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Doutrina Métodos de unificacdo do Direito Internacional Privado A legislacéo uniforme e as convencdes internacionais (*) por Kurt H. Nadelmann Professor do Instituto de Direito Interamericano da Universidade de Nova York. A pouca atengao dada a questées de método pode ocasionar sérias consequéncias. Eis uma verdade de ordem geral que, julgamos nés, se aplica muito especialmente aos esforgos empregados para tornar o direito privado mais uniforme no mundo. Por ter reconhecido a impor- tancia do assunto, o Instituto Internacional para a Unificagio do Direito Privado teve a feliz ideia de convocar um congresso internacio- nal para discutir os métodos de unificagao do direito. O congress, para © qual foram convidados os organismos que se ocupam da unificagao do direito privado, reuniu-se em Barcelona em Setembro de 1956 € os seus trabalhos acabam de ser publicados (1). Em matéria de direito internacional privado, tem-se dado pouca atengao as questées de método nos trabalhos relativos & unificagao do direito. Nao foi talvez por acaso que nem a Conferéncia da Haia de Direito Internacional Privado nem as instituigdes da Organizagao das Nagées Americanas que se dedicam a unificagao do direito internacional privado estiveram representadas no congresso de Barcelona ; e quando, (*) Relatério apresentado & X Conferéncia da Inter-American Bar Asso- ciation, Buenos Aires, Novembro de 1957 e amAvelmente cedido, com autoriza- S40 do Autor, pelo Jornal do Féro, de Lisboa, do qual o Prof, Kurt Nadelmann € colaborador permanente. (1) Institut Internacional pour I’Unification du Droit Privé, l’Unification du Droit, anudrio de 1956, tomo II, 1.° Encontro das Organizages que se ocupam da Unificagéo do Direito (Roma, 1957). 188 = KURT H, NADELMAN na sessio de Outubro de 1956 da Conferéncia da Haia, na qual, pela primeira vez, os Estados Unidos da América estiveram representados por uma delegagao de observadores, estes levantaram a questéo do mé- todo, sugerindo a utilizagao da legislagdo uniforme (2), a reacgéo de certo ntimero de delegados foi nitidamente desfavoravel. E certo que a questéo foi posta sem pré-aviso, ¢ os delegados declararam, muito justamente, que nao podiam tomar posigao acerca de uma questo fun- damental desta natureza sem instrugdes dos seus governos. Qual era a questo «fundamental» que tinha sido posta ? Na sua intervenga0, os observadores americanos tinham feito notar que, tra- dicionalmente, a Conferéncia da Haia formula as suas propostas sob a forma de projectos de convengées internacionais. Eles tinham-se refe- rido & experiéncia americana ¢ canadiana, com as suas leis uniformes © leis modelos, para mostrar que as convengées internacionais eram sémente um caminho para se chegar & unificagao do direito e que a legislagio uniforme era outro. Disseram que podia ser vantajoso, no interesse dos objectivos da Conferéncia, tomar cm consideragéo os dois métodos, pois os resultados desejados poderiam talvez ser atingidos em certas instincias por meio da legislagio uniforme quando a conclusao de convengies nfo podia, por determinada razio, conseguir-se. Os obser- podem ser melhoradas mais facil- vadores fizeram notar que as leis mente do que as conveng6es, 0 que valia a pena ter em atengéo numa matéria tio dificil como a codificagao das regras de conflitos de | Mencionaram também as dificuldades da utilizagio de tratados nos sis- temas federais, em que as questdes internas de divisio de poderes entre a federagio ¢ as partes que a compdem susceptiveis de levantar proble- mas seriam evitadas se se empregassem as leis uniformes, que os mem- bros da federagio poderiam adoptar individualmente. Por fim, respon- dendo ao argumento de que 0s compromissos reciprocos so, em certos casos, a condigio indispensdvel para se aceitar determinada regra, os observadores sublinharam que as leis uniformes podem igualmente com- portar a cldusula de reciprocidade e que as leis uniformes com uma cliusula de reciprocidade produzem os mesmos efeitos que as conven- (2) Comissiio IV, sessio de 18 de Outubro de 1956, Actas da 8.* Sessio da Conferéncia da Haia de Direito Internacional Privado. Ver Nadelmann, The United States at the Hagne Conference on Private International Law, in «Ame- rican Journal of International Law», n. 618 (1957). 189 METODOS DE UNIFICACAO DO D. I. P. F 3 des, certo, como é, que as vantagens da lei uniforme nao podem afir- mar-se senao quando se estabeleca a reciprocidade. Propomo-nos desenvolver estas proposigées. Antes de mais, a ideia de unificar as regras de direito internacional privado por meio da legis- lagéo uniforme nao é uma inveng’o americana. Quando, em 1874, a Holanda fez a primeira diligéncia nos tempos modernos para reunir uma conferéncia governamental para tratar de uma questio de direito internacional privado, o seu relatério sublinhava que os resultados dese- jados podiam ser atingidos quer pela acco legislativa dos parlamentos quer pela concluso de tratados (3). T. M. C. Asser, que depois veio a ser o presigente da primeira Conferéncia da Haia de Direito Inter- nacional Privado, ja tinha dito o mesmo num artigo publicado cinco anos antes no primeiro volume da Revue de Droit International et de Législation Comparée (4). Em compensagio, ao passo que a legislagio uniforme fora utilizada na Europa muito antes de que a Conferéncia Nacional de Comissarios para a Uniformizag&o das Leis dos Estados tivesse sido criada, é certo que a unificagao do dircito através da legislagéo uniforme foi levada ao éxito, num vasto campo, principal e primeiramente nos Estados Unidos. A forga propulsora foi o risco de se chegar a uma situagio caética se se permitisse ao direito dos 48 Estados que divergisse acerca de quest5es em que a uniformidade se impée. Representantes de todos os Estados reuniram-se para elaborar conjuntamente para o futuro leis uniformes ou modelos e para trabalhar pcla sua promulgagdo em cada um dos Estados (5). Porque muito se tem escrito sobre a obra da Con- feréncia, bastar-nos-A remeter o leitor para as referencias insertas no volume de André e Susana Tunc sobre o direito dos Estados Unidos (6). Se bem que mecanismo seja lento e que a introdugio das leis nos (3) Ver texto em U, S, Foreign Relations [1874], pp. 789, 791 a 193. Cf, Journal du Droit International, un, 159 e 164 (1874). (A) Asser, De Veffet ou de U'éxécution des jugements rendus a Uétranger en matiore civile et commerciale, in «Revue de Droit International et de Légis- lation Comparées, n. 82, p. 83 (1869). (5) Ver a histéria e 0 estado actual das leis preparadas ou aprovadas pela Conteréncia Nacional em Handbook of the National Conference of Commissio- ners on Uniform State Laws. (6) A, & S. Tune, Le Droit des Etats. ques (Paris, 1955). Inis d’Amérique, Sources et techni- 199 = KURT H. NADELMANN Estados nem sempre se consiga facilmente, o éxito da Conferéncia é inegavel. O Canada seguiu o exemplo americano com a criagao da sua Conferéncia para a Uniformizagao da Legislagio no Canada (7). No plano internacional, 0 método da legislagao uniforme foi utilizado no interior da Comunidade das Nagées Britanicas (8) e, num caso, a legislacgao uniforme foi combinada com o método dos tratados para regular 0 reconhecimento reciproco das decisdes entre 0 Reino Unido e os paises do continente europeu (9). Mas 0 método ainda nao foi experimentado em elevado grau no plano internacional. Anotemos, con- tudo, um esforgo recente ; 0 da elaboragio pela Conferéncia Canadiana de uma lei uniforme sobre o reconhecimento das decisdes, lei que dispose que, sob a condigao de reciprocidade, qualquer nagdo estrangeira ou subdivisio de nagio pode gozar do beneficio da lei (10). A nomeacao, pela Conferéncia americana, de uma comissio especial para tratar do mesmo assunto leva-nos a pressagiar andlogo progresso nos Estados Unidos (11) Voltemos agora a nossa atengio para o outro método — as conven- gées mutilaterais — ¢ seus resultados. As primeiras do ponto de vista do tempo sao os Tratados de Montevideu de 1889 sobre o direito inter- nacional privado. Foram ratificados por muitos Estados da América do Sul que fazem parte do mesmo sistema de direito (12) e revistos num congresso realizado em 1939-1940. Até o presente, sé o Uruguai ¢ a Argentina ratificaram os novos textos (13). (7) Ver MacTavish, Unijormity of legislation in Canada, An Outline, «Canadian Bar Reviews, p. 36 (1947). (8) Ver Read, Recognition and enforcement of foreign judgments in the common law units of the British Commonwealth (1938). (9) Ver citages em Nadelmann, Reprisals against american judgments, «Harvard Law Reviews, n. 65, pp. 1184 a 1190 (1952), e «Revista de Derecho Procesal», Espanha, ano 10 (1954) p. 573. (10) Proceedings of the Conference of Commissioners on Uniformity of Legislation in Canada (1956) n. 82. (11) Handbook of the da National Conference of Commissioners on Uni- form State Laws (1957). (12) Ver Alfonsin, Curso de Derecho Privado Internacional, pp. 278-280 (Montevideu, 1955). (13) Uruguai: dec.-lei 10.272, de 12 de Novembro de 1942 ; Argentina : dec.-lei 7.771, de 27 de Abril de 1956. Textos na «Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales», Uruguai (1956). i9t METODOS DE UNIFICACAO DO D. I. P. a Em segundo lugar, cronolégicamente, estéo as velhas convengées da Haia sobre questées de estatuto pessoal, as quais foram ratificadas por muitos Estados da Europa continental, e a convengao da Haia sobre processo civil, ratificada por um importante nimero de paises. As con- venges sobre questées de estatuto pessoal, baseadas no principio da nacionalidade, tém sido denunciadas por diversos dos seus signatarios iniciais (14), e os esforgos para se encontrar uma nova base nao tiveram éxito até o presente. O esforgo de Antonio S. de Bustamante para fazer um cédigo inteiro de direito internacional privado para a América latina foi coroado de muito mais éxito. A grande maioria dos Estados da América latina ratificou a convengio de 1928 sobre o Cédigo de Bustamante (15). To- davia, 0 México e diversos paises ligados pelos tratados de Montevideu nao ratificaram a Convengio e alguns deles acrescentaram & ratificagio ressalvas que, em certos casos, tém o resultado pratico da nao-ratifica- cdo, por subordinarem a aplicagao das disposigbes do Cédigo & condi- Gao de essas disposigées nfo serem contrarias ao direito do pais (16). Ainda pelo que respeita ao Cédigo, todos os signatarios pertencem ao mesmo grupo de direito. Nominalmcnte, os Estados Unidos estavam representados nas comissdes de redacgo do Cédigo, mas, de facto, os delegados nao colaboraram na sua redacgao, e os peritos esto todos de acordo para dizer que o Cédigo, tal como se encontra redigido, nio é apropriado para regular as relagées entre os Estados da América latina ¢ os Estados Unidos da América. Os tribunais americanos nao poderiam aplicar 0 Cédigo, pela simples razdo das diferengas de terminologia juridica e de técnica de legislar. Na Escandinavia, os paises nérdicos também conseguiram celebrar convengées sobre questées de conflitos de leis (17). Ainda aqui os paises tém um direito similar e, como foi sublinhado em Barcelona (18), os (14) Ver Rabel, The conflict of laws. A Comparative Study, I, p. 30 (1945); Alfonsin, of. cit., p. 297. (15) Bolivia, Brasil, Costa Rica, Cuba, Chile, Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarigua, Panamé, Peru, Repiblica Dominicana, Venezuela. Alfonsin, op. cit., p. 297. (16) Por exemplo, no caso do Chile, Ver Albonico Valenzuela, Manual de Derecho Internacional Privado, I, p. 120 (Santiago, 1950). (17) Borum, Lovkonjlikter, p. 85 (4. edigdo, 1957); Rabel, op. cit. (18) Malmstram, op. cit. na nota 1, pp. 349 e 429. 192 = KURT H, NADELMANN paises escandinavos tém cooperado em grau cada vez mais elevado em matéria de lcgislago, preocupando-se menos com os textos uniformes do que com o: principios orientadores. Ja antes da iiltima guerra, a Conferéncia da Haia de Direito Inter- nacional Privado tinha decidido pér de parte as questdes de estatuto © ocupar-se de problemas de conflitos em matéria comercial. Na pri- meira sessin do pés-guerra, realizada cm 1931, celebrou-se uma con- vengao acerca da lei aplicavel as vendas com cardcter internacional de objectos mobilidrins corpéreos, Outras convengées foram adoptadas, sobre 0 reconhecimento da personalidade juridica das sociedades, a de- volugio © @ proceso civil (19), O Reine Unido a Irlanda tinham-se juntado aos antigos membros curopeus da Conferéncia e ao seu membro oriental, o Japao. Nenhuma das quatro convengées foi ratificada até © presente. Na Gra-Bretanha, 6 goveino informou o parlamento de que entendia nio dever propor a ratifi agdo da convengao sobre a venda io, na Gra-Bretanha interes- ngio sobre a devolugao (21). Nesta ocasiéo ainda na sua forma actual (20). Em compensa sam-se pela conv nao pode prever-se qual sera o destino desses projectos. Queremos con- tudo referir um incidente que diz respeito & convengao sobre a venda. Na sessio de 1956 da Conferéncia da Haia, uma delegacao sugerin algu- mas alteragies na convengio de 1951 sobre a venda. Uma das questoes levantadas refer se A lingnagem do art. 2. Segundo esse artigo, para que seja valida a designagdo pelas partes da lei aplicdvel, deve essa designagio ser objecto de uma clausula expressa ou resultar indubita- velmente dos termos do contrato, Segundo disse a delegagio, de har- monia com 0 costume comercial uma a designag Jdusula de arbitragem comporta dio da lei do lugar em que a arbitragem deve realizar-se. Manifestaram-se receios de que os tribunais se vissem impossibilitados de reconhecer essa designagao implicita por causa do texto do art. 2. A Conferéncia votou contra a rev 0 da Convengao, j4 assinada — em- (19) Ver Offerhaus, La 7." Session de la Conference de La Haye de Droit International Privé, in «Journal du Droit Internationaln, 79 (1952) p. 1070. (20) Hansard, House of Lords, 13 de Dezembro de 1955, col. 94. Ver Cheshire, Private International Law, p. 14 (5.* edigéo, 1957). (21) Ver First Report of the Private International Law Committee (1954, Cmd. 9068). Graveson, Conflict of laws, p. 75 (3.* edigéo, 1955). 193 METODOS DE UNIFICAGAO DO D. I. P. = bora nao ratificada — por muitos paises (22). Dizia-se que isso criaria um mau precedente. Depois da votagio, um delegado do pais que tinha recomendad> a revisio fez notar que sem divida a convengio nao seria tatificada, mas que 0 seu contetdo podia ser introduzido na legislagao interna com uma emenda do art. 2. Isto nos conduz as dificuldades que hi em formular regras de con- flitos de leis. Em nenhum pais o legislador conseguiu nunca formular regras de conflitos de leis de maneira inteiramente satisfatéria. As cri- ticas formuladas nos préprios paises o indicam. Se ha codificagées recen- tes que so elogiadas, sobretudo pelos seus autores, 0 decorrer do tempo demonstrari que a experiéncia se repete. A dificuldade provém da com- plexidade da matéria. As disposigdes sio redigidas com vista & reso- lugo de problemas particulares, e é manifestamente muito dificil prever todas as consequéncias possiveis de uma disposigio no dominio inter- nacional. Seja-nos permitido invocar experiéncias recentes. A convengio do Benelux de 1951 sobre uma lei uniforme de dircito internacional pri- vado (23) ainda nao foi ratificada. Muitas das suas disposigées foram objecto de criticas. Em Franga, onde a Comissio de Revisao do Cédigo Civil elaborou um projecto de lei sobre 0 direito internacional privado, © Comité Frangais de Droit International Privé fer a critica de um grande numero de importantes disposigdes do projecto, e uma forte mi- noria, composta sobretudo de juristas, pronunciou-se contra uma codi- ficagéo total (24). Se nos voltarmos para os Estados Unidos, vemos que a disp:-sigao sobre os conflitos de leis inserta no projecto de Cédigo de Comércio Uniforme tem sido severamente atacada (25). Acrescente- mos ainda: O Restatement tio conhecido do direito dos conflitos de leis, redigido, ha uns vinte anos, pelo American Law Institute, & neste mo- (22) Ver Actas da 8.* Sessdo da Conferéncia da Haia de Direito Inter- nacional Privado. (23) Texto em «Revue Critique de Droit International Privé, 40 (1951) Pp. 710. Ver Meijers, The Benelux Convention on Private International Law, in «American Journal of Comparative Law», 2 (1953) p. 1. (24) Ver Comité Frangais de Droit International Privé, La Codification du Droit International Privé (1956), Batiffol, Traité élémentaire de Droit Inter- national Privé, p. 20 (2." ed., 1955). (25) Uniform Commercial Code, arts. 1 a 105 (projecto oficial de 1952, fundamentalmente alterado na edigdo oficial de 1957). 194 = KURT H. NADELMANN mento objecto de uma revisio total. Do que se conhece do texto revisto, surgem evidentes as intmeras imperfeigdes do Restatement de 1934. Se a simples exposig&o das regras de conflitos de leis colhidas das deci- sdes dos tribunais origina tantas dificuldades, a codificagao e, sobretudo, compromissos internacionais acerca de uma regra ou de um grupo de regras requerem seguramente muita reflexdo. Mas nao é s6 a técnica da formulagio de regras que é dificil. O direito dos conflitos ou, para ser mais preciso, a compreenséo dos problemas’ de conflitos esté em evolugéo constante ; e 0 mesmo sucede com a compreensdo das possi- bilidades de evitar conflitos. Uma ccnvengao internacional gela forgo- samente 0 ditcito, e muito mais do que o faz a legislagio. As conven- gées continuam a vigorar mesmo depois de se thes reconhecerem os de- feitos. De cada jurisdigao se poderiam citar exemplos. Os Tratados de Montevideu conservam regras que o Instituto Argentino de Direito In- ternacional teria querido ver suprimidas como ultrapassadas (26). A uniformidade do direito é certamente importante, mas nao deve blo- quear o progresso do direito, A experiéncia com a legislacéo uniforme foi um pouco melhor. As organizagbes encarregadas da elaboragdo de leis uniformes nao tém hesitado em emendar ou refazer as leis, mesmo com o risco de pér momentancamente em perigo a perfeita uniformidade. A adopgo dos textos americanos nao tem criado dificuldades sérias. De facto, uma alteragio {eita por uma jurisdigao tem por vezes precedido a acgio do grupo que preparara a lei uniforme. Em teoria, a revisio de convengées multilaterais nao ¢ impossivel, mas falta uma experiéncia dessa natu- reza com convengées sobre direito internacional privado. Precisaremos de ver o que dara o trabalho de revisio do Cédigo de Bustamante. Dado que é pelo menos tao dificil conseguir a ratificagao das con- vengSes conio obter a promulgagao de uma lei, qual é o argumento em- pregado em favor das convengdes ? O argumento principal é que a uniformidade obtida por via de acordo corre o risco de se perder se as partes no se tiverem comprometido a manter em vigor a regra que foi (26) Ver citagdes na «Revista Juridica Argentina La Leys, 29, p. 902, nota (a) (1943). Cfr, Nadelmann, Legal treatment of foreign and do- mestic creditors, em «Selected Readings on Conflict of Laws», pp. 1073 e 1081 {editor Culp, 1956). 195 METODOS DE UNIFICAGAQ DO D. I. P. 2 objecto do acordo (27). Nés pensamos que isso simplifica demasiado o problema. Os delegados a uma conferéncia rednem-se, no para mer- cadejar, para fazer um deal, mas para encontrar a melhor solugo para os problemas que sio examinados. Se se estabeleceu acordo sobre a solugdo, a incorporag&o da regra aceita recomenda-se pelos seus méritos, € 0 mesmo sucede com a sua conservagio em vigor. O trabalho relativo @ unificagao do direito em matéria de conflitos nao é principalmente procurar compromissos entre dois ou mais paises. Quando se cncontrou uma regra satisfatéria acerca da escolha do direito aplicavel, por exemplo, & venda com cardcter internacional de objectos mobilidrios corpéreos, a aplicagio dessa regra nfo devia limitar-se aos paises signatarios do acordo. Nenhum pais quer ter duas regras sobre a mesma quest&o, uma satisfatéria e outra nio satisfatéria ou menos satisfatéria. Isto tem sido reconhecido, cada vez mais. Assim, a conven- ao sobre a lei aplicdvel 4s vendas com caracter internacional elaborada pela Conferéncia da Haia em 1951 obriga os signatarios a introduzirem as regras da convengio como direito comum na sua_legislagéo interna (28). Evidentemente, qualquer pais pode fazer isso sem se ligar por um compromisso internacional. © compromisso s6 torna a revisio das regras mais dificil, 0 que no constitui neces: tagem. O projecto de convengio sobre a venda no é 0 tnico destinado a criar direito comum aplicdvel a todos. A convengio do Benelux sobre uma lei uniforme de direito internacional privado dispée igualmente que a lei uniforme — contida num apéndice A convengao — ser intro- duzida no direito comum da Bélgica, da Holanda e do Luxemburgo. Em compensagdo, outros projectos de convencio da Conferéncia da Haia sao restritos. A necessidade de restringir a aplicagao das disposi- des aos signatdrios da convengio nem sempre é aparente. O facto de @ convengao de 1928 sobre o cédigo de Bustamante ter limitado a apli- cago das disposigées deste aos Estados signatérios é lamentavel e esta ‘iamente uma van- (27) Ver Actas da 8.* Sessdo da Conferéncia da Haia de Direito Inter- nacional Privado; Julliot de la Morandiére, La Huitine Séssion de la Confé- rence de la Haye de Droit International Privé em «Revue Critique de Droit International Privés, 46 (1957) pp. 1 ¢ 16. (28) Texto em «Revue Critique de Droit International Privé», 40, Pp. 724 (1951). «American Journal of Comparative Lawn, 1 (1952) p. 275. 196 = KURT H. NADELMANN em desacordo com as ideias modernas. Alids, os tribunais tem muitas vezes ignorado a restrigao e aplicado regras do Cédigo como se elas fizessem parte do direito comum. Naturalmente, pode haver boas razdes para restringir a aplicagao de certas disposigdes. As questdes relativas ao reconhecimento € 4 exe- cugo das decisées estrangeiras podem oferecer-nos exemplos. Hoje, 6 geralmente aceito que uma decisio proferida regularmente por um tribunal competente deve ser reconhecida em toda a parte (29). O prin- cipio do reconhecimento ¢ as condigées de competéncia que fazem parte da regra sio, por consequéncia, regras de direito comum e€ como tais devem ser encaradas. A concessio de facilidades especiais para a exe- cugdo de decisées estrangeiras pode, por outro lado, suscitar problemas adicionais. F. possivel que certas facilidades no sejam praticdveis sen&o entre paises de sistemas de dircito aparentados ou que tenkam conhe- cimentos reciprocos dos seus sistemas. Isso depende do género de faci- lidades a coneeder. Por outro lado, se se concedem vantagens finan- cciras, comw, por exemplo, assisténcia judicidria, é concebivel que se insista pela reciprocidade, e uma cldusula de reciprocidade devera adi- cionar-se 4 disposigio sobre assisténcia judiciéria inserta na convengio ou na lei uniferme. Também as clausulas restritivas se incluem tao facilmente numa lei uniforme como numa convengao. Quais sao, hoje, as probabilidades de celebrago de convengées mul- tilaterais em matéria de conflitos de leis ? Exceptuado o plano regional, slo dificcis de descortinar quaisquer possibilidades de progresso nesta direcgdo. Mas a necessidade urgente da unificagéo de regras essenciais faz-se sentir, actualmente, no plano mundial. Em vista, designada- mente, das dificuldades nascidas das reservas unilaterais, pergunta-se hoje se as convengdes multilaterais nao perderam a sua utilidade no plano mundial (30). Examincmos 0 estado dos esforgos de unificagao das regras de direito internacional privado no plano internacional. No plano mundial, ne- nhuma organizagio permanente se ocupa da matéria. Até o presente, (29) Ver citagdes em Nadelmann, Non-recognition of american money judgments abroad and what to do about it, em «lowa Law Reviews, 42 (1957) p. 236. (30) Schachter, The role of international law in the United Nations, em «New York Law Forum», 3 (1957) pp. 28 ¢ 42, 197 METODOS DE UNIFICACAO DO D. I. P. = a Comissio do Direito Internacional tem limitado os seus trabalhos ao direito internacional publico. Os seus membros nao sao especialistas de direito internacional privado. Apesar das recentes adesdes do Reino Unido e da Irlanda e da cooperagio do Japao, a Conferéncia da Haia de Direito Internacional Privado 6 sobretudo um organismo regional — continental europeu — com ligagdes especiais com o Conselho da Europa (31). Todavia, a Conferéncia da Haia nao tem limitado o seu trabalho a problemas regionais. Todos os problemas tratados nas duas Uiltimas sess“es tém significado mundial. Ja nos referimos & convengao de 1951 sobre a lei aplicavel 4s vendas com cardcter internacional de objectos mobilidrios corpéreos. Essa convengao foi preparada sem que se consultasse a primeira nagéo comercial do mundo. Os Estados Uni- dos nao foram convidados a tomar parte na Conferéncia senao mais tarde. A preparagdo também se fez sem a patticipagio da América latina, no obstante o facto de uma grande parte do comércio da Europa se fazer com « América latina. H4 responsabilidades mundiais que serio assumidas por um grupo restrito. Isto cria um problema sério, discutido em muitos lugares. No continente americano 0 trabalho empreendido é de caracter regio- nal. A Comissio Juridica Interamericana é uma instituigdo da Organi- zacio das Nagdes Americanas. Nem sequer representa o continente, visto que o Canada est ausente da organizagio. Ma Conferéncia de Haia, a Comissao Juridica Interamericana recebeu tare- fas que afectam os interesses mundiais. Um trabalho de unificagio das tegras de conflitos de leis no continente americano viria a merecer essa classificagéo, porque as relagdes com o resto do mundo seriam por ele afectadas. Falando dos Estados Unidos da América, 0s Estados da Unido, ou a Unido, nio desejariam certamente ter um grupo de regras para o continente e outro nas relagdes com o resto do mundo. A coope- ragio interamericana bem compreendida nfo pretende nada desse gé- nero. Provavcimente, a tarefa distribuida & Comiss&o Juridica Intera- mericana no que respeita ao Cédigo de Bustamante nao vai além de fazer uma tentativa de revisio do Cédigo em termos de o tornar aceith- vel para um numero ainda mais elevado de nacées da América latina, € isto tendo igualmente em atenc&o as regras de conflitos de leis apli- como no caso da (31) Ver o relatério do presidente nas Actas da 8." sessio. = KURT H. NADELMANN cadas nos Estados Unidos (32). Nessa tarefa, 0 estado do direito no resto do mundo e esforgos como os da Conferéncia da Haia também nao deveriam ser ignorados. Na falta de um organismo internacional que se ocupe dos problemas da unificagio do direito internacional privado, 0 Conselho Econémico e Social das Nagoes Unidas tem-se encarregado de tempos a tempos, como a antiga Sociedade das Nagdes, do encargo de prestar servicos nesta matéria, Assim, o Conselho tomou a iniciativa de convocar a Con- feréncia das Nagdes Unidas sobre Obrigagées Alimentares que se reuniu em Nova Torque em Junho de 1956 e que claborou uma convengio acerca da recuperacéo dos alimentos no estrangeiro (33). Os Estados Unidos nao estiveram representados na conferéncia. A razao principal, ao que parece, foi o facto de que 0 objecto da conferéncia se situa na competéncia legislativa, nio do Congresso, mas dos Estados individuais da Unio, e nao se encarava o uso do poder presidencial para concluir tratados. O projecto de convengao preparado para a conferéncia tinha sido moldado, respeitada a forma de convengio internacional, pela lei uniforme sobre a execugio reciproca de obrigagées alimentares que a Conferéncia Nacional (americana) dos Comissarios para as Leis Uni- formes tinh claborado para uso interno e que tinha sido adoptada pela grande maioria dos Estados da Uniéo (34). Nao nos parece improvavel gue o governo dos Estados Unidos se teria feito representar na conferén- cia se ela tivesse sido convocada para claborar quer uma convengio quer legislagic uniforme. Nao o dizemos para defender a auséncia dos Estados Unidos, pois, sem falar da questio da cooperagao internacional ¢ da protecgao dos interesses dos Estados da Unido, assim como dos da propria Uni&o, a questio de método poderia ser levantada na con- feréncia, como o foi mais tarde, scis meses depois, pelos observadores americanos na Conferéncia da Haia de Direito Internacional Privado. E uma ilustragéo da importancia das questdes de método. (32) Cfr. a resolugdo adoptada pelo Conselho Interamericano de Juris- consultos na sua primeira sesso (1950) com a adoptada na segunda sesso (1953), «Inter-American Juridical Yearbook» de 1952-54, p. 169; idem de 1950-51, p. 360. (33) Ver Maurtua, Coordinacion de los movimientos americano y mun- dial de codificacion, idem 1952-54, p. 53. (34) Ver Contini, The United Nations Convention on the recovery abroad of maintenance, em «St, John’s Law Reviews, 31 (1956) p. 1. 199 METODOS DE UNIFICACAO DO D. I. P. = Isto faz-nos reverter a0 nosso ponto de partida. Aparentemente, no plano mundial a unificagio das regras de conflitos de leis ndo pode conseguir-se por meio de convengées multilaterais. Este método parece ter possibilidades sémente no plano regional. Contudo, 0 nosso velho mundo torna-se cada vez mais apertado, a uma velocidade alarmante, e a uniformidade no plano mundial deve ser obtida em matéria de con- flitos de leis naquilo em que a falta de uniformidade prejudique as relagdes internacionais. O mundo tem necessidade de uma lei uniforme para as veidas com cardcter internacional. Até o dia em uma tal lei for conseguida, deve estabelecer-se acordo sobre a questio de saber qual é a lei aplicdvel a uma venda com caracter internacional. O comér- cio necessita de certeza acerca de tal questio. Do mesmo modo, 0 re- conhecimento e a execugio das decisdes estrangeiras devem ser asse- gurados, e os exemplos poderiam multiplicar-se. Devem experimentar-se métodos novos, em harmonia com digdes e a experiéncina modernas, para se atingir a uniformidade. A legislagio uniforme 6 uma dessas possibilidades. E preciso aprovei- t-la. Isso compreende a educagio das massas e dos parlamentos para reconhecereia o interesse pratico e desejavel da colaboracio interna- cional na elaboragio de regras uniformes de conflitos de leis e na sua adopgao. Infelizmente, esse reconhecimento ainda nem sequer atingiu todos os juristas profissionais. $6 os especialistas o compreenderam. Todavia, nao faltam indices de progresso. Na Europa, a presenga de observadores americanos na ultima sessio da Conferéncia da Haia de Direito Internacional Privado e as suas sugestées relativas 4s ques- tées de método despertaram a atengao geral. Nos Estados Unidos, a Conferéncia Nacional dos Comissdrios para a Uniformizagio das Leis dos Estados tomou a iniciativa extraordindria de recomendar 4 Asso- ciagdo dos Advogados Americanos a criagio de uma comissio especial para investigar o que se faz actualmente no mundo em matéria de unificagdo internacional do direito privado. A comissio foi nomeada deve apresentar o seu relatério dentro de um ano (35). Encontramos no continente americano os primeiros sinais do reconhecimento da im- portancia do método. A Comissao Juridica Interamericana elaborou um con- (35) Ver Nadelmann, Les Etats Unis diAmérique en face des problémes unification internacionale du droit privé, em «Revue Internationale de Droit Comparén, 9, 4 de 1957. 200 = KURT H. |ADELMANN projecto de regras uniformes sobre arbitragem comercial. Na sua tltima sessfio, 0 Conselho Interamericano de Jurisconsultos decidiu (36) recomendar que, na medida do possivel, as Nagdes Ame- -anas adoptem na sua legislacao, de harmonia com os seus preceitos constitucionais, 0 projecto de lei uniforme sobre a arbitragem comercial interamericana com a forma que pare- cer preferivel & sua respectiva jurisdiggo. Esta mancira de proceder afigura-se-nos extremamente pratica (37), © © método devia ser experimentado na obra de unificagao das regras de direito internacional privado. Suficientemente apoiado, o método pode produzir bons resultados, ¢ novas avenidas seriam rasgadas a caminho do éxito, N, da R,—A X Conferéncia da Inter-American Association adoptou a seguinte resolugdo : «Considerando : As dificuldades encontradas nos esforgos e trabalhos tendentes 4 unificagao das normas de conflitos de leis através de convengées plurilaterais ; Kesolve : Recomendar, nos esforgos para unificar as nor- mas de conflitos de leis, 0 uso de legislagdo-tipo ou uniforme, cfou de convengées plurilaterais ; Solicita : Do secretdrio-geral da Associagao que leve esta resolugie ao conhecimento do Conselho Interamericano de Jurisconsultos ¢ do Comité Juridico Interamericano.» ‘Tradugio do Jornal do Féro (36) III sessio (1956) do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, acta final, resolucdo VII, Annals of the Organization of American States, 8 (1956), pp. 121 e 128, (37) Ver sobre os métodos : Jessup, Transnational law, p. 109 (1956): Chauveau, Des Conventions portant Loi Uniforme, em «Journal du Droit Inter- national», 83 (1956), pp. 570-580; Vallindas, Réflexions sur la conclusion des conventions de Droit International Privé wniforme em «Due scriti di Diritto Internazionale in onore di Tomaso Perassiv, pp. 353-359 (1957).

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