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evista Pops de Pls 2018 VO 7123p 440.478 (©2015 by Revit ortaguera de Five Al igh eee ol io1s90rre 201s 712049 O Legado Agatol6gico da Metafisica Ocidental: uma Leitura de Heidegger MAFALDA FARTA BLANC* Resumo [No presente artigo propiese uma interpelagio do debate de Heidegger com a metafsicae ‘da “apropriagic® [Veretadung] que fer da metaisca para o su proprio pensamento. 0 fio ‘condutor da exposigdo ¢ eronoligico, sem pretender ser exaustivo. Dos tres periodos do ‘pensamento do autor, 0 iiimo, é mais sugerido do que propriamente explanado, Palewras-chove: desvelamento,exsténcla nitude, metals, posibiidade, ser Abstract ‘The present paper purposes an interpretation of Heidegge’s discussion with metaphysics ‘and of the “appropriation” [Venwindung] he makes of this one for his own thought. ‘The presentation’ conducting wie is chronological, without pretending to be exhaustive OF the three periods of the author's thought, the lst is more suggested than explained, ‘Konvords: being, existence, fintude, metaphysics, possibilty, unvelling 1, O termo “Metafisica” como o intitulado ‘de um problema fundamental tum dialogo constante com a metafisica, a qual representa para ele a propria filosofia enquanto esta, diversamente das ciéncias positivas ou Onticas, diz respeito A questio do ser. Mas a metafisica no perfaz, a seu ver, na sua constitui¢ao disciplinar como saber, um dominio pacifico, i na sua génese com Platio ¢ Aristételes como no seu desenvolvi mento posterior, com a ontoteologia medieval ¢ a egologia dos Modernos. Como para Kant mas por distintas razdes. a filosofia primeira é, para le, o intitulado de um problema fundamental que consiste em inquirir ndo se ¢ sob que condigSes 6 possivel um conhecimento do supra-sensivel, mas por ‘que raz2o e a partir de que derivas ela se tornou um tal saber, entendido O pensamento de Heidegger desenvolve-se e estrutura-se através de * Universidade de Lisboa E-mail: mafaldablanc@hotmail.com sa74 450 ‘Marauos Fan Buaxe aquele tltimo ~ reportado a Deus, & alma na sua imortalidade ~ como um dominio do ente entre outros, embora superior Com efeito, para Heidegger, a metaffsica como interrogacio sobre o ente em totalidade, longe de se reportar ao supra-sensfvel, diz respeito & finitude e € 0 seu mais forte indicio. Concerne 0 proprio homem, o seu lugar no mundo, a sua destinagio, decorre da sua constituigao ontolégica essa insigne abertura e relagao que o distingue como o “ai” (Da] do ser. ‘a instancia éntica da sua manifestagao. De modo que o questionar meta- fisico surge, nao de um puro interesse teorético, mas de uma funda moti- vvagio existencial, geralmente despoletada por qualquer disposigao afectiva de teor fundamental, que de forma involuntéria e imprevisivel ilumina a facticidade da existéncia, 0 seu encontrarse ja estar langada no mundo € a ser, sem saber de onde nem porgué. A esta luz, nao constitui o ser uma transcendéncia separada, antes perfaz a operagao ou a propria acga0 de transcender, pela qual 0 existente humano esté ja sempre enquanto icio do pensamento grego, o todo do mundo foi pensado dito a partir da eclosao, do vigorar emergente e predominante da Fusis (que inclui a natureza, a historia ¢ 0 Divino) ¢ assim experienciado 0 des-velamento do ser que traz a presenga o ente, jé, porém, a partir de Platiio e em reacgo & crise sofistica da verdade, 0 pensar, orientando-se para a busca de um referencial estavel de verdade que servisse de eritério normativo para 0 conhecer e agir, acabou por separar o aparecer do ser ¢ este do nao-ser, transpondo para o ente a estrutura da transcendéncia propria do ser como possibilidade. Racionalizando-se, 0 filosofar fot perdendo contacto com a sua raiz existencial, 0 pensar elevou-se do parti cular para o geral e deste para o Ente supremo, dando inicio a metafisica como conhecimento do supra-sensivel. ‘A nova ciéncia nascente diversificou-se entao numa pluralidade de acepgdes que acabaria por se polarizar em torno de dois principais, vectores: a investigagao das determinagdes mais gerais do ente enquanto cente (0s universais, as categorias, os transcenclentais) ea pergunta pelo 1. Cf, Hasnecoes, M.- Die Grondbegrfe der Metals Welt Endlich Eisamket, Gesamtauseabe 29:30, Frankfurt Mt: Vitro Klostenmann, 1983, §15, p.8S. “Wir Ubernchmen den Ausdruck Metapysi(..]als Rel for das Grudproblem der Metephsssk sells, dae in der Frage liegt was sie selbst, dle Metaphysik so” [Nos tomamoen expresso ‘Metalsica’ |.) como 0 luda para o problem furdemenial da Metafisea ele merino, 9 ual reside na pergunta. 0 que ela propria, a Metafsica, ¢] Doravante, passaremos a citar os texts de Heidegger pela edigd de releréncia das “Obras Completae™ que abreviaremos pela ‘gla GA, seguidn do algaremo respeitante 20 tomo em questa, dita deedigSo e paginagso Sa Fm oe 0 Lagado Agarotégico da Metaficia Ockdentol- uma Leura de Heidegger seu fundamento tiltimo, a causa primeira e suprema de todas as eausas Onticas. Assim, j4 na “filosofia primeira” (proté philosophia] de Aristételes, cencontramos essa dupla orientagao do filosofar para a ontologia geral ¢ para a teologia. Esta ultima trata do ente propriamente dito, 0 Divino, ue constitui para o Estagirita o primeiro e mais perfeito motor na ordem da esséncia, a causa tiltima do movimento da natureza, que percorre 0 ente em totalidade na consecucao do seu ser. Escolarizando-se e sistema- tizando-se, 0 conceito de metafisica vai depois reunir aquelas duas ordens de investigacao~ a respeitante ao geral e a do existencial, 0 original e primeiro ~ colocando num mesmo patamar de consideragao os transcen- dentais eo Transcendente, Este illimo —o Ser absoluto subsistente que a filosofia medieval, guiada pela revelagao crista, identificaria com Deus, puro espirito absoluto, que criou o mundo e tudo o que existe - tora-se entao o lugar da unificagao analégica da esséncia e da existéncia.” ‘Com a filosofia moderna, embora a antiga problemética da meta- fisica nfo se altere, um novo e importante passo é dado: 0 questionador metafisico ¢ expressamente introduzido na interrogagdo sobre o ente, explicitando-se assim algo de fundamental que estava apenas implicito na filosofia anterior. Apesar de no essencial se manter a mesma, a proble- matica tradicional da metafisica & agora vista na perspectiva da nova ‘éncia da natureza, a fisica experimental. A apodicidade do método mate- mético desta confereJhe uma aparéncia de cientificidade e rigor, que a filosofia almeja para si aleangar, pelo que see vai propor entio como tarefa clevar a metatisica ao nivel formal de uma ciéncia absoluta. O problema da certeza, encarado do ponto de vista do conhecimento metafisico € no de uma gnoseologia, torna-se a alavanca do desenvolvimento da filo- sofia moderna. O “eu”, ou seja, a consciéncia de si do sujeito pensante, & colocado no centro da problematica como o lugar da fundagdo incontes- tavel desta metafisica, sem que, todavia, o proprio “eu” seja questionado e indagado quanto ao teor do seu ser, a0 sentido do seu existir, ereconcuzido enquanto cogito & facticidade de uma experiéncia concreta e historica de ser. A omissdo da questio sobre o sentido do “eu sou” permitiu, por isso, que a metafisica, em clave idealista, conduzisse o homem até & figura do poder: Identificado este primeiro com a raziio, em seguida com a vontade, a metafisica acabaria depois, sob o espectro do niilismo, por ser destronada pela figura do Super-homem -simbolo de uma humanidade que, sob a 2, Sobre a origem ¢ 4 histéri do tome “melafisics’, veiese 0 curse supraciinde, 85814, pp. 3785 451 452 Maratba Fania Bane égide da técnica, assume o comando da organizagao da terra e estende 0 seu dominio ao ente em totalidade. Vendo assim conclutdo o ciclo historial de um pensar de teor instru- mental que teve o seu inicio na Grécia com 0 primado conferido a idéa, Heidegger intende ter chegado 0 momento de reconduzir a metaffsica, A verdade da sua esséncia, a saber, a interpretagio do ente como algo calculavel e produtivel a partir de modelos. Eo ser nela abrigado mas nilo tematizado ~a eclosdo e o recesso da clareira de manifestagao que 20 cente ilumina na sua verdade -, que motiva 0 seu dialogo continuado com ‘a metafisica. Num primeiro momento para a fundar numa anaiftica exis- tencial ¢ a reconverter em metafisica do Dasein, depois para a retornar no ‘seu percurso historial ea circunscrever no seus limites e na sua estrutura €, por tiltimo, para a apropriar na sua verdade, no seu impensado € centregar a si mesma como um modo de pensar 0 ser jé esgotado nas suas possibilidades. ‘Com efeito, no seu intento de retorno 20 fundamento da metafisica, 0 filésofo foi-se apercebendo de que esquecimento do ser, que a vitimou no seu pendor essencialista ¢ racionalizante, néo se deve apenas nem prin palmente a uma falta ou desvio humano corrigivel, afecta todo o pensar na sua provenigneia historial, prende-se com a estrutura retentiva do proprio sera forma como ele, destinando-se ¢ afluindo, reflui, deixando campo livre ao ente e & sua objectivacio. Por isso tratar-se-& para ele, doravante, nfo tanto de reformar a “rainha das ciéncias" ou de a suplantar, mas antes de a reconduzir A sua verdade, que ¢ 0 ser nela implicado ¢ a sua relagio com a esséncia do homem, para, a partir dat, intentar abrir novos caminhos para o pensar e dizer da verdade do ser. E.que a metafisica ¢ 36, afinal, a aparigdo histérica finita de um “comego” [Arrfang] mais rico, que sempre de novo nos convoca a recomegar. O que se tradiuz, para Heidegger, no desafio pensante de preparar um “outro comego” da histéria, capaz de fundar a verdade omissa no “primeiro comego” helénico em favor da hegemonia reinante do ente? No que se segue, procuraremos percorrer em brevidade estes trés ‘momentos, que correspondem no essencial s principais estagdes do itine- rério especulativ de Heidegger. Aperceber-nos-emos de caminho que, 3, Heldegger distingue entre Begnm © Anfang: o primeiro € apenas 0 “inicio” de um movimento ov de um ciclo historia 0 segundo, que traduzimos por “comeso", ¢ esse principio relior da hstrla, ue sempre permanecevigente no decurso dos seus sucesivos {esdobramentos epocais A nore de Anfang fol mais amplamente desenvolvida nos Betrage ‘aur Philosophie (GAS), ondea dieting entre 0 "primeiro” 0 “outro cameyo", constitu Uh das einoeprincpais do que mais adianlerelorizemos como o “evento” [Eveignis] Fm 0 Legado Agatelépico da Metafisiea Ocidental: uma Leitura de Heidegger gradualmente, ¢ uma mesma intuiglo respeitante ao ser e a sua verdade ‘que se vai desenhando e adensando: a da sua temporalidade, que atraves: sando de modo subrepticio a metafisica, a desloca e impele a ir para lé de ‘si mesma 20 mesmo tempo que a confirma na sua inevitabilidade. 2. A Metafisica em clave existencial: a finitude do Dasein humano A primeira abordagem de Heidegger ao tema da metafisica ocorre por volta dos anos 1928-30, em textos como a conferéncia “O que ¢ ‘Metafisica?” e os cursos "Introdugao & Filosofia” e “Os Conceitos funda- mentais da Metafisica’.* A perspectiva é ainda transcendental, procurando © filsofo, com base na Analitica existencial efectuada em Ser ¢ Tempo —a ‘obra-magna de 1927, descortinar e retroceder ao fundamento existencial da metafisica, Heidegger comeca por diferenciar a metafisica, que constitui para cle toda a filosofia, do conhecimento cientifico. Ela distingue-se dele jé pela amplitude, mas também pela profundidade e a originaridade do seu questionar? Com efeito, longe de se cingir a um dominio sectorial do ente, pergunta pela sua totalidade e, tio pouco se restringindo a aspectos pparcelares da sua constituicao, sonda a raiz.e dinamismo do real, o porqué do seu estar sendo “em vez do nada”, Colhe, por isso, no enunciado do prinefpio de razo ~“porqué o ente e nfo 0 nada?” - o intitulado da sua “questo fundamental” [Grundfrage]. Nao porque aponte para a eausa primeira e suprema de todas as coisas énticas, como queria Leibniz, mas porque, mais profundamente, interrogue esse enigmatico potius que faz com que algo exista em vez do nada.* Nao se trata, entenda-se, de uma mera contraposigso l6gica entre 0 ser, entendido como possibilidade formal, ¢ o nfo-ser, mas de um verdadeiro poder que habilita a existencia a prevalecer sobre o nada ou a ndo nao-ser: uma espécie de poténcia ou de ser implicito, intermediaria entre o nao-ser e 0 ser, de onde o ente possa como uma presenga emergindo de um retiro. 0 “nada”, que nao € a simples auséncia de determina - como pretendia Hegel ao igualé-lo 4. Volase Heaoscean M. “Was ist Metaphysih. Wegmarkan, GA 9, 1976, pp. 103-122 Einlitungin die Philorophie, GA27, 1996 Die Grundogrf der Metaphyik Wel Endicbet ossrmtt, GA 29-30, 1983, 5. Voj-se Hnneccem M.— WM, GA 9, pp. 104108; GA 27, cap. 6, §8 27-31 e Eijhrang Indie Metaphyst [= EM], GA 40,1983, 1. cap 41, pp. 3-20. 6. Voja-se a primeira das "24 Teses Metaficcas, que enunca:"Ravo est in Natura, eur liquid pot existat quam ni" testo blingue em Lats, C. W.~ Recherches Generales sur analyse des Notions et des Vertes. Paris: PUR, 1998, p. 486 eee come 453 454 ‘com 0 ser no inicio da sua “Logica”? mas um verdadeiro poder de “nadi- ficagio” (Nichtung), de recusa, inerente a0 proprio ser, &0 que as ciéncias {4 ndo pensam, mas faz. toda a diferenga da metafisica em relagao a elas, ‘sua incompardvel radicalidade. E tal sucede porque o teor objectivante formal do seu método matematico exclui a partida do campo da invest. {gnco o proprio sujeito investigador, no qual reside precisamente a possi- bilidade de fazer a experiéncia reveladora do nada. Com Hegel, © nasso filésofo pensou a existéncia finita como nega- tividade, dupla negacéo, mas, diferentemente dele, recusou a superasio desta pelo infinito. E isso porque, a seu ver. o nadificar da negagao que faz aparecer existente, longe de perfazer a simples energia de um pensar absoluto que, no ambito proposicional, conduz o ser pensado & sua plena cefectividade ~ um momento da auto-mediagao do ser conducente a plena presenga a si do espfrito absoluto -, opera mais fundo, a nivel ontologico, ‘como a plena eficiencia do que se recusa e ausenta, representa a finitude do proprio ser, que se manifesta a nivel existencial nesse ser-para-um-fim ‘ou poder acabar que caracteriza a existéncia na sua mais extrema possibi- lidade de ser. Assim, a metafisica, longe de constituir, para Heidegger, um conjunto de assergbes dogméticas sobre a realidade em si ou 0 recenseamento arbi- trério de determinagdes abstractas do ser, de que © homem seria uma manifestagao marginal, representa antes uma interpretagao da expe- rigncia que este faz do seu sere do ser como temporalidade, que adscreve cada ente ao poder e & impoténcia do seu existir. A esta luz, apresenta-se entio a existéncia humana como uma pura condi¢o nfo necesséria, uma possibilidade langada que poderia igualmente ndo-ser e que, sendo, & ‘9 fundamento de um nao (as possibilidades que ndo consigna) ¢ de um nada (0 seu ser-para-a-morte)." A metafisica distingue-se ent3o pelo teor inclusivo dos scus conceitos, que no sio meras representagoes gerais tiradas de um interesse teorético-instrumental pelo ente intramundano, 1, Vejn-se Hort, G. W.F.—Engyhlopie der philosophischen Wesenschafon, 1. Die Wissenschaft der Logi, Franfurt aM: Subrbamp Verlag, 1970, $87: "Dieses reine Sein stun ieveineAbstraksion, damit das Absolonegative, welche, seihfalls unmittelbar genomamen, {das Molus ist" [Ora puro ser €a pura absrace2o, porconsepuinte, oabsoitamente neato, ‘que omado também imediatamente, € onada.] 8. Voje-so, por exemplo, Heiter, GA 27, § 37. €), pp. 331: "Kein Dasein kommt aud Grund seiner eigenen Beychlusses und Entschluses ur Eistenz. [J Vilmebr kan jedes Dasein auch nicht sein” [Nenhum sero-at velo a existéncia em virtde da sua propria resolupdo e decisdo. [J] Mals eada ser o-a pode igualmente ado set), mals adante, na 332 screscenta:“L.) dieser Nichtcharakter gehort zum Wesenseines Seins” [.] e356 Sanketer deni perience hesstnca da sou set) 0 Lsgado Agatolégico da Metafisia Ocidental: uma Leura de Heidegger mas verdadciras elaboragées explicitativas de um inquirir e um entender ‘que, longe de deixar de fora o proprio questionador, oinclui como fonte da ‘sua motivaglo e base do seu primeiro respondimento.” 0 filésofo louva a consciéncia crista da finitude e contingéncia do existir, expressa no lema criacionista “ex nihilo fit ens creatum”, mas recusa a sua fundagao éntica na presenga subsistente de um primeiro necessério, que considera uma concessio ao essencialismo e eternalismo helénicos. Gratuita ¢ imprevista, a existéncia nfo releva, a seu ver, nem dda necessidade de um ser que no pode néo ser, nem de qualquer ra7o que the assista e a faga ser: Ela é porque ¢ e nio porque se funde de si ou releve de um qualquer fundamento. De modo que, para ele, reconhecer que o ente, na medida em que é, esta religado ao ser e sinaliza o seu dom, 6 admissivel como base fundamental de toda a religiao e de todo o conhe- cimento de Deus; j6, porém, interpretar o ser como um ente ~ seja ele © Divino, a natureza ou 0 préprio homem — significa incorrer na sua redugao Ontica, desconhecer a sua alteridade. Ora 0 ser enguanto fundamento do ente, descobrese numa dimensio inteiramente distinta daquela propria 0 pensar objectivante. Comega a irromper enquanto nao-ente na expe- rigncia do nada na angtistia." Convida, assim, o pensar a abdicar da sua vontade de saber, a ultrapassarse como representaglo ¢ a entregarse & experiéncia da sua niilidade, para ai fazer a descoberta de que ja sempre se encontra fundado no proprio ser, ou seja, nisso que, permanecendo escondido e indissocisvel do nada, faz.com que a existencia possa surgire, com ela, o prodigio de haver algo." Apreendendo o ser a partir do nada ¢ mesmo como nada, Heidegger descreve-o ao modo de uma presenca que, & medida que se vai mani- festando e constituindo, nao cessa de diferir ou subtrairse a si mesma, sem que essa diferenciacdo, que é a-bismio [Ab-grend] adverso a qualquer intento de fundagdo, possa ser subsumida ou compreendida por um prin- 9. Vejase Heeccen GA 29/30, 1 cap, §3, p13: “Metaphysisches Denken ist inhegrfliches Denken in diesem doppelten Sinne uf das Ganze gehend und die Este durchgrefend.” (0 pensamento mettsico € um pensameato inclusive num duplo sentido: ‘inigene no todo apreende radkalmente a existencla] 10. Hssecoen GA 9, p. 312: "Das Nich als das Andere zum Seienden ist der Scheier des Seis, des Seyns in Sinne des Ereignisses des Brauchs).” (0 nada como outro queo tents €0véu do ser, nto significa do Ser no sentido mais oiginal do evento da convocas40.} nossa radupso ¢apeeximaton 1 Hiorcaam M.~ WM], GA, p14: "in der Hellen Nicht des Nichts der Angst erst erst ie urspringliche Offonelt dos Sender al seinessolehen: dass das Seiendes ist und nicht Nicht [Na noite clara do nada ermergeprimeiroabertura orginal do ente come un {aleque ele é~enso onda] 455 456 Maratoa Fanta Beane cipio. © nada ocupa, assim, no fundamentar revelante do ser o lugar do Deus criador: nadificando, ele € esse abismo da liberdade que faz tempo- rarlamente prevalecer a presenca, tornando depois possfvel que 0 Divino possa aceder. De modo que o lema do pensar heideggeriano acerca do fundamento poderia, com justeza, ser resumido pela sentenga “ex nihilo fit ens qua ens”. Langado na existéncia, 0 homem ¢ 0 “af” (Da) do ser, € isso, porque o seu “qué” was] €0 proprio existir, isto é, o seu “que” [dass] é, 0 facto de sere nada mais que isso.” Porque a sua esséncia € ser ele esta j sempre transcendendo o ente por inteiro, mas porque este ser é finito, perpassado de negatividade ele ¢ 0 nio-ser de outras possibilidades e do seu proprio ser enquanto moribundus -, 0 ultrapassar da existéncia é também reve- lagi da face nocturna do ser. Ela ocorre, antes de toda a tematizagao, na noite clara da angiistia sob o signo do inquietante como uma dimensao intrinseca 20 préprio ser enquanto este, no movimento do seu desdobrar-se esté em tensfo entre o darse ¢ o recusar-se, a face luminosa ¢ positiva da existencia e 0 seu contrério, de que aquela no € sendio a suspensio provis6ria."* ‘Transcendendo do ente para 0 nada do seu ser e do ser, 0 homem existe pré-tematicamente enquanto meta-fisico e, $6 por isso, pode depois fazer metafisica, a partir da interrogagao expressa pelo porqué do ente (€ no o nada), Esse cardcter mete-fisico da existéncia nasce, contudo, no de um interesse teorético ou cognitivo, mas do sentimento que © homem de si tem enquanto jé langado no mundo junto do ente intramundano."* Descobrindo a existéncia como um fardo sem razao a ter de assumir e implementar, os sentimentos, a “disposigdo afectiva” (Befindlichkeit] geral tém, com efeito, para 0 nosso fil6sofo, ao contrério da tradigtio que 0 desvalorizou ou mesmo silenciou, um poder revelador mais origindrio gue © proprio entender, que eles despoletam e determinam - e essa é ‘mesmo uma marea original essencial do carécter existencial da sua onto- logia. Ora um sentimento é tanto mais auténtico quanto mais profunda- 12, Gf, Homeceam M.-Sein ud Zeit (= 82), GA 2, 1977, §9, p. 58: “Das Wesen des Daseing liegt in seiner Exist" (A estnc do ser-o-a eside na sua existcia 13. Sobre o confliteinerente a ser. ease, por exemplo, GA 29-30, §2, pp. 5-9 e ainda “rie aber den Humaniemas", em Heinicorn M.~ Wepvearken, GA 9, p. 38% "Beide, das Helle und das Grimmige, Ken jedoch Im Sein nuc wesen, isofern das Sein selber as ‘Surtige ist In im verbirat sich die Wesensherkunit das Nichtens”(Ambos.o indemne e 0 fren, somente podem desdobrar seu set, no seo do ser, na medida em que o pipe ser é que esti em conto. Nisto se eccondea proveniéacia essencal do nadia) 14, Sobre o poder revelador do sentimento, vase, do mesmo autor, SZ, GA 2, 29 pls 0 Legado Agatolsgica da Metafision Ocidental: uma Leiture de Heidegger mente abre a verdade da existéncia e isso € o que justamente ocorre com a angiistia: colocando o Dasein diante do seu ser-no-mundo e do poder de findar, ela revela-o como impoténcia ¢ ameaga, possibilidade de nao-ser* ‘Na verdade, mais do que qualquer outro sentimento ~ 0 espanto face ao ente visivel ou, por exemplo, a alegria pela presenga do ente querido—a angtistia constitui a disposi¢o metafisica por exceléncia porquanto ela e s6 ela, abrindo o nada, concomitantemente nos descobre a falta radical de fundamento de tudo o que existe, patente no facto de que toda a doagao tem sempre como contrapartida © retiro, o ausentarse ¢ o desapareci- mento da presenca. Ela revela que coisa nenhuma se sustenta, que a exis- téncia das coisas ¢ dos outros nos escapa ese encaminha para o seu préprio aniquilamento, que o nada espreita em tudo como tiltima verdade do ser, faz, por fim, sogobrar o mundo como horizonte de sentido, conjuntura de nexos significativos. Mas a angdstia permite-nos também descobrir uma qualidade, um sentido do ser, que nao sendo nada de éntico, nao € tao pouco puro nao-ser, parece penetrar o real por todos os lados como um poder de se tomar outro. Aristételes pensou-o como potencialidade, conexao intima de repouso ¢ de movimento, de presenca e de auséncia, ‘mas a sua natureza antes reside na temporalidade. Em e por si mesma, a “poténcia” [dtinamtis] é um poder simétrico de ser ¢ de nio ser; uma vez ‘actualizada, ela conserva consigo 0 seu poder de nao ser; logo, a impossi- Dilidade de ser eterna, contrariamente ao que pretendia Aristoteles com o seu modelo de presen¢a constante."* Transcendendo o ente enquanto ser de possibilidade, o Daseén, pela estrutura antecipativa da compreensio, pode visar o “haver” (geben), a doagio, que ¢ a condigéo ontolégica da sua existéncia, fonte e origem de onde tudo provem, mas nao deve hipostazié-la fixando-a num presente ‘que nio passa ~o nunc stans do Ens summe. Durante muito tempo, porém, a metafisica apoiou-se na positividade do ser, desvalorizando ou ‘mesmo ignorando 0 negativo. Fechou os olhos a finitude da existéncia, sua constitutiva “nillidade” [Nichtigkeit], permitindo 0 desenvolvimento 6gico da ontologia como teoria das Categorias. Heidegger, a0 invés, quer restituir ao ser 0 mistério do seu puro dar-se - 0 des-velamento, a eclosao na presenga -, 0 qual se retirou da ontoteologia e s6 foi assumido pelos misticas ¢ que, longe de ser contrério ao tempo, nele e por ele ovorre. 15. Sobre a angustia como disposiao afectivafundemental, voja-s SZ, GA 2,40 p.244 sens. 16, Veja seo curso de Heidegger Aristotle, Metaplnsik IX 13, 33, 1981.85 17, 192 21, onde o autor explictaem particular a nogdoarsttsica de dinars, contrastande-s com ‘tose megérica do primado de actalidade 457 458 Mapai9a Fania Buane ara tal, julga essencial restituir a metafisica a sua sede original, afinitude do Dasein, pensé-la ontologicamente, nao como limitagao de propriedades ‘mas como modo de existir, esse de se estar confinado a um fim. 6 por referéncia a essa nillidade original, logra todo 6 positivo obter ‘a sua forga e peculiaridade."” A morte, que é sempre e s6.a de cada um, €0 ‘que por exceléncia nos singulariza e confere o seu sentido ao existir: face a sua certeza e ameaga permanente, esté-se radicalmente s6, a dispersio Factica do serjunto-de e da coexisténcia desvancce-se, somos colocados face aexigénciade decidir do proprio ser, da sua finalidade.'* Viver significa, assim, estar a caminho da reserva da origem, onde se iniciou 0 nosso destino mas que, entretanto, foi esquecida ¢ ocultada, & vé-la aproxi- mare gradualmente até s0 momento final, escatol6gico, onde o que uma ver foi inicio de novo regressa como fim. A morte 6, com efeito, saida do plano diferido da origem, éxito do tempo. Para entrar onde? Esta € uma questo a que a filosofia j4 nao pode responder. A assuncao do abismo, da face negativa do ser na possibilidade da auséncia, péc-nos perante o seu lado positive, a presenga, - que, para Heidegger, sempre sinaliza 0 Divino — numa relagfo interna de esperanga que, uma vez a mortalidade consumada, se poder tornar a de um face face. (0 jogo, em que o homem € posto em jogo /langado na existéncia © mundo configurado enquanto horizonte de sentido, apresenta-se, assim, como uma tensio entre tendéncias opostas de ser ¢ de nao ser, de presenga e de austncia, Por isso, 0 serno-mundo, a transcendéncia, & auséncia de solo, de fundamento. £ esta niilidade da existéncia que leva ‘0 Dasein a buscar apoio mama decisio, a dar-se, de um ou de outro modo, apoio e consisténcia, o que assume o cardcter de uma “mundividénci [Weltanschauung].” Esta ultima ¢ sempre fungao do modo como, de cada vvez, 0 Dasein ressente a falta ou caréncia do seu ser-no-mundo: no mito, cle busca apoio fora de si junto do ente intramundano; jé na filosofia, &em simesmo que ele colhe a forga de se transcender, o que o leva a colocar em 17. Vejnsse GA, §37, 6), p. 336: “Erst ip Hinblick auf die wrsprangliche Nichtigkeit des Daseins erhalt alles Sogenannte Positive seine Kraft und Binzigket. (1° (Som 1 hue da nildade original do sevo-af gana todo o assim chamado posilivo a sua forge e Singularidade. (1) 18, Sobre © significado existencial da morte © sua repeicussio na dindmica éico- ‘existencial do Dasen,designadamente a reslugio eo procto. verse SZ, GA 2,27 sexx, cap. eseguintes 19. Sobre a conexto entre facticidade © mundividencia, vase © curso GA 27, 1937, donee se pone ler,p. 336: “Das Sichhalten ln Inder Wet-ein it das, was wit mit ‘Welanschauung meinen.” [0 dar se apoio, contedde e sustem no serno-mundo € 1650 que ddenominamos de mundividéncia Jeo 38, p.337 ss SR ane

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