da unicidade das técnicas, da qual o compu- 6 una pega central, que surgeapossibilidade deexistir uma nsével pela imposigao a todoo seria também im- verses lugares a hora rel6gio €a mesma, Nao ésomente sso, hora €a mestna, convergem, também, os momentos vividos, na confluncia des momentos como resposta aquilo que, do de-vista da fisica, chama-se de tempo real e, do ponto de vis~ ist6rico, sera chamado de interdependéncia ¢ solidariedede do ¢. Tomada como fendmeno fisico, a percepgao do tempo Se 28 MitTON SANTOS. teal no s6 quer dizer que a hora dos rel6gios €a mesma, mas que podemos usar esses relégios miétiplos de maneira uniforme, Re- sultado do progresso cientifico etécnico,cujabuscase acelerou com a Segunda Guerra, a operagio planetériadas grandes empresas glo- bais vai revolucionar 0 mundo das finangas, permitindo ao respec tivo mercado que funcione em diversos lugares durante 0 dia in= teiro, © tempo real também autoriza usar 0 mesmo momento a pattirde miltiplos lagares; etodos os lugares apartirde um s6deles, E, em ambos os casos, de forma concatenadsa e eficar. Com essa grande mudangana historia, tornamo-nos capazes, seia onde fo, deter contesimento do que € 0 acontecer do ou- tro, Nunca houve antes essa poss nossa geracio de ter em maos 0 conheciment acontecer do outro. Essa é a grande novidade, o queestamos cha- mando de unicidade do tempo ou convergéncia dos momentos, Aaceleracéo dahist6ria, que ofimdo séculoXX testemunha, ver. cemegrande parte disto, Mas a informagio instantaneae globalizada por enquanto nio € generalizada e veraz porque atualmente intermediada pelas grandes empresas da informacio. E quem sio os atores do tempo real? Somos todos nés? Esta pergunta é um imperativo para que possamos melhor compreen- der nossa épaca. A ideclogia de um mundo s6 e da aldeia global considera o tempo real como um patrim6nio coletivo da huma- nidade, Mas ainda estamos longe desse ideal, todavia alcangével, Abhist6ria é comandada pelos grandes atores desse tempo real, quue sio, 2o mesmo tempo, 0s donos da velocidade e os autores do discurso ideol6gico. Os homens nao sto igualmente atores desse tempo real. Fisicamente, isto 6, potencialmente, ele existe © assegura exclusividades, ou, pelo menos, privilégios de uso, POR UMAOUTRA GLOBALIZACAO 29 izado por tum néimero redusido de atores, deve 10s distinguir entrea nogiode fluidez potencial ea nocio def lez efetiva, Se a técnica cria aparentemente para todos a poss lade da fluidez, quem, todavia, é fluido realmente? Que npresas sio realmente fluidas? Que pessoas? Quem, de fato, a em seu favor esse tempo real? A quem, realmente, cabe @ ais-valia crieda a partir dessa nova possibilidade de utilizagéo do tempo? Quem pode e quem no pode? Essa discussio leva-nos a outra, na fase atual do capitalismo, a0 tomarmos em conta a novo fator determinante da hist6ria, represen- do pelo que aqui estamos denominando de motor ini. 4, O motor tinico Este perfodo dispée de um sistema unificado de técnicas, ado sobre um planeta informado e permitindo agées igual- rente globais, Até que ponto podemos falar de uma mais-valia Aoscata mundial, atuando como um motor Gnico de tais aces? Havia, com oimperialismo, diversos motores, cada qual com a forga e alcance préprios: 0 motor francts, o motor inglés, 0 ‘otor alemao, 0 motor portugués, o belga, oespanholetc., que ‘ram todos motores do capitalismo, mas empurravam as ma- € 0s homens segundo ritmos diferentes, modalidades diferentes, combinagées diferentes. Hoje haveria um motor 0 que 6, exatamente, a mencionada mais-v Fsta tornou-se posstvel porquea partir de agora a produgéo se d4.a escala mundial, por intermédio de empresas mundiais 30 ‘Milon Santos que competem entre si segundo uma concorrénciaextremamen- te Feroz, como jamais existiu, As que resisteme sobrevivem sio aquelas que obtém a mais-valia maior, permitindo-se, assim, continuar a proceder ¢ a competit, Esse motor tinico se torncu possfvel porque nos encontra mos em um novo patamar da internacionalizacio, com uma verdadcira mundislizagao do produto, do dinheiro, do crédito, da divida, do consumo, da informagio. Esse conjunto de mundializagoes, uma sustentando e arrastando a outra, impon= do-se mutuamente, é também um fato novo. ‘Um elemento da internacionalizacio attai outro, ‘outro, contém eé contide pelo outro. Hsse sistema de forcaspode evar a pensar que o mundo se encaminha para algo como uma homogeneizacio, uma vocagio a um padrio tinico, o que seria devido, de w mundislizagio dam “Tudo isso ¢ realidade, mas também e sobretudo tens porque em nenhum lugar, internacionalizagio. O que ha em toda parte é uma vocagio Asmais, diversas combinagées de vetores ¢ formas de mundi Pretendemos que a histéria, agora, seja movida por esse motor tinico. Cabe, assim, indagar qual seria a sta natureza. Sera ele abstrato? Que € essa mais-va la 6 fugidiae nos escapa, mas nioé abstre porque entretica pelas empress globais que se valem dos pro- Bressos cientificos e técnicos disponiveis no mundo e pedem, dade entre as empresas 6 ama forma de exercfcio dessa mais-valia universal, que se torna fugidia exata- at POR UMA CUTRA GLODALIZAGAO te porque deixamos © mundo da competicio e entramos no dade, © exerefcio da competitividade tor- de mais tecnologia, de or onganizacio, para manter-se & frente da corrida, Quando, na universidade, somos solicitados todos os dias tra- wrpara methorara produtividade como se fosse algo abstrato ¢ dual, estamos impelidos a oferecer is grancles empresas pos- idades ainda maiores de aumentar sua mais-valia, Novos hbo- so chamados a encontrar as novas técnicas, os novos ma+ s, aS novas solugOes organizacionais ¢ politicas que permitam apresas fazer crescer a sua produtividade e o seu lucro. Acada zo de uma empresa, outra do mesmo ramo solicita inovagées permitam passar @ frente da que antes era a camped. Por ais-valia st4 sempre correndo, quer dizer, fugindo para e fente, Um corte no tempo 6 idealmente possivel, mas esté longe ‘le expressar a realidade atual cruelmente instavel, Por isso nio se extensiva ¢ aprofundadamente, Isto nunca existiu an- 2 Mitton Santos. tea, ¢ deve-se, exatamente, aos progressos da ciéncia e da (écnii- ca (melhor ainda, aos progressos da técnica devidos a0s progres 0s da ciéncia), Esse perfodo técnico-ciemtifico da hist6ria permite ao ho- mem nao apenas utilizar 0 que encontra na natureza: novos s sio crisdos nos laboratSrios como um produto da: em, ¢ precede a produgdo dos objetos. Atéa nossa geragio, utilizévamos os materiais que estavam & nossa disposicio. Mas a pattir de agora podemos conceber os objetos que desejamos utilizar e entéo produzimos a matéria-prima in- dispensével Asua fabricagio, Sem isso nfo teria sido possfvel fazer 0s satélites que fotografam o planetaa intervalos regulares, per- lo uma visto mais completa edetalhada da Terra, Por meio dos satélites, passamos a conlaccer toxlos os lugares e a observar outros astros, © funcionamento do sistema solar torna-se mais perceptivel, enquanto a Terraé vista em detalhe; pelo fatode que 8 satélites repetem suas drbitas, podemos captar momentos sucessivos, isto 6, nfo mais apenas retratos momentineos e fo- tografias isoladas do planeta, [sso nfo quer dizer que tenhamos, im, os processos hist6ricos que movem o mundo, mas fica~ ‘mos mais perto de identificar momentos dessa evolugio. O3 objetos retratados nos dio geometries, nao propriamente geo- grafias, porque nos chegam como abjetos em si, sem asocieda- de vivendo dentro deles. O sentido que tém as coisas, isto & seus verdadeito valor, é 0 fundamento da correta interpretagio de tudo o que existe, Sem isso, corremos o risco de nao ultrapassar a interpretagto coisicista de algo que ¢ muito mais que uma ples coisa, Como os objetos da hist6ria, Estes estio sempre Jando de significado, como movimento das sociedades ¢ por itermédio das agSes humanas sempre renovadas. POR UMA OUTRA GLOBALIZAGAO todo ¢ das particularid fisicas, neturais ou arti nna busca da mais-velia desejada, valorizam diferentemente as lo- zagées, Nio€ qualquer lugar que interessaa tal ou qual ragio das empresas € 3 produgao do sistema hist6rico atual. 6. Um perfodo que € unta crise A histéria do capitalismo pode ser dividida em perfodos, pedagos de tempo marcados por certa coeréncia entre as suas varidveis significativas, que evoluem diferentemente, mas den- tro de um sistema, Um perfodo sucede a outro, mas nfo pode- ‘mos esquecer que os periods sio, também, antecedidos ¢ su- cedidos por crises, isto é, momentos em quea ordem estabelecida entreas variéveis, mediante uma orgunizagio, é comprometida, ‘Tomna-seimposs{vel harmoniz4-las quando uma dessas varisveis gina expresso maior e introduz um pr de desordem, Essa foi a evoluigio comum a toda a histéria do capitalismo, até recentemente, O perfodo atual escapa a essa caracteristica por- que cle é a0 mesmo temp perfodo ¢ uma crise, isto 6 a presente fragio do tempo hist6rico constitui uma verdadeira superposigio entre perfodo e crise, revelando caracterfsticas de ambas essas situagdcs. Et Muvton Santos Como perfodo e como crise, a época atual mostra-se, ‘como coisa nova, Como perfodo, as suas variiveis caracte stalam-se em toda parte ea tudo influe as chocando-se ¢ exigindo novas definigées ¢ novos arranjos, Trata- se, porém, de uma crise persistente dentro de um perfodo com as duradouras, mesmo se novos contomnosaparecem, Este periodo e esta crise sio diferentes daqueles do passado, porque os dados motores e os respectivos suportes, quie consti- tuem fatores de mudanga, nio se instalam gradativamente como antes, nem tampouco sio o pri paises, como outrora. ais fatores dio-se concor se realizam com muita forga em toda parte, Deffontamo-nos, agora, com uma subdivisto extremado tem- poempftico, cuja documentacio tornou-se possivel por meio das técnicas contemporineas. O computador € o instrumento de medida e, zomesmo tempo, 0 controlador do uso do tempo. Essa icagdo do tempo é, na verdade, potencial, porquie, de fito, cadaator— pessoa, cf, lugar — utiliza diferen- a diferentemente a velocidade domundo, Por outro lado, e gracas sobretudo aos progressos das ‘écnicas da informeética, os fatores hegemdnicos de mudanca con- tagiam os demai la que a presteza ¢ 0 al se contégio sejam diferentes segundo 2s empresas, os grupos sociais, as pes~ s0as, 05 lugares. Por intermédio do dinheiro, o contégio das Logi casredutoras, tipicas do processo de globulizagdo, leva atoda par= te um nexo contibil;gue avassala tudo, Os fatores de mudanca na enumerados s40, pela mao dos atores hegeménicos, incon- laveis, cegos, egoisticamente contradit POR UMA OUTRAGLCBALIZAGAO 35, ‘© proceso da crise 6 permanente, 0 que temos so crises sucessivas. Na verdade, trata-se de uma crise global, cuja evi- iéncia tanto se faz por meio de ferndmenos globais como de ma~ ifestagGes particulares, neste ou naquele pafs, neste ou naque~ Je momento, mas para produzir o novo estgio de crise. Nada é clusivo interesse dos atores hegemdnicos, tendendo a participar ce sua pr6pria natureza ¢ de suas proprias caracterfsticas, controle dos esp: Daf o papel avassalador do: do comportamento dos atores hegeménicos, que agem sem contrapartida, levando ao aprofundamento da situacio, isto 6, da crise, A associaco entre a tirania do dinheiro e a tirania da infor magdo conduz, desss modo, 2 aceleragio dos processos hege- ménicos, legitimados pelo ‘pensamento fnico”, enquanto os de~ mais processos acabam por ser deglutidos ouse adaptam passiva cuativamente, tornando-se hegemonizados, Em outras palavras, cs processos ni hegeménicos tendem seja 2 desaparecer fi mente, seja apermanecer, mas de forma subordinada, excetoem, algumes freas da vida social cem certas fragbes do territSrio onde podem manter-se rel atnomos, isto 6, capazes de ituaglo € sempre precéria, sea que os resultados localmente obtidos sio menores, seja por= os respectivos agentes sfo permanentemente ameacados pela concorréncia das atividades mais poderosas. 36 MILTON SANTOS No periodo hist6rico atual, o estrutural (dito dintmico) 6, também, crtico. Isso se deve, entre cutras rar6es, zo fato de que ara presente se catacteriza pelo uso extremado de técnicas e de normas. O uso extremado das técnicasea proeminéncia do perise- mento téenico conduzem necessidade obsessiva de normas. Essa pletoranormativaé ‘comportamentos, acarretando um mal-estar no corpo s0% ‘Aiisso se acrescente 0 fato de que, gragas ao casamento entre as técnicas normativas e a normalizacio técnica e politica daagao correspondente, a prépria 08 intersticios do corpo soci cicio das ages dominantes, seja como reagdo a essas mesmas agées, Mas nao € propriamente de politica que se trata, mas de simples idas por atores ignoram o interesse social ou que o tratam de modo 1, E uma outra razo pela qt suuaco normal éde crise, ses, lugares e pessoas passam a se comportar, isto 6, a organizar sua agio, como se tal “crise” fosse a mesma para todos e como se a receita para afast a mesma. Na verdade, porém, a tinica crise que os responséveis desejam afas- na causa para mais aprofundamento da crise real —econdmi- a, moral — que catacteriza 0 nosso tempo mL ‘UMA GLOBALIZAGAO PERVERSA Introdugto 5 tiltimos anos do século XX testemunharam grandes mudangasem toda a face da Terra. O mundo torna-se unificado — em virtude das novas condigoes técnicas, bases sélidas para uma agdo humana mundializada, Esta, entretanto, imp3e-se & maior parte da humanidade como uma globalizagdo perversa. Consideramos, em primeiro lugar, aemergéncia de umadu~ pla tirania,ado dinheiroe a dainformacéo, i nadas, Ambas, juntas, fornecem as bases do sistema ideol6gico que legitima as agGes mais caracteristicas da época ¢, a0 mesmo tem= po, buscam conformar segundo um novo ethos as relagdes sociais € interpessozis, influenciando 0 cardter das pessoas. A competitividade, sugerida pela produsdo e pelo consumo, 6 fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos gracas & confit G0 dos espiritos que se instala, Tem as mesmas origens a produ- fo, na base mesma da vida social, de uma violéncia estrutural, ete vistvel nas formas de agir dos Estados, das empresas ¢ ividuos, A perversidadesistémica é um dos seus corolétics. ‘MILTON Santos Dentro desse quadro, as pessoas sentem-se desamparades, o que também constitui uma incitagio a que adotem,em seuscom= portamentos ordinétics, praticas que alguns decénios atras eram moralmente condenadas. Hi um verdadciro retrocesso quanto nogio de bem pablico e de solidariedade, do qual éemblemstico © encolhimento das fung6es sociais e politicas do Estado com a ‘ampliago da pobrezac os crescentes agravos soberania, enquanto se amplia opapel politicodas empresas na regulacioda vida social. recida A humanidade e a emergéncia do dinheiro em estado puro como motor da vida econémica e social, S40 duas violéncias cen trais, alicerces do sistema ideoldgico que justifica as ages hegemnicas leva a0 império das fabulacées, 2 percep6es Fag mentadas € a0 discurso tinico do mundo, base dos noves totalita~ rismos— isto 6, dos globaliterismos —a que estamos assistindo, Avioléncia da informagao ‘Unn dos tragos marcantes do atual perfodo histrioo é, pois, 0 papel verdadeiramente despérico da informagio. Conforme ja vi- 10s, as novas condigées técnicas deveriam permitir aampliagio do cento do planeta, dos objeios que o formam, das sociedades POR UMA OUTEA GLOBALIZAGO. 39. que o habitam e dos homens em sua realidade intrinseca, Todavia, .condig6es atuzis, as técnicas da informaciosao principalmente utiizadas por um panhado de atores em fungio de seus objetives ares. Essastécnicas da informacio (por enquanto) sio apro~ riadas por alguns Estados e poralgumas empresas, aprofundando, ‘assim 03 processos de criagio de desigualdades. E desse modo que aperiferia do sistema capitalista acaba se tornando aind: fica, seia porque nio dispée totalmente dos novos m dlugho, seja porque lhe escapa a possibilidade de controle, (04 maioria da humanidade é, de fato, uma nulada que, cm lugar de esclarecer, confunde, que o que chega 2s pessoas, como tambérn As empresas ¢ instituighes hegemonizadas, €, jf, 0 resul- tado de uma manipulacio, tal informagao se apresenta como ideo no mundo de hoje, odiscurso antecede quae se obrigatoriamente uma parte substancial das agées humanas — sejam elas a técnica, a produgio, o consumo, o poder — cxplicao porque ca presenga generalizads do ideol6gico em todos esses pontos. Nao é deestranhar, pois, que realidade ¢ ideologiase con- fiandam na apreciago do homem comum, sobretudo porque a ideologia se insete nos objetos e apresenta-se como coisa, Estamos cliante de um novo “encantamento do mui tivo e essa onipresenga da informagéo sio ins informacio atual tem dois rostos, um pelo qual els busca ins- cum outro, pelo qual ela busca convencer, Este € 0 traba- ia publicidade. Se a informagio tem, hoje, essas duas caras, a cara do convencer se torna muito mais present. Mutton Santos indo pela sobrevivencia e hegemonia, io da competitividade, as empresas nio podem exis Publicidade, que se toro o nervo do comércio, Hé uma selagéo camal entre o mundo da produgdo da no cia e 0 mundo da produgio das coisas ¢ das normas. A pul dade tem, hoje, uma penetraco muito grande em todas as ativi- dades. Antes, havia uma incompatibilidade ética entre anunciar e exercer certas atividades, como na profissio médica, ou na educagio, Hoje, propaga-se tudo, ea propria politica é, em gran de parte, subordinada 3s suas regras, ‘As midias nacionais se globalizam, nao apenas pela chatice mesmice das Fotografias € dos tfrulos, mas pelos protagonistas, mais presentes, Falsficam-se os eventos, jf que nio 6 propria- mente o fato o que a midia nos da, mas uma interpretac €,anotfcia, Pierre Nora, em um bonito texto, cujo tftulo é “O. retorno do fato® (in Histria: Novos preblentas, 1974), lembraque, na aldeia, o testemuntio das pessoas que veiculam 0 que aconte- . Ahumanidade desterritorializada € apenas um mito, Por outro lado, ocxercicio dacidadania, mesmo se avanga a nogio de moralidad. ca, um fato No findo, nas Bruto é apenas um nome fantasia do que poderiamos chamar de prodato global, f que as quantidades que entram nessa con- tabilidade sao aquelas que se referem as operagbes que caracte~ rizam a prépria globalizagio, Afirma-se, também, que a “mortedo Estado” melhorariaavida dos homens ea satide des empresas, na medida em que per: ria a ampliagio da liberdade de produzir, de consumir e de viver, ‘Tal neoliberalismo seria o fundamento de democracia. Observan- do 0 funcionamento concreto da sociedade econdmica eda soci- edade civil, ndo € dificil constatar que so cada vez em menor ~imeroas empresas que se beneficiam desse destmaio do Estado, nto a desigualdade entre os individuos aumenta, / B POR UMA OUTRA GLOBALIZAGAO ‘Sem essas fbulas ¢ mi 9, este periodo historico nao existiria devem, obrigat dinheiro que obsém. As grandes empresas sfo, quase que com- pulsoriamente, ladesdas por grandes empresas fi Essas empresas financeiras das m ‘grande parea poupanga dos pafsesem quese encontram. do uma firma de qualquer cutro pais se instala num pafs Cou D,as poupanca: ar da l6gica financei- rae do trabs Quando expatriado, esse di pode regressar 20 pais de origem na forma de crédito ¢ de divida, i ermédio das grandes cmpresés globais. © que seria poupanga interna trans- forma-se em poupanga externa, pela qual os paises recipiendérios inteliggncia comprads, pagamento de servigos ou remessa de lucros volta como crédito e divida. Essa € a l6gica atual da intemacionalizagio do crédito € da divida. A aceitagio de um modelo econémiea em que o pagimento da divida é prioritirio implica a aceitagio da l6gica desse dinheito. emnacional, o financcizo ganha uma espécie de autonomia. Por isso, a relagio entre a finange ¢ a produgio, entre o que agora se chama economia real € © mundo da finanga, dé lugar Aquilo que Marx chamava de loucura especulativa, findada no papel do dinheiro em estado puro. Este se tornao centro domundo. f odinheiro como, sim= plosmente, dinheito, recriando scu fetichismo pela ideologia, O sistema financeito descobre SSrmulas imaginosas, inventa sem- pre novos instrumentes, multiplica o que chama de derivativos, que sio formas sempre renovadas de oferta dessa mercadoriaacs especuladores. O resultado € que a especulagéo exponencial as- sim redefinida vai se tornaralgo indispens4vel, intrinseco, ao sis- tema, gragas aos processos técnicos da nossa época. Bo tempo. real que vai permitir a rapidez das operagSes ¢ a volatilidade dos assels, E a finanga move a economia e a deforma, levando seus tentéculos a todos os aspectos da vida, Por isso, € Iicito falar de tirania do din Seo dinheiraem estado purose tomou despético, isso tam- ‘bem se deve ao fato de que tudo se torna valor de troca. A monetarizagio da vida cotidiana ganhou, no mundo inteiro, um enorme terreno nos tiltimos 25 anos. Essa presenga do dinheiro em toda parte acaba por constituir um dado ameacador da nossa existéncia cor As percepcoes fiagmentadas e 0 discurso finico do “mundo” Ba partir dessa gener gi que, de um lado, se mu! icamas percepgSes fragmesitadas POR UMA OUTRA GLOBALIZAGAD 45 6, de outro, pode estabelecer-se um discurso Gnico do “mun= ”, com implicagSes na produgéo econémica ¢ nas visdes da ist6ria contemporanea, na cultura de massa e no mercado global. ‘As bases materiais histOricas dessa mitificaglo esto na rea- lade da técnica atual. A técnica apresenta-se ao homem comum como um mistério e uma banatidade. De fato, a técnica € mais accita do que compreendida, Como tudo parece dela depender, ela se apresenta como uma necessidade universal, uma presen- ca indiscutivel, dotada de uma forga quase divina 4 qual os ho- mens acabam se rendendo sem buscar entendé-Ia. B um fato comum no cotidiano de todos, por consegiinte, uma banalida- de, mas seus fundamentos e seu alcance escapam a percepeao stérig. Tais caracterfsticas srgado nas suas relag6es com a cincia, na sua exigéncia de racionalidade, no absolutismo com que, a0 servigo do mercado, conforma os comportamentos; tudo isso fazendo crer na sua inovitabilidade temas técnicos contemporaneos € seu imaginirio para produzir a atual globalizagao, aponta-nos para formas de relagdes econdmicas implacéveis, que nio aceitam discussio eexigem obedisucia imediata, sem a qual os atores séo cexpulsos da cena ou permanccem escravos de uma légica indis- pensivel 20 funcionamento do sistema como um todo. Buma forma de totalitarismo muito forte e insidiosa, porque se baseiaem nogGes que parecem centrais & propria idéia da de mocracia — liberdade de opinio, de tolerincia —, utilizadas exatamente para suprimir a possi 40 do que € 0 mundo, edo que sio os patses ¢ os lugares. Miron Santos iddade, consumo, confusdo dos esptritos, Slobatitarismo Neste mundo globalizado, a competitividede, o consumo, a confusio dos espfritos constituem baluartes do presente estado de coisas. A competitividade comanda nossas formas de acio. O consumo comanda nossas formas de inagio. Ba confusto dos espfritos impede o nosso entendimento do mundo, do pats, do lugar, da sociedade e de cada um de nbs mesmos. Accompetitividade, a austnicia de compaixio Nos dilkimos cinco sfeulos de desenvolvimento ¢ expansio geogréfica docapitalismo,a concorréncia se estabelece como regra Agora, a competitividade toma o lugar da competigio. A concom fio 6 mais a velha concorz8ncia, sobretudo porque XX foram emblemsticos, porque neles se ealizaram grandes con- centragSes, grandes fusbes, tanto na érbita da produgio como na idade dos atores, até entio mais ou menos visi vel, agora finalmente aparece aos olhos de todos, Essa guerra como norma justifica toda forma de apolo & for- ¢2, a que assistimos em diversos pafses, um apelo nfo dissimu= lado, utitizado para disimir os conilitos ¢ conseqiiéncia dessa ética POR UMA OUTRA GLORALIZAGIO ica (a maneira como 08 part a de politica para se tomarem simplesmente lualismos na ordem do territStio (as cida- sndo umas com as outras, as regides reclamando solu- sistas). Também na ordem social e individual sio gar da légica das fi se tornem triunfantes, Para tudo isso, também contribuiu a perda de influéncia da filosofia na formulagio das eifncias sociais, euja plinaridade acaba por buscar inspiragio na economia. Daf o empobrecimento das ciéncias humanas e aconseqitente dificul- dade para interpretar o que vai pelo mundo, jé quea ciéncia eco- némica se torna, cada vez mais, uma disciplina da administra ‘Gio das coisas 20 servico de um sistema ideolégico. E assim que ntam novas concepgoes sobre 0 valor a atribuir a cada objeto, a cada individuo, a cada relagio, a cada lugar, legitiman- do novas madalidades e novas regras da producéo ¢ do consu- mo. Enovas formas financeitase da contabilidade nacional. Esta, alids, se reduz a ser, apenas, um nome fantasia de uma suposta algo que inexiste de fato, mas é tomado como pardmetro, Esta é umadas bases do subsistema ideol6gico ( des, € convoca os pragmatismos a que 8 ‘MieTon Santos que comanda outros subsistemas da vida social, formando uma constelagio que tanto orienta e dirige a produgéo da economia como também a producio da vida. Essa nova lei do valor — que € uma lei ideol6gica do valor — € uma filha dileta de competitividade e acaba por ser responstivel também pelo aban- dono da nogio e do fato da solidariedade. Dat as Fragmentagées resultantes. Dafa ampliacio do desemprego. Daf o abandono da educagio, Daf o desapreco & satide como um bem individual € aliendvel, Daf todas as novas formas perversas de sociabi- lidade que j4existem ou se estdo preparando neste pafs, para fizer delo— ainda mais— um pafs fragmentado, cujas diversas parce- Jas, de modo a assegurar sua sobrevivé fo j das ummas contra asoutras ecom Oconsumo eo seu despoti: ‘Também 0 consumo muda de figura ao longo do tempo. Falava-se, antes, de autonomia da produgio, para significar que uma empresa, ao assegurar uma produgio, buscava também manipular aopiniio pela via da publicidade. Nesse caso, 0 Sto gerador do consumo seriaa produgio. Mas, atualmente, as em= presas hegem6nicas produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos. Um dado esse1 consumo é que a produgio do consumidor, hoje, precede i pro ducio dos bens e dos servicos. Entio, na cadeia causal, 2 cha~ ia da produgdo cede lugarao despotismo do con- pério da informagéo ¢ da publicidade, Tal remédio teria 1% de medicina ¢ 99% de publicidade, mas to- das as coisas no comércio acabam por ter essa composigio: POR UMA OUTRAGLOBALIZAGAO 9 publicidade + materialidade; publicidade + servigos, e esse 60 caso de tantas mercadorias cuja citculagao é fiandada numa pro- paganda insistente e freqiientemente enganosa, Hi toda essa maneira de organizar o consumo para permitir, em seguida, a corganizagio da produgio. “This operagbes podem tornar-se simultineas diante do tem- po do rel6gio, mas, do ponto de vista da logica, € a predugio da informacio e da publicidade que precede. Desse modo, mos cercados, por todos os lados, por esse sistema ideolégico tecido ao redor do constumo ¢ da informagio ideclogizados. Esse consumo ideologizado e essa informagio ideologizada acabam por ser omozor de acoes paiblicas e privadas, Esse par 6, ao mes- mo tempo, forrfssime c fragilfssimo, De um lado é muito forte, pela sua eficfcia atual sobre a produgéo € 0 consumo. Mas, de outro lado, cle € muito fraco, muito débil, desde que encontre- mosa maneira de defini-lo como um dado de um sistema mais, amplo. © consumo € © grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é, também, um vefculo de narcisismos, por meio dos seus estfimulos estéticos, morais, so- cizis; c aparece como o grande fundamentalismo do nosso tem= po, porque alcangae envolvetoda gente. Por isso, oentendimen- todo que € o mundo passapelo consumo epela competitividade, ambos fundados no mesmo sistema da ideologia. Constimismo e competitividade levam ao emagrecimento morale intelectual da pessoa, & reducdo da personalidade ¢ da visio do mundo, convidando, também, a esquecer a oposi¢io fundamental entre a figura do consumidor ¢ a figura do cidadao. E certo que no Brasil tal oposigao € porque em nosso pais jamais houve a figura do cidadio. As classes chamadas superiores, incluindé as classes médias, jamais Mivron Sanros ram ser cidadis; os pobres jamais puderam ser cidadaos. As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilé- gios e nfo direitos, B isso6 um dado essencial do entendimento do Brasil: de como os partidos se orgenizam e funcionam; de como a politica se dé, de como a sociedade se move. E af tam- bbém as camadas intelectuais ttm responsabilidade, porque tras ladaram, sem maior imaginagio ¢ originalidade, a condigéo da classe média européia, lutando pela ampliagdo dos direitos polf- ticos, econdmicos e sociais, para o caso brasileiro e atribuindo, assim, por equivoco, & classe média brasileira um papel de mo- dernizacao e de progresso que, pela sua propria constituicto, ela nio poderia ter. Ainformagio totalitérla ¢ a confusio dos espiritos ‘Tudo isso se deve, em grande parte, a0 fato de que o fim do século XX erigin como um dado central do seu funcionamento odespotismo dainformagio, relacionado, em certa medida, com opréprio nivel alcangado pelodesenvolvimentoda técnicaatual, tao necessitada de um discurso. Como asatividades hegemOnicas sio, hoje, todes clas, fundadas nessa técnica, 0 discurso aparece como algo capital na produsao da existéncia de todos. Essa imprescindibilidade de um discurso que antecede a tudo — a comegar pela propria técnica, a produgdo, o consumo eo poder —abre a porta a ideologia, Antes, era corrente discutir-se a respeito da oposi¢io entre © que era real ¢ 0 que ndo era; entre o€rto € 0 acerto; o€rro ea verdade; aesséncia ea aparéncia, Hoje, essa discussio talvez ndo tenha sequer cabimento, porque a ideologia se tarna real e est4 Pon UMA OUTHA GLOBALIZAGAO. st presente como realidade, sobretudo por meio dos objetos. Os objetos sio coisas, sio reais. Bles se apresentam diante de nés nfo apenas como um discurso, mas como um discurso ideols- gico, que nos convoca, malgrado n6s, a uma forme de compor- tamento, B esse império dos objetos tem um papel relevante na produgio desse novo homem apequenado que estamos todos ameacados de ser. Atéa Segunda Guerra Mundial, tinhames em tornode nés alguns objetos, os quais comandavamos, Hoje, meio século depois, o que hf em torno 6 uma multidio de cbjetos, todos ou quase todos querendo nos comandar. Uma das gran- des diferengas entre 0 mundo de hi cingtienta anos ¢ o mundo de agora é esse papel de comand atributdo aos objetos, E sf0 objetos carregando uma ideologia que Ihes & entregue pelos homens do marketing © do design ao servigo do mercado. Do imperialismo ao mundo de hoje O eapitalismo concorrencial buscow a unificagio do plane- ta, mas apenas abteve uma unificagio relativa, aprofundada sob ismo monopolista gracas aos progressos técnicos alcan- gados nos tiltimos dois séculos ¢ possibilitando uma transigio para a situagio atual de neoliberalismo, Agora se pode, de slgu- ma forma, falar numa vontade de unificagio absoluta alicergada natirania do dinheiro ¢ da informagio produzindo em toda parte situagdes nas quais tudo, isto &, coisas, homens, idéias, compor- tamentos, relag6es, lugares, € atingido. Em cada um desses momentos, sfo diferentes as relagoes ‘entre o individuo e a sociedade, entre o mercado ¢ a solidarie- dade. Até recentemente, havia a busca de um relativo reforgo 82 MILton Santos miituo das idéias e da realidade de autonomia individual (coma vontade de produgdo de individuos fortes ¢ de cidadaos) e da idéia e da realidade de uma sociedade solidiria (com o Estado crescentemente empenhado em exercer uma regulagio redistributiva). As situagdes eram diferentes segundo os conti- nentes o paises ¢, se o quadroacima referido ndo constitufa uma realidade completa, essa era uma aspiracio generalizada. ‘Ao longo da histéria passada do capitalismo, paralelamente sOficas se di costumes, as leis, os regulamentos, as estatais buscavam realizar, ao mesmo tempo, mais controle so- ile, também, mais controle sobre agSes individu do a acio daqueles vetores que, deixados sozinhos, leva eclosto de egolsmos, ao exercicio da forga brata ¢ a desniveis sociais cada vez mais agudos. de globalizacio, o uso das t6cnicas conhece uma tiva ¢ quantitativa. Passamosde um sta’, que era, também, um uso desigual e combi nado, segundo os continentes e lugares, a uma presenga obriga- téria em todos os pafses dos sistemas técnicos hegeménicos, gragas ao papel unificador das tenicas de informagao. POR UMA OUTRA GLOBALIZAGKO 3. tica interior a cada pafs ou a cada conjunto imperial. Com a globalizacio, as sécnicas se tomam mais eficazes, sua presenga se confunde com o ecfimeno, seu encadeamento praticamente espontaneo se reforga ¢, a0 mesino tempo, 0 seu uso escapa, sob muitos aspectos, 10 dominio da politica e se torna subor= dinado 20 mercado. as t€enices hegernGnices atuais sio, todas elas, filhas izagio se dé a0 servigo do mercado, esse amélgama produz, um idedtio da técnica e do mercado que 6 santificado pela ci¢acia, considerada,cla prépra, infalivel. Essa, alifs, 6 uma das fontes do poder do pensamento énico. pela mo dos vetores fundamentais da globalizacio parte de ideias cientificas, indispensiveis a produgio, aliés ace- lerada, de novas realidades, de tal modo que as agBes assim cri- adas se impSem como solugées tinicas. Nas condigdes atuais,a ideotogia ¢ reforgada de uma forma que seria impossfvel ainda hé um quarto de século, jé que, pri- ‘as idéias e, sobretudo, as ideologias se transformam em. fagbes, enquanto as situagGes se tornam em si mesmas “idéi- déias do que fazer”, “ideologias® ¢ impregnam, de volta, a citncia (que santifica as ideologias e legitima as ages), uma ci- éncia cada vez mais redutora e reduzida, mais distante da busca da “verdade”. Desse conjunto de variavcis decorrem, também, outras condigées da vida contempordnea, fundadas na mate- matizagio da existéncia, carregando consigo uma crescente s¢- dacio pelos ntimeros, um uso mfgico das estatsticas. 54 Mutton Santos também a partir desse quedro que se pode interpretar a izagio de que falava J.-P. Sartre em Questions de méthode, Critique de la Raison datectique, 1960. Em tais condigées, instalamn— se a competitividade, o salve-se-quem-puder, 2 volta ao caniba- lismo, a supressio da solidariedade, acumulando dificuldades para um convivio social saudivel e para oexercicio da democra- cia, Enquanto esta € reduzida 2 uma democracia de mercedo e amesquinhada como elcitoralismo, ito 6, consumo deeleigces, as “pesquisas” perfilam-se como um aferidor quantitativo da opiniéo, da qual acaba por ser uma das formadoras, levandotudo lade, com a implantagio, galopante, de uma ética prage mitica individualista. B dessa forma que a sociedade ¢ os indivi- duos aceitam dar adeus a generosidade, a solidariedade ¢ a emogio com a entronizagio do reino do célculo (a partir do cal lo econdmico) e da competitividade. Sao, todas essas, condig6es paraa difusdo de um pensamen- to ede ume pritica totalitdrias, Esses (otalitarismos se dio na esfera do trabalho como, por exemplo, num mundo agricola modernizado onde os atores subaltemizados convivem, como num exército, submetidos a uma dis lina rismo nio 6, porém, limitado a esfera do trabalho, escorrendo para a esfera da politica e das relagdes interpessoais e invadindo © préprio mundo da pesquisae do ensino universitérios, medi- ante um cereo’s idéias cada vez menos dissimulado. Cabe-in0s, mesmo, indagar diante dessas novas reslidades sobre a pertinéncia da presente utilizagio de concep¢6es ja ultrapassa- POR UMA OUTRA GLOBALIZAGAO. 55 das de democracia, opinido piblica, cidadania, conceitos que necessitam urgente revisio, scbretudo nos lugares onde essas categorias nunca foram claramente definidas nem totalmente exercitadas, Nossa grande tarefa, hoje, €a elaboragdo de um novo dis- curso, capaz de desmitificar a competitividade ¢ o consumo de atenuzr, senio desmancher, a confusio dos espititos. 9. A violéucia estrutural ¢ a pesversidade sistémica Fala-se, hoje, muito em violencia e é geralmente admitido que équase um estado, uma sitvagio caracterfstica do nosso tem- po. Todavia, dentre as sobretudo formada de violéncias fncionais derivadas, enquan- to a atongio é menos voltada para 0 que preferimos chamnar de violencia estrutural, que esté na base da produgio das outras € constitui a violéncia central original. Por isso, acabamos por apenas condenar as violéncias periféricas particulares, Ao nosso ver, a violéncia estrutural resulta da presenca e das manifestagGes conjuntas, nessa era da globalizagao, do dinheiro em estado puro, da competitividade em estado puro ¢ da potén- cia em estado puro, cuja associagio conduz 4 emergéncia de novos totalitarismos e permite pensar ue vivemos numa época evoluimos de situagées em que a perversidade se manifestava de forma isolada para uma situagio na qual se instala um siste~ ma da perversidade, que, ao mesino tempo, € resultado ¢ causa

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