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GASTO CRUZ POEMAS

Lembrana da ria de Faro


Dunas atrs da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na gua rsea
onde a cidade, em frente casa, cai
De madeira caiada a
casa est
sobre a areia, que escurece quando
a mar devagar desce na praia
Gasto Cruz, em Crateras. Lisboa: Assrio & Alvim, 2000.

A colher

Reabro uma

gaveta da infncia

e encontro a colher em desuso cada

a sopa lentamente se escoando

no prato fundo:

a vida

em certos dias tinha a forma

daquele objecto antigo


tocando-me nos

lbios com um calor excessivo.

Gasto Cruz, em Os poemas. Lisboa: Assrio & Alvim, 2009.

Memria

A voz rouca da noite exprime a nossa

memria poderia dizer a

nossa histria mas evito

o que possa

anular o sentido

do que procuro manter vivo

Gasto Cruz, em Observao do vero. Lisboa: Assrio &

Alvim, 2011.

H dias em que em ti talvez no pense


a morte mata um pouco a memria dos vivos

todavia claro e fotogrfico o teu rosto

cado no na terra mas no fogo

e se houver dia em que no pense em ti

estarei contigo dentro do vazio

Gasto Cruz, em Fogo. Lisboa: Assrio & Alvim, 2013.

AO VER AS COISAS

Ao ver as coisas com o seu instvel

halo sobrevivente, acaso morto

porque j no o v quem antes via,

a dor de olhar trespassa

e no apaga a jovem labareda

que delas a no vida e foi a vida

dos que jovens as viram e atravs

de mim vem ainda

Os limes frios

De cada vez que vnhamos casa


dos bisavs longinquamente mortos
que para ela tinham escolhido
um lugar na pureza
da terra absoluta
quando
principiava a primavera
e a av saudava as andorinhas
como se no regresso
do ano anterior as mesmas fossem
e o sopro dos besouros me fazia
sentir que qualquer coisa novamente mudara
nos meus dias e o vero
subia e o calor da tarde intumescia
o sexo adolescente
e antes de regressar ao varejo da amndoa
num silncio de suor o jovem tio dormia
de cada vez ns vamos
da rvore desprenderem-se
os limes frios

Gravura

Ourives-gravador era o ofcio

do meu av paterno: sobre mesas

dispersos utenslios buris limas

por entre chapas e, h muito, objectos

acumulados; lembro-o curvado

com a luneta, fixamente olhando

a dura mo que no metal gravava

por encomenda nomes: desenhava com

fora as linhas do seu significado

como se para alguma eternidade


ilusria as gravasse, assim o poeta

com o buril inscreve na deserta

chapa do mundo no interpretado

o sentido precrio de o olhar

Gasto Cruz, em A moeda do tempo. Lisboa: Assrio & Alvim,

2006.

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