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V de Varlam: Chalámov e

sua Paixão Pelos Livros


Caloan Walker

Minhas Bibliotecas
Varlam Chalámov
In: A Paixão Pelos Livros, 2004, 152 pp.
Editora Casa da Palavra

Em um livro rico em relatos de escritores e personalidades diversas ligadas aos livros de


alguma forma, Chalámov deixa claro já no título que se trata de um conto auto-
biográfico; o que o destaca, contudo, é o frio seco da angústia que ele causa no leitor
com sua históriainter-carceres sobre como a única coisa mantendo-o aquecido na
hipotérmica região soviética era o esporádico contato com os livros, o hábito literário
e a esperança de conseguir angariar preciosos compêndios para formar sua onírica
biblioteca particular num tempo de tolerância zero aos bibliófilos sob a ditadura stalinista.

Apesar de ter sido delatado às autoridades vigentes pelo próprio cunhado, pelo simples ato
de ter adquirido uma coleção de livros considerados pelo aculturado quase-parente como
“literatura suspeita”, Chalámov não perde tempo ruminando mágoas; pega então o leitor
pelas mãos e o leva a Butírskaia, uma espécie de purgatório onde qualquer leitura era
liberada para os detentos justamente por se tratar, muitas vezes, da última.

Passa-se quase uma década até que o autor tenha algum contato com os tão amados
livros, eis que uma doença o livra do penoso trabalho mineiro e ele se vê frente a frente

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com A queda de Paris, de Erenburg. Após tanto tempo de abstinência textual,
naturalmente seu cérebro o castiga pela absurda mas compreensível subserviência.

A forma como Chalámov narra esse primeiro reencontro (e, em partes, alguns outros ao
longo do texto), ávido com seu instinto de auto-preservação e fomentação da vida intelectual
e da sensibilidade inerente a essa, muito se assemelha em espírito com uma cena do filme
V de Vingança(2005).

O longa do diretor James McTeigue conta a história de um sujeito meio anti-herói conhecido
apenas por “Codinome V” (Hugo Weaving) que almeja reavivar na mente dos ingleses do
século XXI o que representou o 05 de Novembro de 1605 no passado da Inglaterra –
usando uma máscara de Guy Fawkes, símbolo-mor da Conspiração da Pólvora que falhou
pela sua prisão, V pretende explodir o Palácio de Westminster para matar os
representantes do governo ditatorial instaurado pela manipulação da opinião pública
através da manjada tática do pânico (falsas epidemias e campanhas anti-terror). Todavia
nesse processo V resgata Evey (Natalie Portman) das mãos dos Fingermen (polícia secreta)
ao desrespeitar o toque de recolher e posteriormente quando ele invade uma emissora de
TV para propagar suas idéias e denunciar as falácias do Parlamento para toda a população.

Evey, cujos pais foram ativistas políticos contra o governo, é declarada então inimiga do
Estado ao se aliar a um terrorista, fato só entendido pela mesma ao acordar num ambiente
estranho, com toneladas de livros em inúmeras prateleiras. Ela ouve os ideais de V e
decide ajudá-lo, no entanto o medo da morte iminente fala mais alto e no meio de um dos
planos ela foge.

A jovem é por fim detida após a morte de um amigo que a hospedava; encarcerada, é
também torturada à la cartea fim de revelar às autoridades a identidade do terrorista
mascarado, quando descobre numa fenda de sua cela pedaços de uma longa carta escrita
diariamente em papel higiênico por uma homossexual vítima da tirania inglesa de então.
Todos os dias Evey retornaria à cela após horas a fio de tortura, e a única coisa mantendo a
sanidade da moça, que testemunhou o assassinato dos pais ativistas em sua própria casa

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ainda uma tenra criança, é cada palavra escrita num pedaço pequeno de papel higiênico.

Chalámov pode não ter tido vizinhos tão solidários assim na penitenciária, mas contou
com a sorte do acaso mais de uma vez. Antes do contato com A queda de Paris, por
exemplo, apareceu uma boa alma chamada Vladimir Mikháilovtch Smirnov, seu superior
e ex-presidiário, que inclusive se arriscou ao lhe pôr a par, através de uma pilha de
jornais, de um processo importante da época envolvendo Ríkov.

Enquanto muitos leriam os relatos de Chalámov como uma série de desventuras apenas,
poucos poderiam entender que em realidade a sorte muitas vezes é irônica e beira a
sordidez. Não fosse por uma doença, não teria ele passado pelo Milagre de Erenburg,
tampouco teria ele chegado a um hospital de tratamento digno em Biélitchia, onde se
encontrou com A juventude do rei Henrique IV, de Heinrich Mann, se uma enfermidade
não o acometera.

É necessário perceber que a história da ligação de Chalámov com os livros (que definiu todo
o enredo da sua vida) resume-se em uma palavra: resiliência . Não tivesse ele essa
habilidade de acumular energia, notavelmente a energia mental, através da sede de leitura,
certamente teria caído na leviandade e por conseqüência no conformismo.

E conformismo é a eutanásia dos intelectuais, das pessoas cultas; consiste em aceitar


aqueles discursos mansos, recheados de falso humanismo e argumentos que assassinam
debates, trocas de idéias, debates esses que ao morrerem nos ouvidos selados dos
conformistas que buscam justificativas até no sobrenatural, se for possível, para – mesmo
que inconscientemente – evitar mudanças, são escoados para as páginas de um bom livro.

A prisão é uma punição que ao menos deveria ser eficaz. Quando se é preso por
arbitrariedade e se é sabido que nada pode ser feito para ser solto, nem mesmo ter seu
caso julgado justamente, é necessário buscar refúgio em algo útil como a própria razão
humana, a qual geralmente vem em forma literária. O que Chalámov e Evey buscavam
nos textos não eram palavras prolixas ou clichés, mas a passionalidade racional do

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Homem, aquela presença intocável, virtual, de outrem, até em meio à hostilidade e a
indiferença.

Obra original disponível em:


http://www.overmundo.com.br/banco/v-de-varlam-chalamov-e-sua-paixao-pelos-livros

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