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|CHRONICA.DA PROVINCIA.DO.BRASIL i | PELLO.P. SIMAM_DE .VASCONCELLOS mH peel i a 5 zr Quando os Frades faciam Histéria 145-178 Em busca do paraiso perdido: a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil de Simao de Vasconcellos, S.J. Publicada pela primeira vez em 1663, a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil e do que obrardao seus filhos nesta parte do Novo Mundo’, do jesuita Simao de Vasconcelos (1597-1671), foi reeditada apenas em 1805*. Da biografia do autor conhecem-se alguns aspectos fundamentais, sobretudo em termos de enquadramento cronolégico — das datas de nascimento ¢ morte as principais fungdes desempenhadas —, mas desconhecem-se, todavia, no sentido em que nao estio sistematicamente estudados, de que percursos e orientagGes se teceu a sua vida, em momentos to complexos do ponto de vista da politica nacional ¢ de orientagdes da Companhia de Jesus, circunstancia que torna este contempordneo do Padre Anténio Vieira uma figura algo enigmitica. Sabemos, apesar de tudo, que Simao de Vasconcelos nasceu no Porto, em 1597, viajou ainda crianga para a Bafa, ao tempo capital das possesses portuguesas na América, ingressando_na Companhia de Jesus em 1616°, com dezanove anos de idade. Foi professor de letras humanas, filosofia, teologia especulativa e moral, no conhecido colégio da Bafa, depois de af ter sido aluno. Terminado 0 perfodo filipino, regressou a Portugal, em 1641, integrado na embaixada da Restauragio, juntamente com o Padre Ant6nio Vieira, quando 0 governador da Baia, Antonio Telles da Silva, veio prestar homenagem ao novo rei, viajando depois para ' Chronica da Companhia de Jesu do Estadio do Brasil: E do que obrardo seus fihos nesta parte do Novo Mundo.Tomo primeiro da entrada da Companhia de Jesu nas partes do Brasil & dos Jfundamentos que nellas langardo, & cominudrdo seus Religiosos em quanto alli trabalhou o Padre Manoel da Nobrega Fundador, & primeiro Provincial desta Provincia, com sua vida e morie digna de memoria: ¢ alguas noticias antecedentes curiosas, & necessarias das cousas daguelle Estado, pello Padre Simao de Vasconcelios da mesma Companhia. Natural da Cidade do Porto, Lente que foi da Sagrada Theologia, 6 Provincial do dio Estado, Lisboa. Na Offcina de Henrique Valente de Oliveira Impressor delRey N.S. Anno M.DC.LXII. * Em rigor existem duas edigdes: uma impressa no Rio de Janeiro, em 1864, bastante defeituosa ¢ incompleta, e outta, em Lisboa, em 1365. A edigao de 1865 compreende dois volumes, apresentados umas vezes em conjunto, outras separadamente. Trata-se de uma publicacao preparada por Inocéncio Francisco da Silva que a justifica apontando a “quasi extrema raridade a que teem chegado entre nés 03 exemplares da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Bra elevado preco a que subiram modernamente os poucos que a casualidade trouxe a0 me livros” («Adverténcia Preliminar»), Esta edi¢io reproduz, nas palavras de Inocéncio, ¢ para além das actualizagdes ortogrificas © da restituigao de "alguns logares do texto, em que cram manifestas ¢ evidentes as incorrecedes typographicas[...] fiel ¢ escrupulosamente [...] a edi¢do primitiva de 1663" («Adverténcia Preliminar). Acrescenta, contudo, a edigo de 1663, um apéndice constituido por sete cartas do Padre Manuel da Nobrega dirigidas a Simao Rodrigues (trés), aos Padres da Provincia de Portugal (duas), 2 D. Joao III (uma), a0 Cardeal D. Henrique (uma). Cito a partir da edigao eparada por Inocéncio. Vieira ingressou no curso de Humanidades, no mesmo colégio da Bafa, em 1615 e af foi ad ao noviciado em 1623 itido 146 Zulmira C. Santos Roma, como Procurador da sua Provincia, fungdes que abandonou quando se tornou Provincial entre 1652 e 1658. Julga-se que tera voltado a Lisboa por 1662, provavelmente por assuntos que se prendiam com a edigdo da crénica em causa* ou eventualmente com os controversos acontecimentos de 1661°, e que devera ter regressado definitivamente ao Brasil, em 1663, tendo morrido em 1671, de apoplexia, aos 74 anos de idade®. De entre os diferentes cargos que ocupou, dentro da Companhia, destacam-se os de Vice-Reitor do Colégio da Bafa e de Reitor do Colégio do Rio de Janeiro e o de Provincial, factores que lidos em conjungio com a anterior actividade docente evidenciam uma figura de alguma relevancia, simultaneamente do ponto de vista intelectual e de fungdes desempenhadas. Pode suspeitar-se, na auséncia de fontes directas, da sua formacio intelectual, desenvolvida no colégio da Bafa, na medida em que o programa preconizado pela Ratio Studiorum, nos anos em que estudou Simao de Vasconcelos, j4 resultante das reformulagdes que o Geral Acquaviva fez imprimir em 1598, se estendia a todos os estabclecimentos de ensino da Companhia’. De resto, o Padre Vasconcelos nao redigiu apenas a Chronica da + Muito provavelmente com problemas levantados pela edigdo das Noticias das Cousas do Brasil jue oportunamente explicivare. Na sequéncia da lei de 9 de Abril de 1655 sobre a liberdade dos indios, em cuja elaboracao 0 P. Ant6nio Vieira havia tido peso significativo, surgiram enormes conflitos que se foram agudizando até 20s motins do Meranhio e do Pard. Entre 1658 e 1660, Vieira escreveu uma espécie de estatuto intemo das missoes da Companhia de Jesus no Maranhao, Pard e Amaz6nia, denominado «Regulamento das aldeias». Quando a Camara do Para insistiu em recrutar escravos, Vieira opds-se e, como é sabido, foi preso e compelido a regressar a Lisboa. Serafim LEITE, Historia da Companhia de Jesus 1a Brasil, Lisboa-Rio de Janciro, 1938, TV, $4-62 ¢ 106-124: Jorge COUTO, Esiratégias € métodos de missionagao dos jesuitas no Brasit in A Companhia de Jesus ¢ a missionacdo no Oriente, «Actas do coléquio intemacional promovido pela Fundacio Oriente € pela revista Brotérian, Lisboa, 2000, 65-83. © Pelo que diz respeito A vida do Padre Simao de Vasconcellos, os diferentes repertérios bibliogréficos, de Diogo Barbosa Machado (Bibliotheca Lusitana, Lisboa, 1741-1759 (Coimbra, 1965-67), Tomo Ill, 724) a Carlos Sommervogel (Bibliotheque de la Compagnie de Jésus, Bruxelles — Paris, 1890-1909), de Nicolis Ant6nio (Bibliotheca Hispana Nowa, Madrid, 1783; Madrid, 1996, 289), e Antonio de Leao Pinello (Epitome de la Biblioteca Orintal, Occidenial, Nautica y Geografiea, Madrid, 1629) a Inocéncio (Dicionario Bibliographico Portuguez, Lisboa. 1854, 286-287), repetem-se, relatando o nascimento no Porto, a viagem de tenra idade para a Bafa, a entrada na Companhia de Jesus aos 19 anos, a passagem como aluno ¢ mestre pelo Colégio desta cidade, a vinda para Portugal em 1641 e a ida para Roma como Procurador da sua Provincia Sobre as diferentes versoes da Ratio Stuliorum podem ver-se, no conjunto de uma ampla bibliografia, os varios estudos integrantes do volume La ‘Ratio Studiorum’. Modelli culturali ¢ pratiche educative dei Gesuiti in Nalia tra Cingue ¢ Seicento, (a cura di G, P. BRIZZI), Roma, 1981; Francisco RODRIGUES, fornacao intelectual do Jesuita. Leis ¢ factos. Porto, 1917 ¢ a introdugio de C. LABRADOR. M. BERTRAN-QUERA, A DIEZ ESCANCIANO, J, MTNEZ de la CALERA que acompanha a traduc0 da Ratio pelo que respeita a parte Studiorum Inferiorum intitulada La ‘Ratio Studiorum’de los jesuitas, Madrid, 1986. Em telagdo ao lugar da revdrica nas Quando os Frades faziam Historia 147 Companhia de Jesu no Estado do Brasil ¢ as Noticias curiosas ¢ necessarias das cousas do Brasil. Pertencem-lhe ainda a Vida do Padre Jodo de Almeida, da Companhia de Jesu, na provincia do Brasil (1658)°, a Continuagdo das maravilhas que Deus he servido obrar no Estado do Brasil, por intervencao do mui religioso e penitente servo seu, 0 veneravel Padre Joao de Almeida, da Companhia de Jesu (1662)°, um Sermao que pregou na Bahia em o 1° de Janeiro de 1659, na festa do nome de Jesu'® (1663) ea Vida do veneravel Padre Joseph de Anchieta, da Companhia de Jesu, thaumaturgo do nove mundo na provincia do Brasil'' (1672) Curiosamente, apesar de companheiros na viagem do Brasil para Portugal, em 1641, fazendo parte da denominada embaixada da Restauracio, 0 Padre Anténio Vieira [1608-1697] — que com ele certamente privou no colégio da Baia —., refere-se-lhe apenas duas vezes, no amplo conjunto das suas Cartas"*, embora nas alusées af contidas possa ler-se alguma proximidade, algo indefinida, porém, entre ambos. Na primeira, inserida numa carta a Duarte Ribeiro de Macedo, escrita em 3 de Janeiro de 1679, posterior, portanto, A morte de Simao de Vasconcelos, versando a complexa questio da chamada «conjuragio papista», Vieira discorda de tanto sigilo, frisando que teve noticias de uma carta recebida por Simao de Vasconcelos, lida por este, em segredo, 20 padre confessor e que para todas estas cautelas Ihe «falta a paciéncian!®. Na segunda, alias primeira do ponto de vista cronolégico, enderegada ao «Padre Provincial do Brasil», em 1 de Maio de 1660, 0 renomado pregador discute alguma especificidade da missio da serra de Ibiapaba e diz ter recebido uma diferentes verses da Ratio © aos «manuaism utilizados, v. Anfbal Pinto de CASTRO, Retérica e teorizagio literéria do Humanismo ao Neaclacissismo, Coimbra, 1973, 31-81. Marc FUMAROLI. Lge de I'elogquence, Geneve, 1980, 392-423 Em Lisboa, na Oficina Craesbeckiana (folio). A obra esta dedicada a «Salvador Correa de Sé € Benevides, dos Conselhos de Guerra ¢ uluramarino de Sua Magestade»: | Folio de 16 paginas sem numeragdo, em Lisboa, na Oficina de Domingos Carneiro. * Lisboa. na Oficina de Valente Henrique de Oliveira (in-quarto de 20 paginas) " Ediggo péstuma, em Lisboa, na Oficina de Jo20 da Costa (folio: volume constituido por XXXI- 593 paginas, seguido, com nova numeracao ¢ rosto solto, pelas 95 paginas da Recopilagdo da vida do Padre José de Anchiera). Na citada «Adverténcia preliminar» que Inoc€ncio Francisco da Silva apos A edigto de 1365, afirma que «Os exemplares de todas estas obras competem entre si cm raridade: poucas vezes se deparam de venda; ¢ os que apparecem acham promptas compradores, pagam-se por pregos proporcionalmente subidos.» * Padre Antonio VIEIRA, Cartas, coordenadas ¢ anoladas por J. Liicio de Azevedo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1971, tomo Ill, 348 ¢ 750. * Li a carta que toma com esta com admiragao e Lstima, Simio de Vasconcelos teve outra, que deve ser mais modema, e refere ainda maiores apertos ¢ trabalhos. Deu-me esta noticia 0 padre confessor, a quem cle a leu em segredo, e para todas estas cautelas me falta a paciencia, quando os avisos deviam vir em direitura a quem muito os estimasse ¢ agradecesse, e no carcter desse satvo conduto as cartas» (A VIEIRA. Cartas, ed. cit.. 348), 148 Zulmira C. Sanios carta de Simao de Vasconcelos, onde este afirma achar-lhe «escusa» em ter escrito para o Paré pedindo que se suspendessem algumas ordens do padre Visitador Francisco Gongalves". Em todo 0 caso, talvez algo estranhamente, algum siléncio parece pesar sobre a figura do Padre Vasconcelos, na medida em que as relativamente escassas fontes praticamente repetem Nicoldés Anténio ¢ Barbosa Machado!*, comportando poucos e dispersos elementos. Nem a brevissima, mas itil, biografia que Serafim Leite apOs & edicdo que preparou da Vida do Padre José de Anchieta'® permite enquadrar as respectivas opgdes ¢ actividades, embora saliente a controvérsia que manteve, sobre o Engenho de Sergipe do Conde,!” com 0 Visitador Jacinto de Magistris — encarregado de resolver a divida da provincia do Brasil as provincias de Portugal ¢ do Japio — ¢ 0 aponte como o grande promotor da construgdo da Igreja do Colégio da Baia'®. Contudo, algumas das suas cartas, em geral muito institucionais e pouco elucidativas, registam uma ou outra atitude, como o manifesto apoio a actuag3o do Padre Jacob Roland [1638-1684] ou a justificagao sobre a aplicagio de dinheiro e acticares do colégio do rio de Janeiro, que podem ajudar a precisar os contornos A forma que pareceu dar-se a toda a missio poderd V. Ver-* ver pela copia dos capitulos da visita, que remeto com esta. E, posto que o nosso reverendo padre-geral me avisou que logo se comegasse a guardar, até ele aprovar © que Ihe parecer, pego ev muito a V. Ver os queira mandar emendar, para que em tudo se acerte. E, se acaso parecer que em que alguma cousa nos afastamos do gue se usa nas aldeias da Provincia, V. Yer2 o atibua a diferenga do lugar ¢ da capacidade dos Indios. © Padre Simio de Vasconcelos me escreve que me achara escusa a eu escrever a0 Pari que se suspendessem algumas ordens do padre visitador Francisco Gongalves, ¢ que assim o dissera aV. Ver: de onde infiro que nio deve haver na Provincia inteira informagao do caso.»(A. VIEIRA, Cartas, 750), 'S Hemani Cidade, por exemplo, na sua informativa obra / Literatura Portuguesa e @ Expansdo Ultramarina (Coimbra, 1964), nao Ihe faz qualquer alusdo, nem mesmo quando os comentérios. aos Dialogos da Grandeza do Brasil (1618) ¢ & Histéria Geral do Brasil, de Frei Vicente de Salvador OPM, concluida em 1627 ¢ publicada por Capistrano de Abreu em 1889, a fariam, nem que Fosse por associago temdtica, esperar, sobretudo pelo que diz respeito ao texto das Noticias ... das Cousas do Brasil 16 Simio de VASCONCELLOS, Vida do veneravel Padre José de Anchieta, edigéo preparada por im Leite, Rio de Janeiro, 1943. A posigio de Simio de Vasconcelos esti patente na carta «Sobre a controversia do Engenho de Sergipe do Conde entre os Colégios da Bafa ¢ de Santo Antao (S. a . [1656]. (Bras. 11(1), 235-236; 240-249); Serafim LEY Histéria da Companhia de Jesus no Brasil, ed. cit., Tomo IX, 181. Simo de VASCONCELLOS, Vida do veneravel Padre José de Anchicta, edigio preparada por Serafim Leite, ed. cit.: Serafim LEITE, Histéria de Companhia de Jesus no Brasil, ed. cit.. Tomo IX, 174; aqui, S. Leite considera a partir da leitura de alguimas cartas anuas que Simao de Vasconcelos «era amigo da ostentagao, visava ao grande ¢ gastava a larga com as obras do culto eos pobres. E, quanto mais gastava, diz a Anua que o conta, mais Deus the dava» Quando ox Frades faciam Historia 149 de alguém. cujo percurso biografico permanece ainda hoje bastante difuso © a necessitar de inyestigagdo — sistemética, apesar das —importantfssimas contribuigdes trazidas por Serafim Leite’®, Por outro lado, 0 perfodo cronolégico em que se inscreve a idade adulta do autor da Chronica da Companhia no Brasil @ 0 seu itinerdrio de professor, Procurador, autor € Provincial é. como se sabe. extremamente complexo, simultaneamente do ponto de vista politico e de evangelizacao. Sio, em grande parte, os anos da Restauragio, da morte de D. Joio TV em 1656, da regéncia de D. Luisa de Gusmio, da subida ao trono de D. Afonso VI e do governo do Conde de Castelo Melhor, a partir de 1662, justamente 0 ano da Protestagao inserida na Chronica, cumprindo os decretos de Urbano VIII que obrigavam a diferenciagao entre santos canonizados e nao canonizados, ¢ também a data de seis das Licengas concedidas™. Mas € ainda 0 tempo de controvérsias suscitadas pelos métodos e formas de uma evangelizagao — a do Brasil — . certamenie diferente, se nao nos objectivos, seguramente nos meios, daquela que a mesma Companhia de Jesus levava a efeito na Africa, China, Japao, {india e no Oriente em geral”!, Sabemos pouco, no estado da actual investigagao, sobre a forma como se tera posicionado Simao de Vasconcelos face a estas diferentes questées. Basta pensar, como termo de comparagiio, embora obviamente a obra e a personalidade nao sofram paralelo, na dimensao de todos estes problemas na obra e na accio do praticamente contempordneo Padre Vieira, para avaliar de quanto desconhecemos sobre 0 autor da Chronica do Brasil. Contudo, ¢ tendo em conta as codificagGes retéricas que espartilham todas as «Dedicatérias»™, "> Sorafim Leite procedeu ao inventério de todas as eartas de Simao de Vasconcelos no Tomo IX da Histéria da Companhia de Jesus no Brasil. Transcreveu algumas delas no Tomo V da mesma Histéria ® 4 Licenga do Santo Oficio, datada de 15 de Janciro de 1662 ¢ redigida Fiei Duarte da Conceigio, frisa a obrigagio de actescentar esta «Protestagdo», pois que Simao de Vasconcelos qualifica de «santos» alguns dos missiondrios ¢ de «mértires» a Inécio de Azevedo e aos seus companheiros: «Com tudo, como em o discurso da historia trata o Author as vidas de alguns d'aquelles primeiros Missionarios, e n’ellas de algumas revelagdes, e obras ao parecer mylagrosas, ¢ algumas yezes the da 0 titulo de Sanctos, e tambem do martyrio do Padre Ignacio de Azevedo, e seus companheiros, aos quaes nomeia martyres, contra 0 que o Breve, ¢ Decreto do seahor Papa Urbano VIE dispoe: he necessario. primeiro que sc Ihe de a licenga para se estampar, fazer 0 Author emo principio da obra, ‘ou fim d’ella protestacio, e reserva do dito Breve, conforme sua explicagao, como fazem todos os que depois da sua data escreverdo vides e feitos de vardes insignes em virtude e santidade.» («Licengas do Santo Oficiow) *" De entre uma ampla bibliografia, as actas do coléquio promovido pela fundacao Oriente e pela Revista Broiéria, dedicado A‘Companhia de Jesus ¢ A missionagio: A Companhia de Jesus ¢ a ‘missionacao do Oriente, ed. cit. E 0 elenco de obras citadas na recente edicio, realizada sob a direegao de-Piero CORRADINI de Della entrata della Compagnia di Giesit ¢ Christianité nella Cina de Maueo Ricci (Prefazione di Filippo Mignini, A cura di Maddalena del Gatto, Macerata, * Anne CAYUELA, Le paratexte au siécle d'or. Gendve, 1996 150 Zulmira C. Santos esses lugares privilegiados da relacdo autor/leitor que em muito constroem os asentidos» do texto que antecedem, nao pode deixar de ler-se na que precede o texto da Chronica, dirigida a D. Afonso V1, «A Magestade do muito alto, ¢ poderoso Rei de Portugal», a alusio ndo apenas A legitimidade da dinastia iniciada por D. Joao LV, e € sabido como a Companhia de Jesus apoiou a causa restauracionista, invocando o cumprimento da vontade divina”, mas também a clara inspiragao de ideais de acento milenarista, na pauta do estabelecimento de um <«felicissimo Imperio», reduzidas todas as «seitas» a fé crist, sob um sé «Pastor» e um Imperador Universal. Nesta «Dedicatéria», Simao de Vasconcelos condensa, em algumas linhas, a justificagéo da subida ao trono do herdeiro de D. Joio IV "porque sendo parte essencial da décima sexta geracao do primeiro Rei D. Affonso Henriques” e recorda uma missio a cumprir “em vossa Magestade hao de ter cumprimento os Oraculos de suas [dos portuguese] esperangas, ¢ hio de apparecer em 0 mundo as felicidades do tempo dourado”, ao mesmo tempo que salienta a correspondéncia entre as atitudes, para com a Companhia, de D. Joio III e de D. Joao IV, no sentido em que ambos coincidiram na proteccao concedida e no envio de jesuitas para o Brasil, com custos da "real fazenda"™*. Em todo 0 caso, nao evita a quase directa resposta Aqueles que pugnavam pela ressurreicdo do Restaurador“®, destinado a reinar sobre esse «império felicissimo», sublinhando que nao so precisos «milagres», nem «portentos novos», para ter viva a «decima sexta gerag4o», pois que ‘Afonso VI filho de D. Joao IV e «Se filho, e pai fazem a mesma geragao, se sdo duas partes essenciaes (qual alma ¢ corpo pera fazer hum homem) pai generante. c filho gerado, ¢ a parte primeira d’esta geragao gozou as felicidades primeiras; a segunda parte porque no gozaré as segundas?» considerac6es, provavelmente redigidas depois da regéncia do reino ter sido retirada a D. Luisa de Gusmio e entregue a D. Afonso VI, e assim sendo, passiveis da datacao dos finais de 1662 ou prinefpios de 1663, 0 proprio ano de 23 Francisco RODRIGUES, Historia da Companhia de Jesus na Assisténcia de Portugal, Porto, 1931-1939. (especialmente Tomo I) Joio F. MARQUES, 4 parenética ports sstauragio (o40- 1668), Porto, 1989, 4 Dedicaroriam, i. A indubitével pertenga de D. Joao IV & décima sexta geraao do primeiro rei, D. Afonso Henriques, tinha-se tornado argumento recorente na literatura ¢ na_parendtica restauracionista. J. F. MARQUES. A parenética portuguesa ¢ a restauracdo (1640-1668), ed. cit. ¥. MU, 147-191 ® eDedicatorian ii 26 Oy talver face a legitimidade que assistia 2 Afonso V1, embora 0 apoio que Anténio Vieira e grande parte dos elementos da Companhia de Jesus deram a D. Pedro faga suspeitar que a Dedicatéria nao mudaria muito, fosse qual fosse o monarca. (Francisco RODRIGUES, Historia da Companhia de Jesus na Assisténcia de Portugal, Porto1931-1939, (especialmente Tomo Lil). Bip Dedicatoriar ii. Quando os Frades foziam Historia 151 edigao da crénica, parecem organizar-se de forma a conciliar a boa vontade do monarca, isto é, de Castelo Melhor, para com a actuagio dos jesuitas do Brasil face aos colonos. As «felicidades» guardadas para este «Principe venturoso» prendem-se, na teia discursiva da «Dedicatéria», embora Simao de Vasconcelos nio 0 explicite — nao era provavelmente preciso ¢ talvez também nao aconselhdvel que tal acontecesse — com 0 novo mundo, teatro da acgao da Companhia a cuja narragao se propunha proceder, num aceno & importincia das Américas, no reforgar da dimensdo espiritual de um império, traduzido nas «idades douradas» que, em seu entender, aguardavam Afonso VI. De resto, as Licengas que acompanham a obra evidenciam a pertinéncia das «noticias» sobre «este novo mundo», sublinhando — curiosamente apenas as que so redigidas por membros da provincia do Brasil — que era necessirio que os leitores em geral, ¢ sobretudo os que pertenciam & Companhia noutras «Assisténcias», conhecessem 0 local em que 0 empenhamento missionario dos seus confrades se tinha concretizado € desenvolvido. Nesses anos cruzados por tantos debates, resultantes da experimentagao de métodos e estratégias de missionacdo que se intrometiam no caminho dos interesses econémicos dos colonos, os percursos discursivos da «Dedicatéria» de Simio de Vasconcelos e das licencas da responsabilidade de Anténio de Si, de Jacinto de Carvalhaes e de Joao Pereira, todos da Bafa, confluem na tentativa de valorizar a acgio dos discipulos de Santo Inacio em terras de Vera-Cruz, num momento em que, para além das questdes a que aludimos, se sentia alguma diferenga entre a «pureza» dos anos iniciais e a actividade contempordnea que levava 0 Padre Joao Pereira a afirmar, na Licenga de 17 de Abril de 1661, «qudo longe estamos d'aquelle primeiro, e fervoroso espirito, com que se fundou esta Provincia do Brasil»”*. Se convocarmos para este quadro interpretativo a carta que escreveu para Roma. em 1663”, 0 visitador Jacinto de Magistris — demitido nesse mesmo ano, num processo em que também esteve envolvido o autor da Chronica™ —, frisando, nessa missiva, que a decadéncia da Ordem no Brasil Licenga de 17 de abril de 1661. da Bafa A carta citada encontra-se em Serafim LEITE, Historia da Companhia de Jesus no Brasil, ed. cit.. Tomo IN, 135. ‘A nomeagao do italiano Jacinto de Magistris, como Visitador, tinha sido muito contestada pelos padres do Brasil. Tinha como desagradavel missdo resolver, como referi, a divida da provincia do Brasil as provincias do de Portugal © do Japio. Manteve uma longa polémica com Simzo de Vasconcelos, sobre o engenka de Sergipe do Conde, que acabou por reflectir-se nos problemas de edigao da Chronica. Deposto em 22 de Setembro de 1663, recorreu e a deposigao foi julgada precipitada e sediciosa pelo Padre Assistente em Roma e pelo Geral Oliva. Entre os padres sancionados figuraram, justamente, Simio de Vasconcelos ¢ um dos autores das Licengas da Chronica, Jacinto de Carvalhaes, que foram privados de voz activa € passiva, para cargos de Serafim LEITE, . Histéria da Companhia de Jesus no Brasil, ed. cit., Tomo VIL, 152 Zulmira C. Santos comegara com o Provincial Manuel Fernandes, entre 1638 ¢ 1645. e se mantivera até ao ano em causa, por culpa de Simao de Vasconcelos, seré bem mais facil legitimar o discurso de cariz justificativo, ideologicamente organizado para visar «a edificagdo de toda a Companhia» que a Chronica assumidamente persegue, investindo na necessidade de provar que a Assisténcia do Brasil também possufa «homens santos», cujas «Vidas» nao tinham conhecido a luz. menos por descuido que por impossibilidade dos missionirios, constantemente ocupados nos seus ministérios, servindo assim de «desengano» Aqueles que «teriam para si 0 contrério»™’. Ao integrar na Vida do Padre Joao de Almeida (1658) 0 Breve Catalogo dos Vardes insignes da Companhia de Jesus que floresceram em virtude na Provincia do Brasil, Vasconcelos tinha insistido que o curto «epilogo» inventariado servia como «preambulo» a Chronica que «cedo se estampatia» para obstar ao desconhecimento da accao dos jesuitas na América. Simao de Vasconcelos nao ignorava que o desempenho de membros da Companhia no Oriente. paradigmatizado pela canonizagio em 1622" de Francisco Xavier, estava jd fixada e divulgada, nao apenas pela Vidas gue dele haviam redigido, entre outros, Joao de Lucena S. 1, Orazio Torsellini S. 1, Tomas de Villacastin S.J, ou pelos varios martires da Companhia no Japio™, mas também pela erudita pena de Baltasar Telles, na recentemente editada Historia Geral da Etiopia Alta ou Preste Jodo, e do que nella obrarao os Padres da Companhia de Jesus” (1645). Pese embora a sentida necessidade de um relato que glorificasse e divulgasse a ac¢io da Companhia no novo mundo, a edigao da Chronica do Brasil nao se revelou um’processo isento de dificuldades. Muito pelo contrério, 31 As expressoes entre aspas pertencem ao prologo da Vida do Padre Jodo de Almeida, ed. cit., ii. 52 Pambém o ano da canonizagao de Inicio de Loiola ¢ Filipe de N 33 Jojo de LUCENA, Historia da vida do padre Francisco Xavier ¢ do que tnaisreligiosos da Companhia de Jesus Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1600, Cuja obra tinha sido traduzida por Pedro de Guzman Compaitia de Jesti, Pamplona, 1620. * Traduzida por Diogo Monteiro S.J. , Compendio da vida virrudes e milagres do Beato Padre S Francisco Xavier, Lisboa, 1620. © Para além das edigdes de colectineas de carias. por exemplo pela obra de Femo GUERREIRO S.J. Relagdo das cousas yue fizerdo os padres da Compenhis de Jesus na India eno Jopao nos anos de 600 ¢ 601, Evora, 1603; ou pela traducad, Elogios e Ramathete de flores borrifado com 0 sangue dos religiosos da Companhia de Jesus a quem os tyranos do imperio do Japao tirardo as vidas por odio da fe Catholica com cathalogo de todos os religiosas, e Seculares, que por odio da ‘mesma fe frdo mortos naguelle inperio até anno de 1640, Lisboa, 1650. ” Baltasar TELES, Historia Geral da Etiopia Alia ou Preste Jodo, ¢ do que nella obrarao os Padres da Companhia de Jesus, Lisboa, Manuel Dias, 1660. ram na india os Vida del Padre Francisco Xavier de ta Quando os Frades faziam Historia 153 As Licengas da autoria de elementos da Assisténcia em terras de Vera Cruz, datadas de 1661, evidenciavam as qualidades de «estilo»: «brevidade sem confusio, curiosidade sem hyperboles. gravidade sem attificio, suavidade sem affectagao, agudezas escollasticas sem faltar A sinceridade historica»’, O mesmo no aconteceu em Portugal. Aqui. nas Licencas datadas de 1662, os clogios foram mais moderados ¢ chamaram até a atengo. como referi, para a necessidade de inclusdo da Protestagao por forga dos Decretos de Urbano VIII. Baltasar Telles e Anténio Vieira” julgaram o estilo demasiado «rasteiro» e 0 Geral Oliva mandou expurgar o texto das identificagdes excessivas entre o paraiso terreal ¢ 0 territério do Brasil. As opinides favoraveis do Padre Manuel Luis. Prefeito de Estudos do Colégio de Santo Antio, e de Frei Francisco Brandao, cronista-mor, sobre a qualidade ret6rica do relato. parecem ter pesado na decisdo de continuar a impressdo da Chronica que esteve, todavia, durante algum tempo suspensa, por ordem do visitador da Provincia do Brasil. Jacinto de Magistris, pouco agradado com a acco do Padre Vasconcelos enquanto provincial ¢, no momento, sobretudo na questio, econdmica, do Engenho de Sergipe do Conde. De resto, Jacinto de Magistris parece ter sido o principal opositor a edigao da Chronica, Estava jd impressa, apesar dos contratempos enunciados, quando depois de Magistris ter informado o Geral da existéncia de alguns pardgrafos nas Noticias que procediam a identificagao do paraiso terreal com o Brasil, foi dada ordem de recolha dos dez exemplares que 0 autor ja havia distribuido por alguns fidalgos da corte. Simao de Vasconcelos solicitou diferentes pareceres a mestres de Lisboa, Coimbra e Evora, opinando que, neste caso particular, néo havia nada definido em matéria de f€ e que a sugestio ficava ao critério do leitor. Foram, assim, suprimidos os sete tiltimos pardgrafos. tendo as respectivas paginas sido substituidas por uma. Curiosamente os pardgrafos expurgados, impressos, foram enviados para Roma, numa cépia manuscrita, por Luis de Nogueira, autor de um dos pareceres, que se conserva na Biblioteca Nazionale de Roma, onde Serafim Leite a leu" 38 Licenga da responsabi ude de Anténio de Sd, datada do Cole; ® Francisco RODRIGUES, OP. Anténio Vieira — Contradiegé da Revista de Historia, 16, nola 4. Francisco RODRIGUES, Historia da Companhia de Jesus na Assisténcia de Portugal, ed. cit. 159: «A parte que tratava do paraiso terrestre, que o autor, (escreveu! o Visitador em carta latina), em longo arrazoado nos queria provar que existira na América, mandei-a retirar ¢ dei aviso ao Padre Provincial da Alentejo, que era esta a intengdo de V. Paternidade que no se imprimis: fectivamente Paulo Oliva, vigirio Geral, ordenow se riscassem os parigrafos que tratavam do paraiso terrestre. Arg, S.J. , Bras. 3, f. 14.29, 39. “| Serafim LEITE, O tratado do Paraiso nu América eo wfanismo brasileira, Jornal do Commercio, da Baia de 18 de Maio de 1661. @ Applausos, sep. do volume XI S Rio de Janeiro, 23 de Maio de 1948. O manuscrito em causa tem 0 titulo O Paraiso na América (Bibl. Naz. de Roma, f. ges. 1255 [29]. 154 Zulmira C. Santos 1—A forma do texto Para além da «Dedicatoria», de um «Elogium» e de um «Epigrama», ambos em latim, e das usuais «Licengas», a primeira edigio da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil. belo exemplar in folio da oficina de Henrique Valente de Oliveira, num volume de XII, 188, 528 paginas © um indice de 12 nao numeradas, integra o texto das Noticias Antecedentes, Curiosas e Necessarias_das Cousas, do Brasil ¢ 0 poema de José de Anchiet a, De Beata Virgine Dei Matre Maria’, reproduzidos, também, na edigao de 1865" Constituida por quatro «Livros». 0 texto da Chronica, propriamente dito, abarca os anos de 1549 a 1570, acompanhando a ida do primeiro grupo de jesuftas para o Brasil e terminando com a morte do Padre Manuel da Nobrega, qualificado de Apéstolo das Américas, como Francisco Xavier o havia sido ‘do Asia". O primeiro «Livro», de 1549 a 1555, narra as cireunstincias que envol- yeram a ida de Nébrega e dos seus companheiros, a viagem acompanhando o primeiro governador Tomé de Sousa, a chegada 2 Salvador e, sobretudo, as primeiras acgdes missiondrias ¢ 0 inicio do movimento que levou & fundacao do Colégio da Bafa, S. Vicente e das Casas do Espirito Santo, Pernambuco e Porto Seguro. O «Livro Il» (1555-1562) termina o primeiro volume, relatando a che- gada de Anchieta, as lutas entre Indios ¢ Portugueses inicialmente sob 0 coman- do do segundo governador, D. Duarte da Costa, prosseguidas pelo terceiro, Mem de Si. chegado a & Baia em 1555. Os «Livros [I] ¢ TV», ambos intensamente pontuados por biografias devotas, ocupam respectivamente os anos de 1563 a 1568 e 1568 a 1570. O primeiro deles (1563-1568) desenvolve dois nucleos fundamentais: a missio de Nébrega e Anchieta no estabelecimento da paz com os Tamoios ¢ a visita do Padre Indcio de Azevedo; 0 segundo, ocupando-se apenas de dois anos (1569 & 1570), concede especial relevancia ao relato da morte de Inacio de Azevedo e de seus companheiros 4s maos dos calvinistas 2 Longo poema, cuja redacedo Vasconcelos relata no «Livro Ill» € que foi publicado em edigio ayulsa. +3 Serafim Leite reproduz, no tomo I (96-97) da sua Historia da Companhia no Brasil. 0 frontispicio desta ediglo, considerada por Inocéncio (Dicionivio Bibliografico, ed. cit., 286-287) uma das melhores do século XVII “tanto no papel como na beleza dos caracteres de impressio", descrevendo-o como uma: ... bela alegoria, cujo quadro € constitufde por motivos da fauna ¢ flora do Brasil e objectos cientificos, 0 globo terriqueo e 2 ampulheta. Ao centro o mar e nele um galedo armado, simbolizando a Companhia. Nas velas enfunadas: Unno non sufficit orbis, aludindo a0 Novo Mundo. Dentro do galedo alguns jesuitas, empunhando 0 que vai & frente (Nobrega) 0 estandarte da Companhia coma divisa IHS» ! Chronica, ed. cit., 6 "0 que supposto, houve de ficar o Padre M. Simao. ¢ escolher para aquella ‘empresa hum vardo tal, que pudesse corresponder ao grande Mestre Francisco Xa\ ‘em ser hum Apostolo da America como elle o era da Asia. E consultando 0 negocio com o mesmo Rei D. Joao, ¢ imais efficazmentc com a Magestade divina, cahio a sorte venturosa sobre 0 Padre Manuel da Nobrega fundador. E como este he 0 vardo, sugeito que ba de ser de toda esta primeira parte de nossa Historia com 06 Feitos raros, ¢ obras heroicas, que por sie scus companheiros obrou no Estado do Brasil”. Quando as Frades faziam Historia 155 franceses, facto que legitima 0 elenco dos seus nomes, a narragdo, ainda que sumiaria, das suas vidas ¢ a pormenorizada biografia do Provincial. A crénica termina, sintomaticamente, com a morte de Manuel da Nébrega em 1570: "E de nés nada mais trataremos por hora: pare a penna em escrever, onde para Nobrega em obrar: a suas empresas especialmente se dedica este tomo primeiro por primeiro Apostolo do Brasil; como outro se dedicou a Xavier, por primeiro Apostolo da India; outro a Ignacio Patriarcha nosso, por primeiro Geral da Companhia. Andarao os tempos, e irdo sahindo tomos varios, devidos a varoes da mesma empresa, que se bem nio foram nella os primeiros, néo foram segundos nas virtudes.” © As Noticias Antecedentes, Curiosas, e Necessarias das Cousas do Brasil, que precedem a Chronica, foram publicadas autonomamente em Lisboa, por Joao da Costa, em 1668, num volume i quarto, VIU-291 paginas, acom- panhadas por um indice e impressas a expensas do capitdo Francisco Gil de Aratijo, a quem Simao de Vasconcelos consagra uma dedicatéria: «Ao Senhor Capitam Francisco Gil de Aravio, Bemfeitor i ansigne, & singular Protector da Companhia de Iesus no Estado do Brasil“. Pese embora a sua relativa autonomia, e apesar de em rigor se tratar de uma obra independente — até pela propria natureza do texto a0 qual presidem objectives distintos da Chronica. — as Noticia Curiosas e Necessarias das Cousas do Brasil funcionam, contudo, como um extenso prélogo. para o aa! © autor frequentemente remete. indiciando a coesao textual do conjunto “” * Cronica, ed. cit.,9 *© 0 titulo da edigdo de 1668 retira, abviamente o lexema «antecedentes»: Noticias Curiosas e Necessarias das Cousas do Brasil. Pello P. Simam de Vasconcelos da Companhia de Tesus, Natural da cidade do Porto, Lente que foi da Sagrada Theologia & Provincial naquelle Estado. Em Lisboa, Na Officina de Joam da Costa. Anno 1668. Simio de Vasconcellos acentua no prélogo «Aos que Lerem» que a publicagio, pelo que respeita a iniciativa ¢ as despesa de impressio se devem a Francisco Gil de Aradjo: «quis 0 Senhor Capitan Francisco gil de Aratijo, se estampasse em tomo distincto da Chronica, pera com maior facilidade se dar a conhecer a todos esta parte da america, devendo por este modo a0 zeloso intento deste Senhor os Leitores 0 passatempo, o Brasil a fama, Correrrao finalmente as despezas de todo 0 custo por conta do seu mesmo Patronoo, pera assim se dizer todo seu por justiga, & por eleigaio: mostrandose desta sorte a todos , quanto the deva nesta Provincia a Companhia de Jesus, por qualquer motivo que a possa fazer agradecida 2 tantos beneficios, quantos com ella tem dispendido a liberal mao deste scu insigne Protector». A Francisco Gil de Aratijo sera também dedicada, em 1672, a Vida de Anchicta, Verdadeiramente ‘jd tinha sido dedicada, pois que Simao de Vasconcellos regista na citada dedicatéria das Noricias. em 1668, que oferece «de novor 0 presente livro «depois de Ihe dedicar j outro em que escrevo a vida do Meneravel Padre joseph de Anchieta, que em breve se dara a estampa:», 7 ‘Apenas alguns exemplos das permancntes ligagdcs textuais entre o teato da Chronica da Companhia do Estado do Brasil...¢ as Noticias.... "Faltava $6 que fosse também methor 0 Ceo desta parte: © niio seré temeridade affirmal-o: segundo a doutrina que temos assentado no Livro Segundo das Curiosidades do Brasil.” primeiro. descobridor d'esta Bahia foi Christovai Jacques, fidalgo da Casa Real, aquelle de quem dissemos ja no livro primeiro das Cousas do Brasil’ (23) .. "na forma que por menor dissemos no Livro 2.° das Cousas do Brasil" (33) .. "ficdio quase na segunda regio do ar. depois de atravessada aquella notavel serrania, de que dissemos alguma cousa no Livro Primeiro das Cousas do Brasil:” (87). Notemos, ainda, que é as Noticias. que compete 156 Zulmira C. Santos ao leitor um mundo "estranho", pela paisagem, pelos habitantes, pelos costumes, _estabelecendo, simultaneamente. uma ambiéncia _ paradisia que os desenvolvimentos narrativos da crénica em si revelario. se nao falsa, pelo menos permanentemente ameagada por crengas € habitos desumanos. Do ponto de vista da organizacao do conjunto da obra, as Noticias respondem A necessidade de conhecimento do lugar onde a acgio se desenyolve, como uma espécie de predmbulo que capitaliza as técnicas da «description, relegando a légica narrativa para um segundo plano que, no texto em causa, corresponde, efectivamente, a natureza fundamental do relato seguinte. 0 da Chronica propriamente dito, De resto, aos momentos primeiros da descoberta e¢ 4 descricio das belezas ¢ potencialidades de uma terra que as Noticias aproximam do Paraiso”, na esteira de uma comparacio que pode ser encontrada em textos E as Noticias que compete apresen narrara lenda de S. Tomé, patente nas cartas de Nobrega, segundo a qual 0 Apdstolo teria estado nas terras do Novo Mundo onde teria deixado impressas as suas pegadas. Cartas do Brasil ¢ maiy critos do Padre Manuel da Nébrega, com introdugio e notas histérieas e criticas de Serafim Leite S.J., Coimbra, 1955. 48 dimensao paradisfaca do Brasil atravessa ngo apenas as Noticias... mas também o texto da Chronica... propriamente dito, desde 0 momento da chegada "quando chegados ao fim de Margo, ou como querem outros principios de Abril, comegardo a ver os sinais da desejada terra: 05 ares claros, 5 ventos serenos, as agoas de prata; ¢ apGs estes arrebatavao os olhos os montes altos, verdes apraziveis, que enlevdo junto com a vista os coragdes dos navegantes ... assim chamada/Bahia de Todos os Santos/ou porque parece hum Parafso, onde habitam todos os Santos; ou porque parece gue todos os Santos do Parafso influer nella alguma parte de suas qualidades.” ... "A terra he hum pintado mapa, sempre verde, ¢ sempre alegre: porque conservio todo o anno a fotha seus arvoredos. Na compostura da natureza, bem assombrada, levantada em outeiros, estendida em campinas, povoada de bosques. abundante de pastos, retalhada de rios, fecunda de fontes, sempre a mesma, sempre varia: donde nasce, que he innumeravel o gado, € todo o genero de criagdo abundantissimo, O wormao por ordinario he fino, magapé, feraz € vigoroso, no s6 das cousas naturaes, mas das do Reino: na fnuta de espinho no di vantagens 2 melhor de Europa: as parreiras todos os meses sahirido com fruto, se todos os meses foro podadas. ¢ beneficiadas.” (22) ... "A regio do ar he conhecidamente vital, hum quasi segundo Paraiso, huma perpetua Primavera, onde raramente se sente excesso de frio ou de calma, donde andio desterradas as pestes, ¢ ramos della, as doengas contagiosas; ¢ sem esta injuria dos climas morrem os homens por seus cabacs, cheios de dias, ¢ de annos ... ¢ entrando nella, por sua formosura, como de Parafso..." (23)... “A regido he alegre, aprazivel € saudvel ... 0 terreno he fertilissimo. n40 6 dos frutos communs do Brasil, mas dos frutos, frutas ¢ flores melhores da Europa: especialmente se formasea de abundantes searas de trigo, e fecundas vinhas. Os campos recredo os olhos, igualmente vestidos de erva, flores e gado em numero excessivo, ¢ de todos os generos (40) ... "Seus arredores stio terra fertil, capaz de grandes caneviaes, ¢ engenhos: seus campos amenos, retalhados de rios, ¢ fontes: suas mattas recendem, so delicia de cheitos. balsamos, almececas, salgafrazes seus montes estio prenics de minas de varia sorte de pedraria, e segundo dizem, de prata, e ouro: serd feliz o tempo em que saizm 2 luz com 0 ‘seu parto (59) .. s campos sao fecundos de infinidade de gado, regados de rios, abundantes de Quando os Frades faziam Historia 157 dos primeiros jesuftas®, 0 discurso da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil opde um tempo de dificuldades, de epidemias. de pazes precdrias e guerras quase constantes. tanto mais incompreensiveis € surpreendentes quanto se desenvolvem num cendrio que a natureza parecia ter vocacionado para a tranquilidade. Ao usar as téenicas da composicao do «locus amoenus» na descrigdo das terras de Vera Cruz, Simao de Vasconcelos recorre com frequéncia & expresso «segundo Paraiso» ou ao simile, «como o Paraiso», que aliés mantém ao longo da Chronica em si. A Bafa, por exemplo, chama-se «Bahia de todos os Santos ou porque parece hum paraiso, onde habitam todos os Santos; ou porque parece que todos os Santos do Paraiso influem nella alguma parte de suas qualidades». O Brasil , «sauddvel>”. Os campos sio «amenos, ratalhados de rios e fontes»’, numa ambiéncia de «delfcia de cheiros, balsamos», plantas medicinais.”’ As estrelas protectoras ¢ claras. 0 sol sempre puro, a lua brilhante. Citando a Sagrada Escritura, no Capitulo I do Génesis, Vasconcellos sublinha que para que uma terra tenha o nome de boa deve obedecer a quatro requisitos — «que se vista de verde»; «que goze de bom climay; «que sejam suas Aguas abundantes de peixes, ¢ seus ares abundantes de aves»; ® As Licengas que antecedem 0 Chronica de Simao de Vasconcelos exploram justamente esse duplo objective, configurado na «utilidade». que acabava por presidir a ambos os tipos de texto, salientando, todavia, que o «estilo» da «historia» deve ser grave e pouco afectado™. Em todo 0 caso, os censores frisam que o discurso se organiza de forma a nio causar «tédio», a unir a «exortagdo» e a «narrativa», a «despertar os Animos», convocando estratégias de seducao do leitor, caucionadas pela apologia da Companhia da Jesus pela difusdo da exemplaridade que as vidas narradas comportavam. Na Chronica do Brasil, Simao de Vasconcelos propde-se «escrever a heroica missio, que emprehenderio os Filhos’ da Companhia, a fim de conquistar 0 poder do inferno senhoreado por seis mil € tantos annos do vasto imperio da Gentilidade Brasilicas, narrando os feitos ilustres «d’estes teligiosos vardes», que tinham defrontado uma realidade tio diferente — uma terra sine rege, sine dei — onde os esquemas conhecidos ¢ experimentados de missionagao pareciam votados ao insucesso. Por outro lado, como j4 sublinhei, © autor procura responder a «caldnias» sobre a terra do Brasil, legitimando assim a descri¢do de uma ambiéncia paradisfaca, repleta de riquezas vegetais e minerais, tendo em mente, desde a introducdo. a divulgagao dos éxitos de missionago no Oriente © a imagem de apdstolo das fndias, consagrada na canonizacio de Francisco Xavier. O discurso da Chronica elabora-se. deste modo, na base de um esquema comparativo, que lhe preside de todos os pontos de vista, e que o Padre Vasconcelos evidencia a cada passagem. Nao s6 se preocupa em acentuar que a protec¢ao concedida por D. Jodo III aos jesuitas que foram para a fndia se revelou rigorosamente equivalente aquela que o mesmo monarea dedicou ao Brasil, como a empresa que o padre Nébrega tomou aos seus ombros nada devia, nem em importincia, nem em dificuldades®, a § Isabel ALMEIDA, Livros portugueses de cavalarias, do Renascimento ao Maneirismo, Lisboa. 1998 (dissert de doutoramento dact.). °© Chronica. ed. cit. Licenga de Joti Pereira, da Bafa, em 17 de Abril.«O estylo da obra he grave pouco affectado como deve ser a historia». © Noticias, ed. cit, «lntroducgdo». © wTerceira razdio he porque fundou/D. Jodo IlV/a missio do Brasil na que dissemos no principio desta historia, mandando a ella 9 Padre Nébrega, € seus primeiros companhciros, com os mesmos: favores. e despesas reaes, com que mandara a India o Padre Francisco Xavier, e com que depois continuou com todos seus Missionarios” (Chronica, ed. cit., Livro IV, 129) % Uma dinica vez, até, a missiio de Nébrega € tida como ainda mais espinhosa que a de Francisco Xavier: “Para esta gemtilidade to remontada, € novamente descoberta, trouxe Deus 2 Companhia ao ‘mundo: entio quis que nascesse, quando no Nascente, e no Poente se descobria: © nao sto indfcios somente, he proprio instituto, a conversio da gentilidade. Levou~-nos he verdade, ventagem o Quando os Frades faziam Historia 161 desempenhada por S. Francisco Xavier no Oriente, tendo ficado dividida a «gentilidade do mundo» entre ambos: a Xavier [...] a do Oriente; a Nobrega a do Ocidente”. De notar, ainda, como assinalei, que Simio de Vasconcelos regista a auséncia de divulgagao da existéncia de

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