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Ferdinand Lassalle y fy Jf | Ay NN O QUE £ UMA CONSTITUIGAO? Traducao. RICARDO RODRIGUES GAMA, 3* edigao 2009 Campinas/SP ores Jt cera, $53 O Autor... Nota do Tradutor.... Capit a Constituigao? Lei c Constituigdo..... . Os Fatores Reais do Poder... . veeesene weer 22 lol Is ‘A Monarq 23 AATISIOCFACIA ncccen ttn 23 A Grande Burguesia. 4 Os Banqueiros.... os sees 26 A Pequena Burguesia e a Classe Oper: en 28 Os Fatores do Poder e as Instituigdes Jur 29 A Folha de Papel... . 29 © Sistema Eleitoral das Trés Classe8..0.ccnnsenee oe. 30 ‘A Camara Senhorial ou Senado.. 31 ORCI C0 EXEECIO Lo cstunnninnntnnnnnees 32 Poder Organizado e Poder Inor 33 Capitulo 11 Algo de Hist6ria Constitucionalista ences sninmone-sosssee 18 ConstituigG0 Feudal a narcnrnnninnansennmnmnnnis ag, 38 Absol 39 A Revolugio Burguest .ecsesennoeennmeunec, Ab A Arte © a Sabedoria C O Poder do Povo ¢ Invencivel Consequéncias Primeira Conse ant Lass 43 soe AB 44 sone AS 46 oo AB OAuror » filo de judeus, de 1825 cm Breslau, foi advogado, economista, pensador e grande orador, ligado aos jovens he. gelianos', notabilizando-se como politico socialista alemdo, Comegou na politica em 1846, estabelecendo laos com Marx? ara uma sintese seja, para idade avanga c progride, unicamente, em raza dos conilitos, lerras,revolugdes; através da luta dos oprimidos contra os opressotes. Par segundo Hegel, nto produzem progresso. Nasceu cm St 770 € faleceu em 1831 na cidade de Berlim lor do verdadeiro 50 luenciou 0s movimentos tevolucionaios do mundo todo a segu sua douttina marxista, 0 socialismo. Kat] Marx paricipou do movimento os jovens hegelianos, seguidores dafilosofia de Hegel. Uma de suas mars importantes obras, 0 Manifesto Comunista, publicado em 1848, repres uma verdadeira critica ao modo de produgdo capitalist obra que da luc aoe Principios comunistas:“.. 1 abolir a religifo e a moral: 2) expropriaggo dla propriedade latifundidria € emprego da renda da terra em proveito do Fstado; 3) imposto fortemente progressivo; 4) aboligao do ditvito de he. ranga; 5) confiscagdo da propriedade de todos os emiyeados e sediciosos. 8) centralizagao do crédito nas maos do Estado por mevo de um b fas maos do Estado, de todos os meios de transporte: fbricas © dos is 0s de produgdo pertencentes ao Estado, arrotca ras cultivadas, segundo ia 10) combinago do trabalho s a fazer desaparce a distingdo entre a cidade ¢ 0 campo; 11) educagzo pi todas as criangas; aboligao do wabalho das criangas na & ¢ Proudhon’, sem, contudo, adotar 0 “soe! apreyoado por Marx. Teve participagao ativa na Revolugao de 1848* em Diisseldorf, conhecida historicamente como Movi- mento Revoluciondrio de Diisseldorf, tendo sido aprisionado até 0 ano de 1849. Partidéio da unificagao alema, construiu uma tese propria sobre a classe operiria, que ficou conhecida como programa so- cial (arbeiter program), no qual desenvolvia a defesa da classe operaria com base nos acontecimentos histéricos, sendo preso novamente em 1862 por conta disso. Entre seus ideais gerados a partir de muita reflexdo sobre temas politicos, destaque-se a defesa do sufragio universal, incluindo 0 operariado entre os direitos politicos de votar e ser votado como candidato. Marcados por novas ideias ¢ modesto tratamento dos temas, Lassalle deixou varios trabalhos publicados, como A Filosofia de Herdclito (1858), O Legado de Fichte (1860), 0 € praticado hoje, Combinagdo da educago com a produgao material ete ” Entre 1867 ¢ 1894 escreve os trés principais volumes de sua obra mais importante, O Capital, dedicada & critica pura a0 ca baseado na chamada “mais-vali * Nota do Tradutor: As ideias de Pierre-Joseph Proudhon influenciaram organizagdes de trabalhadores do mundo todo e contribuiram para a for. magao dos movimentos sindicais mais poderosos da Europa e em paises como Espanha, Franca, Ilia e Russia. Foi companheiro de Marx, Mikhail ‘Bakunin ¢ outros revolucionérios. Nasceu em Besancon, Franca, cm 1809 ‘morreu em Paris em 1865. Foireconhecido anos mais tarde pelo anarquista russo Mikhail Bakunin como “o mestre de todos nés * Nota do Tradutor: Revolucdo de 1848 na Alemanha. As reivindicagoes revoluciondrias francesas propagam-se pela Alemanha: trabalhadores vantam barricadas em Berlim e a burguesia toma posigao co constituido, O povo vai as ruas exigir a formagao de uma liberdade de imprensa ¢ integragdo ds Prassia a Alemanha. Em mary de 1849, € aprovada 2 Constituigdo Imperial alema: o imperador hereditirio passa a compartihar 0 governo com o Parlamento (Reichstag). Logo er ‘segutida, ocorre a reagio conservadora com a retirada dos deputados prus- sianos ¢ austriacos da Assembleia Con que € dissolvida, ¢ novas insurreigdes populares sao reprimidas pelo Exército, © Que € Uma Coxsimuicao? 9 Sistema dos Direitos Adguiridos (1861), O Que é Uma Cons- tituigdo? (1863), Capital ¢ Trabalho (1864), Em 1863, formou 0 Allgemeiner Deutscher Arbeiter- verein’, o primeiro partido trabalhista alemao, depois transfur- mado no Partido Social Democrata. Epoca em que se afastou de Marx, dado seu contraponto em defender a colaboracao do Estado na implementagdo de medidas socialistas, colaborou com o chanceler prussiano, Otto von Bismarck®, que, como Lassalle, nao apreciava 0 lassez-faire. lassez passer: le monde va de lui méme’; em sintese, eram contrarios a burguesia liberal que dominava o pensamento nesse periodo. Defendia também © estabelecimento de cooperativas de trabalhadores, no por utopia, mas para obtengao dos lucros que lhes cram negados. Faleceu em um duelo contra um nobre em 31 de agosto de 1864, na cidade de Genebra, 5 Nota do Tradutor: Data desse ano 0 surgimento da social democracia alema, quando, em 23 de maio de 1863, Lassalle fundou. em Leipzig, na SaxOnia, a Associagio Geral dos Trabalhadores Alemaes como partido politico independente & Nota do Tradutor: Otto von Bismarck (1815-1898), conhecido como 0", Foi o grande mentor da unificagae alema sob hegemo. tro do rei da Prssia, sua jomada para alcangar " omega com a vitéria de a Austria. em 1866, A guerra contea a Franga, entre 1870 ¢ la sua politica e permite a proclamagao do I anceler do novo Império, dedica-se a acrescentar-Ihe novos poderes Combate ferozmente os soci nesino tempo cin ie procura conquistar os trabathadores com uma politica soci luma potitica extema baseada no confronto com a Franca 7 Nota do Tradutor: Expressao francesa traduzida como deivar pass fazer. o mundo caminka por sisé,com sis do Estado, comumente tratada como liberalismo. Nota po Traputor O presente escrito jé foi e continua muito debatido no ‘mundo juridico, dada a sua importineia na maturagdo em torno do documento que se propde a estruturar ¢ organizar a vida politica de um povo. Mostra-se muito proveitoso o trabalho de Konrad Hesse na sua obra intitulada A Forga Normativa da Constituigao, na qual tenia valorizar a Constitui¢ao frente as duras criticas de Lassalle. Em reflexaio impar, Lassalle defendeu a inclusdo da classe operaria na vida politica do Estado, semeando ideias que fo- ram depois desenvolvidas por Marx de forma bastante ampla € tendo como consequéncia pritica a fundagao de partidos de trabalhadores, os quais passaram a ocupar cargos eletivos dos poderes Legislative ¢ Executivo. As mudangas de diversas ordens ocorridas num mesmo momento chamou a atengao de Lassalle, levando-o a refletir sob varios pontos de vista uma dnica realidade; dai seus tra- balhos trazerem contribuigdes para a economia, a sociologia, a filosofia, histéria, a politica, o direito.. Ricakoo Ropricues Gama * Nota do Tradutor: Traduzide pelo Mer . erreira Ixtropugio Fui convidado para fazer uma conferéneia perante vs c Pherae Cscolhi um tema cuja importéncia nao € necesedsia salicntar pela sua oportunidade. Vou falar-vos ile problemas Constitucionais, isto é O Que é Uma Consituicao, ‘Antes de entrar na matéria, porém, desejo esclarecer que a minha palestra terd um cardter estritamente ientifico; mas, A verdadeira ciéncia~ nunca seré demais lembré-lo — nao é mais que essa samento que, sem tirar a supo- SieGo de alguma coisa preestabelecida, vai dimanando de si ica coisa e ouvitem nao tragam consigo Subosiges prévias de nenhuma espécie, nem ideas proprias, as sim que venham dispostos a colocar-se ao ni faint mesmo que acerca dele tenham falado ou dicen ido, e fazendo de conta que pela primeira vez 6 egy estudando, cnguatnn, jitda nao soubessem dete, despindo-se, polo merce paduanto durar a minha investigagdo, de quanto ¢ seu respeito tenham dado por assentado.” Caviruto I O Que & Uma Constrrutcao? Inicio, pois, minha palestra com esta pergunta: 0 que & uma Constituigo? Qual é a verdadeira esséncia de uma Cons. tituigdo? Em todos os lugares e a todas as horas, & tarde, pela manha ¢ & noite, estamos ouvindo falar da Constituigao e de Scus problemas constitucionais. Na imprensa, nos clubes, nos cafés € nos restaurantes, é esse 0 assunto obrigatério de todes as conversas’, E, apesar disso, ou por isso mesmo, formulada em ter- mos precisos esta pergunta: qual sera a verdadeira esséncia, o verdadeiro conceito de uma Constituigao? Estou certo de que, tre esses milhares de pessoas que falam dela, existem muite Poucos que possam dar-nos uma resposta satisfatoria Muitos, certamente, para responder-nos, procuratiam volume que fala da legislagao prussiana de 1850 até encon. trarem os dispositivos da Constituigao do reino da Prussia! 4 Nota do Tradutor: Essa passagem lembra bem os temas da Const igo Federal brasileira de 1988, em tomo da qual se debalia todos os tipos de assuntos: de limitages do poder do Presidente da Republica aos direitos tabalhistas, sex Nota do Tradutor: Antigo império no norte da Europa durante os séculos |. seu teritério foi adquirido Polénia por Frederico Guilherine Frederico U, 0 Grande (1740-1786), denominado Rei da Prissia e successor de Frederico Guilherme, usou 0 poderoso exército da Prissia para tomer 4 Sande e prospera provincia da Silésia, regido da Austria. Apos a gucrea dos sete anos (1756-1772), a Prissia converteu-. ‘aumentado seu dominio com a aqu jo situado entre a Pome- Finia¢ a Prissia oriental. Fredcrico il foi um grande administrador. que via ‘no bem-estar de seus siditos 0 requisito fundamental para o fortalecrmente do Estado. Aprimorou o absolutism central, acentuando a concentrasto ‘de poderes w a burocratizagao, Seus primeiros atos como soberano foram, 6 Feaosase Lass Mas isso no seria, esta claro, responder a minha per- gunta. Nao basta apresentar a matéria concreta de uma de terminads Constituigdo, a da Prassia ou outra qualquer, para responder satisfatoriamente & pergunta por mim formuleds onde potlemos encontrar 0 conceito de uma Constituigto, seja ela qual tor? Se fizesse essa indagagdo a um jurisconsulto, receberia mais ou menos esta resposta: “Constituigio é um pacto ju. ramentado entre 0 rei € 0 povo, estabelecendo os principios alicercais da legislagao e do governo dentro de um pais,” Ou generalizando, pois existe também a Constituigao nos paises de governo republicano: “A Constituigao é a Ici fundamental proclamada pelo pais, na qual se baseia a organizacao do Direito co desse Estado!" Todas essas respostas juridicas, porém, ou outras pareci- das que se possam dar, distanciam-se muito de explicar ca ura, da censura eda dise a finangas, da economia dev grandes inentivos daar Cultura, compensando os impopulares monopslios da Coron eo onestins sistema de impostos; durante seu reinado a producto instal exporonetng notivel progresso, juntamente com o comércio. que foi mule enon, pelos watados comercias com a Franga, Fez enrarem vigor um Cédign de Proeesso Civil. que tomava o Por Judicato independent do Exeecvn ¢ eriow 0 Cédigo Civil que vigorou de 1754's 190g Nota do Tradutor: Na atualdade, depois de tanta evolugdo eaté mesmo depois de tanto debate em torno do poder constituinte oC siste num complexo de normas estabelecedoras dae do Estado, bem como das limitagdes de suse ativan Parlamento investido do poder constituinte. Em sintese, tatere ak oe, normative positivadi da organizayio pi nado terrtéri, Nunca € demais acentuar qu depois de debatida e aprovada pelos exre ‘manifestando-se como um grupo de normas ¢ existéneiae ao bom la organizagio igentes no meio social como i¢do assegura a regularidade de tais poderes no menitca pergunta que fiz. I:las, sejam as que forem, limitam-se a descrever exteriormente como se formatn as constituigoes « © que fazem, mas nao explicam o que é uma Constituigao!”, Dio-nos eritérios, notas explicativas para conhecer juridica, mente uma Constituigdo; porém nao esclarecem onde esti o Conceito de toda Constituigdo, isto é: a esséncia constitucional Nao servem, pois, para orientar-nos sobre se uma determinada Constituigao é, ¢ por que, boa ou ma, factivel ou irrealizavel, duradoura ou insustentavel, pois para isso seria necessario ue explicassem 0 conceito de Constituigao. Primeiramente, toma-se necessério sabermos qual é a verdadeira esséncia duma Constituigdo, e, depois, poderemos saber se a Carta Consti- lucional determinada e concreta que estamos examinando se acomoda ou nao as exigéncias substanciais. Para isso, porém, de nada servirdo as definigdes juridicas, que podem ser aplicadas 8 todos os papéis assinados pelo povo ou por este € 0 scu rei, proclamando-as “constituigées”, seja qual for o seu contetido, Sem penctrarmos na sua esséneia. O conceito de Constituigao ~ como demonstrarei logo -é a fonte primitiva da qual nascem arte e a sabedoria constitucionais, Repito, pois, minha pergunta: © que é uma Constituigao? Onde encontrar a verdadeira esséncia, 0 verdadeiro conceito de uma Constituigao? Como 0 ignoramos, pois & agora que vamos desvenda- 'o, aplicaremos um método que € de utilidade por em prtica sempre que quisermos esclarecer 0 conceito duma coisa Esse método ¢ muito simples. Baseia-se em compararmos a coisa cujo conceito ndo sabemos com outra semelhante a ela, esforgando-nos para penetrar clara nitidamente nas diferengas que afastam uma da outra. igo de um, is esta situada no topo da pirdmi- snonnativa; suas outras denominages mais comuns slo: Lei Fundamental, L «i das Leis, Lei Maior, Carta Magna, A Constituigao bras ¢ 1988 foi denominada por Ulysses Guimaraes de “Constituigto Cia 18 Lei! © Constituigso! ‘ando esse método, pergunto: Qual a diferenga entre uma Constituigao e uma lei? Ambas, a lei ¢ a Constituigdo, tém, evidentemente, uma esséncia genérica comum. Uma Constituigio, para reger, necessita da aprovagao lativa, isto é, tem de ser também lei. Todavia nao é uma Jei como as outras, uma simples lei: é mais que isso. Entre os dois conceitos nao existe somente afinidade; ha também desse- melhanga'’. Esta, que faz que a Constituigao seja mais do que simples lei, poderia demonstré-lo com centenas de exemplos. '* Nota do Tradutor: Os Estados contam com muitas espécies normativas, as quais sdo destinadas aos mais variados assuntos de interesse do Estado ¢ de seus nacionais. Em termos de espécies, mostra-se oportuna a apre- c rinas legislativas do sistema juridico brasileiro; séo elas constitucional, de emenda & Consttuigao, ei complementar lei ordiniria, medida provisoria, lei delegada, resolugo do Congresso Nacionel. deereto vo, decreto do Executivo, resolugdes, portarias. Ha ainda os ternacionais celebrados entre a Republica Federativa do Brasil lade juridica internacional, servindo como exemplar tados © as organizag6es intemacionais '* Nota do Tradutor: A norma constitucional trata de um documento escrito estruturador ¢ organizador de cada Estado, sendo que todos os Estados do mundo contam com um conjunto delas reunido em forma de Consttuigao. Evidentemente que o conteiido das normas consttue tengo entre todas as demais normas, dai haver uma sobreposigao natural sobre toda © qualquer outra espécie normativa. Na hodierna conjuntura, a norma constitucional trata de estruturare limitar 0 poder estatal,contendo também prineipios acerea de outros ramos do diteto, Jamais se pode ol dar que elas estabelecem a estrutura ea organizagio do estado, sem deixar Ge versa sobre a limitagoes de suas atividades,devendo ser elaboradas pelo Parlamento investide do poder co sso para expressar a pura manifesagio do povo. peepee sp 'S Nota do Tradutor: A lgislagdo compoe-se de todas as espécies de sormas,inclvindo aqui as leis complementares, sles endindrions lee delegadss a medida provisria, os decries, a8 resalusGes ep gee nag dizer, a Constituigdo Federal. prs y O pais, por exemplo, nao protesta pelo fato de constan- temente serem aprovadas novas leis; ao contritio, todos nds sabemos que se torna necessirio que todos os anos seja criado maior ou menor niimero de leis. Nao pode, porém, decretar-se uma tinica lei que seja, nova, sem alterar a situagdo legislativa vigente no momento da sua aprovagao, pois, se a nova lei néo motivasse modificagdes no aparclhamento legal vigente, seria absolutamente supérflua ¢ ndo teria motivos para ser aprovada, Por isso, nao protestamos quando as leis so modificadas, pois hotamos, ¢ estamos cientes disso, que é essa a missdo normal € natural dos governos... Mas, quando mexem na Constit Gio, protestamos ¢ gritamos: “Deixai a Con: a origem dessa diferenga? Issa diferenga € to inegavel, que existem, até, constituigdes que dispdem taxativamente que a Constituigdo ndo podera ser alterada de modo algum; noutras, consta que para reformi-la nao é o bastante que uma simples maioria assim o deseje, mas que sera necessério obter dois tet- 0s dos votos do Parlamento; existem ainda algumas em que se declara que nao é da competéncia dos Corpos Legislativos sua modificagdo, nem mesmo unidos ao Poder Executivo, sendo que para reformé-la deverd ser nomeada uma nova Assembleia Legislativa, ad hoc criada expressa ¢ exclusivamente para esse fim, para que ela se manifeste acerca da oportunidade ow conveniéncia de ser a Constitui "6, modificada'®, "© Nota do Tradutor: A ela mesina, podendo ser no assui ragdo arbit individuais ¢ coletivos conquistados, a sociedade luta para amy rol. Dificultando as alteragdes das normas constitucionais, rigida possui um processo espec AConstituigao flexivel é caracteriz espécie semi-rigida, encontra-se um misto entre a alias, uma mesma Constituigdo pode conter normas a serem modificadas por processo especial ou lei ordinaria, 20 Furano Lassauie ‘Todos esses fatos demonstram que. no espirito unanime dos povos, uma Constitui¢ao deve ser qualquer coisa de mais Sagrado, de mais firme ¢ de mais imével que uma lei comum, ago outra vez.a pergunta anterior: qual a diferenga entre tuigdo © uma simples lei? A essa pergunta responderao: Constituigo nao é uma lei como as outras, é uma fei fundamental do Estado. E possivel, meus senhores, que nessa resposta se encontre, embora de um modo obscuro, a verdade que estamos investigando. Mas ela, assim formulada, de forma bastante confusa, ndo pode deixar-nog satisfeitos. Imediatamente surge, substituindo a outra, esta inter. roga¢do: Como distinguir uma lei da lei fundamental? Como po- dis ver. continuamos onde comegamos. Somente ganhamos un vocdbulo novo, ou melhor, um termo novo, “lei fundamental” que de nada nos serviré enquanto ndo soubermos explicar qual & repito, a diferenga entre lei fundamental e outra lei qualquer Intentemos, pois, aprofundar um pouco mais no assunto, indagando que ideias ou que nogdes sao as que vdo associadas #esse nome de “lei fundamental”; ou, noutros termos, como po- deriamos distinguir uma “lei fundamental” de outra li qualquer para que a primeira possa justificar o nome que Ihe foi assinalado Para isso sera necessario: 1° Que a lei fundamental seja uma lei basica, mais do que as outras comuns, como indica seu proprio nome “funda. mental” 2° Que constitua —pois de outra forma ndo poderfamos cham4-ta de fundamental ~o verdadeiro fundamento das outres leis; isto ¢, a lei fundamental, se realmente pretende ser mere. cedora desse nome, deverd informar ¢ engendrar as outras leis comuns originarias dela. A lei fundamental, para sé-lo, devera, Pols, aluar ¢ irradiar através das leis comuns do Estado", do Nota do Tradutor: A norma constitucional mostra-se como basilar quan ose revelava estabelecedora de principios dos demais ramos do drei, © Que & Una Constiru 21 3° Mas as coisas que tém um fundamento nao 0 sao as- sim por um capricho; existem porque necessariamente devein existiz. O fundamento a que respondem nao permite serem de Outro modo, Somente as coisas que carecem de fundamento, que so as casuais ¢ as fortuitas, podem set como so ou mesmo de qualquer outra forma: as que possuem um fundamento nao, ois aqui rege a lei da necessidade. Os planetas, por exemplo, movem-se de um modo determinado, Esse movimento responde @ causas, a fundamentos exatos, ou no? Se nao existissem tais fundamentos, sua trajetéria seria casual e poderia variar a todo momento, quer dizer seria variavel. Mas, se de fato responde 2 um fundamento, se é o resultado, como pretendem os cien- tistas, da forga de atragio do sol, 6 0 bastante isso para que o movimento dos planetas seja regido e governado de tal modo por esse fundamento que nao possa ser de outro modo, a no ser tal como de fato é. A ideia de fundamento traz, implicita- mente, a nogdo de uma necessidade ativa, de uma forga eficaz que torna por lei da necessidade que 0 que sobre cla se bascia seja assim ¢ no de outro modo. Sendo a Constitui¢ao a lei fundamental de um Fstado, sera ~e agora jé comegamos a sair das trevas~ qualquer coisa que logo poderemos definir ¢ esclarecer, ou, como ja vimos, uma forga ativa que faz, por uma exigéncia da necessidade, que todas as outras leis e instituigdes juridicas vigentes no pais sejam o que realmente si, de tal forma que, a partir desse ins- tante, ndo podem decretar, naquele Estado, embora quisessem, outras quaisquer. Muito bem, pergunto cu: sera que existe nalgum pais —¢ fazendo esta pergunta os horizontes clareiam ~ alguma forca ativa que possa influir de tal forma em todas as leis dele que as obrigue a ser necessatiamente, até certo ponto, 0 que s80 ¢ como sio, sem poderem ser de outro modo? ademais, ela traz 0 esqueleto do estado, ao lado de seus érgaos funcionais € da contengdo das atividades estatais. Assaie Qs Fatores Reais do Poder Sim, existem sem diivida, ¢ essa incdgnita que estamos investigando se apoia, simplesmente, nos fatores reais do poder que regem uma determinada sociedade'* Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade sdo essa forga ativa e eficaz que informa todas as leis ¢ instituigdes juridicas da sociedade em aprego, determinando que ndo possam ser, em substncia, a ndo ser tal como elas S40. Vou esclarecer isso com um exemplo. Naturalmente, esse exemplo, como vou expé-lo, nao pode realmente acontecer. Porém, embora esse exemplo possa dar-se de outra forma, nao interessa sabermos se 0 fato pode ou nao acontecer, mas sim 0 que.o exemplo nos possa ensinar se este chegasse a ser realidade. Nao ignoram 0s meus ouvintes que na Priissia somente tém forga de Ici os textos publicados na Colegao legistativa. Essa colego se imprime numa tipografia concessionaria ins- talada em Berlim. Os originais das leis guardam-se nos arqui- vos do Estado, ¢ em outros arquivos, bibliotecas e depésitos, guardam-se as colegdes legislativas impressas. ‘Vamos supor, por um momento, que um grande incéndio irrompeu e que nele se queimaram todos 0s arquivos do Estado, todas as bibliotecas piiblicas; que o sinistro destruisse também a tipografia concessionéria onde se imprimia a Colegao legistativa ¢ que ainda, por uma triste coincidéncia ~ estamos no terreno das suposicdes -, igual desastre se desse em todas as cidades do pais, desaparecendo inclusive todas as bibliotecas particulares onde existissem colegdes, de tal maneira que em toda a Prissia no fosse possivel achar um tinico exemplar das leis do pais. Suponhamos isso |8 Nota do Tradutor: Evidentemente que vivemos em época bem mais evo- Iuida de quando Lassalle teceu seus comentirios, uma vez que ele tendia a indicar 0 poder constituinte como a expresso de um povo materializada nna sua Carta Politica escrita. 0 Que £ Uma Constrruicéo? n Suponhamos mais: que pais, por causa desse sinistro, ficasse sem nenhuma das leis que 0 governavam c que por forga das circunstancias fosse necessario decretar novas leis Julgai que nesse caso o legistador, completamente livre, po- deria fazer leis a capricho, de acordo com o seu modo de pensar? A Monarquia' ‘Suponhamos que os senhores respondam: Visto que as leis desapareceram ¢ vamos redigir outras completamente novas. desde 05 alicerces até o telhado, nelas ndo teconheceremos & a ‘monarquia as prerrogativas que até agora govou ao amparo das leis destruidas; mais ainda: nao respeitaremos prerrogativas nem atribuigdes de espécie alguma; enfim: nao queremos a monarquia O monarca responderia assim: Podem estar destruidas as leis, porém, a realidade é que o Exército subsiste e me obedece, acatando minhas ordens; a realidade & que os comandantes dos arsenais ¢ quartéis péem na rua os canhdes e as baionetas quando eu o ordenar, e, apoiado nesse poder real, efetivo, das baionetas ¢ dos canhées, nao tolero que venham me impor posigdes e prerrogativas em desacordo comigo. Como podeis ver, um rei a quem obedecem 0 0s canhées... é uma parte da Constitui¢gao A Aristocracia” Suponhamos agora que os senhores dissessem: Somos tantos milhdes de prussianos, entre os quais somente existe um '? Nota do Tradutor: Estado em que o poder é exercido somente por uma. pessoa, chamado de soberano ou de monarca, Além de governar, ce legisla ejulga. 2 Nota do Tradutor: Tipo de sociedade politica em que 0 poder é exercide por um nimero reduzido de pessoas abastadas, a quem so dirigidas hon- rarias ou titulos honoriferos. m4 punhado cada vez menor de grandes proprietarios de terras per- tencentes & nobreza. Nao sabemos por que esse punhado, cada vez menor, de grandes proprietarios agricolas, ha de possuir tanta influéncia nos destings do pais como os restantes milhoes de habitantes reunidos, formando somente eles uma Camara alta que fiscaliza os acordos da Camara dos Deputados, eleita esta pelos votos de todos os cidadaos, recusando sistematicamente todos os acordos que julgarem prejudiciais aos seus interesses Imaginemos que os meus ouvintes dissessem: Destruidas as leis do passado, somos todos “iguais” e nao precisamos abso- lutamente “para nada” da Camara Senhor Reconhego que nao seria facil a nobreza atirar, contra 0 povo que assim pensasse, seus exércitos de camponeses. Pos- ivelmente teriam mais que fazer para livrar-se deles. Mas a gravidade do caso é que os grandes fazendeiros da nobreza tiveram sempre grande influéneia na Corte e essa influéncia Ihes garante a saida do Exército e dos canhdes para seus fins, como se esse aparelhamento da forga estivesse “di- retamente” a seu dispor. Vejam, pois, como uma nobreza influente ¢ bem-vista pelo rei e sua Corte é também uma parte da Constituigao. A Grande Burguesia®! Ocorre-me agora assentar 0 suposto ao inverso, isto &, a suposigaio de que o rei e a nobreza, aliados entre si para restabe- lecer a organizagao medieval, mas no ao pequeno proprietirio, 2" Nota do Tradutor: Classe social emergente na Europa em fins da kdade Média, com 0 desenvolvimento econémico baseado no mercantilismo, destacando-se algumas cidades italianas, como Génova e Veneza, Por conta do intenso comércio, surge uma nova classe de ricos sem o poder, sendo gerado um conflito para que se desse a infiltragao na atistocracia. Depois de tantos confrontos, foi somente com a Revolugao Francesa de 1789 que ‘0s burgueses passaram a dominar a vida politica, social e econdmica, 0 Que € Uma Cons wA0? 25 pretendessem impor o sistema que regeu na [dade Média; quer dizer, aplicada a toda a organizagao social, sem excluir a grande industria, as fabricas ¢ a produgao mecanizada. E sabido que © “grande” capital nao poderia, de forma alguma, progredir ¢ mesmo viver sob o sistema medieval, impedindo seu desen- volvimento sob aquele regime. Entre outros motivos, porque nesse regime se levantaria uma série de barreiras legais entre os diversos ramos de produgdo, por muita afinidade que eles tives- sem, e nenhum industrial poderia reunir duas ou mais industrias €m suas maos. Nesse caso, por exemplo, entre as corporagdes dos fabricantes de pregos e os ferrciros existiriam constantes Processos para deslindar as suas respectivas jurisdigdes; a estamparia ndo poderia empregar em sua fabrica somente um tintureiro ete. Ademais, sob 0 sistema gremial daquele tempo, estabelecer-se-ia por lei a quantidade estrita de produgao de cada industrial e cada indistria somente poderia ocupar um determinado numero de operarios por igual. Isso basta para compreender que a grande produgio, a industria mecanizada, nao poderia progredit com uma Cons- tituicao do tipo gremial. A grande industria exige, sobretudo ~€ necesita como o ar que respiramos —, ampla liberdade da fusdo dos mais diferentes ramos do trabalho nas maos dum mesmo capitalista, necessitando ao mesmo tempo da produgo em “massa” ¢ da livre concorréncia, isto é, a possibilidade de empregar quantos operdrios necessitar, sem restrigdes, Que viria a acontecer se nessas condigdes ¢ a despeito de tudo obstinadamente implantassem hoje a Constituigao gremial? Aconteceria que os senhores Borsig, Egels ete2, os grandes industriais de tecidos, os fabricantes de sedas etc. fechariam as suas fabricas despedindo os seus operiios, ¢ até 4s companhiias de estradas de ferro scriam obrigadas a agir da 6 FywoIsanb Lassnc mesma forma. O comércio e a indistria ficariam paralisados; grande niimero de pequenos industriais seria obrigado a fechar tas oficinas e essa multid’o de homens sem trabalho sairia praca pibblica pedindo, exigindo, pao e trabalho. Atras dela, a grande burguesia, animando-acom a sua influéncia, instigando- a com o seu prestigio, sustentando-a ¢ alentado-a com 0 seu dinheiro, viria fatalmente a luta, na qual o triunfo ndo seria certamente das armas Demonstrara-se, assim, que os Borsig, Egels, os gran- des industeiais, enfim, so todos, também, um fragmento da Constituigao. Os Banqueiros Suponhamos, por um momento, que o governo pretendes- se implantar uma dessas medidas excepcionais, abertamente lesivas aos interesses dos grandes banqueiros, que esse mesmo governo entendesse, por exemplo, que 0 Banco do Estado nao foi criado para a fungao que hoje cumpre, que ¢ a de baratear mais ainda o crédito aos grandes banqueiros e aos capitalistas que possuem por razio natural todo 0 crédito e todo o dinheiro do pais e que so os tinicos que podem descontar as suas firmas, quer dizer, que obtém numerdrio naquele estabelecimento ban- cario para tornar acessivel o crédito & gente humilde e a classe média. Suponhamos isso e também que a0 Banco do Estado pretendessem dar-Ihe a organizagao adequada para obter esse resultado, Poderia isso prevalecer? Nao vou dizer que disso desencadeasse uma revolta, mas ‘0 governo atual ndo poderia impor presentemente uma medida semelhante Demonstrarei por qué. De vez em quando o governo sente apertos finaneciros devido 4 necessidade de investir grandes quantias de dinheiro © Que Uta Constitugao? que nao tem coragem de tirar do povo por meio de novos im- postos ou aumento dos existentes. Nesses casos, fica 0 recurso de devorar o dinheiro do futuro, ou, 0 que & a mesma coisa, contrair empréstimos, entregando em troca do dinheiro que recebe adiantadamente papel dat Divida Publica? Para isso, necessita dos banquciros. E certo que, mais dia menos dia, a maior parte daqueles titulos da divida volta as maos da gente rica e dos pequenos capitalistas do pais; mas isso requer tempo, és vezes muito tempo, € 0 governo necesita do dinheiro logo ¢ de uma vez, ou em prazos breves, Para conseguir 0 dinheiro, serve-se dos particulares, isto é de intermedidrios que the adiantem as quantias de que precisa, correndo depois por sua conta a co- locago, pouco a pouco, do papel da divida, locupletando-se também com a alta da cotagdo que a esses titulos Ihe dé a bolsa artificialmente, Esses intermediarios sdo os grandes banquciros e, por esse motivo, a nenhum govern convém, hoje em dia, indispor-se com eles. Vemos. mais uma vez, que também os grandes banquei- ros, como Mendelssohn, Schickler, a Bolsa, so igualmente partes da Constituigao. Suponhamos que 0 governo intentasse promulgar uma Ici penal semelhante & que prevaleceu durante algum tempo na China, punindo na pessoa dos pais os roubos cometidos pelos filhos. Essa lei nfio poderia reger, pois contra ela se levantaria oprotesto, com todaa cnergia possivel, da cultura coletiva ¢ da consciéncia social do pais. Todos os funcionérios, burocratas ¢ conselheiros do Estado ergueriam as mos para 0 céu, ¢ até os sisudos senadores teriam de discordar de tamanho absurdo. 2 Divida contraida pelo governo (federal, estadval ou municipal) 24 Nota do Tradutor: Institui¢do, piblica em alguns paises, privada em ‘outros, destinada a operar em fundos piblicos, agdes e obrigagdes de com- panhias, € outros titulos de crédito, ¢ bem assim em mercadorias; bolsa de valores. Local onde se reiinem os corretores para essas operagdes financeiras, 28 Fexoivano Lassauie ue. dentro de certos limites, também a conscincia coletivae a cultura geral da Nagio® sdo particulas. ¢ nao pequenas, da Constituigao A Pequena Burguesia’ a Classe Operiria?” Imaginemos agora que o governo, querendo Proteger esa iisfazer os privilégios da nobreza, dos banguelros dos grandes industriais e dos grandes capitalistas, tentasse rivar das suas Poderia, mesmo que fosse transitoria- mente; os fatos demonstram-nos que poderia, Mas ¢ se 0 governo pretendesse tirar & pequena bur Nao, embora estivessem aliados ao rei a nobreza e toda a grande burguesia Seria tempo perdido, % Nota do Tradutor: A nogdo de nagdo esti ‘no século XX designada como Fofissdes liberais e todos aqueles 5, de uma forma ou de outra, as 8 € as classes dirigentes, a rua sem necessidade de que og Seus patrdes fechassem as fabricas: a pequena burguesia juntar, Se-ia solidariamente com o povo ea resisiéncia desse bloco seria invencivel, pois nos casos extremos e desesperados também o Povo, nds todos, somos uma parte integrante da Constituigao. Os Fatores do Poder e as Instituigdes Juridicas A Folha de Papel? Essa é, em sintese, em esséncia, a Constituigao de um @ soma dos fatores reais do poder que regem um pais. Mas que relacdo existe com o que vulgarmente chamamos Constituicao; com a Constituigao juridica? Nao é dificil com. Preender a relagdo que ambos os conceitos guardam entre «i pai Juntam-se esses fatores reais do poder, escrevemo-los em uma folha de papel, dé-sc-thes expressio escritac, a partir desse momento, incorporados a um papel, ndo so simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituigdes Juridicas, ¢ quem atentar contra eles atenta contra a I | por conseguinte é punido. Nao desconheceis também o proceso que se segue para transformar esses escritos em fatores reais do poder, transfor, ‘mando-os dessa maneira em fatores juridicos, Esté claro que nao aparece neles a declarago que 0 senhor } © industrial, a nobreza, 0 povo, séo um fragmento da Constituigd0, ou que 0 banqueiro X é outro pedago dela, nao, isso se define de outra maneira mais limpa, mais diploma 2 Nota do Tradutor: Alusao a que disse: “Julgo-me obri 30 Pusunyann Lassatie: O Sistema Eleitoral das Trés Classes Por exemplo, se © que se quer dizer é que determinados industriais ¢ grandes capitalistas terdo tais ¢ quais prerrogativas no governo ¢ que o povo ~ opersrios, agricultores ¢ pequenos burgueses — também tém certos direitos, isto nao se far constar com essa clareza e sim de modo diferente. O que se fard sera, simplesmente, decretar uma lei, como a célebre lei eleitoral das “trés classes” que vigorou na Prissia desde o ano de 1849.9 na qual sera dividido o Estado em trés grupos eleitorais, de acordo com os impostos por eles pagos e que naturalmente estardo de acordo também com as posses de cada cleitor. Segundo a estatistica oficial organizada naquele ano (1849) pelo governo, existiam na Prissia 3.255.703 eleitores, que ficavam assim dividido: Grupos eleitorais _Eleitorey Primeiro grapo 153.808 Segundo grupo 409.945 Terceiro grupo 2.691.950 Por essa estatistica eleitoral, vemos que na Priissia existiam 153.808 pessoas riquissimas que possuiam tanto poder politico como 0s 2.691.950 cidadaos modestos, operirios e camponeses Juntos, e que esses 153.808 individuos de maximos cabedais, somados aos 409.945 cleitores de posses médias que integravam. a segunda classe, possuiam tanto poder politico como 0 resto da nago; ainda mais, que os 153.808 grandes capitalistas e a metade somente dos 409.945 do segundo grupo dispunham de maior forga politica que a metade restante da segunda categoria somada aos 2.691.950 cleitores desprovidos de riqueza. Observai como por esse meio cémodo se chega exata- mente ao mesmo resultado que se na Constituigao constasse: 0 2» Nota do Tradutor: Vigorou até a Revolugdo de 1918 © Que € Ums Corsten a0? 3 opulento tera o mesmo poder politico que 17 cidados comuns, ou methor, nos destinos politicos do pais o capitalista terd uma influéncia 17 vezes maior que um simples cidadao sem recursos, Antes da promulgagao da lei cleitoral das trés classes, regia legalmente, até 1848, sufragio universal, que garantia a todo cidadao, fosse rico ou pobre, o mesmo dircito politico, as mesmas atribuigdes para intervir na administragao do Estado, Esti assim demonstrada a afirmativa que fiz anteriormente de que era bastante facil, legalmente, usurpar aos trabalhadores ¢ a Pequena burguesia as suas liberdades politicas, sem, entretanto, despojé-los de um modo imediato ¢ radical dos bens pessoais constituidos pelo dircito a integridade fisica e propriedade Os governantes nao tiveram muito trabalho para privar 0 povo dos direitos eleitorais e, até agora, ndo sei se foi feita qualquer campanha de protesto para recuperar esses direitos, A Camara Senhorial ou Senado Sena Constituigao quer 0 governo fique estabelecido que um punhado de grandes proprietarios da aristocracia retina em Suas maos tanto poder como os ricos, a gente acomodada e os deserdados da fortuna, isto é, como os cleitores das trés classes reunidas, como o resto da nagdo, o legislador cuidaré também de faz8-lo, mas de maneira que no o diga tdo as claras, t30 grosseiramente, bastando para isso dizer na Constituigao: Os representantes da grande propriedade sobre o solo, que 0 forem or tradi¢ao, e mais alguns outros elementos secundatios, for- mario uma Camara Senhorial, um Senado, com atribuigdes de aprovar ou no os acordos feitos pela Camara dos Deputados eleitos pelos eleitores do Estado, que nio terdo valor legal se eles forem rejeitados pelo Senado, Isso equivale a por nas maos de um grupo de velhos Proprictirios uma prerrogativa politica formidavel que thes permitira contrabalangar a vontade nacional e de todas as clas- Ses que a compem, por muito undnime que seja cssa vontade Pegorsann Lassaute O Rei e o Exército E se continuando por esse caminho aspiramos a que 0 rei por si s6 possua tanto poder politico e mais ainda que as trés classes de cleitores reunidas, inclusive a nobreza, ndo sera necessario mais do que isso. Redige-se um artigo que reze assim:>" “O rei nomeara todos os cargos do Exército e da Marinha”, acrescentando mais um artigo" “Ao Exército ea Marinha nfo sera exigido 0 juramento de guardar a Constituigao.” B, se isso parecer ainda pouco, acrescentar-se-4 a teoria, que ndo deixa de ter seu fundo de verdade, de que 0 rei ocupa frente a do Exército uma posi¢ao mui diferente da que the corresponde comparativamente as outras instituigdes do Estado: a teoria de que o rei, como chefe supremo das forgas militares do pais, ndo é somente rei, é qual- quer coisa mais, algo especial, misterioso e desconhecido, para cuja denominagdo inventaram o termo chefe supremo das forgas de mar ¢ terra, razdo por que nem a Camara dos Deputados nem mesmo 0 Estado tém de preocupar-se com o Exército nem intervir nos seus assuntos e organizacao, limitando-se somente a votar as quantias necessérias para que subsista. Endo pode negar-se que essa teoria tem seu apoio no art. 108 da Constituicao prussiana. Se esta dispde que 0 Exército no necessita prestar juramento de acatar a Constituiga0, como € 0 dever de todos os cidadaos do Estado e do proprio rei, isso equivale, em principio, a reconhecer que o Exército fica margem da Constituigdo e fora da sua jurisdigdo, que nada tem a ver com ela, que somente precisa prestar contas do que faz & pessoa do rei, sem manter relagdes com o resto do pais. Conseguido isso, reconhecida ao rei a atribuigao de pre- encher todos os postos vagos do Exército e colocado este soba 7 da Constituigdo Prussiana de 184 “Amt 198 da mesma Consttuigao Man © Quee Uma Constrruio’ 3 sujeigdo pessoal do rei, este conseguiu por se reunir um poder muito superior ao que goza 6 pove como um todo, supremacia essa que no ficaria diminuida, embora o poder efetivo do povo fosse dez, vinte ou cinquenta vezes maior que o do Exército. ‘A razio aparente desse contra-senso é simples. Poder Organizado e Poder Inorganico instrument do poder politico do rei, o Exéreito, esta organizado: pode reunir-se a qualquer hora do dia ou da noite, funciona com uma disciplina tinica e pode ser utilizado em qualquer momento que dele se necessite Entretanto, o poder que se apoia na Nagao, meus senhores, cembora seja, como de fato o é, infinitamente maior, nao esta organizado; a vontade do povo, c sobretudo seu grau de aco- metimento, ndo é sempre facil pulsar mesmo por aqueles que dele fazem parte, Perante a iminéncia do inicio de uma ago, nenhum deles € capaz de contar a soma dos que iro tentar defendé-la, Ademais, 0 povo carece desses instrumentos do poder organizado, desses fundamentos téo importantes de uma Constituigo como acima demonstramos, isto é, dos canhdes. E verdade que os canhées se adquirem com o dinheiro fornecido pelo povo; certo também que se constroem ¢ aperfeigoam-se gragas as cigncias que se desenvolvem no seio da sociedade civil. & quimica, a técnica etc. Somente 0 fato de sua existéncia demonstra como é grande 0 poder da sociedade civil, até onde chegaram os progressos das ciéncias, das artes técnicas, dos meétodos de fabricagao e do trabalho humano... Mas aqui calha a frase de Virgilio™: Sie vos non vobis!® Tu, povo, fabrica-os € paga-os, mas nao para ti! Como os canhées sdo fabricados Nota do Tradutor: Publius Vergilius Maro, poeta latino, nascido em Andes m 70 a.C,, estudou retérica e filosofia, deixando diversas obras escritas, como Bucdlicas ¢ Gedrgicas. Nota do Tradutor: Sim para cada wn ¢ ndo para todos voces. 34 sempre para o poder organizado e somente para ele, 0 povo sabe que essas maquinas de destruigdo e de morte, testemunhas latentes de todo o seu poder, vomitardo a metralha sobre ela, infalivelmente, logo que se revoltar. Essas razées explicam por que um poder menos forte, porém organizado, pode sustentar-se anos a fio, sufocando o poder, muito mais forte, porém desorga- nizado, do pais, até que a populacao um dia, cansada de ver os assuntos nacionais to mal administrados ¢ mais mal regidos ¢ que tudo ¢ feito contra sua vontade ¢ contra os interesses gerais do Estado, levante-se contra o poder organizado, opondo-the sua formidavel supremacia, embora desorganizada, ‘Tenho demonstrado a relagao que guardam entre si as duas, constituigdes de um pais: essa Constituigao real e efetiva, inte- gralizada pelos fatores reais ¢ efetivos que regem a sociedade, ¢ essa outra Constituigiio escrita, a qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar folha de papel Cavituto I Atco DE Historia ConsTITUCIONALISTA Uma Constituigdo real ¢ efetiva possuem-na ¢ hao de possui-la sempre todos os paises, pois € um erro julgarmos que a Constituigdo é uma prerrogativa dos tempos modernos. Nilo € certo isso. Da mesma forma, e pelo mesmo principio normativo da necessidade que todo corpo tem uma constituigao propria, boa ou mé, estruturada de uma ou de outta forma, todo pais tem, necessariamente, uma Constitui¢do real ¢ efetiva, pois nao é possivel imaginar um Estado onde néo existam os fatores de- terminantes reais do poder, quaisquer que eles sejam. Quando muito tempo antes de irromper a grande Revo- luao Francesa*, sob a monarquia legitima ¢ absoluta de Luiz XVI, o poder imperante aboliu na Franga, por Decreto de 3 de fevereiro de 1776, as prestagdes pessoais para a construgzo de vias pablicas onde os agricultores eram obrigados a trabalhar gratuitamente na abertura e construgao de rodovias ¢ caminhos, M Nota do Tradutor: Em 1789. a situagao social na Franga era to grave ¢ 0 ivel de insatisfagdo popular tao grande que 0 povo foi as ruas com 0 obje~ tivo de tomar o poder e arrancar do governo a monarquia comandaca pelo rei Luiz XVI. A~Queda da Bastilha”, nesse mesmo ano, marca 0 inicio do processorev rio, cujo lema era “liberdade, igualdade ¢ fraternidade”, pois resumia muito bem os desejos do terceiro Estado francés. Durante 0 processo revolucionério, grande parte da nobreza deixou a Franca, Enquanto. tentavam fugir, os integrantes da monarquia foram presos, entre eles o rei Luis XVie sua esposa Maria Antonieta, que foram guilhotinados em 1793. (O clero também no saiu impune, pois os bens da Igreja foram confiscados. durante a revolugdo. Em 1789, a Assembleia Constituinte cancelow todos (05 direitos feudais que existiam e promulgou a Declaragdo das Direitos me do Cidadéo, % Feapnsao Lassau determinando a criagao. para atender ds despesas de constru- Gao, de un imposto pago inclusive pela nobreza, o Parlamento francés protestou, opondo-se a essa medida: “Le peuple de France est taillable et corvéable a volonté, c'est une partie de la Constitution que le roit ne peut changer.”35 Vejam como mesmo naquele tempo ja falavam de uma Constituigao ¢ reconheciam-Hhe tal virtude, que nem 0 proprio rei podia mexer nela; tal como agora. Aquilo que a nobreza francesa chamava de constituigao, ou seja, a norma pela qual 9 povo ~ os deserdados da fortuna — era obrigado a suportar 0 peso dle todos os impostos e prestagdes que quisessem Ihe impor, nio estava, é certo, escrito em nenhum papel ou documento es. Pecial, documento esse onde em resumo constassem os direitos do pais ¢ os do governo; era, pois, a expresso simples e clara dos fatores reais do poder que vigoravam na Franga medieval FE que na [dade Média o povo era realmente tao impotente que podiam impor-the os maiores sacrificios ¢ tributos a vontade do legislador. A realidade era esta: © povo estava sempre por baixo ¢ devia continuar assim Essas tradigdes de fato se assentavam nos chamados precedentes, que ainda hoje na Inglaterra, acompanhando 0 exemplo universal da Idade Média, tm uma importéncia for- imidavel nas chamadas questies constitucionais. Nessa pratica ¢fetiva e tradicional de cargas ¢ impostos, invocava-se frequen- temente, como nao podia deixar de ser, o fato de que o povo desde tempos remotos estava sujeito a essas cargas e, sobre esse precedente, continuava a norma de que podia continuar assim ininterruptamente. A proclamagao dessa norma constituia a base do Direito constitucional. * Nota do Tradutor:“O povo da Franga ~iste ¢, os deserdados ~ pode estar Sujeito a impostos ¢ prestagdes sem limite, ¢ ¢ este uma parte da Constituigao que nem 0 rei pode modificar”; do francés. 0 Que € Uma Constirwigio? x7 As veres, dava-se expresso especial sobre um perga- minho a uma dessas manifestagdes que tinham sua raiz, nas realidades do poder. E assim surgiram os foros, as liberdades, 08 direitos especiais, os privilégios, os estatutos ¢ as cartas outorgadas de uma casta, de um grémio, de uma vila ete Todos esses fatos ¢ precedentes, todos esses principios de Dircito piblico, esses pergaminhos, esses foros, estatutos ¢ privilégios reunidos formavam a Constituigao do pais, sem que todos eles, por sua vez, fizessem outra coisa que exprimir, de um modo simples e sincero, os fatores reais do poder que regia no pais. Assim, pois, todos os paises possuem ou possuiram sem- pre, cin todos os momentos da suia historia, uma Constituigdo real e verdadcira. A diferenga nos tempos modernos ~e isso nao deve ficar esquecido, pois tem muitissima importéncia - nao sio as constituigdes reais efetivas, mas sim as constituigdes escritas nas folhas de papel. De fato, na maioria dos Estados modernos vemos apare- cer, num determinado momento da sua hist6ria, uma Constitui- ao escrita, cuja missdo é a de estabelecer documentalmente, numa folha de papel, todas as instituigées ¢ principios do governo vigente, Qual é 0 ponto de partida dessa aspiragao propria dos tempos modernos? Também isso é uma questio importantissima endo hé outro remédio que estuda-la para sabermos a atitude que deve- mos adotar perante a obra constitucional, o juizo que devemos formar a respeito das constituigdes que regem atualmente a conduta que devemos seguir perante clas, para chegarmos finalmente ao seu conhecimento e a possuit uma arte ¢ uma sabedoria constitucionais Repito novamente: De onde provém essa aspiragao, pré pria dos tempos modernos, de possuir uma Constituigao escrita? 38 Fexowano LASsaLie ‘Vamos ver de onde pode provir: Somente pode ter origem, evidentemente, no fato de que nos elementos reais do poder imperante dentro do pais se tenha operado uma transformagao. Se nao se tivesse operado trans- formagées nesse conjunto de fatores da sociedade em questdo, se esses fatores do poder continuassem sendo os mesmos, nio teria cabimento que essa mesma sociedade desejasse uma Cons- tituigao para si. Acolheria tranquilamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os clementos dispersos num tinico documento, numa nica Carta Constitucional Mas perguntaréo: como se podem dat essas transforma {G6cs que afetam aos fatores reais do poder de uma sociedade? Constituigio Feudal’® Representemos, por exemplo, um Estado pouco povoado da Idade Média, como acontecia naquele tempo, sob o domi- nio governamental de um principe e com uma nobreza que agambarcou a maior parte da propriedade territorial. Como a populacao ¢ escassa, somente uma parte muito pequena dela pode dedicar as suas atividades & indistria ¢ ao comércio; a imensa maioria dos habitantes nao tem outro recurso que cul- tivar a terra para obter da agricultura os produtos necessarios para viver, Nao devemos esquecer que a maior parte das terras est sob 0 dominio da aristocracia e que por esse motivo os que as cultivam encontram emprego nestes servigos: uns como feudatirios, outros como servos, outros, enfim, como colonos do senhor feudal; mas todos esses feudatarios, verdadeiros vassalos, possuem um ponto de coincidéncia: so todos cles submetidos a0 poder da nobreza, que os obriga a formar suas hostes ¢ a tomar as armas para fazerem a guerra aos seus vizi- % Nota do Tradutor: © feudalismo é 0 regime resultante dum enfraque- cimento do poder central e une estreitamente autoridade e propriedade da terra, estabelecendo entre vassalos e suseranos uma rolagao de dependéncia, O.Qvee Uma cao? » hos, para resolver seus litigios ou suas ambigdes. Ademais, com as sobras dos produtos agricolas que tira de suas terras, © senhor aumenta as suas hostes, contratando e trazendo pura seus castelos chefees de armas e soldados, escudeiros e criados. Por sua vez, 0 principe nao possui para afrontar esse poder da nobreza outra forga efetiva, no fundo, que a prépria dos que compéem a nobreza, que obedecem ¢ atendem suas ordens guerreiras, pois a ajuda que Ihe podem prestar as vilas, pouco povoadas ¢ pouco numerosas, é insignificante. Qual seria, pois, a Constituigo de um Estado desses? Nao ¢ dificil responder, pois a resposta provém necessa- mente desse niimero de fatores reais do poder que acabamos de examinar. A Constituigdo desse pais nao pode ser outra coisa que uma Constituigao Feudal, na qual a nobreza ocupa um lugar de destaque. O principe nao poderd criar sem seu consentimento novos impostos e somente ocupari entre eles a posigao de primus inter pares”; isto é, 0 primeiro posto entre seus iguais hierarquicos. Essa cra, meus senhores, a Constituigdio prussiana e a da maior parte dos Estados na Idade Média Absolutismo™ Continuando, vamos supor o seguinte: A populagao cresee € inultiplica-se constantemente, a industria ¢ 0 comércio pro- gridem e seu progresso facilita os recursos necessirios para fomentar um novo increment, transformando as vilas em cida- des. Nasce, ao mesmo tempo, a pequena burzuesiae os grémios 5 Nota do Tradutor: O primeiro entre os seus iguais; do latim. * Nota do Tradutor: Sistema de governo em que o monarea se investe em todos os poderes, isso de forma absoluta, scm linvte algum, exercendo de fato ¢ de ditcito o poder na versio puramente soberana, 40 Puxomsaso Lassa das cidades comegam a desenvolver-se também, circulando 0 dinheiro ¢ formando os capitais ¢ a riqueza particular. Que resultaria disso? Que esse incremento da populagdo urbana que no de- pende da nobreza, que contrariamente tem interesses opostos a.cla, contribuiri, no comego, beneficiando o principe, refor- gando as hostes armadas que o acompanham e aumentando os seus recursos obtidos com os subsidios dos burgueses ¢ dos grémios; que as continuas lutas entre os nobres acarretam aos seus interesses grandes prejuizos, almejando, em beneficio de seu comércio ¢ de suas incipientes indiistrias, a ordem e a tranquilidade piiblica c, ao mesmo tempo, a organizagio de uma justiga ordeira dentro do pais, auxiliando o principe, para consegui-lo com homens e com dinhciro. Por esses meios podera o principe dispor de bons soldados e de um exército muito mais eficiente para opor aos nobres. Nesse pé, em seu. interesse, 0 principe ird diminuindo as prerrogativas ¢ poderes da nobreza; assaltaré © arrasard os castelos dos nobres que resistam a obedecer-Ihe ou que violem as leis do pais; e, quan- do, finalmente, com o tempo, a indistria tiver desenvolvido bastante, a riqueza pecutiria e a populagao tiver em crescido de forma que permita ao principe possuir um exército permanente, este principe enviara seus batalhGes contra a nobreza como fez. Frederico Guilherme I em 1740 sob o lema de: “Je stabilirai la souverainité comme un rocher de bronce™; obrigard a nobreza a0 pagamento de impostos ¢ acabara com a prerrogativa de reeeber esta qualquer imposto. Patenteia-se, mais uma vez, que com a transformagao dos fatores reais do poder se transforma tambéin a Constituigéo vigente do pais: sobre os escombros da sociedade feudal, surge a monarquia absoluta. Nota do ‘Tradutor: “Afirmarei a sobcrania como um rochedo de bronze”; do francés, 0 Que € Uma Constructo? Mas o principe nao acredita na necessidade de par por escrito a nova Constituigdo; a monarquia é uma institu demasiado pratica para proceder assim. O principe tem em ‘suas maos o instrumento real ¢ efetivo do poder, tem 0 exército permanente, que forma a Constituigado efetiva dessa sociedade, ele eos que 0 rodeiam dao expressio a essa ideia, assinalando a0 pais a denominagao “Estado militar”. ‘A nobreza, que reconhece que nao mais pode competir com o principe, renuncia a possuir um exército para defendé- la, Esquece rapidamente seus antagonismos com o principe, abandona seus castelos para concentrar-se na residéncia real. recebendo em troca disso uma penso, ¢ contribui, com sua presenga, a prestigiar a monarquia. A Revolugao Burguesa Entretanto, a indtistria ¢ 0 comércio desenvolvem-se progressivamente e, a0 mesmo tempo, acompanhando cssc surto de prosperidade, cresce a populagéo ¢ melhora o género de vida dela. 1a de parecer que esse progresso seja proveitoso a0 principe porque cresce também seu exército ¢ seu poder; mas © desenvolvimento da sociedade burguesa chega a alcangar proporgdes imensas, to gigantescas, que o principe nao pode, nem auxiliado pelos seus exéreitos, acompanhar na mesma proporgiio 0 aumento formidavel do poder da burguesia, ¢ assim vemos para corroborii-lo que, em 1657, a cidade de Berlim tinha uma populagao de 20,000 habitantes ¢ 0 cxército prussiano era de 30.000 homens; em 1819, a populagdo era de 92.646 habitantes ¢ 0 exéreito da Priissia contava 137.639 homens; mas, em 1846, com uma populago em Berlim de mais de 389.000 pessoas, o exército era quase 0 mesmo, isto 6, de 138.810 homens contra os 137.639 em 1819! a2 Pixoixan Lassa 0 exército nio podia acompanhar 0 surto maravilhoso da populagao civil! Ao desenvolver-se em proporgdes to extraordinarias, a burguesia comega a compreender que também é uma poténcia politica independente. Paralelamente, com esse incremento dat populago, aumenta e divide-se a riqueza social em proporgdes incalculaveis, progredindo ao mesmo tempo, vertiginosamente, as indastrias, as ciéncias, a cultura geral e a consciéncia cole- tiva; outro dos fragmentos da Constituigao, ;ntdo a populagao burguesa grita: “No posse continuar a ser uma massa submetida ¢ governada sem contarem com a minha vontade; quero governar também; que o principe reine se limitando a seguir a minha vontade e regendo meus assuntos c interesses.” E esse protesto da burguesia ficou gravado no relevante fato histérico da Prissia, no dia 18 de margo de 1848 E agora fica demonstrado que 0 exemplo do incéndio foi hipotético, é verdade, mas que os fatos anteriormente expostos fizeram o mesmo que se um incéndio ou um furacdo tivessem vartido a velha legislagao nacional. Carituto TIT A ARTE & A SABEDORIA CONSTITUCIONAIS Quando num pais arrebentae triunfaa revolugdo, 0 direito privado continua valendo, mas as leis do direito piblico se desmoronam ¢ torna-se preciso fazer outras novas A Revolugio de 1848 demonstrou a necessidade de criar uma nova Constituigao escrita e 0 proprio rei se encarregou de convocar em Berlim a Assembicia Nacional para estudar as bases de uma nova Constituigao, Quando podemos dizer que uma Constituigdo escrita boa ¢ duradoura? A resposta ¢ clara: é parte logicamente de quanto temos exposto: Quando essa Constituigio eserita corresponder a Constituigao real e tiver suas raizes nos fatores do poder que regem 0 pais Onde a Constituigdo escrita nao corresponder real. ir- rompe inevitavelmente um conflito que & impossivel evitar ¢ no qual, mais dia menos dia, a Constituigaio escrita, a folha de papel. sucumbird necessariamente perante a Constituigao real, a das verdadeiras forgas vitais do pais. O Poder do Povo é Invencivel Em 1848, ficou demonstrado que o poder do povo é muito superior ao do Exército ¢ por isso, depois de uma cruenta ¢ longa luta, as tropas foram obrigadas a ceder. Mas no devemos esquecer que entre 0 poder da nagiio ¢ © poder do Exército existe uma diferenga muito grande ¢ por isso se explica que o poder do Exército, embora em realidade aa Penoisano Lassatse inferior a0 da nago, com o tempo seja mais eficaz. que o poder do pais, embora maior. E que o poder desta & um poder desorganizado ¢ 0 da- quele é uma forga organizada e disciplinada que se encontra a todo momento em condigdes de enfrentar qualquer ataque, vencendo sempre, a ndo ser nos casos isolados em que 0 sen- timento nacional se aglutina, ¢ num esforgo supremo vence a0 Poder organizado do exército. Mas isso somente acontece em momentos histéricos de grande emogdo. Para evitar isso, depois da vitéria de 1848, para que nao fosse estéril o esforgo da naga, teria sido necessario que, apro- veitando aquele triunfo, tivessem transformado o exército tao radicalmente, que nao voltasse a scr o instrumento de forga a servigo do rei contra a nagao. Nao se fez. Mas isso se explica; porque geralmente os reis tém a seu servigo melhores servidores do que 0 povo. Os daqueles sao priticos ¢ os do povo quase sempre sao retéricos; aqueles possuicm 0 instinto de agir no momento oportuno, estes fazem discursos nas horas em que os outros dio as ordens para que os canhées sejam postos na rua conira ele. Consequéncias Para chegarmos ao verdadciro conceito do que é uma constituigdo, temos agido com grande cautela, lentamente. [5 Possivel que alguns dos meus ouvintes, muito impacientes, tenham achado 0 caminho um pouco longo para chegar ao fim almejado. De posse desse resultado, as coisas desenvolveram-se depressa e, como agora ja podemos encarar 0 problema com mais clareza, poderemos estudar diversos fatos que tm a sua origem nos diferentes pontos de vista que temos estudado. 0 Qui: Um Constituigan? 45 Primeira Consequéncia ‘Tivemos ocasido de ver que nao foram adotadas as med das que se impunham para substituir os fatores reais do poder dentro do pais para transformar o Exército, de um Exército do rei num instrumento da nago. Certo que foi feita uma proposta encaminhada para consegui-lo, que representava o primeiro passo para esse fim ¢ que era a sugestdo apresentada por Stein®, na qual constavam medidas que teriam obrigado todos os oficiais reacionarios a resignar seus postos solicitando a sua aposentadoria Aprovada essa proposta pela Assembleia Nacional de Berlim, toda a burguesia e a maior parte da populagdo protes- taram gritando: “A Assembleia Nacional deve preocupar-se da nova Constituigo ¢ nao perder seu tempo atacando o governo € provocando interpelagdes sobre assuntos que competem a0 Poder Executivo!” “Ocupai-vos da Constituigdo ¢ somente da Constituigao!” gritavam todos. Como podem ver os meus ouvintes, aquela burguesia ca metade da populagao do pais ndo tinham a mais remota ideia do que real ¢ efetivamente era uma Constituigao, Para cles, fazer uma Constituigdo escrita era o de menos; no havia pressa; uma Constituicao escrita pode ser feita num caso de urgéncia, em vinte e quatro horas; mas, fazendo-a dessa maneira, nada se consegue, se for prematura. {© Nota do Tradutor: Lorenz von Stein, 1815-1890, socidlogo ¢ econo- insta leno, estedoujrsprudenca na Univesiade de Kel eo Pais ini’ sin nr bles oman mn conto Ceonorica de histia ond inclu conesits do preletariad ede aa de classes. Apesar da semelhanga dessas ideias com o marxismo, a influéncia de Sein sobre Ker Maré incerta 46 Fexousano Lassa ie Afastar os tatores reais ¢ efetivos do poder dentro do pais, intrometer-se no Poder Executivo, imiscuir-se nele tanto e de tal forma, socava-lo ¢ transformé-lo de tal maneira que ficasse impossibilitado de aparecer como soberano perante a nagio. [isso 0 que quiseram evitar, era o que importava ¢ urgia a fim de que mais tarde a Constituigdo eserita nao fosse mais alguma coisa que um pedago de papel" E como ndo se fez a seu devido tempo, a Assembleia Nacional foi-the impossivel organizar tranquilamente a sua Constituigao por escrito; vendo entio, embora tarde, que o Poder Executivo, ao qual tanto respeitara, em vez de pagar com a mesma moeda, deu-lhe um empurrdo, valendo-se daquelas mesmas forgas que, com delicadeva, a Assemblcia conservara, Segunda Consequéncia Suponhamos que a Assembleia Nacional nio tivesse sido dissolvida, ¢ que ela tivesse chegado a seu fim sem contratem- pos; isto é, conseguir 0 estudo ¢ votagtio de uma Constituigio para o pais. Seisso tivesse acontecido, que modificagdes teriam ocor- Fido na marcha das coisas? Possivelmente, nenhuma; mais categérico: absolutamente nada, € a prova esté nos fatos. E certo que a Assembleia Na- cional foi dissolvida, mas o proprio rei, recolhendo a papelada postuma da Assembleia Nacional, proclamou em 5 de dezembro Nota do Tradutor: Em sentido contririo, apregoa Konrad Hesse que a Constituigdo nao configura, portanio, apenas expressiio de um ser, mas também de wn dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condigdes fiticas de sua vigéncia, particularmente as forgas sociais ¢ po- liticas. Gracas 4 pretensdo de eficicia, a Constituigéo procura imprimir ordem ¢ canfarmacdo 4 realidade politica ¢ social (A Forga Normativa da Constituigdo. Tradugio de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre, ed Fabris, 1991, p. 15), O.QuEE Uma Corsi 47 de 1848 uma Constituigdo que a maior parte de seus pontos correspondia exatamente iquela Constituigao que da propria Assembleia Constituinte podiamos esperar. Essa Constituigao foi © priprio rei quem a proclamou; no foi obrigado a accité-la; nao the foi imposta; decretou-a cle voluntariamente, desde o seu monumento de veneedor. A primeira vista, parece que essa Constituigdo, por ter nascido assim, teria de ser mais vidvel e vigorosa. Mas infelizmente nao foi assim, Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma ma- cicira ¢ segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta arvore é uma figueira”. Bastard esse papel para transformar em figueira © que é macieira? Nao, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos ¢ conhecidos, por uma razo de solidariedade, confirmassem a inscrigdo existente na arvore de que 0 pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo (© que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fibula produzindo magais e nao figos. Igual acontece com as constituigdes. De nada servird o que se escrever numa folha de papel, se no se juistifica pelos fatos reais ¢ efetivos do poder®® Com aquela folha de papel datada a 5 de dezembro de 1848. 0 rei, espontaneamente, concordava com uma porgao de concessdes, mas todas elas iam de encontro a Constituigao real: slo €, contra os fatores reais do poder que o rei continuava a por, integralmente, em suas mos. E aconteceu o que forgosamente devia acontecer. ® Nota do ‘Tradutor: Na nossa rcalidade, a unio constitui-se em estado democratico de direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo politico. Além disso, todo o poder emina do povo, {que o exeree por meio de representantes eleitos ou diretamente (art, 1° da Constituigao da Repitblica Feserativa do Brasil) 48 Femomaso Lassante Com a mesma imperiosa necessidade que regula as leis fisicas da gravidade, a Constituigdo real abriu camino, passo a passo, até impor-se & Constituigao escrita. Assim, embora aprovada pela Assembleia encarregada de revé-la, a Constituigao de 5 de dezembro de 1848 foi modifi- cada pelo rei, sem que ninguém o impedisse, com a célebre lei elcitoral de 1849, que estabeleccu os trés grupos de cleitores 4 expostos anteriormente. A Camara criada a raiz dessa lei eleitoral foi o instru- mento por meio do qual podiam ser feitas na Constituigao as reformas mais urgentes, a fim de que o rei pudesse jurd-la em 1850 e, uma vez feito 0 juramento, continuar a deturpi-la, a transformé-la sem pudor. Desde essa data niio passou um tinico ano sem que ela fosse modificada. Nao existe bandeira, por muito velha ¢ venerivel que seja, por centenas de batalhas que tenha assistido, que possa apresentar tantos buracos e frangalhos como a famosa Carta Constitucional prussiana. Terceira Consequéncia Quando os meus ouvintes souberem que um partido politico tem por lema o grito angustioso “de cerrar fileiras em torno da Constituigdo!”, que devemos pensar? Fazendo essa pergunta, nao fago um apelo aos vossos de- sejos, no me dirijo & vossa vontade. Pergunto, simplesmente, como a homens conscientes: Que devemos pensar de um fato desses? Estou certo de que sem serdes profetas respondercis prontamente: essa Constitui¢ao esté nas iiltimas; podemos considerd-la morta, sem existéncia; mais uns anos e ter dei- xado de existir. 0a £ Uma Coxsmivigio? “9 Os motivos sdo muito simples. Quando uma Constituigdo escrita responde aos fatores reais do poder que regem um pais, no podemos ouvir esse grito de angdstia. Ninguém seria capaz de fazé-lo, ninguém poderia se aproximar da Constituigao sem respeita-la; com uma Constituigio dessas ninguém brinca se ndo quer passar mal Onde a Constituigao reflete os fatores reais e efetivos do poder, nao pode existir um partido politico que tenha por lema o respeito & Constituigao, porque ela ja é respeitada, & invulneravel. Mau sinal quando esse grito repercute no puis, pois isso demonstra que na Constituigao escrita ha qualquer coisa que nao reflete a Constituigo real, os fatores reais do poder, E se isso acontecer, se esse divércio existir, a Constitui- Gio escrita esta liquidada; nao existe Deus nem forya capa de salvacla, Essa Constituigao poderd ser reformada radicalmente, virando-a da direita para a esquerda, porém, mantida integral. mente, nunca, Somente o fato de existir o grito de alarme que incite a conservé-la é uma prova evidente da sua caducidade para aque- Jes que saibam ver com clareza, Poderdo encaminha-la para a dircita, se 0 governo julgar necesséria cssa transformagao para opé-la & Constituigao escrita, adaptando-a aos fatores reais do poder, isto é, ao poder organizado da sociedad. Outras vezes €0 poder inorgdnico desta que se levanta para demonstrar que € superior ao poder organizado. Nesse caso, a Constituigao transforma-se virando para a esquerda, como anteriormente © tinha feito para a dircita; mas, num como noutro caso, a Constitui¢ao perece, esti irremediavelmente perdida, niio pode salvar-se. Conciusors Priricas Se os que me ouviram nao se limitaram a seguir e meditar cuidadosamente as minhas palavras, senao que, levando adiante as ideias que as animam, encontrar-se-do de posse de todas as normas da arte e da sabedoria constitucionais Os problemas constitucionais nao so problemas de direito, mas do poder; a verdadcira Constituigao de um pais somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele pais regem, ¢ as constituigGes escritas nao tém valor nem sto duraveis a nao ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis ai os critérios fundamentais que devemos sempre lembrat. Nesta conferéncia quis demonstrar de um modo espe- cial o valor que representa o exército como fator decisivo e importantissimo do poder organizado; mas também existem outros valores, como sejam as organizages dos funcionarios piiblicos etc., que podem ser considerados também como forgas organicas do poder de uma sociedade. Se alguma vez.os meus ouvintes ou leitores tiverem de dar seu voto para oferecer ao pais uma Constituigao, estou certo de que saberdio como devem ser feitas essas coisas ¢ que nao limitardo a sua intervengao redigindo e assinando uma folha de papel, deixando incdlumes as forgas reais que mandam no Estado. - E no se esquegam, meus amigos, os governos tém ser vidores praticos, nao retoricos, grandes servidores como cu os desejaria para 0 povo.

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