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Psicologia-USP, S, Paulo 1(2):141-154, 1990 A PERSONALIDADE NARCISISTA SEGUNDO A ESCOLA DE FRANKFURT E A IDEOLOGIA DA RACIONALIDADE TECNOLOGICA José Leon Crochik* CROCHIK, J. L. A personalidade narcisista segundo a Escola de Frankfurt e a ideologia da racionali- dade tecnolégica. Psicologia-USP, Sao Paulo, 1(2):141-154, 1990. RESUMO: Discute a relagdo entre a ideologia da racionalidade teenol6gica ¢ a personalidade narcisista, com base nas reflexes de alguns filosifos da Escola de Frankfurt. Localiza esta relagéo historicamente de forma a explicitar algumas das transformages de certas instituigdes sociais que mediatizam a relaggo entre 0 individuo e a cultura. Investiga a possivel influéncia dessas transformag6es sobre a constituigao da personalidade. DESCRITORES: Narcisismo. Tragos de personalidade. Disturbios mentais. Autoritarismo. Arelagao entre personalidade e ideologia vem sendo estudada desde o inicio do século, por diversos pensadores que tinham como meta apreender 0 que contribui para a manutencdo de uma sociedade considerada injusta para, assim, poder pensar nas condigdes de sua transcendéncia. Desta forma, a esfera psiquica na sua dupla dimensdo irracional-racional, passou a ser enfatizada dentro de um referencial materialista-histérico, no qual antes se dava primazia as relagoes sociais de produgdo em sua contradigao com o desenvolvimento das forgas produtivas. O fracasso da revolugio socialista mundial, na década de 10, levou, segundo Jacoby (1977) ¢ Rouanet (1989), a se repensar 0 marxismo ortodoxo que percebia nos movimentos estruturais da sociedade, a base de sua virtual modificaggo. Como poderia se explicar, por exemplo, com aquela teoria, que apesar do enfraquecimento da burguesia na primeira Guerra Mundial ¢ o es- tado de miserabilidade do proletariado, este altimo nZo tomasse o poder? A explicacdo deveria ser buscada na configuragao da personalidade. Ou seja, haveria uma espécie de resisténcia psi- quica as alteracdes sociais que implicassem na emancipagao do individuo ¢ da cultura de seu estado de minoridade. O psicanalista Wilhelm Reich, segundo diversos autores (Jacoby, 1977; Marcuse, 1981; ¢ Rouanet, 1989) foi um dos pensadores pioneiros a analisar a relacao entre configuracdo psfquica ¢ estrutura social, Julgava Reich que a repressdo sexual caracteristica de nossa sociedade e exer- cida, entre outras instdncias sociais, pela familia, seria a responsdvel pela aceitagdo e submissdo as ideologias autoritérias e contrérias a felicidade do individuo, Assim, a ascengéo do nazismo na Alemanha, na década de 30, fora possivel devido a figura da autoridade repressora representada pelo pai, na qual a figura de um ditador poderia se basear. A forga da autoridade do Estado, reproduzida pela figura do pai impelia a submissao, "raison d'Etar". J4 Adorno e Horkheimer (1978), a0 contrario de Reich, expGem que a ascengao do nazismo ¢, portanto, a aceitacdo e submissao da personalidade A ideologia autoritdria, se devia ao enfra- quecimento da familia dado no periodo da Repiblica de Weimar. Com 0 declinio da figura do pai, enquanto figura de autoridade, a formagao do Ego € do Superego do individuo foi prejudicada, facilitando surgimento de um lider que possibilitasse mais a imitag4o (mimésis), do que a iden- * Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. 141 Crochil, .L. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 tificagdo. O avango social teria levado a uma regressdo dos ideais do Iluminismo de individuo e cultura, A autonomia do individuo possibilitada pelo conflito com o poder, perdeu-se na aceita- do cega deste. E a idéia de uma cultura humana, calcada na universalidade e solidariedade entre 0s homens guiados pela razdo € substitufda por uma idéia de cultura natural, calcada na irracio- nalidade da raca ¢ baseada na forga. Assim, a esfera psiquica passa a espelhar a sua anulacdo frente a irracionalidade das forgas. objetivas. Exige-se ndo somente a concordancia com a ordem social, mas a anulagéo de todo e qualquer espago psiquico dado a contestacdo. A vigilancia ndo deve mais se dirigir ao exercicio do poder social, mas aos desejos individuais que ndo se coadunam aquele. Na década de 40, ao final da 2? Guerra Mundial, havia preocupag4o nos Estados Unidos com a predisposi¢4o dos americanos em aceitar uma ideologia anti-democrdtica, e mais especifi- camente, a ideologia fascista. Adorno et alli (1965) realizaram um estudo sobre a personalidade autoritéria (1), que estaria predisposta a aceitacdo ¢ reprodugdo daquela ideologia. A hipstese do trabalho dos autores, era a de que a personalidade é a mediadora entre a estrutura social € a ideologia, de forma que a personalidade autorit4ria se relacionaria com 0 idedrio polftico-eco- nOmico conservador ¢ a personalidade ndo autoritéria com 0 idedrio politico definido como li- beral. Os autores conclufram que além da relagéo esperada, havia também pessoas com persona- lidade nao autoritdria que endossavam os ideais conservadores €, com menor freqiéncia, pessoas com personalidade autoritéria que defendiam alguns dos ideais liberais. Marcuse (1981), na década de 50, explicita de forma mais enfética, que a mediagio entre 0 individuo ¢ a totalidade, dada antes pela famflia, enfraqueceu, fazendo com que o individuo seja socializado diretamente pelo todo. No periodo do capitalismo concorrencial, o Ego elaborava 0s desejos do id ¢ os submetia a apreciagao do superego ¢ a realidade externa; a sublimagao tinha importante papel na constituicgdo do individuo e da cultura. No capitalismo dos monopélios, em contraste, 0 controle d4-se diretamente sobre a consciéncia, através da liberagao dos instintos, ou seja, a repressdo se da pela liberdade instintiva, naquilo que Marcuse denominou "dessublima- do repressiva". Com esta modificacdo, Eros, 0 construtor da cultura transforma-se em sexuali- dade submetida aos valores do mercado. Se 0 individuo auténomo tinha dificil existéncia no ca- pitalismo liberal, agora, a questao da autonomia nao é mais colocada, ¢ a Industria Cultural € os especialistas dao os modelos a serem imitados. Se, antes, no pensamento de Adorno, sublinhamos a aniquilacdo do individuo na ascengio do nazismo, com o estudo sobre a personalidade autoritéria e a andlise de Marcuse, deparamo-nos com a relagio entre o fascismo ¢ 0 capitalismo, ou melhor, entre 0 fascismo € 0 avango cego das forgas produtivas, que mantém as relagdes sociais de producdo. A submissao ao aparato tecno- logico nao € independente da submissao aos lideres fascistas; ambos impelem ao fim da subjetivi- dade, pois tal subjetividade reage aos ditames culturais. Mas, mais do que isso, segundo Adorno (1967), o individuo € determinado pela totalidade ¢ ¢ sua antitese; a diferenca entre individuo e sociedade, na origem, é social. No entanto, uma sociedade que regride a barbérie anula esta di- ferenciagao. Adorno (1967, 1968) d4 indicios sobre a passagem da estrutura autoritéria da persona- lidade para a narcisista, como forma de ajustamento social requerido. A personalidade autoritéria traz consigo a submissdo cega a autoridade ¢ uma violéncia, também cega, contra aqueles que de alguma forma neguem aquela. J4 a personalidade narcisista, com um ego enfraquecido, se guia por est{mulos externos, quase sem ter consciéncia da distingao entre mundo interno e mundo externo. A personalidade narcisista tem parentesco com a personalidade autoritéria: ambas evitam contactos com outros egos, ¢, desta forma, contacto consigo mesmas. No caso extremo da perso- (1) Ousodo termo ~ personatidade autoritéria nao € pienamente adequado ao estudo desses autores. Embora ele se aplique ao tftulo do livro, no qual relatam ¢ interpretam o seu trabalho, refere-se especificamente a um tipo de score alto nas escalas de antisemitismo, etnocentrismo e, principalmente, fascismo que desenvoiveram. Os au- tores encontraram outros tipos de personalidade de esoore allo naquelas escalas que, juntos, formariam uma Sindrome. Da mesma forma, autores descrevem tipos de personalidade 1d0s por escores baixos, alguns dos quais com uma estruturagdo semelhante aos sujeitos de escore alto. Utilizaremos neste trabalho, 6 temo {pergonalidade auloritriay para expressar os tipos de escore allo. otermo* personalidad ndo autor cexpressar os tipos de escore 142 Crochil, J. L. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 nalidade autoritéria, denominado "manipulador" , ¢ no narcisismo, hd o isolamento de afetos que, se conscientizados, trariam ansiedades reprimidas a tona. Nos dois casos, 0 Ego quase néo media mais os conflitos entre o id ¢ superego ¢ entre o id € 0 mundo externo, pois com 0 enfraquecimento da familia, 0 individuo passa a ser socializado diretamente, como acentuado por Marcuse, o que impede a diferenciagao. Com esta ndo diferenciagao, Lasch (1983) aponta para a perda da nogio do tempo e, com isso, a impossibilidade de pensar em uma outra ordem social que contemple a liberdade e a justiga. Seo narcisismo € a personalidade adequada a sociedade atual ¢ se, como apontam Marcuse (1982) ¢ Habermas (1983) a ideologia da racionalidade tecnolégica € propria desta sociedade, entdo, como se dé a relacdo entre ambas? O objetivo deste artigo € dar alguns elementos para refletir sobre esta relagdo. Cumpre-nos, num primeiro momento, delimitar os termos "personalidade" e "ideolo- gia" , mesmo que de forma suméria. O termo personalidade é entendido, neste artigo, como uma série de caracteristicas individuais que s4éo produtos de um conjunto de forgas psiquicas que atuam, ora conjuntamente, ora antagonicamente no individuo e nas suas relagdes com 0 meio. Estas caracteristicas significam uma solugéo de compromisso entre os objetivos para os quais tendem aquelas forcas ¢ as possibilidades de suas realizagdes. O enquadre desta conceituacao é freudiana, de forma que as concepgdes de desenvolvimentos psicossexuais e das pulsdes e suas representantes estdo nele presentes. O termo idcologia € definido, neste trabalho, como um conjunto de valores, idéias, ideais cuja fungio principal é a de obscurecer, ou melhor, encobrir as contradig6es existentes entre as Telagdes de producao ¢ as forcas produtivas ¢ as existentes nas proprias relagées de producao. Obviamente, estes dois tipos de contradigdes ndo s4o independentes. Originada nas condig6es concretas da vida social, a ideologia nao € mero reflexo da aparéncia destas condig6es, mas criagdo ilus6ria sobre elas (Chaui, 1981). Neste sentido, a ideologia guarda uma relativa autonomia dos processos de producao, mantendo com estes uma relagao dialética, ao negarem-se e afirmarem-se simultaneamente, ou seja, ela ndo é somente reprodutiva, produz também: é justificativa da apa- réncia. Se, o enquadre dado ao termo personalidade ¢ freudiano, o do termo ideologia ¢ marxiano, € cabe-nos explicitar que o enquadre deste artigo é 0 da teoria critica, Neste sentido, 0 conceito de ideologia adotado sofre modificagbes na hist6ria, tanto 0 conceit, quanto 0 seu objeto. Ador- no e Horkheimer (1978) confrontam a ideologia liberal com a atual, mostrando que a primeira tinha elementos criticos, devido a sua relativa autonomia frente a realidade material, enquanto que a atual, além de sua dependéncia total do status-quo, nao traz elementos racionais. Esta transformacdo ocorre devido ao "deslocamento geolégico como denomina Adorno, da infra- estrutura para a superestrutura social. Assim, a base do conceito pode ser situada no pensamento de Marx, mas 0 seu sentido € modificado, segundo as alteragOes da propria realidade, onde Ador- no e Horkheimer apontam para a perda de seu sentido critico. Na perspectiva da Teoria Critica, a hist6ria do individuo e a hist6ria da cultura estao inter- ligados entre si e com as relagdes de producdo, 0 que significa dizer que as alteragGes sociais que implicam em um controle maior da natureza, implicam, também, alteragdes na personalidade. A seguir discutiremos 0 trabalho de Adorno et alii (1965) sobre a "personalidade auto- ritéria" , para depois refletirmos sobre a relagdo entre a personalidade narcisista e a sua relagéo com a ideologia da racionalidade tecnolégica. 1. A personalidade Autoritéria Como dito antes, Adorno et alii (1965) realizaram um estudo sobre qual era a predis- posicdo dos americanos em accitar uma idcologia anti-democrética e, mais especificamente, a ideologia fascista. Levantaram a tese de que a personalidade seria a mediadora entre a estrutura social ¢ a idcologia. A estrutura social foi entendida dentro das relagoes entre capital ¢ trabalho €a personalidade como um conjunto de forgas psiq’ que levam a caracteristicas de pensar ¢ agir mais ou menos duradouras; j4 a ideologia foi definida como um conjunto de idéias, pensa- mentos, opinides. 143 Crochth JL. Paicolosja-USP, 8. Paulo \(2):141-154, 1990 Os autores construfram quatro escalas contendo ftens, do tipo Likert, que permitiram in- ferir, de um lado, caracteristicas de personalidade ¢, de outro lado, detectar pensamentos e posi- cionamentos sobre idedrios politicos-econdmicos. As escalas construidas foram as seguintes: Es- cala de Antisemitismo (AS), Escala de Etnocentrismo (E), Escala de Fascismo (F) ea Escala de Conservadorismo Politico-Econémico (CPE), A Escala F substituiu as escalas AS e E com as quais teve correlagées elevadas e sobre as quais possuia a vantagem de ser mais dissimulada. Sobre a construgdo destas escalas cabe ressaltar que: 1. 0s {tens foram elaborados de forma negativa, ou seja, 0 escore maximo para cada ftem (7 pontos) implicou um clevado grau de antisemitismo, etnocentrismo ou fascismo; € 2. a formula- do dos ftens se deu de tal forma que, aquilo que se pretendeu medir era relativizado. A segunda condicdo foi observada, dado o clima geral de democracia, na época, com 0 qual 0s sujeitos difi- cilmente exporiam diretamente as suas tendéncias antidemocraticas. Isto possibilitou que um alto escore em uma destas escalas poderia significar, tanto um ndo-democrata sem medo de expor as suas opinides, quanto um pseudodemocrata. Se os ftens demonstrassem uma atitude ou pensa- mento extremado, os pseudodemocratas no concordariam com eles, confundindo-se com os de- mocratas genufnos, por isso nos dizem os autores: "Formulamos parte dos ftens da escala AS em termos tais que se aproximariam ao maximo da ideologia pseudodemocratica." (Adorno et alii, p-81). Jé a escala de conservadorismo politico-econémico (CPE) incluia tens positivos ¢ negati- vos que ndo precisavam ser dissimulados. Os autores queriam medir a predisposigao dos sujeitos 4 ideologia conservadora ou a ideologia liberal. A distingdo entre as duas ideologias, que permitiu a construgo da escala baseou-se em quatro critérios: 1. apoio ao status-quo; 2. resisténcia 4 mu- danga social; 3. apoio aos valores conservadores; ¢ 4. idéias sobre 0 equilfbrio de poder entre capital, trabalho e Estado. Além das escalas, os autores utilizaram-se de entrevistas semidirigidas ¢ do Teste de Aper- cepcao Tematica (T.A.T) para estudar as dindmicas da familia e da personalidade dos sujeitos. Fizeram andlises qualitativa quantitativa dos resultados encontrados atrdves do uso dos instru- mentos. Entre estes resultados, salientam-se as correlagOes obtidas entre as escalas de Etnocen- trismo (B) ¢ de Fascimo (F) com a escala de Conservadorismo-Politico-Econdmico (CPE), que foram respectivamente de 0,57 (E com CPE) ¢ 0,52 (F com CPE), ou seja, hd correlagéo entre personalidade ¢ ideologia, no sentido que, a personalidade autoritéria (alto escore em E ou em F) abarcaria a ideologia conservadora (alto escore em CPE) ¢ a personalidade ndo-autoritéria (baixo escore em E ou em F) se relacionaria com a ideologia liberal (baixo escore em CPE). A diregao das correlag6es apoiam os resultados encontrados pelos estudos de Fromm, na década de 30 postuladas por Reich, segundo Rouanet (1989), mas como as correlagdes tiveram uma magnitude mediana, 0s autores explicaram outros tipos de relagéo entre personalidade e ideologia. Se quase nao foram encontrados sujeitos com altos escores em E ou F ¢ baixos em CPE, apareceram sujeitos com escores baixos em E e Fe medianos em CPE, que pela andlise feita pelos autores poderiam ser considerados como "liberais politicamente pacifistas " e, também, sujeitos com alto escore em E ¢ escore mediano em CPE, que mais do que se adaptarem a ideologias novas, expressando um conservadorismo moderno, adotam posigSes proximas dos liberais, mas para for- talecer mais ainda a segregacdo social expressa na divis4o endogrupo-exogrupo ¢ assim: "... po- dem considerar conveniente o aumento das fungdes econdmicas do Estado, mas no por razdes humanitérias, mas sim como um meio de limitar a forga dos trabalhadores ¢ outros grupos" (Rouanet, p. 190). Estes sujeitos, segundo os autores, podem ser considerados como reacionérios e, em Giltima inst4ncia como fascistas. Antes de nos determos em outros dados obtidos na pesquisa, pensemos em algumas ques- tes que os resultados acima indicam. Uma delas refere-se a separagdo entre ideologia, de um lado, e personalidade, de outro lado. Tal separaco pareceria indicar que tratam-se de duas tota- lidades, em si mesmas, que se relacionariam entre si. Visdo estranha, a0 que parece, a um pensa- dor como Adorno. Segundo alguns autores (Jacoby, 1977; Mattos, 1989 ¢ Rouanet, 1989) os pensadores da Escola de Frankfurt sofreram influéncia do pensamento de Hegel, mas 0 modificaram, especial- mente, no que tange a relagdo particular-todo, no presente caso, individuo-cultura. Marcuse 144 Crochik, J. L Psicologia USP, S, Pauloh (2):141-154, 1990 (1988) escrevendo sobre Hegel, aponta no pensamento desse a relagdo do individuo com a tota- lidade: ser humano, por exemplo, encontra sua identidade propria somente naquelas relagdes que s40, afinal, a negagao de sua particularidade isolada — na sua qualidade de membro de uum grupo ou de uma classe social, cujas instituigSes, organizag6es € valores determinam sua propria individualidade. A verdade do individuo transcende sua particularidade ¢ encontra uma totalidade de relagoes conflitantes nas quais a individualidade se perfaz (p. 124). Assim, para Hegel, segundo Marcuse, o ser humano, enquanto particular, s6 encontra a sua ver- dade na totalidade. Para os frankfurteanos, segundo Mattos (1989), 0 particular ndo tem um significado pre- ciso, mas também, se remete ao homem: "E essencialmente ambigua a utilizagdo dos conceitos de particular, particularidade, singular, singularidade, subjetivo, individuo, individualidade pela teoria critica... A teoria critica testemunha, ainda, em Horkheimer, Adorno, Marcuse e Benjamin 0 esforco em subtrair a particularidade individual a dominacdo abstrata do conceito em oposigao a Hegel, Husserl, Heidegger..." (p. 307). Portanto, o ser humano pode ser entendido como par- ticular ¢ opondo-se a0 Todo. E, Rouanet (1989), ao comentar o pensamento de Adorno e Horkheimer sobre a sintese da Psicandlise com 0 Materialismo-hist6rico, alega; "© mesmo principio da nao identidade, que impede o reducionalismo objetivista e o subjetivista, veda a dissolucao do particular no universal. O particular vale, em sua irredutivel especificidade, como representante do universal, através da categoria da Vermettlung, da mediacdo, pela qual a parte é indice do todo, mas nao pode ser absorvido pelo todo" (p. 75). Assim, 0 particular, o subjetivo, o individual, ndo parece ser uma totalidade, mas parte da totalidade, que afirma 0 todo ao ser 0 seu indice e o nega por no ser idéntico a ele; necessita do todo para se constituir e para neg4-lo. Desta forma, a personalidade como representante do in- dividuo, nao € totalidade € ndo se confunde com o todo, embora seja determinada por ele. A autonomia individual é assinalada por Adorno et alii (1965) na ideologia individual, que € um processo seletivo e dindmico que ocorre de acordo com as necessidades € desejos pessoais. De outro lado, acentuam a influéncia do todo: "...0 espirito objetivo de nossa sociedade fomenta grandemente a mentalidade ea ideologia "altas" (p. 702). E, quanto a relagéo de ambos afir- mam: "... o cardter fascista em poténcia € 0 produto da interacdo entre o ambiente cultural que inclina ao preconceito € as respostas _“ psicol6gicas a esta incitagio" . (p. 702). Rouanet (1989), na andlise que faz da_"Personalidade Autoritéria" diz: "O que é deci- sivo, em praticamente todos os casos, € 0 general cultural climate, que ou constitui a propria per- sonalidade ou a captura, indiretamente, imediata, ou mediatizada, com ostatus-quo" (p. 195). Mas, se é assim, a que se deve a separagéo entre a ideologia e personalidade? Antes de tentar responder a esta questo vejamos a implicagdo de outra separagdo inerente a esta, Os au- toresde "A Personalidade Autoritéria " separam a ideologia conservadora da ideologia liberal, de um lado, e a personalidade autoritéria da personalidade ndo-autoritéria, de outro lado. Se, a personalidade autoritéria aparece em diversos pontos da elaboragao da pesquisa, caracterizada como neurotica e, algumas vezes, beirando a psicose ¢ a personalidade nao autoritdria aparece como ndo problematic, com um bom equilibrio das trés instdncias psiquicas — id, ego e superego (2), a comparagao entre a ideologia conservadora ¢ a ideologia liberal ndo € to clara, e 0 tipo “conservador genuino " atesta isto. Rouanet (1989), por exemplo, o interpreta como uma pessoa que se guia, predominantemente, pela razio e ndo pelos desejos, da mesma forma que o liberal @ Adorno, em seusexto Sociology and Paychology de 1968, vai fazer a ertica da déia da personalidade harmoniosa ‘em relagdo as trés instncias psiquicas, apontando-a como conformista em relacdo ao todo. A Gnica ~ imagem do hhomem que ndo € ideo\gica € aquela que € negada no momento, segundo odutor. Ao salentarmos esse ponto, queremos ressaltar, que os autores de A Personalidade Autoritdria nfo esto trabaihando com uma nogao cate- {6rica de normalidade e anormalidade psfquica. Alids, basta ler a andlise que Adorno et alii (1965) fazem de um Sujelto do tipo = liberal genuino-, para que se evidence a relatvizagdo que os autores fazem da noo de“ per- sonalidade sauddvel*. 145 Crochik, JL. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 genuino, embora a razdo que guia o conservador, seja, segundo esse autor, a da racionalidade instrumental, ¢ ao liberal genufno uma razio emancipatéria. Por outro lado, Carone aponta as criticas de Shils 4 pesquisa, alegando que os seus autores associaram 0 conservadorismo ao fas- cismo e deixaram de lado, outro tipo de autoritarismo, ode “esquerda" . Das colocagdes dos dois autores podemos inferir a dificuldade de comparar os dois tipos de idedrio quanto a valori- zagdo que possamos atribuir a eles. Mas, algumas observacées de Adorno et alii (1965) mostram a desvalorizagao do idedrio conservador em relacao ao liberal. A relacdo entre conservadorismo e etnocentrismo, de um lado, € de liberalismo e antietnocentrismo, de outro lado, € realgado pelos autores: Certas semethangas das principais tendéncias fundamentais do conservadorismo ¢ do etno- centrismo sugerem qual pode ser a base teGrica de sua estreita relagdo. Aparentemente, 0 apoio a ideologia polftico-econdmica ¢ a autoridade reinantes s6 formam parte da tendéncia etnocentrica geral a submeter-se em todos os aspectos da vida social a autoridade aceita. De modo similar, a rejei¢do etnocéntrica dos exogrupos se manifesta na esfera politico-econd- mica como uma resistencia &s mudangas sociais e como uma tendéncia a reunit as ideologias poltticas progressivas sob 0 rétulo geral de exogrupos ¢ idéias estranhas (ameagas contra a autoridade do endogrupo) e, mais adiante: Também hd razOes teGricas para supor que ‘existe uma relagdo entre liberalismo e antietnocentrismo. Em geral, ambos tém uma atitude de erftica com respeito as autoridades e as tradig6es predominantes (p. 188). Assim, 0 conservadorismo est4 associado ao fascismo e 0 liberalismo ao antietnocentrismo. ‘Mas, entéo, como explicar 0 tipo “conservador genuino" , que sustenta o idedrio conservador, mas é capaz de criticar os endogrupos? Como vimos anteriormente, Rouanet (1989) 0 vé dotado de uma agéo guiada pela razdo instrumental e é mister lembrar que Adorno e Horkheimer, em seu texto Dialética do Esclareci- mento, contempordneo de a Personalidade Autoritdria, criticam a cegueira e a amnésia da razio positivista, algo jé feito por Marcuse em 1941, no seu texto Razdo e Revolugdo. A razao positivista, guia-se pela légica do equivalente, tornando todos particulares, membros de uma mesma espécie; esta razdo desconsidera 0 nico € a sua relagdo com a totalidade, tornando o pensamento estranho a si mesmo. Como veremos mais a frente, a ideologia da racionalidade tecnolégica, herdeira do Positivismo, tem caracteristicas da estereotipia, tais como, divisdo do mundo em categorias l6gi- cas © uma suposta indiferenga ao mundo externo. Se estes elementos podem ser associados ao etnocentrismo, o conservador que pensa através deles parece ser candidato ao fascismo, mais do que o liberal genufno. A ctitica de Shils, explicitada anteriormente, ao estudo de Adorno et alii (1965), também nos auxilia a pensar sobre esta questdo. Segundo Carone, o argumento deste autor € que: A Personalidade Auworitdria se baseia na distinggo esquerda-direita, que € um esquema politico simplificado ¢ superado pelo préprio movimento hist6rico no século XX. No en- tanto, continua, os pensadores marxistas permaneceram presos a este esquema e interpre- taram o fascismo, quando irrompeu na Europa nos anos 30, como uma acentuagio do con- servadorismo burgués, um conservadorismo levado ao desespero por causa da inevitével crise do capitalismo (p. 30). Shils e outros autores, como nos informa Carone querem associar a personalidade autoritéria ao totalitarismo, tanto de esquerda, quanto de direita, de uma forma ahistérica, ou seja, dentro da perspectiva que Horkheimer (1983) denominou Teoria Tradicional. Mas, a Teoria Critica por resgatar a importancia da cultura no movimento hist6rico, e por ressaltar a subjetividade humana, ndo reduz a idéia de uma sociedade emancipada a uma revolu- do econOmica, o que a levaria a se identificar com o marxismo vulgar e, como isto ndo ocorre, as sociedades socialistas que ndo preservam a individualidade s4o por ela criticados, como pode ser visto em Marcuse (1982). A sociedade soviética fez a revolugdo econdmica, mas 0 individuo ainda vive no mundo da necessidade. 146 Crochik, IL. Psicologia-USP, S. Paulo 1 (2):141-154, 1990 Em Adorno et alii (1965), a definigéo do liberalismo reflete mais do que alteragdes eco- ndmicas, reflete, também, a possibilidade dos individuos serem diferentes entre si e um contacto personificado entre as pessoas. Em suma, se o autoritarismo est presente em sociedades que no fazem da vida humana um fim, podendo ser elas capitalistas ou socialistas, 0 ndo autoritarismo s6 pode se apresentar numa sociedade que nao precise ocultar as suas contradig6es sociais e seja voltada para a felicidade ¢ liberdade humanas ¢, tal sociedade, parece-nos aproximar-se mais do socialismo do que do capitalismo. Mas, Adorno et alii (1965) apontam para a superagéo da contradigao do termo_ "conser- vador genufno " no Movimento social: Nos aventuramos a dizer que os conservadores * genuinos que ainda sobrevivem, € cujo niémero provavelmente v4 a mingua, podem chegar a sentir-se cada vez mais molestados a0, tomar consciéneia de que as camadas conservadoras importantes da sociedade norte-ame- ricana se encaminham rapidamente at€ 0 6dio radical a oposigdo contra os trabalhadores. Quanto mais marcada se faz tal tendéncia, tanto mais obrigado se sentir4 0 conservador genuino” a professar ideais democréticos, ainda quando os mesmos sejam algo incom- patfveis com a educagdo que tinham recebido e com suas pautas psicol6gicas. Se cabe gene- ralizar esta observagio, ela implicaria que a dindmica social atual empurra 0 conservador auténtico cada vez mais ao campo liberal (p. 639-640). ‘Ou seja, embora a relacdo entre personalidade e ideologia ndo seja estdtica e a divisio entre genuino" e "pseudo" ndo seja absoluta, o liberalismo se aproxima mais de uma sociedade que pretenda a maioridade para os seus individuos. Cabe ainda ressaltar 0 "clima cultural geral" que Adorno et alii (1965) supéem levar as atitudes pseudodemocréticas, ou seja, a proposta existente na época, da liberdade individual de escolha e participacdo a nivel politico e, de respeito as minorias, dificulta a expressdo clara direta de preconceitos. Tal clima implica na conservagao da democracia, mas uma democracia plena supde inclusive a alteragdo do sistema econdmico, portanto, pode-se defender o sistema politico, desejando-se manter ou alterar o sistema econdmico. Quando se deseja preservar a de- mocracia para manter-seo "status-quo" , ela deve ser defendida com ressalvas e, neste sentido, nao é plena; quando cla é defendida, tendo em vista profundas alteragGes sociais, ela deve ser ampliada, pois nasceu de uma estrutura social que Ihe atribui algumas de suas marcas. ‘Mas, a personalidade autoritéria, que age, predominantemente, através de "impulsos ir- racionais " é ambivalente, ou seja, necesita manter destruir ao mesmo tempo, embora esta des- truigdo deva caminhar no sentido reaciondrio ¢ ndo revoluciondrio. Assim, esta mudanga se ca- racteriza pelo conservadorismo, Claro, deve se enfatizar que as determinag6es ideol6gicas nao sio independentes das de- terminagbes s6cio-econdmicas ¢, neste sentido, a ideologia conservadora se relaciona, ou melhor € determinada pelo capitalismo ¢ por isso, Rouanet (1989) pode afirmar em relagdo aos autores da Personalidade Autoritéric ‘Apesar da aparente imparcialidade com que definem a ideologia, sem entrar no scu mérito, ‘como um sistema de opinides, valores ¢ atitudes, os autores rejeitam o relativismo que equi- para todas as filosofias, qualquer que seja seu contetido, e afirmam a validade de "uma visio do mundo que um homem razodvel, compreendendo o papel de certos determinantes, e com acesso completo aos fatos necessérios, organizar4 por si mesmo~ (p. 169). Mas, a ideologia para Adorno e Horkheimer (1978) ndo é somente falsa, ela o 6 quando pretende se passar pela realidade, mas pode ser verdadeira pelo seu conteddo que deve ser res- gatado e, assim, conceitos do liberalismo, tais como: liberdade e individuo devem ser preservados. Desta forma, tanto 0 conservador genuino, quanto o liberal genufno, por guiarem-se por um "Ego maduro " podem perceber a contradicao entre aquilo que existe ¢ aquilo que € proposto e que devem existir alteragbes sociais, que possam pensar ¢ defender. O primeiro, segundo a obser- vacdo de Adorno et alii (1965) citada acima, percebe com o avango das contradigoes sociais, 0 147 Crochtk, JL. Psicologia-USP, S. Paulo (2):141-154, 1990 aumento do preconceito, algo que rejeita, devendo tornar-se cada vez mais critico com relagdo ao sistema econdmico, deixando de ser conscrvador e, 0 segundo, com o avango das contradigdes sociais deve fortalecer o seu idedrio. Portanto, a personalidade é a mediadora entre a estrutura social ¢ a ideologia, mas néo devemos cair no engano de supor que ela seja um fator independente, pois como veremos mais a frente, a propria cultura € dotada de mecanismos que dificultam o surgimento de uma personali- dade "genuina". Assim, a separacdo entre os termos "personalidade" € "ideologia" se d4 para mostrar uma cultura que facilita a oclusdo da subjetividade, pois aquela (a cultura) impde-se como reacao a maturidade individual. J4 a separagao entre idedrio conservador e idedrio liberal se dé, entéo, com a clara desvalorizagao do idedrio conservador em relagdo ao idedrio liberal. Na separagio idedrio conservador-idedrio liberal, o que est4 em questo € 0 movimento das relagdes sociais, mas no unicamente, como visto, na diregdo da emancipacao, como também na diregao da reac. O tipo" pseudoconservador" que obtém escores medianos ilustra esta reagao, pois ele concorda com algumas questdes do idedrio liberal, mas, apenas, para fortalecer mais 0 endogrupo; j4 0 tipo "liberal genuino", que ndo tem a sua percepcao guiada pela distingao en- dogrupo-exogrupo, consegue refletir sobre as injusticas presentes num sistema social desigual. Como veremos mais a frente, 0 que distingue para Adorno et alii (1965) 0 "genuino" do "imi- tativo" so as identificagdes adequadas ou inadequadas que a crianca pode ter na sua infancia; aquele que conseguiu uma identificagéo quase nao problematica teve a formagéo de um superego bem "instalado" ¢ razoavelmente flexivel, de tal forma que tem um ego capaz de se relacionar bem com os impulsos do id com as exigéncias do superego, sendo capaz de agir com uma razdo que nao precisa defender o individuo de impuisos ambivalentes através de preconceitos e estered- tipos. Jé aquele que nao conseguiu uma adequada identificacdo parental na infancia, e teve difi- culdade de introjetar os valores parentais, quando adulto tem de fazer um esforgo suplementar para fortalecer em si mesmo e no meio, estes valores para se defender de sua ambivaléncia de impulsos e do consequente sentimento de culpa. Precisa, em outras palavras, fortalecer a autori- dade e dirigir a sua agressio para os grupos que imagina que o ameacam. Mas, € importante enfatizar que 0s grupos nos quais projeta sua agressdo, s40 depositarios de seus desejos, 0 que significa que agredir estes grupos é, também, auto-agressio. A distingao entre genuino e imitativo feita com este critério leva a conclusao, explicitada por Rouanet (1989), que a personalidade autoritéria se caracteriza ndo somente pelas idéias in- teriorizadas, mas a0 como as expressa, a0 que acrescentarfamos que importa, também, 0 como séo interiorizadas. Da mesma maneira podemos salientar que a forma de pensar os contetidos da experiéncia mediata ¢ imediata so espectficas da personalidade autoritéria relacionando-se, tan- 10 as suas necessidades psiquicas, quanto as necessidades culturais. A "grosso modo", poderfamos dizer que a personalidade ndo autoritéria pode vivenciar a sua propria experiéncia ¢ clabor4-la na contraposicdo entre os ideais introjetados por ela e por aqueles valorizados pela cultura, 0 que é de diffcil ocorréncia na personalidade autoritéria, Adorno et alii (1965) expdem alguns fatores culturais que fortalecem as caracteristicas psiquicas nas suas dificuldades de pensar adequadamente a realidade. Sao eles: confusdo e igno- Fincia frente a aspectos politicos e econdmicos, estercotipia ¢ personalizacio. Duas das caracteristicas do conservadorismo sdo: identificagio do mundo tal como é, ou seja, ndo pensar em utopias e voltar a inteligéncia para solugéo de problemas imediatos, o que leva a uma postura antitedrica, Nos dois casos, a relacdo aparéncia-esséncia, abstrato-concreto, ndo pode ser pensada. O movimento fascista, segundo os autores pode encontrar um solo fértil, quando est4 adubado por estas caracteristicas: "O ambiente em que melhor podem prosperar os movimentos fascistas € a configuragdo constituida pelo tecnicismo ¢ 0 realismo' consistente em cuidar dos préprios interesses por um lado, e a obstinada resisténcia a penetrar a realidade com 0 intelecto, por outro". (p. 617). Segundo Adorno et alii (1965) 0 capitalismo avangado cultua a ignorancia para se manter, tanto, através de seus meios de comunicagao de massa que, entre outras coisas, iguala informa- gOes de diversos niveis, quanto a tendéncia positivista de pensar que evita especulagoes. A igno- 148 Crochik, JL. Psicologia-USP, S. Paulo (2):141-154, 1990 rancia ndo é atribufda a falta de capacidade de pensar, mas a repressdes psiquicas expressadas no medo de pensar ou aprender erroneamente e, além disso: Podemos acrescentar que este temor, em muitos casos provavelmente nascido da pratica paterna de nao explicar ao filho mais do que o primeiro supde que este € capaz de com- preender, se vé continuamente reforgado por um sistema educativo que propende a desa- lentar tudo o que poderia considerar-se “ especulativo" , 0 que ndo € possivel ¢ corroborar mediante comprovagdes materiais e expressar em ~fatos e cifras”. (p. 620). A ignordncia ea confusao dos sujeitos frente a temas politicos e econdmicos é, entdo, atri- buido pelos autores a um meio social que incentiva as pessoas a pensarem 0 mundo tal como se apresenta ¢ a se afastarem de problemas que aparecem como distantes. Ao mesmo tempo, a de- mocracia, necessita que as pessoas tenham posigdes tomadas a respeito de temas politicos e eco- ndmicos, 0 que leva as pessoas a se valerem dos clichés dados pela cultura para se posicionarem. Mas, além disso, apesar dos problemas politicos e econdmicos serem colocados 3 distancia do cotidiano, as pessoas percebem a sua importancia nas suas vidas criando um conflito seme- Ihante ao da infancia, no qual se quer fazer frente ao desconhecido. Para isso, a crianga utiliza-se de dois mecanismos, que podem transforma-se em tragos de cardter: a estereotipia e a personali- zagao, que também so utilizados pelos adultos. Aestercotipia leva a crianca (¢ 0 adulto) a dividir 0 mundo em categorias: os bons ¢ os maus", "ns ¢ os outros", "eu € 0 mundo"; é uma abstracdo da experiéncia vivida que assim imobilizada, ndo pode ser elaborada; 0 "outro" & colocado em categorias rigidas ¢ ndo pode ser adequadamente percebido. J4, na personalizagao, a crianga (¢ 0 adulto) para diminuir a ansiedade frente ao desconhecido relaciona-o a categorias pessoais proximas. Aeestereotipia e a personalizaco agem conjuntamente. Enquanto a primeira evita contac- tos diretos e imediatos com o diferente, a segunda evita a mediacdo do concreto com o abstrato. A estereotipia pode colocar os politicos em categorias dicotdmicas e a personalizacdo trata de thes dar caracteristicas pessoais, ocultando, assim, a impessoalidade das relagGes politicas € eco- némicas. Mas, os mecanismos culturais que levam a idéias distorcidas da realidade, encontram me- canismos psfquicos que thes d4o suporte, 0 que é enfatizado em todo o livro A Personalidade Autoritériae que fica bastante elucidado na tipologia elaborada por Adorno. Essa tipologia divide 08 sujeitos em dois grandes grupos, cada qual subdividido em outras categorias: os de alto escore na escala Fe os de baixo escore nesta escala. Uma vez que a cultura 6 onipresente, segundo Adorno, ndo basta estudar os individuos preconceituosos, mas deve-se também levar em consideragdo aqueles que resistem aos precon- ceitos fomentados por ela. Como exitem diversos tipos de sindromes de escore baixo e somente a uma delas € atribuida uma adaptagdo adequada (0 liberal genuino), as demais também represen- tam formas de ajustamento a realidade pouco satisfat6ria (3). As sindromes dos sujeitos de pontuagdo alta caracterizam-se pela existéncia de uma uni dade estrutural, o que as diferencia é a énfase em uma ou outra caracteristica. Estas caracteristica so: convencionalismo, submissio e agressividade autoritéria, a projetividade, a tendéncia a uti lizar os demais para a satisfacdo de seus desejos. Como explicitado antes, a personalidade autori t4ria tem, em geral, as suas identificagGes infantis fracassadas, ocorridas no periodo do Complexo de Edipo, o que a leva a ter um superego rigido que dé conta de seus impulsos ambivalentes ¢, neste sentido, a valorizagdo da autoridade ¢ a agressdo a exogrupos & uma forma de lidar com a ambivaléncia destes impulsos separando-os. A subsindrome que mais nos interessa neste artigo, éado_"Manipulador", que apresenta aestereotipia mais extrema e tem parentesco préximo com o narcisismo: "Este sujeito apresenta (3) Quando empregamos os termos ~adequado" e ~satisfat6rion néio queremos salientar 0 conceito de norm: lidade, mas uma mediacdo entre personalidade e cultura que leve em conta a din&mica ps{quica, a dinamica social a sua relagdo. Em ouiras palavras, uma mediagdo fcila pelo sujeito que ndo distorga a realidade interna ¢ ex- terna, percebendo que estas duas esferas se influenciam mutuamiente. 149 Crochth J. L Psicologia-USP, S. Paulo 1 (2):141-154, 1990 caracterfsticas que o aproximam ao cldssico caréter_ "anal" concebido por Freud e, a este res- peito recorda a sindrome "Autoritério". Mas, se diferencia deste por mostrar simultaneamente extremo narcisismo e certa superficialidade e vazio". (Adorno et alii, p. 776). © “manipulador" volta a sua libido para o ego e evita os perigos do mundo externo redu- zindo-os a meros objetos; ndo conseguiu transformar o poder externo em superego € rejeita todo impulso afetivo. Mas, apesar disso, libidiniza os meios para os resultados que quer, trans- formando-os em fins. O seu antisemitismo ¢ explicado por Adorno, devido a valorizaco que os judeus dao as relagGes individuais. Embora raros na amostra pesquisada, este tipo pode ser obser- vadoem: "... numerosos homens de negécio e também em namero crescente de meios da ascen- dente classe tecnoldgica e administrativa, que no processo de produg4o cumprem uma funcdo intermedidria entre 0 proprietario de outrora ¢ a aristocracia trabalhadora." (p. 715). Além de apresentar caracteristicas da personalidade narcisista, o tipo manipulador parece ser privilegiado em uma ordem social tecno-burocrética que se auto-perpetua, gracas a quase auséncia de superego, que 0 torna isento de fazer criticas ea ciso entre 0 ego € 0 id que projetada se torna a cisdo entre aqueles que querem preservar o sistema social ¢ aqueles que ndo 0 querem. As sindromes de baixo escore também so descritas em funcao da resolugéo do Complexo de Edipo e podem levar a uma revolta contra a autoridade, 40 compulsiva, quanto a existente naqueles que tém altos escores, usando da mesma forma o recurso da estereotipia. Embora os sujeitos das sindromes de baixo escore sejam pouco propensos a idcologia nazista, isto nao signi- fica que sejam guiados pela experiencia pessoal ¢ por sua elaboragdo e ndo por desejos infantis. Ao contrério, 0 ddio a autoridade € to infantil quando a submissdo a ela dos sujeitos de alto escore. Por esta tipologia podemos supor que Adorno ndo estava preocupado unicamente com a personalidade autoritaria mas com configurag6es de personalidades que impediam a ago ou a existéncia de um ego maduro capaz de intermediar as relagGes entre 0 id e o superego, de um lado, € de si mesmo com o meio externo através do uso da tazéo. Este "ideal freudiano" € exemplifi- cado no tipo "liberal genufno" que: "...tem um profundo sentido de independéncia pessoal. Nao admite nenhuma ingeréncia externa nas crengas € convicgGes pessoais, ¢ tampouco deseja imiscuir-se nas dos demais. Seu ego est4 muito desenvolvido ainda que ndo libidinizado; raras vezes se mostra‘ narcisista'. Ao mesmo tempo, est4 disposto a admitir as tendéncias do id € a sofrer as consequéncias tal como sucede com 0 tipo. "erdtico' de Freud". (p. 727). Além disso, traz consigo um senso de justica muito acentuado. Para a formagéo do ego € do superego, a presenga da familia ¢ importante, mas com as alterag6es econdmicas ¢ sociais a famflia modifica as suas fungGes, entre elas, a de socializagao. Com estas modificagdes, a mediago que a famflia fazia entre 0 todo e a subjetividade é enfraque- cida. Esta nova situagao leva a uma ma formagéo do ego, que é uma das caracteristicas da perso- nalidade narcisista que veremos a seguir. 2. A Personalidade Narcisista Marcuse (1981) mostra as mudangas sociais que criam as condigdes para o fortalecimento da personalidade narcisista. Entre estas mudancas, aponta para a diminuigao da importancia da familia para a socializagdo do individuo que deriva: "... dos processos econOmicos fundamentais que tém caracterizado, desde o princfpio do século, a transformagdo do capitalismo "livre" em “organizado" e, com isso: "... 0 valor social do individuo é medido, primordialmente em termos de aptiddes ¢ qualidades de adaptagdo padronizadas, em lugar de julgamento autOnomo e da responsabilidade pessoal" (p. 96). Quando da época do capitalismo concorrencial, segundo esse autor, o controle tinha que se dar sobre os instintos, pois o sistema ndo era suficientemente organizado e padronizado para exercer um controle mais global sobre a consciéncia; j4 no reino dos monopdlios os instintos podem ser liberados, desde que associados a conformidade social. O id é reprimido por sua libe- Tago, restando ao superego voltar a culpa ou contra si mesmo ou contra uma totalidade abstrata. Uma culpa impessoal, uma vez que a dominacao também € impessoal. 150 Crochi JL. Psicologia-USP, S. Paulo 4 (2):141-154, 1990 Oespago psiquico de conflito contra a identificagao efetuada no Edipo deixa de existir. Este espago psiquico era 0 guardido da autonomia individual: Através da luta com o pai e a mae, como alvos pessoais de amor e agressdo, a geragéo mais nova ingressou na vida social com impulsos, idéias € necessidades que eram, em grande parte, de cada um dos jovens. Por consequencia, a formagéo do superego, a modificaggo repressiva de seus impulsos, sua rendincia e sublimagéo, eram experiéncias muito pessoais. Precisamente por causa disso, sua adaptagio deixou cicratizes dolorosas e a vida, sob 0 princfpio do desempenho, ainda se conservou uma esfera de nao conformismo privado (p. ”. J4 no capitalismo dos monopélios, o pai é uma figura fraca para a identificagdo concorren- do em desvantagem com outros modelos fornecidos pela midia e pela escola: "Os especialistas dos meios de comunicacao com a massa transmitem os valores requeridos; oferece o treino per- feito em eficiéncia, dureza, personalidade, sonho e romance. Com essa educagio, a famflia deixou de estar em condigdes de competir." (p. 97). Se, na personalidade autoritéria, a individualidade podia ser apontada por necessidades singulares, mesmo que através da negacdo de suas satisfages, na formacao da personalidade descrita por Marcuse € dificil de se descobrir tais necessidades, pois s4o atendidas diretamente através dos simulacros ofertados pela Inddstria Cultural. Marcuse (1981) no menciona o termo narcisista, mas a ndo diferenciagéo entre 0 individuo €0 meio, o apego a valores externos, apontam para este quadro. Portanto, 0 avango tecnolégico ¢ as consequentes transformagoes sociais tornam a fam{li menos influente na socializagao da crianga e meios extra-familiares passam a socializ4-la mais diretamente. Marcuse (1981) vai argumentar que 0 superego torna-se mais frdgil ¢ 0 Gdio, antes voltado para o pai, direciona-se contra tudo, ndo encontrando objetos especfficos para se expres- sar. Claro, Marcuse mostra que este processo de despersonalizagao no ocorre somente na fam{- lia, mas no trabatho, na escola, facilitado pela crescente burocratizagao da sociedade e a comple- xificago da divisdo do trabalho. Se a personalidade autoritéria tinha 0 seu drama no cerne da familia, com 0 enfraquecimento desta, 0 individuo é diretamente influenciado pelo todo. Assim, os modelos de identificagao so varios, mas ndo t4o varidveis, uma vez que com a crescente racio- nalizagdo tecnoldgica da sociedade (Marcuse, 1981 e Habermas, 1983), diversos modos de ser se reduzem ao mesmo, ou seja, nos diversos meios de socializacao, pelos quais a crianga adquire habitos, valores € (pré)conceitos, o mesmo modelo reaparece de formas distintas. Com estes di- versos modelos, que mantém uma relagio distante com a crianga, 0 ego fragmenta-se; so di- versas introjegdes mal feitas. Como o Ego ¢ fragilmente formado, nao pode, de um lado, dar conta das exigéncias do id e nem responder a elas de forma adequada, e de outro lado, dificulta a for- magao do superego. Por todo este proceso, Marcuse (1982) diz que ndo h4 ajustamento nos dias atuais, mas mimése, a crianga imita 0 modelo, ndo negando-o, o que permitiria ter uma identidade. Na ldgica do equivalente geral, o ser diverso, 0 ser tinico é desviante. Se, 0 ego ¢ fraco, 0 mesmo ocorre com o superego, 0 que faz com que o individuo seja heterodirigido. A autonomia, anteriormente possivel, ¢ cada vez mais rara. Segundo Freud (1978) varios individuos, quando adultos, nao demonstram a interiorizagéo das normas sociais e, assim, ndo receiam ter intencionado uma m4 aga, mas apenas a sua desco- berta pela autoridade, quando ela € executada. E, desta maneira, podem agir de duas formas para nao serem punidos: 1. adequarem-se aos modelos valorizados pelo meio através da imitagdo e, 2. tentarem ocultar as suas ages mds. Mas, se pensarmos que estas formas sdo intencionais, bem elaboradas, teremos que pressupor um ego razoavelmente bem constituido, 0 que contradiria 0 anteriormente exposto. O que ocorre é 0 contrério, ou seja, 0 processo de nao personalizagao. Como na atualidade, a cultura se caracteriza mais pela liberacao do que pela repress4o dos instintos, a ideologia a ser transmitida tem menos relacéo com a repressao para 0 trabalho, do que a liberacdo para o consumo. O individuo € menos 0 que produz e mais o que consome. A identi- dade é menos formada pelo trabalho, do que pelo consumo. E, aquilo que consumido € vendido pelos meios de comunicacio de massa, que estabelecem paralelos entre 0 ter € 0 ideal de ego 151 Crochit, J. L. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 cultural, As pessoas se representam por produtos culturais, que se constituem em clichés do pensar e comportar adequados. Ea mentalidade do "ticket" divulgada pela Indistria Cultural, segundo Adorno e Horkheimer (1985). Esta mentalidade j4 € apontada por Adornoem "A Personalidade Autoritéria", conforme explicitamos anteriormente, nos sujeitos pesquisados, contribuindo para a confuso e ignorancia em assuntos politicos ¢ econdmicos e na utilizagéo da estereotipia e personalizagao. Mas, a per- sonalidade autoritéria, com excecao do tipo manipulador, ainda tinha a necessidade de manter os valores de um superego mal introjetado, nela se nota no s6 0 conformismo como a rebeldia; j4 no narcisista isto ndo ocorre, s6 h4 conformidade com aquilo que Ihe € mostrado como sendo verdadeiro, ¢ mais do que isso, como o seu superego € frgil, torna-se um individuo mais corrup- tivel (ver Lasch, 1983). Assim, no p6s-guerra a personalidade autoritdria baseava-se na ambigiidade de afetos, ou melhor, na cisdo de afetos relativos a autoridade, que levava a uma alternancia de submissio-re- beldia calcada em objetos distintos: a submissdo orientada para as autoridades constitufdas e a rebeldia contra os exogrupos. A personalidade narcisista, sucedanea da autoritdria, ndo se baseia mais no conflito de afetos e sim na desconexao entre eles € deles com o contesido da experiéncia. Segundo Lash (1983) as caracterfsticas primérias da personalidade narcisista so: depen- déncia de calor vicdrio proporcionado por outros; medo de dependéncia; sensacdo de vazio inte- rior; 6dio reprimido sem limites; ¢ desejos orais insatisfeitos. A explicagdo ontogenética que Lasch dé do narcisismo, ndo tem como em Adorno, referencial freudiano, a teoria que adota é a de Melaine Klein e, assim, o narcisismo é a tentativa de resgate de situagdes anteriores a separa- do traumética: "Por meio da interiorizagéo, o paciente procura recriar uma relagéo amorosa desejada, que pode ter existido antes, e simultaneamente anular a ansiedade a culpa motivadas por impulsos agressivos, dirigidos contra 0 objeto frustrante e desapontador." (p.61). Traz con- sigo uma cisdo interna entre imagens boas e mas do eu e dos objetos, devido a sua intolerdncia de suportar a ambivaléncia ea ansiedade e da cisio surge a necessidade de idealizago dos pais para evitar a ameaga dos "pais maus". Se, o obsessivo ¢ fixado na fase anal, o narcisista € mais regre- dido, trazendo consigo caracteristicas da fase oral. No estudo sobre a personalidade, 0 idedrio conservador e, mesmo o idedrio liberal serviam de racionalizacao para desejos no permitidos, nos tempos do narcisismo declara-se o fim das ideologias, no momento em que a ideologia da racionalidade tecnolégica auxilia na producdo € consumo de massa que traz como valor o desenvolvimento e consumo de técnicas. Mas, como a ideologia da racionalidade tecnol6gica se relaciona com a personalidade nar- cisista? E 0 que tentaremos ver a seguir. 3. A Ideologia da Racionalidade Tecnolégica A ideologia liberal propria do liberalismo europeu, que estava presente nos ideais da Re- volugdo Francesa, marco hist6rico da ascengio da burguesia, ndo serve mais para justificar uma relag4o social ditada pelo mercado livre, que aumenta a desigualdade social, com a presenca dos monopélios substituindo 0 "livre comércio". Neste cendrio, segundo Habermas (1983) duas transformagées correlatas ocorreram: 1. Fortalecimento do Estado, no que se refere, tanto a in- tervengao na economia, quanto na provisdo dos direitos sociais; e 2. Autonomia das forgas pro- dutivas das relagdes de produco, com o uso das técnicas ¢ ciéncias substituindo a m&o de obra humana. Estes dois fatores atuam a favor do status-quo. O Estado que, de um lado, se privatiza atendendo as necessidades do capital e, de outro lado, contendo as possibilidades de revolta social ao dar uma série de beneficios para a classe trabalhadora, 6 0 Estado do Bem Estar Social. Mas, para se perpetuar, o capital representado pelo Estado precisa mostrar-se provedor ¢ eficaz no atendimento as necessidades da populagio para alijar os trabalhadores do processo politico, ou seja, € necessario, segundo Habermas (1983), despolitizar as massas. Isto € feito com 0 uso da ideologia da racionalidade tecnolégica, que coloca no lugar de questdes politicas, questdes téc- nicas. Assim, num processo de eleicao, por exemplo, nao € 0 conflito politico de setores diversos da populacdo que surge na escotha do governante, mas a escolha de administradores competentes, 152 Crochtk, JL. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 que podem tornar o mundo mais perfeito do que jé 6, ou seja, nfo se trata de modificar a socie- dade, mas de aperfeigod-la, e, como a técnica traz, da Filosofia Positivista, a imagem da neutrali- dade, as contradigdes sociais s4o suspensas ¢ a técnica adentra no cotidiano através de um pro- cesso de racionalizagao crescente, Por trabalhar com conceitos préprios ao positivismo, esta ideologia fortalece o pensamento € 0 comportamento padronizados que tém como critério a eficdcia sobre o meio; o que importa G0 0s resultados (ver Marcuse, 1981). Mas, também, os processos sao padronizados. Lasch (1983) mostra que a visdo moderna da pedagogia que vé o desenvolvimento individual através de fases, torna a vida uma corrida de obstdculos a serem vencidos. O desenvolvimento através de uma educagéo moral, conflitiva, mas que permita o surgimento de um espaco psiquico autonomo de Tebeldia é substitufdo por critérios de normalidade cientifica heterodirigidos. No lugar de consciéncia politica tem-se a consciéncia tecnologia, uma consciéncia que re- duza si mesmo € aos outros, a objetos técnicos. Nao precisamos dizer que € 0 grau mais avangado da reificacao. Como o desenvolvimento tecnol6gico converte-se num fim em si mesmo, 0 tempo, a his- t6ria, so dominados imaginariamente, vive-se somente o presente, pois o futuro torna-se 0 pre- sente sofisticado e o passado converte-se em obscurantismo. Sem a nocdo do tempo ¢ da historia, a busca da Utopia e, portanto, a ruptura com a natureza repetitiva ndo existe. Tudo é reduzido a0 mesmo. O idéntico ¢ a identidade s4o objetivados € separados daquilo que poderia se constituir num "eu". Ora, o narcisista € 0 proprio ndo-eu, o seu ego enfraquecido e autocentrado consulta o ideal de homem eleito pela Pedagogia pela Psicologia, no mundo externo para poder valorizar-se. Mas, o mundo néo Ihe importa, a ndo ser para satisfazer os seus desejos de preencher 0 vazio de um eu no constitufdo. Se, na dialética do Esclarecimento, Adorno ¢ Horkheimer (1985) mostram 0 desenvol- vimento da cultura através do controle da natureza, que envolve o controle da. "natureza hu- mana", esta no percepgio da especificidade do objeto € 0 prego pago por isto, se mantém na ideologia da racionalidade tecnolégica. E, assim, a manipulacdo técnica de objetos serve de pro- t6tipo para a manipulagao pessoal, mas, mais do que isso, na manipulacdo técnica da natureza j4 est contida a necessidade do controle do homem. Ulisses na Odisséia, tem de controlar a nature- zae possibilitar 0 seu ser homem. No entanto, ao esquecer a sua origem no desejo negado, esque- ce-se de si mesmo, €, 0 desejo de indiferenciago retorna na cultura, onde o particular deve ser subsumido ao todo. A ideologia da racionalidade tecnol6gica, representante de um todo totalitério, constr6i os espelhos para o narcisista se mirar. No reino dos monopélios, ndo h4 mais a necessidade de um ego independente e livre, pois a administracao cuida da racionalidade da vida, Adorno et alii (1965) apontam como caracterfsticas do idedrio conservador, entre outras, a nao existéncia de Utopias, o que leva a considerar 0 capitalismo como o sistema mais adequado a natureza humana, e a tendéncia a evitar radicalismos sociais, dando énfase a uma posicdo politica “centrista". Mostram esses autores, que a cultura da 6poca recafa num tecnicismo e realismo, que levam a uma posigdo anti-tedrica ¢ a busca de solugdo imediata para problemas pessoais. Deve- mos, ainda, lembrar, que o tipo “manipulador", caracterizado pela cisfo entre razo e afetos, poderia ser encontrado entre homens de negécios ¢ administradores. O conjunto desses fatores auxiliam a preservagao do sistema capitalista, permeando ¢ sendo permeado pela Ideologia da Racionalidade Tecnolégica. Segundo Marcuse (1981) o avango econdmico levou a uma maior administragao social com: a presenca da ciéncia positivista e da tecnologia. E, para Habermas (1983), a introjecio de valores morais, oriunda da esfera da interagéo social, submete-se a esfera do "agit racional com respeito a fins" tomando para si a racionalidade desta iltima. As diversas possibilidades de ser da socie- dade convertem-se no aperfeigoamento técnico de um sistema social altamente gratificador, atra- vés das mercadorias que oferece. As injusticas sociais tornam-se problemas técnicos. Assim, po- de-se agredir o diferente através de preceitos da normalidade cientffica. A antinomia endogru- po-exogrupo ¢ expressada por outras antinomias: normal-anormal, capaz-incapaz, mas sem 0 6dio visivel do preconceituoso ¢ com a frieza de um cientista frente ao espécime observado. Os problemas sociais passam a ser considerados problemas técnicos, 0 que leva a0 forta- 153 Crochik, J. L. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 lecimento do existente. A redugdo da cultura feita pela inddstria cultural rompe com a sua auto- nomia relativa e o ser s6 pode ser visto e percebido pela sua aparéncia, dada, por sua vez, pelo consumo de mercadorias, quer materiais, quer culturais. Ao nivel do pensamento, a fantasia e a especulacdo so proibidas como atesta Marcuse (1981), ao nivel politico, importam as questdes técnicas, segundo Habermas (1983), ao nivel da Subjetividade, importa a sua abolicdo em nome da normalidade cientifica, como mostra Lasch (1983). O mundo expressa a sua impessoalidade na impessoalidade de Narciso. A verdade da Personalidade Autoritéria, assim como a verdade do Narcisista s4o expressas. na ideologia da racionalidade tecnoldgica: a ndo-diferenciagdo do homem existente, em uma so- ciedade que espelhada na natureza s6 se repete recaindo na eterna mesmice. Assim, 0 processo de desenvolvimento social se legitima em si mesmo, é um fim em si proprio representado pela administracdo racional, uma administracao téo racional, que a leva a irracionalidade, por esquecer que ela € meio para a felicidade humana. Mas, por levar 0 seu con- trole da natureza a um controle extremo sobre 0 homem, impede a individualizagao deste. O sistema da razdo formal, de servo se transforma em senhor, 0 animal racional apartado de sua especificidade, se aliena desi mesmo ao nao se diferenciar neste formalismo. E, assim, a sociedade madura corresponde o adulto infantilizado, ¢ A identidade heterodirigida corresponde o indife- renciado, ‘Mas, como reclamar de um mundo provedor de gratificagao imediata? Nao € melhor igno- rar a possibilidade de liberdade ¢ autonomia? Eis o narcisista, CROCHIK, J. L. The narcissistic personality according to the Frankfurt School and the ideology of the technological rationality. Psicologia-USP, Sao Paulo, 1(2):141-154, 1990, ABSTRACT: Discuss the relation between the ideology of the technological rationality and the narcis- sistic personality based on the theory of the Frankfurt School. This relation is historically situated in order to explain some of the transformations of certain social institutions which mediate the relation between individual and culture. The possible influence of those transformations on the personality cons- titution is also investigated. INDEX TERMS: Personality traits. Narcissism. Mental Disorders. Authoritarianism. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ADORNO, Theodor. Sociology and psycology. New Left Review. 46: 67-80, 1967. ADORNO, Theodor. Sociology and psychology II. New Left Review, 47: 79-97, 1968. ADORNO, Theodor et alii. La Personalidad Autoritdria. Buenos Aires, Proyecci6n, 1965. ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985. ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. 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