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Beatriz Kushnir Mestre em Historia pela Universidade Federal Fluminense € doutoranda em Historia pela Unicamp. Ass polacas cariocas: mulheres judias prostitutas e suas associacées de ajuda Do QUE SE ESTA TRATANDO “6 h, vocé quer saber quem somos nés* ? Fol assim que come- sou 0 encontro com Zelda, uma senhora octogendria que velo dar corpo € voz.a uma pesquisa. Deparei- me, literalmente, com Zelda € sua irma, Celina,’ em um domingo de sol no final de setembro de 1995. Elas, como a maio- tia dos Judeus, estavam vivendo um €5- paco de tempo — de dez dias — conside- rado dos mais sagrados € terrivels para a religiéo Judaica. £ entre o Rosh Hashana (Ano Novo) € 0 fom Kipur (Dia do Perdao) que, segundo este preceito, 0 livro da vida € reescrito € onde “erros’ podem ser dele apagados. f neste periodo, também, que mitua 0 varios cemitérios judeus por todo 0 mundo ficam lotados. Mantendo este costume, tais senhoras estavam visitando seus mortos. Porém, estes es- téo em um lugar onde as visi- tas so raras ¢ onde nao se realizam mais sepultamentos desde 1970, por mais que ainda haja espaco. Zelda ¢ Celina encontravam-se no subiir- bio carioca de Inhatima, mais precisamen- te ao pé do morro da favela do Rato Mo- Ihado, em um cemitério onde estao en- terrados um total de 797 corpos, entre homens, mulheres € criancas. Mais que em outros cemitérios judeus, uma regra moral impbe aquele local siléncio € iso- lamento, ‘Acero, Yo de doco, 9, 1-2. 137-264, jankien 1908 ~ pg. 137 A exctusdo social deste espago € das pes- soas que ld estao possuei algumas justi- ficativas. Para o escritor judeu e Prémio Nobel de Literatura, Issac Bashevis Singer, um tradutor do contemporaneo mundo deste grupo na Europa Oriental, esta se- paracao demarca polaridades — positiva © negativa — dentro de uma comunida- de, Tal divisdo foi por este autor retrata- da mais claramente apenas no seu alti- mo trabalho. Escrevendo sobre 0 mundo iidich, Bashevis Singer resolveu mergu- Ihar, no seu livro Escéria,? mesmo que nao profundamente, sobre uma parte da comunidade judaica considerada até hoje como um tabu. Nesta obra, 0 autor volta velha Varsévia do inicio do século por Intermédio de um judeu potonés que imi- grou para a Argentina e retornou a terra natal saudoso € nostalgico. Singer, neste texto, € punitivo com seu personagem. Ao narrar sua trajetéria € o desenhar como um céften, semethante a muitos outros judeus da época, 0 condena a prisao. Algo que nao era nem a regra nem a excegao.* Neste sentido, esté se tratando, tanto na ficgo criada por Singer como nesta re- Mexao, de uma questao que até hoje de! xa marcas profundas em certos setores da comunidade judaica mundial: a existén- cia tanto de mutheres judias prostitutas jé na Europa ¢ sua posterior migragao Para as Américas € 0 Oriente, como tam- bém do oficio da caftinagem exercido por homens € mulheres judeus. Algo que fi- cou conhecide como trafico de escravas brancas € que recebeu abordagens tanto Pe. 130, janes 19908 histéricas* como na literatura mundial.> As duas pontas da questéo — a existén- cia de prostitutas judias € de caftens ju- deus —, portanto, séo alvo de siléncio € segredo. Tornou-se vergonhoso para uma parcela da comu lade judaica relembrar tais episddios, Esquecidas por esta parte do grupo judeu, imortalizadas em diferen- tes formas de narrativa — ficcional ou nao las destas mulheres tiveram jo em distantes aldeias da Europa Ori- ental ou mesmo nas suas grandes cida- des como Odessa, Lodz. Varsévia etc; em um tempo largo de meados do século XIX as trés primeiras décadas do século XX. E, certamente, terminaram ou na propria Europa — Paris, Londres —, ou nas Amé- ricas — Nova York, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Sao Paulo. Santos, Montevidéu.... —, ou na Africa, india, China etc. De fato, em qualquer lugar onde as leis de imi- gracdo ainda estivessem flexiveis ¢ o mer- cado para a prostituigao comportasse desejasse tais moga: $s "exdticas’ judias da Europa Oriental que aqui ficaram co- nhecidas como polacas. Estas trajetorias se inscrevem, portanto, em um tempo de transi¢ao: da passagem entre dois séculos, da adequacao entre a modernidade que 0 ‘novo’ mundo inspira € a pobreza € a persequicao rel que o velho’ mundo esta associado. Nes- te territério de sonhos — como o que as Américas insinuam —, onde muito suor, trabalho € pouco dinheiro trariam fortu- nas rapido. Do ‘velho’ mundo, contudo, tradigdes se- culares e inscritas nas normas deste gru- po €tnico permaneceram e foram levadas por seu imigrantes para as terras prome- tidas. No bojo destes costumes, a maio- tia dos relatos de época € mesmo as pro- dug6es mais recentes* enfocam o fend- meno da migrac4o de mulheres judias € suas atividades junto ao baixo meretricio, reforcando uma nogao que vitima tais his- torias. Por este olhar, meninas engana- das so obrigadas a se prostituir. ameagadas por homens sem escriipulos que 6 as querem enquanto sao sindni- mo de dinheiro. Para uma maior clareza da situacdo real destas mulheres, é preciso, no entanto, nao esquecer de alguns fatores: 1°) a prostituigao entre mulheres judias ainda na Europa Oriental é um episédio conhe- cido. © nimero de bordéis gerenciados por judeus e freqiientados por judias esta inclufdo em censos que destacavam sua hegemonia;’ 2°) a miséria € as persequi- ges aos judeus — os pogroms — obri- garam a migracéo desta comunidade. Nesta leva vem o judeu trabathador urba- no, mas também vém todas as pessoas deste grupo étnico que j4 nao possuiam esperancas de trabalho e de uma vida melhor na Europa Oriental; 5°) 0 peso do dote no ato do casamento dentro deste grupo exclufa mulheres pobres de uma ascensao econémica via matriménio. A Importancia de casamentos entre os membros da mesma religido cunhou um Personagem folclérico: os agenciadores de casamentos, Estas figuras, que podi- am ser homens ou mulheres, contactavam 0s rapazes judeus solteiros nas Américas, mandando-thes fotos das pretendentes acertando 0 negécto — casando as meni- nas. Muitas narrativas, ficcionais ou nao, associam 0 tréfico a este comércio do matriménio. A pobreza das familias im- pedia que um maior controle sobre os destinos de seus membros pudesse ser exercido. Assim, muitas sabem 0 que vai acontecer, € ‘optam’ por tal vida: 4°) a falta de Instrucao € 0 despreparo para 0 mun- do fabril as fizeram participar do mundo de trabalho possivel; 5°) quando chega- vam as Américas, sdo intimeras as hist6- rias que dao conta de tentativas salvacionistas. Segundo estes relatos, membros da comunidade judaica se co- locavam nos portos para avisaras mocas que tais promessas de casamento pode- riam ser falsas € que seus destinos seri- am 05 prostibulos. Isto porque, havia a crenga de que estas vinham sem saber 0 seu real destino, Contudo, a vida dificil de ambos os lados da comunidade judai cae a auséncia de mecanismo desta par- cela oficial em oferecer uma alternativa melhor a estas mocas, parece nao ter con- seguido frear 0 fluxo de mulheres judias que se dirigiram para a prostituicdo. Nao bastava 36 avisar. Certamente, 0 conjunto de historias de vida possiveis de se encontrar € propor- cional ao numero de pessoas que vivenciaram este tempo. Néo ha como caracterizar uma tnica trajetoria ¢ identificd-la como modelar. Apenas tra- Acer, ode Sane 9, 1-2. 197-184, jnkler 1996 pag 150 gos de semelhanga as unem a um con- texto maior. No fim das cohtas, porém, 0 que ficou foi um grande sentimento de Tetaliagao € isolamento do lado ‘positive’ da comunidade judaica para com 0 seu lado menos nobre. Para Bashevis Singer, portanto, os mortos que Zelda € Celina estavam reverenciando séo os exemplos do que ele, traduzindo um pensamento do interior desse grupo étnico, denomi- naria de escoria da comunidade judaica carioca. : No subtrbio de Inhaama, no Rio de Ja- neiro, encontra-se 0 primeiro cemitério Judeu desta cidade. Fundado em 1916, ali esta enterrada a maior parte de uma co- munidade especifica — homens e mulhe- tes judeus cuja ocupagao centrou-se no mercado da prostituigéo estrangeira ow como prostituta ou como caftina, ou em ambos os setores. No ambito dos trabalhos histéricos que se dedicaram a esse fendmeno no Brasil, as andlises se circunscreveram ou ao pa- norama da expulsao de estrangeiros pelo exercicio da caftinagem,* ou estavam pre- ‘ocupadas com 0 universo do prazer no baixo meretricio, seus cédigos € a atua- Ao reguladora das instituigdes médicas, policiais € juridicas sobre este.” Assim, € © espaco publico o objeto de andlise. Sugiro aqui uma inversdo no olhar. A par- r da metéfora de um baile de mascaras, dirigirei a reflexao deste episédio por uma 6tica interna." A singularidade da inves- tigagao a que me propus, centra-se em compreender o universo destes homens paetH0,Janider 1998 01 a € mulheres por uma percepgao dos seus mundos particulares, buscando os meca- nismos de sociabilidade e solidariedade tecidos ou refeitos pelo grupo, a partir desta vivencia da exclusdo social e étnica a que foram submetidos. Assim, a ten- ao desse estudo foi a de perceber as re- des de sociabi lade desenvolvidas no in- terior deste espago marginalizado. Ou seja, seu mundo privado, Para tal, a reflexdo de Maffesoli quanto & problematica das méfias tornou-se funda- mental.!! Para o autor, as regras destes organismos buscam 0 refazer de lagos quando a ‘sociedade de base’ esta em crise. Portanto, no interior de qual- quer corpo social, inclusive € principal- mente das mafias, a nogéo de coagula- cdo torna-se capital. A partir desse con- ceito, nao existe a auto-identi agao como outsider, pois todos fazem parte do conjunto. . > E claro que pode-se distinguir o fenéme- no da mafia em dois polos: a) sua organi- zagao violenta € b) uma ‘atitude mafia’, A utilizada por este trabalho vinculou-se ao item ‘b’, onde 0 todo ¢ as partes tem cada um 0 seu papel: onde a vida em comuni- dade tem o mérito de possibilitar a cada membro uma participacao no coletivo; € onde a solidariedade € a esséncia do gru- po. A percepcdo da ‘grande familia mafiosa’, que néo necessariamente € vio- lenta, mas, sim, 0 locus da protecao e da identificagao, torna-se a imagem por ex- celéncia. No caso especifico deste estudo, tem-se gl um grupo que redine as duas caracteristi- cas do desenraizamento — serem imi- grantes © marginais sociais, Fazendo, por- tanto, das nogées de protecao e solidarie- dade a costura que une as entranhas deste espaco € permite sua compreensao. nes- te sentido, € no interior deste convivio social 0 local privilegiado para se perce- ber a necessidade de preservar uma ori- ginalidade e uma identidade cultural en- quanto imigrantes, autoprotegendo-se enquanto excluidos tanto do social — da cidade — como do seu grupo étnico. A necessidade de sair da exclusdo e de auxiliar uns aos outros fez com que, em cada cidade onde chegassem, as polacas fundassem sociedades de ajuda mitua. Assim, esta pesquisa buscou apreender a vida no interior deste espaco associativo. © € na profundeza deste universo que os convido a penetrar. O MUNDO PRIVADO DE MULHERES PUBLICAS: SUAS ASSOCIACOES DE AUTO AJUDA, Denominacao: Religiosa L..] com sua sede rua Luis de Camées, 68. sobrado. So seus fins: .] fundar uma sinagoga (sic] nesta capital e neta praticar © observar todas as prescri- ‘$605, ceriménias ¢ atos [sic] da religisio {sraelita; manter uma escola primaria, gratuita, para educacao € 0 ensino mo- ral ¢ intelectual de criangas de ambos 08 sexos desprotegidas € da religiso israclita; socorrer as suas associadas, quando enfermas; [...] fazerem as suas associadas que vierem a falecer nesta capital 08 seus funerais, {.,.] segundo determina a religido Israelita: [...] 86 gozarao € terdo direito aos socorros © beneficios [...] as assocladas que esti- verem quites de suas mensalidades seis meses depois de suas admissdes © de estar instalada e funcionando reqular- mente a Associagao.* A partir do trecho acima, tem-se as dire- trizes fundantes que regeram por mais de sessenta anos uma peculiar sociedade ci vil nesta cidade. A Associacao Beneficen- te Funerdria e Religiosa Israelita (ABFRI) foi instituida no dia 10.10.1906 € regis- trada por sua 1® secretaria, Matilde Huberger, junto ao 1° registro especial de titulos € documentos." Este’ato marca a institucionalizacao de uma agéo filantro- pica, socializadora e autoprotetora entre mulheres, ¢ também entre homens — como se notard mais tarde —. que parti- ciparam do comércio € da pratica da pros~ tituigdo estrangeira no baixo meretricio desta cidade, e que tinham um elo em comum, essencial para eles: serem todos judeus. Esta associacdo, contudo, nao é a mais antiga estrutura de caridade fundada por tais pessoas. Ao que parece, a pratica era recorrente em cada cidade onde existiram ¢/ou para onde migraram. £, assim, mui- to anteriores a entidade carioca devem ser as que haviam ainda na Europa Oriental — lugar de onde a maioria destas mulne- Reeve, Wo de neo, ¥. 9,1 1-2, 1S7-1OA, jones 1956 «pag 141 res vieram. Nesta pesquisa, todavia, fo- ram localizadas mais quatro outras asso- ciagées semelhantes. Todas no ‘novo mundo’, Destas. a mais remota data de 1896 € foi fundada na cidade de Nova York (EUA) com o nome de New York Independent Benevolent Association (IBA). Uma segunda associacao, talvez a mais famosa delas, foi instalada no mes- mo ano da ABFRI na cidade de Buenos Aires, com o nome de Sociedade de Aju- da Matua Varsévia, que posteriormente se peg, janoer 1998 dividiu, formando a Sociedade de Ajuda Mitua Zwi Migdal e a Asquenazim. No Bra- sil, foram encontradas mais duas: a Soci- edade Feminina Religiosa € Beneficente Israelita (SFRBI), fundada na cidade de ‘S&o Paulo, em 1924, € a Sociedade Bene- ficente Israclita de Santos, de 1930." Pelos extratos dos estatutos localizados, parece que todas estas associacées ti- nham 0 mesmo objetivo: estabelecer ¢ manter uma organizagao filantrépica que proporcionasse aos seus sécios uma vida religiosa Judaica e, portanto, reconstruisse suas identidades enquanto membros de um mesmo grupo étnico. Além do que, esta- belecendo lacos minimos de solidariedade em momentos dificeis, como de doenga € morte. Auxiliar os necessitados de sua co- munidade e se constituir como um grupo, foram as grandes metas destas entidades. Optei aqui por analisar a comunidade de polacas carioca por dois motivos: primei- ro, porque nao existe, até entao, outra re- flexao sobre esta comunidade e, segundo, porque grande parte da documentacao que a institucionalizou — seus estatutos — es- téo em depésito no Arquivo Nacional. A trajet6ria da ABFRI foi longa, existindo oficialmente por 62 anos. Idealizada basi- camente por mulheres, teve periodos de administragao mista, Pode-se, entao, divi- dir seu percurso em trés periodos. © pri- meiro compreende o intervalo da sua fun- dagao até 1914; 0 segundo vai de 1915 a 1932, onde homens e mulheres coorde- nam, em postos delimitados, as atividades associativas: € 0 terceiro, de 1932 a 1968, desenha a ascensao e declinio desta enti- dade. Sera no primeiro momento, até 1914, que se perceberd os alicerces institucionais sen- do montados. Contudo, o ato de fundagao, desta instituigao, em 1906, néo pode ser apreendido como o da chegada de polacas A possibilidade da organizacao destas mulhe- ao Rio de Janeiro, ou mesmo ao Bra’ res nos primeiros anos do século XX apon- ta para um namero de pessoas envolvidas nesta atividade que, certamente, € antes or a 1906. Neste sentido, de quando é a chegada das primeiras potacas cario- cas? © ano de 1867 € a data mais freqiientemente apontada para os pri- meiros registros destas mulheres no pa Janeiro, devido ao porto, fosse um pon- (5 Por mais que a cidade do Rio de to de desembarque, nem todas ficavam por aqui. Levando-se em conta esta datagao, quando a ABFRI foi instituida, esta comunidade organizada de manei- ra informal ja habitava a cidade por qua- se quatro décadas. Neste sentido, o ritual de admissao dos associados da ABFRI é uma porta de acesso para percorrer e conhecer os la- birintos daquele universo © compreen- der como se organizou. Para ser mem- bro, portanto, requeria-se: ) a apresen- tagao feita por um socio antigo ¢ em pleno gozo de seus direitos, ou seja, quite com suas mensalidade: b) nao ser invalido € estar em perfeita satide. ja que o carater assistencialista da entida- de necessitava primeiro 0 auxilio dos sécios, antes que estes precisassem do socorro da entidade; caso contrario, a acumulagao de recursos seria impossi- vel. E, ¢) professar a religido Judaica. Hierarquicamente, a sociedade se esta- beleceu entre sécios fundadores, con- tribuintes e remidos. E foi basicamente com esse perfil majoritariamente femi- nino que a ABFRI foi dirigida até dezem- bro de 1914, quando se realizou uma reorganizacao da entidade, definindo-se een, Ro de Janeiro. ¥. 9.97 2p. 137-164, andes 1996 - pag 143 um novo estatuto. Desse recomego € das possiveis marcas deixadas pela administracao feminina an- terior que pudesse justificar tais altera- ges nao foi possivel enconfrar qualquer vestigio. Localizou-se, contudo, © novo estatuto e duas publicagées no Diario Ofi- cial. Assim, em 16.1.1915, este periédi- co indica a existéncia de uma sociedade denominada Associacao Beneficente Tu- nerdria € Religiosa Israelita, o que da uma idéia de reinstalagdo. Uma semana de- pois, em 23 de janeiro, fol publicada uma ratificagao onde menciona-se que a soci- edade “[...] seré dirigida por um presiden- te, um vice-presidente, um 1° um 2° se- cretério, um 1° € um 2° tesoureiro, um procurador e trés delegados constituindo © consetho fiscal”. danga um capitulo no novo estatuto onde se estabelecem os direitos dos associa- ‘Soma-se a esta mu- dos. Nesse, € exposta a grande alteracao da ABFRI a partir deste momento, quan- do se institui que ] para os cargos da diretoria nao poderdo ser votadas as as- sociadas”, Assim, a ABFRI passa a ser di- vidida em duas alas: uma administrativa € outra assistencialista, A primeira per- tence a parte masculina e a segunda era dirigida pelas mulheres e seria composta por “|...] uma presidente, uma vice-pre- sidente € uma secretéria da extinta soci- edade além de oito superioras de atos finebres*. As funcdes femininas, neste momento, resumiam-se a realizar enter- ros © socorres hospitalares para as sécias, pois “|...] Seréo concedidos os mesmos favores aos sécios do sexo mas- culino, caso isto [seja] resolvido pela di- retoria da Associa sem a Intervencao das diretoras dos auxilios do sexo femi- nino®, Curlosamente, as alteragées da socieda- de sao contemporaneas a instalagéo de uma legislacéo que orientou a existéncia de sociedades civis no pais. Em janeiro de 1916, a partir da formulagao do codi- go civil, a lei 5.071 passou a reger tai [Mogeto ge ticket. Este fol um dos ttimas recursos que a Sociedade recebev. 7 - | entidades. Nesta orientacao, contudo, nao ha indicios que justifiquem as modifica- goes executadas pela ABFRI. Mas, a nova legislacao, certamente, obrigou a uma reestruturagao das entidades de mesmo fim de um modo geral. A partir deste novo quadro da Associa- Ao, algumas perguntas podem ser for- muladas: quem faz caixa da sociedade? Por que as sécias aceitam tal situacao? Seriam os homens seus caftens € no in- terior da ABFRI se reproduzitia 2 violenta relacdo, narrada nas obras de ficco, que regularia as atitudes entre as prostitutas © seus exploradores? Ao certo, jamais se saberd. Partindo, porém, do conceito de ‘atitude mafia’ desenvoivido por Maffesoli € que instruiu o corpo teérico deste tra- batho, compreende-se que a vinculagao estabelecida no cerne daquele organismo enfatiza uma convivéncia onde 0 todo ~ © coletivo — e as partes — cada sécio — tém, cada um, o seu papel, mas uma tini- ca fungao: a colaboragao entre os mem- bros. Fortanto, seja qual for o grau de harmonia e/ou violéncia desenvolvida no contexto de uma sociedade de ajuda mi- tua como esta, os envolvidos estabelece- ram, com certeza, uma dinamica que pos- sibilitou o viver social. Cada participante queria ter a sensagao € os beneficios do “fazer parte’ de um grupo €, por isso, de- sejava associar-se a uma instituigao como esta, Além do que, nesta ‘atitude’ € fun- damental a idéia de ‘familia’, Assim, a ABFKI deve ser encarada como uma enti- dade composta por homens e mulheres casados entre sie que reproduzem no seu interior as regras sociais vigentes, onde © homem era 0 ‘cabega’ do casal. Sendo estas associacées de ajuda matua atos coletivos entre homens € mulheres. mesmo quando ambos nao eram sécios contribuintes recebiam auxilio como um casal, caso necessitassem. Mas, certa- mente, o ntimero majoritario fol sempre © feminino. Isto fica claro tanto no Livro de registro das mensalidades dos sécios, que expée a receita da entidade, como no cartéo de matricula localizado e que per- tencia a um sécio."* Assim, dos 1.050 nomes encontrados tan- to no livro de registro das mensalidades como no livro de registro dos ébitos ocor- ridos nos mais de sessenta anos da ABFRI, apenas 19% eram do sexo masculino. Neste sentido, a chegada de mulheres sempre foi maior que a de homens, € muitas vém casadas, ou se casam aqui com judeus ou nao, ou estabelecem rela- 6es informais."” © niimero pequeno de homens no inte: or deste grupo faz com que se repense, pelo menos, dois aspectos: a) a suposta relagao de violéncia, retratada nas obras ficcionais, e que regularia a vida da pros- tituta e seu céften, ja que este, muitas vezes, € 0 seu marido € € visto pelo cor- po social como o seu explorador. £, b) a de maneira mais humana e préxima aos pa- necessidade de que se enxergue aqui drées sociais vigentes, 0 cotidiano deste mundo. Entao, nada tem de vanguardista ou de resisténcia uma entidade como ‘Acer, Ro de Janek. 9,17 1-2. 197-168, ont: 196 = pan AS esta. Ela copiara o modelo assistencialista do qual seus sécios foram excluidos. Nao se pode afirmar com exatidao, toda- via, 0 motivo pelo qual, entre 1915 € 1931, a ABFRI se estabeleceu como uma sociedade mista, onde os sécios gerenciavam o patriménio. Pode-se ape- nas conjeturar. 0 grande numero de car- gos administratives € beneficentes esti- pulados pelo estatuto, ¢ a necessidade de preenché-| s. expressa, certamente, uma época bastante prospera. onde o quadro de sécios e as atividades desempenhadas deviam ser grandes. Diferente do que se poderia supor, nao houve uma ruptura entre as duas fases da soctedade, € alguns exemplos corroboram tal idéia, Em primeiro lugar, uma iniciati- va ainda da gestdo feminina teve sua concretizacao nesta etapa: a inauguragao de um cemitério proprio. Isto porque, em fevereiro de 1912, a entéo procuradora da ABPRI — Norma Pargament — encami- nhou um segundo pedido ao prefeito da cidade: para que the foase arrematado ou vendido um terreno junto ao cemitério de Inhadma, para nele ser instalado 0 cemitério da mesma Associagao a fim de all serem enterrados {sic} todos os seus associados. Em agosto de 1916, em plena etapa ta da sociedade, 0 pedido foi concedido, ¢ as vésperas do 10° aniversério da enti- dade 0 primeiro cemitério judeu da cida- de foi inaugurado, Este ato representa e corporifica 0 objetivo central de uma en- tidade como esta: a manutengdo de uma identidade étnico-religiosa. Além do que, dentro dos preceitos judaicos, os suici- das € as prostitutas devem ser enterra- dos junto a um muro interno do cemité- rio, como marca de sua exclusdo social, Assim, neste local préprio, um segundo objetivo institucional também se concre- tiza: os sdclos € sdclas desprendem-se desta marca negativa, ao nao serem dis- criminados por suas atividades em vida, ‘Ao que parece, estes homens € mulheres nao eram meros desconhecidos na cida- de do Rio de Janeiro. A inauguracao des- te cemitério recebeu a cobertura Jornalistica do A Noite." onde imagens estereotipadas se misturavam aos fatos reais. A esta matéria, soma-se a resposta do redator-chefe do jornal A Coluna, ér- gao da comunidade Judaica carioca, David J. Perez, Em um tom que condenava tais pessoas, Perez segulu a perspectiva de separar os lados da comunidade, a fim de que ondas anti-semitas e/ou moralizantes nao misturassem Jjoio e trigo. Contudo, sua sentenca definiu o comportamento do lado oficial da comunidade enquanto exis- tiram séclos da ABPRI, Para Perez € para quem ele representava, “[...] essa gente no nos pertence. Nao nos ligamos a eles. nem em vidi nem na morte; portanto, esse cemitério ficard destinado aos ‘cal- tens’ € as suas prostituta: Um segundo indicio que demonstra a no- 0 de continuidade entre as etapas da sociedade € 0 fato de varios sécios do J

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