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REVISTA DE P HISTORIA DAS IDEIAS O Livro EA LEITURA Vo.ume 20, 1999 INSTITUTO DE Historia € TeORIA DAS |DEIAS. FACULDADE be Letras OA UNIVERSIDADE DE Coimena ie sab Dt cineca ANA CRISTINA ARAUJO* evista de Hist ds as Vol 2,99 _..__ LIVROS DEUMA VIDA Critérios e modalidades de constitui¢io de uma livraria particular no Século XVII “O dano nao costuma estar tanto donde se mostra, como donde se esconde: assim sio as letras, ¢ assim sio as armas; estas fazem 0 rumor, aguelas 0 estrago; as armas fazem o mal mas aembamn com ele, a letras 0 mal que fazem dura..."("), Sem qualquer subtileza critica, Matias Aires compara os efeitos da guerra as armadilhas, bem mais sérias e ocultas, do livro e da Ieitura. Desconfiando do rumor das Luzes, 0 filésofo portugues assinala a curiosidade intelectual dos seus contemporaneos, denuncia © perigo da “vaidade das ciéncias” entregue a “conjecturas que faz passar por demonstracdes”(’), e adverte que “a impiedade é uma das cousas que a ciéncia ensina”(’). A margem desta posigéo, que exprime nao tanto a realidade mas, sobretudo, o juizo que dela se faz, vale a pena deslocar o Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Centro de Histéria da Sociedade e da Cultura () Matias Aires, Reflexdes sobre a uaidade dos homens e cartas sobre a fortuna. Prefécio, fixagao do texto e notas por Jacinto Prado Coelho e Violeta Crespo _ Figueiredo, Lisboa, IN-CM, 1980, p. 122. — @) Idem, p.129. ©) Idem, p. 131. M9 plano, tentando circunscrever a relacao entre para oulte Pas armas 20 caso concreto de um oficial de alt Iabores do epee ‘conhecer, em" 1757, o alfabeto da sua livraria. Sop, patente que ng opservaqao, as circunstancias biograficas tanto este angule formacao da carreira militar concorrem para Tats as ecg oe “necessidades e gostos de leitura, Neus = ou exclarecer ONES dos livros, selectivamente organizada, portanto, 2 Em" de saberes de alcance prético ¢ funcional qe oe, a Jeitura, prioritariamente orientada para distende 3 medida 0° os de estudo, se alarga. como se ae . campos, jgualmente reveladores dos interesses, da capacidade re alizacao e até da sensibilidade do proprietdrio da livrarig s ‘assim, a andlise dos critérios que presidem & escolha, conser. vagdo aes do extenso e wariado conjunto de obras existentes endo espolio pressupde uma série de quest0es prévias a que no Em oats lugar € preciso atender as circunstancias em que redigido alfabeto da livraria. Quem 0 elabora? . Suando.ecom que intengSo o faz? sera conveniente inserir a biblioteca no patriménio material e simbélico do seu possuidor, procurando saber, nomeada- mente, como se avalia em termos econdémicos a colecca0? ‘Qual o peso que desempenham os livros no conjunto dos bens 2 ae que sinais de estima, prestigio ou mesmo que evocagoes simbélicas ligam o proprietario 4 sua colecea0? Finalmente, i as modalidades, recursos e limitagdes do acto de enunciacao dos titulos e autores constantes da livraria Partindo do engenhoso exercicio de rememoracao de quem redigeo rol seré entéo possivel aceder ao pequeno mundo da leitura de um ilustre desconhecido do século XVII. A carreira das armas Em idade avangada, jé vitivo, e “sem queixa de perigo”, 0 de batalha José da Silva Pais lavra o seu primexo testamento a 2 de Dezembro de 1757. Anexa, entdo, 2 sua declarago de diltima vontade trés documentos por si redigidos e autografados: © alfabeto da sua livraria, uma relacao de objectos decorativos em — rata, com indicacio do respectivo peso ¢ valor, e um rol de despest Bi obras respeitantes @ casa de aluy habitay: oeesso) consort dais mate ee " te, algumas clausul i iti + ee dispositivas relativas a legados Com a meméria de factos passados, servicos prestados ¢ favores por cumprir, 0 outorgante convoca os herdeiros, a familia ¢ o circule dos mais proximos, dando-os a conhecer, de modo furtive ¢ fugidio. Por fim, alinha as suas dltimas vontades recapitulando, com abundancia de pormenores, 0 estado dos bens da casa ¢ a natureza do seu patrimonio. Vejamos entao a partir dos informes fornecidos, acrescidos de outros dados que pudemos coligir, quem era, como vivia e como convivia com os livros José da Silva Pais. Homem de nascimento obscure, neto, um piloto de navios da carreira do Brasil( Oekekus ee de acucar deixado pelo pai na freguesia de Goiana(’), Silva Pais vira momentaneamente costas 4 empresa colonial para abracar, com sucesso, © oficio das armas. Ligado ao ramo da infantaria, o seu inicio de carreira nao aparece documentado em sede propria, 0 SS () ANTI, Registo Geral de Testamentos, livro 275, . 86y-93. ©) O primeire codicilo € redigido a2 de Novembro de 1738 ¢ 0 segundo ai2de Novembro de 1760, poucos dias antes da morte do outorgante. () ANTI, Hebilitagdes da Ordem de Cristo, Letra J, Mago 100, n°8, fl. 1.0 processo de habilitago contém apenas dois documentos: 0 despacho da Mesa da Consciéncia e Ordens que, sob a alegacZo de inabilidade mecanica do avé patemno, reprova o candidato, emitido em 21 de Agosto de 1715; e.2 autorizasSo régia de mudanga de um hébito da Ordem de Santiago pelo da Ordem de Cristo, datada de de Fevereiro de 1715. () Nao so claras e inequivocas as informagées a respeito desta heranca reclamada por José da Silva Pais. No seu testamento diz: “Declaro que na capitania de Pernambuco corre huma cauza em que pezo o resto que s¢ ficou 3 dever da venda do Engenho da Boavista, que foi de meu Pay q Ds to Senhor Roque Gomes Paes; do qual esta de posse José Camilo Pessoa, que: importa o resto mais de quatorze mil cruzados e he meu Procurador © Dr. Ceetano Rib.” Soares, ¢ se aplicaré a sua decizam tanto que vencendose se zplique a terga 20 vinculo”, ANTT, Registo Geral de Testamentas, livro 275, 8. 87-87y. Mas lendo as trés provisdes régias que autorizam o suplicante a tar 0s litigantes perante 0 ouvidor de Pernambuco ¢ a prosseguir © provesso nessa ouvidoria, que, por certo, lhe era mais favordvel, verifice-se que Bunce: o nome de seu pai é ctado. Chancelara de D. Jodo V — Oficas « Merci, txero 62, f1 291; livro 66, 1.254v.,; livro 68, fl. 165v. A primeira noticia sobre a sua activ ‘i samt dia, data de 1713, ¢ assinala a Prone a strona “por se haver assinalado na defesa de Came poo of Portanto, 86 Ne epilogo da guerra da Sucessio de epanh a Mi entio tenente coronel José da Silva Pais se destaca LT 2 fig ee io indica que recebeu preparagao prt er modo, wear na milicia, pois nao era gratuilamente que se chepaya ) jugar de “eoronel com exere iclo de engenheiro”(). Tera Potianis wentado a Aula de Fortificagio © Arquitectura Militar, a funciona, a Rubeira, vulgarmente denominada Academia Militar. Neste ni fundado por D. Joao IV, em 1647, sob 08 auspleigg belecimento, ah calm do eno Las Servo Pimentel, ol provavelneni ‘aluno de reputados lentes de maternatica do colégio de Santo Antio, nomeadamente dos Padres Domingos Vieira, Indeto Vieira, vi rama orge Golarte, © N40 6 OX Init que, mais tarde, voltasse a frequentar a ‘Academia para assistir ds ligoes: de yeometria © fortifies: gho do célebre engenheiro Manuel de Azevedo Portes("), Sintoma: ticamente, todas as obras dadas A estampa por este autor constam do rol da livraria de Silva Pais, Do Engenheiro Portuguez, magna sintese do programa de geometria analitica cartesiana aplicado & arquitectura militar, possuiti mesmo dois exemplares distintos. Com irrefutavel aleance pratico, @ sua iniciagio & filosofia metodica de Descartes alarga-se 4 Algebra, 4 geomettia, A tigonometria () Claudio Chaby, Syopse dos decretos remetidos ao extincto Comselha da Guerra, vol. WV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1874, mago 72, n° V1 () O despacho do Conselho de Guerra ao requerimento apresentado pelo tenente coronel de infantaria Joo Alvar é 8 este respeito esclarecedor Encontrando-se a aguardar promogio, aquele oficial alega que “pasou a esta corte como praga de soldado onde continuo no servigo des: Majestade no mesmo exercicio ena ligho da Aula Régia para se capacitar nay artes militares” tendo sido preterido, sem razio, no lugar imediato por Francisco Cordeiro Vinagre, José da Silva Pais, Antonio Velho de Azevedo e Miguel Pereira da Costa que “nao cram mais antigos que o sup" no servigo, fem no exerccs de enyenhciro", Vide Claudio Chabyy, Synopae dos decets. ane aoe ide Chauici y, Synopae dos decretos. “ one an veja-se: Francisco Borja Gargio Stockler, Ensaio ae ‘ae #08 progressos das Mathematicns em Portugal, Paris, P ane Popa ; Re aS, A Pena de Marte, Eserita da Europa (sées. XVEXVIL), Coimbra, dissertagio de doutoramento, (mimeo), 1977, pp. 566-567. it 182 eh mecinica. Cumprindo um plana de formagio avangado e bastante moderno para a época, carrela, complementarmente, esti Fepulagio, no sein do exéreita, atuto @ ntarito, @ NO seu Meio social que cava com Teresa de Brito, filha de um capitio de navie clevado ao posto de capitio de mare guerra ad HOnOTeM, POF KErVigos prestadon 40 rel, O sogro, subira a pulso apos a Restauragie, comboiande, em embareagho propria, mantimentos, MuNiGGes ¢ tropas para guarnigho ¢ defesa de algurnas pragas fortes do litoral brasileiro, assoladas pelo corsa ¢ devastadas pela ocupagao holandesa, Como dote de casarnento recebe 6 habite. da Ordem de Santiago que pertencera ao valoroso. pai de sua consorte, Mas come a insignia de Santiago no era distingio que reluzisne com raciado © ambicioso Joxé da Silva Pais, logo » confortavel posto de coronel de infantaria, tenta a habilitagdo & Ordem de Cristo. Deste processo sai ileso da acusagio de sangue infecto mas nao confortade, As mareas de bastardia social colavamese lhe a pele, mesmo em terceira vida ou geragho, como pretendia fazer crer © despacho da Mesa da Conseiéncia, grande intensidade, 0 que atinge honrarias Aliangas Porém, 4 custa de um casamento que, na pratica, reforgava as suas ligagées ao mundo mereantil, o oficial Silva Pais, com o dote da noiva, ver a realizar uma operagio cambial de largo significado simbalico. Inabilitado por demérito de seus antepassados ao passaporte da honra, junta a insignia de Santiago, que por via da mulher the chegara 48 maéos, 4 sua folha de servigos e obtém, “em sua vida somente”, 6 direito 4 farpela da Ordem de Cristo("). Portanto, a partir de 1716 passa a gozar do mais elementar capital de prestigio social, de onde manam, honras, atributos ¢ favores sem conta, E grande gala fazia na ostentagao publica desse tao sofrido merecimento pols, para usar em oeasides especiais, guardava numa arca um habito de cavaleiro de Cristo em rubis e diamantes, avaliado em 180 mil réis, uma cruz de ouro, estimada em 20 mil réis, ¢ © respective cordio, também em ouro, no valor de 16 mil réis(") CANTY, Chancelaria da Ordem de Cristo, lives 90, fl. 809; @ livro 99, fh 1M e148, () ANTT, Registo Geral de Testamentos, livia 275, A. era usual na 6poca, para melhor firmar a sua honora. ee -se também do altar("). Durante um periodo de tempo bilidade ee nrestigioso cargo de juiz da Irmandade do Santissimo incerto, exer © Pguesia de Santo André, em Lisboa. Entretantg caramel islibe que pode os cinco filhos que lhe ficam de uit encaminha © OW rosa. Casa uma das raparigas com 0 cosmégrafg. prole mais i Luis Francisco Serrao Pimentel, figura de grande ae = oder, oriundo de uma auténtica dinastia no cargo ao ribs Beans mas nem por isso isenta de macula de judais- 14), conduz um dos rapazes a0 oficialato de infantaria; entrega mol hr também bem dotada, a um capitao de cavalos abastado, a mesma profissao que tinha o malogrado filho que morre em 1737('); e mantém em sua companhia talvez o primogénito, que quer fazer morgado da casa(") a . Habilitado com a patente de coronel, parte, no inicio da década de vinte, em comissao de servico, para os Acores(!”). Poucos anos depois, recebe 0 encargo de dirigir as obras reais do palacio das Vendas Novas, disputando com Custédio Vieira o tracado arquitecténico e a direcgdo dos trabalhos da referida construgdo(". Por meados dos anos trinta embarca para © Brasil, ja elevado a categoria de brigadeiro. Entre outras misses, ai executa alguns trabalhos de levantamento topografico e de arquitectura militar(’). (®) Ana Cristina Araiijo, A morte em Lisboa. Atitudes e Representagoes ~ 1700-1830, Lisboa, Editorial Noticias, 1997, pp. 335-338. (*) Fernanda Olival, “O acesso de uma familia de cristéos-novos portugueses i Ordem de Cristo”, Ler Hist6ria, 33, 1997, pp. 67-82. (°) Claudio Chaby, Synnopse dos decretos..., vol. IV, maco 96, n° 21. (%) ANT, Registo Geral de Testamentios, livro 275, fl. 87. (") Vide decreto do Conselho de Guerra de 1 de Agosto de 1720 in Claudio Chaby, Synopse dos decretos. .., vol. [V, maco 79, n? 14. (*) “Diz 0 coronel Joze da Silva Paes, que por ordem de V. Mag. passou d Prov’ do Alem Tejo em Fev" de 1728 p* o efeito de mandar fazer hum palacio nas Vendas Novas, alem de outras cazas que se fizerao nos Pegoens...[e] outras mais particulares como forao coatro tanques ¢ fontes”, eee Synopse dos decretos..., vol. IV, mago 92, n° 14, Sobre a Dee met do Paldcio das Vendas Novas, veja-se Sousa Viterbo, rite aii e Documental dos Architectos, Engenheiros e Constructores : ® a ae Imprensa Nacional, 1922, pp. 41-42. is i lo Sousa Viterbo, no Arquivo Histérico do Rio de Janeiro ta da fortaleza do Patriarca Sao Jozé, que se constridiu na lha das Quando regressa, recebe a mereé do posto de sargento-mor de batalh. ou seja, atinge o generalato(*). Nesta trajectéria ascensional fete do exército, convive e disputa cargos e promogées com alguns dbs mais conhecidos engenheiros militares do seu tempo, em particular com Manuel da Maia e Manuel de Azevedo Fortes(*), Paralelamente, o seu circulo de interesses e favorecimentos aproximam-no de outros influentes agentes e magistrados da corte(®). As aliangas que estabelece com a nobreza palatina favorecem a sua inclusao nos circuitos de comunicagao informal do poder. Em 1731, move poderosas influéncias para obter um cargo militar na india. Granjeia alguns apoios, nomeadamente do 4° conde de Ericeira, mas, mesmo assim, nao alcang¢a o necessario provimento régio para o lugar a que tao “desinteressadamente” se candidatara(”). Mais tarde, Cobras, deseniada e execuitada pelo Brigadeiro dos Exercitos de 5. Magestade José da Silva Paes, achando-se governando estas Capitanias; e uma Carla topografica de todo 0 terreno comprehendido desde a Barra do Rio Grande de $. Pedro thé Castilhos pequeno, que corre entre a Costa do mar & a Lagoa de Merim. Tirada por ordem do Brigadeyro dos Exercitos de Sua Magestade José da Silva Paes (1737), ob. cit., vol UL, p. 43. Xe) Vide decreto do Conselho de Guerra de 13 de Dezembro de 1749, in Claudio Chaby, Synopse dos decretos..., vol. IV, mago 108, n° 35. () Conforme se depreende do seguinte passo do requerimento que dirige ao Conselho de Guerra, em 13 de Dezembro de 1749: “Diz José da Silva Paes que fazendolhe V. Ma*. M® do Posto de Sarg" mér de Bat" dos seuz exercitoz em atengao ao seu merecimento. E com especialide aoz servigoz q fez na America, nao veyo declarado no seu real decreto vencece 0 soldo dobrado como vencia antez, e como se particou com todos os que o tinhao q®. passarao aos postos imediatos, como foy o Coronel Manoel da Maya, qo vencia e se lhe dobrou passando a Brigadeiro e aos Brigadeiros Manoel de Azevedo Fortes e Jodo Masse que passarao a Sarg” morez de Bat’”, ANTT, Decretos do Conselho de Guerra, mago 108, n” 55. () Sintomaticamente, designa como testamenteiros os desembargadores Inacio Dantas Pereira, corregedor do crime da Corte, e José Simées Barbosa € Azambuja, da Casa da Suplicagao. No segundo codicilo, faz também prova de confianga em Filipe Lourenco de Padilha Pimentel, pr mor do reino, militar de patente e cavaleiro da order tiltimo veja-se: Fernanda Olival, ob; cit., pp 78-79. — () “El Rey vay cada dia de hua c espiirios implesmente estratégicos que a custa dos lagos ee eweice retribui Se ig wanteee com os Grandes, fait na escala social servindo clientelarmente |beneficios. Conse estratégia tipica de reforco do seu proprig = . ‘e abusa da sua boa cotacao para intermediar causas pode pessoal tos ou subaliernos, isto ¢, desenvolve tambenrs er inia specifica”). Isso mesmo: se-clepreanithes ie Loe averbada em seu testamento: “Declaro mais que ey ‘ordem de Manuel Roiz de Araujo, Comissario de Mostras eee Santa Catarina, 198 mil réis para se darem de premio a = conseguisse 0 Seu despacho...”(*). A lembranga deste tanto cen oesquecimento de outros “compadrios” iluminam uma vida ‘exposta a “muitos perigos” e poner mas gerida com asticiae habilidade, ilmente se No cimece velhice, shiva Pais, homem rico em sabedoriae jdade, - teria 4 data em que redige o seu testamento seguramente mais de setenta anos -, deita entao contas ao que tem e destina a heranga. Pelo breve arrazoado contabilistico que apresenta, 0 seu ‘patriménio argentario rondaria os 18 contos e 500 mil réis. Aprendera ‘a multiplicar o dinheiro investindo em padres de juro e adquirindo grandes quantidades de prata, sem desprezar as aplicacdes fundiérias que nio davam lucros muito avantajados mas sempre lhe acrescenta- vam honra e prestigio. ae e eT além da See apurada, possuia uma iedade, dita casal, trés outras emp) Peek rcaiaees gic quin'a com casas, pomar e terra de vinha, todas situadas no termo da cidade de Lisboa(*). Neste breve relance, distingue-se o rasto deixado por um caso sem por condigSo algua ao que S. Mag*. Sem duvida hade atender” (Diario eat a Didrio de D. Francisco Xavier de Menezes, 4° Conde da Enietra (1731-1733), Apresentado ¢ anotado por Eduardo Brazio, Coimbra, ‘Sep da Rev. Biblos, vol. XVII, T. II, 1943, p, 84. ©) Sobre os, tico-politicos Repime, woase Angela Barreto Xavier © Antsnio Manuel Hespanha, chentelares", in José Mattoso (dir), Histéria de Portugal, vol. IV, 0 fost ti coor. Antinio Manuel Hespanha, Lisboo, Circulo de Lets a MarE ete Cold Testaments, oro 275, 92. ee de mobilidade social ascendente firmado no mérito, escudado , na riqueza granjeada através do trato ultramarino, @ pesadas protecgdes e investimentos simbélicos. aleangado com Acasa ea biblioteca No estilo ¢ na praxe, Silva Pais vivia, sem sombra de diivida, 4 lei da nobreza. Situado um pouco acima da bica dos Anjos, na cidade de Lisboa, o domicilio deste oficial de alta patente era farto em. espaco e dependéncias. O editicio, provido de loja, primeiro andar e aguas. furtadas, albergava ainda, nas traseiras, uma casa de mocos, cocheira, cavalariga e capoeiras. E neste pequeno palacete, recheado de bons méveis — orcados, por grosso, e sem inclusdo das pratas do recheio, num conto, duzentos € vinte oito mil réis — que vive José da Silva Pais, conservando em sua companhia um dos seus filhos, 0 mesmo que nomeia administrador do vinculo que institui, a nora, os netos, um escravo, um criado grave e, pelo menos, mais trés servicais. Assim composta, a estrutura deste domicilio alargado sera mantida até A data da morte do patriarca da casa, que ocorre em 14 de Novembro de 1760. Ignoramos o grau de especializagao ou mesmo o tipo de organizacao formal do espago habitado por esta familia, mas sabemos que algumas das reformas efectuadas no edificio, provavelmente apés © terramoto de 1755, vieram beneficiar duas importantes zonas de lazer e convivio, a sala de jantar ¢ a sala, e avantajar, em aparato, a fachada e a escadaria de acesso ao andar nobre. Como se verifica, as melhorias introduzidas reforgavam nitidamente os padrées de conforto de inquilinos e visitantes, da mesma maneira que concorriam para a ostentacdo do estatuto social da familia Silva Pais. No interior do andar nobre, situar-se-ia, por certo, a livraria, composta por 437 volumes, varios magos de papéis soltos e séries continuas de gazetas nacionais e estrangeiras, empilhadas e conservadas desde 1704 até 1746. O seu proprietério nao a localiza, embora destaque uma pega de mobilidrio que se articula perfeitamente com as estantes, a papeleira, em cujas gavetas guardava documentos Pessoais e escrituras de propriedades. No sitio da livraria nao faltavam acao da meméria, “procura serial, racion, ‘alidade - sancias de organi: au f ore exigencias ae ee dividualizacao do patriménio”(”), 0 lugar dos livros da arruma¢ ainica divisio, eventualmente anexa A sala, ae a uma . 5 co entio se designava — preenchia portanto todos os gabinete, esérios A leitura solitdria. Assim arrumados, 5 livros jsitos neces Tee ‘uma fronteira absolutamente singular na geografia da jema intimidade do seu proprietério. 5 Tee Seah dialéctica da memoria e do esquecimento, esta biblioteca, como qualquer outra, guardaria obras preciosas ¢ almente, outras de magro interesse, talvez nunca lidas, mas cena y cerve para assinalar preferoncias momentineas ou an expectativas adiadas de leitura. Ignoramos as condigdes de aquisigio e de conservagao do acervo reunido. Sabemos, no entanto, ue razdes de indole profissional justificaram a compra de pouco mais de um quarto das obras existentes na coleccio. Nesse nucleo compreendem-se 0s titulos de engenharia militar, matemitica, trigonometria e fisica(*). Vulgarmente ilustradas e aparatosas, estas obras constituiam uma ferramenta de trabalho indispensével para a execugdo de plantas topograficas, delineamento de edificios, levantamento de fortificagdes e planeamento de linhas de defesa, Ora, dada a frequéncia de destacamentos, dentro e fora do reino, durante a curva ascendente da sua progressio ao servigo da arma de Infantaria, é provavel que muitos daqueles livros o acompa- nhassem em campanha. Neste contexto, talvez possamos admitir que a vida da livraria de Silva Pais gravitasse em torno da biblioteca mével que suportava a sua propria actividade profissional. Afastado dos campos de batalha, era ainda no espago consagrado 4 leitura que este oficial de alta patente antecipava outros sucessos militares. Nesse reftigio ordenado e disciplinado(”) - que incitava a reflexao, a escrita, ) Nuno Lufs Madureira, Cidade. Espago ¢ Quotidiano (Lisbon 1740-1830), Lisboa, Livros Horizonte, 1992, p. 182. ) Sobre o modelo de formagao dos engenheiros militares portugueses neste periodo, veja-se Rui Bebiano, ob. cit., pp. 575-587. () Sobre a biblioteca como lugar de classificagao e selecgao veja-se, pot todos, Roger Chartier, El orden de fos libros. Lectores, autores, bibliotecns en Europa entre los sighos XIV y XVIII, Barcelona, Gedisa Ed., 1994, pp. 71-77: Jacques Revel, “Entre deux mondes: la bibliothéque de Gabriel Naudé”, in Le pouvoir des bibliothagues, La mémoire des livres en Oceident, (dir. Marc Baratinet ‘Christian Jacob), Paris, Albin Michel, 1996, pp. 243-250. 158 j recriagao ou mesmo A discussao informal sobre a matéria dos | na presenga de outros visitantes ilustrados, ~ 0 estudo decorri bid do lazer. E basta atender aos critérios de classificacao e de an os de matérias apresentados pelo possuidor da colecgao oe apercebermos nao s6 da variedade e extensic dos ae

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