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Curriculo, Diversidade e Politicas Publicas Multiculturalismo e educagao: carta aos professores brasileiros, segundo inspiragao de Paulo Freire Manuela Guilherme” Multiculturalismo e educagio parece paradoxo. Como conciliar dois con- ceitos aparentemente irreconciliéveis nos objectivos originais dos sistemas educa- tivos, nomeadamente, a alfabetizacdo (em um determinado sistema) ¢ o desenvol- vimento da literacia (em um determinado padrao)? Serd de criar uma linguagem e um conhecimento comuns ou de privilegiar a emancipagio pelo reconhecimento e enriquecimento da diferenga. Serdo incompativeis? Os préticos tentam encon- trar um equilibrio no seu dia a dia, e os te6ricos desenvolvem suas perspectivas em todo 0 espectro desse dilema. A mudanga educacional é 20 mesmo tempo sedutora e intimidadora para todos os envolvidos porque, uma vez iniciada, tem o potencial para transformar no apenas os individuos, tanto professores quanto alunos, em nivel profissional e pessoal, como também a sociedade. Essa pode ser a razéo primeira pela qual os politicos da educago sao cautelosos em relacao 4 mudanga e optam frequente- mente por introduzir muitas alteracdes de imagem, mantendo, no fundo, o status quo. Essa pode ser também a razo pela qual a maior parte dos educadores se sen- tem receosos de realizar mudangas nos contetidos curriculares e nas suas préticas lectivas. Contudo, os desafios politicos, sociais e econémicos das sociedades con- temporaneas tomam a mudanga imperativa no sistema educativo. A fim de atingir esse objectivo, Fullan (1993, p. 3, grifo do autor) sugere que “[...] para chegarmos ao amago do problema temos de o formular de modo diferente, seguir um outro caminho, por assim dizer. Precisamos, em suma, de uma nova perspectiva em re- lacdo & mudanga educativa. [...] Sem essa mudanga de mentalidades, o problema bésico e insuperdvel é a justaposigdo de um discurso continuo de mudanca e um sistema educativo que nao deixa de ser conservador.” Um dos maiores desafios que os sistemas educativos enfrentam hoje é a dinamica de uma sociedade sempre em mudanca e a interaccdo entre o global e 0 local, isto é, a necessidade de enfrentar tanto a diversidade quanto a globalida- de no mesmo contexto. Nocées essenciais, como 0 tempo, espaco ¢ identidade * Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. 45 Diversidad, Multicuturalismo e Educagao esto constantemente a ser questionadas. As fronteiras entre as nagées, culturas, linguas, classes sociais, ragas, comunidades trabalhadoras e disciplinas tornam-se mais complexas e permedveis. “Ao mesmo tempo que existem vérias camadas na identidade de cada um, existem miultiplos discursos de identidade e miltiplos discursos de identificagdo a ser negociados.” (THE NEW LONDON GROUP | 1996, p. 71). A educacéo em geral néo poderd evitar esse contexto e deveré desempenhar um papel importante na preparagao dos alunos para ultrapassarem | fronteiras — linguisticas, culturais, sociais, politicas, raciais — porque os descobri- dores, border crossers na terminologia de Giroux (1992), serio cidados dotados de maiores capacidades para 0 sucesso pessoal, social e econémico. | Em um estudo realizado em Portugal, no ambito de um projecto europeu | Intercultural Active Citizenship Education (Interact), financiado pela Comis- | sio Europeia (www.ces.uc.ptlinteract), e de um projecto nacional Intercultura: Formacdo de Professores, financiado pela Fundagéo Calouste Gulbenkian, am- bos coordenados por Manuela Guilherme e focando a dimensio intercultural da educacao para a cidadania em relagdo formacao de professores, conduziram-se entrevistas individuais e em grupo a professores de varias disciplinas do ensino bisico e secundério sobre as suas ideias, conhecimentos e prdticas quanto a edu- cagéo para a cidadania intercultural. Assumindo que a educacio para a cidadania é considerada como educagao para todos, e a educagao multicultural ou intercul- tural € vista como educagao para alguns (de elite ou de deficit, consoante origens lingufsticas e culturais), procura-se explorar uma dimensio intercultural na edu- cagdo que seja para todos emancipatéria e dialogante. Comegémos por indagar sobre 0 exercfcio individual de uma cidadania ac- tiva do préprio professor e do impacto dessa pratica cidada na pratica da docén- | cia. Um dos professores admitiu que: “[...] também nés, professores, temos que fazer alguma coisa, e nao sé [...] ndo estamos a dar 0 exemplo, como nao estamos a incutir esse espirito de cidadania nos nossos alunos.” (815-825) FG-B7. Como € que os professores articulam a ideologia e a sua pratica cidada com a sua vida profissional que tem por si s6 uma accio interventora tio forte, seja em que direc- cao for, quer seja deliberadamente consciente, quer seja pretensamente neutra? Sobre esse assunto, outro professor concluiu ainda: “ eu sou uma cidada pas- siva com um discurso activo [...] a minha prdtica quotidiana quer alguma revisio.” (21: 1005-10 10) FG-C 1. Embora com pouco tempo para reflectir sobre suas praticas, os professores, mesmo assim, interrogam-se sobre elas, sobre a raiz e o impacto delas: “E mais como uma responsabilidade que as vezes me pesa um pouco. [...] e continuo a ter algum 46 ! ‘Multiculturalism e educacdo: carta 20s professores brasileias. poder, quer queiramos, quer nio [...] naquilo que transmitimos e, portanto, é uma responsabilidade no aspecto da cidadania. Ao tentar passar-lhes os valores, porque 6 subjectivo, porque nao [...]” (1250) FG-F4. Fala-se muito em atitudes e valores que os professores devem incutir aos seus alunos. Quais atitudes e quais valores, em uma educagao que se diz. multicultural? Tudo vale? Nada é discutivel? A proposta € que 0 respeito e 0 diélogo devem imperar, baseados no conhecimento e na firmeza de principios solidos alicercados na consciéncia de perspectivas miiltiplas. Os professores estdo conscientes de novas vias para o conhecimento, de novos meios de aprender, que a escola nao apenas nao pode ignorar, mas que tam- ‘bém deve optimizar quando elas esto acessiveis: Pelo menos na minha rea, que é a informética, vejo, por exemplo, a Internet como um bombeiro[...] interculturalidade dos alunos, no sentido em que eles tém acesso a (...] tém ali & mio, tém acesso a contetidos [...] em diversos paises do mundo. Desde Franga, Ingla- terra, Estados Unidos, e conseguem ter acesso a documentos, a vide- 0, a imagens, tudo feito nesses varios paises. Penso que a Internet, por exemplo, serd uma boa maneira de fomentar essa interculturali- dade. (1145) FG-Al. Os professores nao tiveram diividas em reconhecer a importancia de um conhecimento estruturado dos documentos internacionais para a formagio dos professores: “[...] 0 que € educaco para todos, essas coisas todas; vém esses di- plomas internacionais que, muitas vezes, nds também ignoramos alegremente, nao é. Porque nao é obrigatério {...]” (20:955-960) FG-G4, embora nao o tenham demonstrado, na generalidade. Alguns professores referiram que, dado que a formacio de professores nao é forte nessa drea, as abordagens acabam por depender das posigées ideoldgicas de cada professor e do modo como cada um vive subjectivamente o seu sistema democritico. Para os professores portugueses, a vivéncia da Revolugao de Abril ainda determina intensamente sua pratica quotidiana bem como a das institui- Ges: “[...] também depende muito de [...] nossa maneira ideolégica de pensar as coisas [...] Quem passou e viveu Nao sou capaz de desistir. E, portanto, aquilo que cresceu conosco, na nossa juventude, o que passdmos, 0 25 de Abril, algumas coisas [...]” (30:1490) FG-H4. Para além disso, seu conhecimento multi- cultural advém das suas experiéncias casuais, esporddicas e voluntarias: “[...] tudo que aprendi foi por iniciativa prépria, por experiéncias, por contactos com outras culturas, com outras gentes.” (340-341) B2. E ainda not6rio que essa experiéncia acabou, frequentemente, individual, perdida, subjectiva. 47 Diversidad, Multicuturlismo e Educacao Os professores aliam muito a diversidade cultural & existéncia de proble- mas sociais, como se tratasse de um destino irrevog4vel: “[...] dou as praticas de acco social, mas af certamente se vai abordar, até porque faz parte do programa falar sobre minorias étnicas e outras minorias, e os problemas ligados a toxico- dependéncia e ao alcoolismo, e essas coisas todas, portanto, af terd mesmo de se abordar, nao é? Agora, economia nao vem tanto a baila, quer dizer, informalmen- te, néo se aborda muito as coisas.” (42-45) A2. E a escola reflecte claramente a inquietacéo da sociedade: “[...] 0 grande problema hoje das escolas é a indiscipli- na. A indisciplina é 0 resultado de toda uma sociedade violenta e de um ambiente familiar.” (222-224) A3. A caréncia das necessidades basicas justifica a falta de expectativas, de motivacao e de inspiracao para o didlogo intercultural: “E evi- dente que uma pessoa cansada, com fome, sem perspectiva de emprego nao tem muita tolerancia para nada, nem para si proprio, porque esté mal consigo, porque é dificil! Portanto [...] no dia a dia, ser capaz de tolerar o outro depende muito das circunstancias que se esté a viver.” (796-801) E4. Hé supremacia econémica de alguns que parece fazer tudo possfvel, até a disponibilidade para a diferenca. A supremacia cultural unilateral também tem sido poderosa, mas os professo- res sentem que estd a ser posta em causa: “Durante algum tempo, o ocidente considerou-se superior as outras culturas e tinha como objectivo transformar as outras, de certa forma, converter essas outras culturas diferentes aos valores que considerava universais [...] Ah [...] e infelizmente estamos a perceber de uma for- ma dolorosa que aquilo que 0 ocidente entendia como universal nao é entendido pelas outras culturas.” (599-605) LI. Esse processo nio é pacifico, nem sequer nas escolas, ¢ o professor sente-se apanhado no meio de forcas diversas e de interesses contraditérios. E os professo- res‘oscilam entre os limites que lhes so impostos no exercicio das suas fungdes e a grande expectativa na sua misséo: “Eu acho que um educador intercultural seré um educador que [...] na sua prética consegue educar, qualquer aluno de qualquer [...] ponto do mundo. E que é conhecedor de varias culturas [...] E um educador do mundo.” (291-293) 02. Contudo, sdo, em alguns casos, peremptérios: “Eu acho que deviamos repensar o conceito de escola em alguns aspectos.” (434) A3. Sentem que, nos parametros em que esté, a escola “ensinante” quase parou no tempo e néo esté a corresponder as press6es das sociedades contemporaneas multiculturais. Para esse efeito, cada professor necesita de ser especificamente formado &s fungGes particulares de educador intercultural. A escola que ndo quer promo- ver “uma monocultura do saber", na terminologia de Santos (2006), requer que 08 seus educadores se empenhem, capazes, em “uma ecologia dos saberes”, no ‘Multiculturalism e educagdo: carta aos professoresbrasileros.. sentido de que estimule a exploracao dos diferentes saberes, em uma busca séria e sem se deixar perder no sentido do caminho que vai conscientemente deline- ando. Essa exploracio dos saberes s6 pode ser credivel se seguir a via do diélogo reflexivo e critico. Este s6 pode iniciar-se na interrogagdo e no questionamento: ...] se uma cultura se considera inabalavelmente completa nao tem interesse em envolver-se em didlogos interculturais.” (SANTOS, 2006, p. 425). No entanto, a aprendizagem constréi-se, nao fica permanentemente em deserto, mas quando chega, j4 est pronta para partir de novo. Os professores brasileiros geraram no seu seio o grande teérico da educa- cdo do século XX, Paulo Freire, em cuja obra, os educadores e te6ricos de todo 0 mundo vio beber. José Eustéquio Romo cita Freire, sem descanso: “[...] ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo [...]” (ROMAO. apud FREIRE, 1978, p. 79) e prossegue ele préprio: " [...] ou dito de outra forma, s6 pode ensinar ~ nao educar — quem incorpora o princfpio da incerteza. E, com base nele que é possivel estabelecer o fundamento dialéctico do processo de cons- trugao de conhecimento e a directriz pedagégica da transformagio do educando na centralidade do processo educacional.” (ROMAO, 2002, p. 114). O princfpio da incerteza é 0 princfpio da convivéncia multicultural e do diélogo intercultural. O principio de incerteza no presente, mas da certeza no futuro, que se constréi mais s6lido e coerente, mais humano e esperangoso. ‘A educacio para uma cidadania multicultural e intercultural assenta os pés no seu chao, mas olha longe: A cidadania, como uma forma de aquisigio de poder, implica cla- ramente a aquisicéo de capacidades que nos permitam examinar criticamente a histéria e ressuscitar as memGrias perigosas através das quais 0 conhecimento expande as possibilidades de autoconhe- cimento e de actuagéo critica e social. Nem s6 0 conhecimento in- digena nos confere poder. Os individuos devem estabelecer alguma distincia relativamente ao conhecimento do seu bergo, das suas origens e da especificidade do seu lugar. Isto implica apropriar-se daqueles conhecimentos que emergem da dispersao, das viegens, das, transgressdes de fronteiras, da didspora ¢ através das comunicacées slobais. (GUILHERME, [2005], p. 134). O desenvolvimento de uma consciéncia cultural critica permite abragar, vi- ver, sentir e apreciar a vivéncia das culturas, mas nao deixando de, ao mesmo tem- po e em uma articulacdo nem sempre tranquila, examinar e ponderar as miiltiplas tensdes e relacdes que impéem restrigdes e geram possibilidades (GUILHERME, 2002). Cabe aos professores a dificil tarefa de ajudar a construir 0 mundo. 49 Diversidede, Mulicuturlisnoe Educacdo Agradecimento A minha equipe do Projecto Interact: Olga Solovova, Ricardo Cabrita e Graca Costa, que conduziram algumas das entrevistas e organizaram os dados coligidos. REFERENCIAS FULLAN, M. Change Forces: Probing the depths of educational reform. London: The Falmer Press, 1993. GIROUX, H. A. Border Crossings: Cultural workers and the politics of education. New York: Routledge, 1992. GUILHERME, M. Critical Citizens for na Intercultural World: Foreign language education as cultural politics. Clevedon: Multilingual Matters, 2002. - In: Revista Critica de Ciéncias Sociais, p. 134, [2005]. Entrevista concedida a Henry Giroux. ROMAO, J. E. Pedagogia Dial6gica, Sao Paulo: Cortez, [2002]. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramética do Tempo: Para uma nova cultura politica. Porto: Afrontamento, 2006. THE NEW LONDON GROUP. A pedagogy of muttiliteracies: Designing social futures. Educational Review, v. 66, n. 1, p. 60-92, 1996. 50

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