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Mediacoes simbolicas: a imagem como vinculo social Tradugio de Juremir Machado da Silva Michel Maffesoli Professor de Sociologia no Sorborme, Paris V Diretor de Centro de Pesq, sobre 0 Atual eu Quotidiano Jo Centro de Pesg, sob o Imagine (CRI) Revaila FAMECOS # Ports Allegn SADK-St QUE, EMCCIONADOS, OS amantes falam mais do amor que @s une quando este jé nao existe mais. Lembremo-nos, nesse sen- tido, do grito de Rimbaud pedindo para ser enfaticamente modemo. Encantagao? Invecagio? Em tode caso, injungao para doxal na medida em que ocorre quando a modernidade atingiu © seu apogeui ¢ s6 pode entao dectinar. Mesmo paradoxa que, um século depois, caracteriza a dificulda de dos intelectuais para abordar, serena- mente, 0s problemas ligados ao fim, me mo hipotético, dos tempos modernas ¢ considerar as conseqiiéncias sociais, epis= temoldgicas ¢ existenciais desse fendmeno. Sine ire et adio: nao & assim que se deveria estudar a evolugao social? A célera eo medo sao, com freqiéncia, o elemento in- consciente da andlise intelectual. O édio do mundo é quase uma segunda natureza para os que se arrogam o poder de ditar que “deve ser” o individuo e a socieda- de, em detrimento, claro, do dever de reco- nhecimento do que ¢, Precisamos de sere nidade na pratica do conhecimento. que “nasce com” (cum nascere) uma realidade complexa Essa realidade, para retomar uma expre: sdo de Schopenhauer, “é puramente relat ou Seja, todo objeto ou fendmeno esta ligado a outros ¢ ¢ por eles determinado. Em conseqiiéncia, fica exposto a mudanga @ a0 acaso ou, em sintese, & instabilidade geral das coisas; significa dizer que o que é nao necessariamente sempre o foi © nao necessariamente sempre 0 sera. Da mesma forma, as categorias elaboradas numa de- terminada época nao sao eternas e deve ser revisadas se quisermos compreender, com menor imprecisio, a evolucao em va 8 + jth 1998 « semestral = questio, cujos efeitos ¢ muito dificil, empi- Ficamente, negar, O relativismo do qual se trata aqui consis- te, portanto, em colocar em relagio os di- versos elementos da vida e em considerar ¢ fluxo vital, por definigag, incessante. EI mentos que tornam caducos os dogmatis- mos © favorecem a sensibilidade tedrica que privilegia a humildade das coisas & pretensio dos conceitos. Assim, ndo se tra ta de ser “pos-moderno”, como se poderia ter esta ots aquela identidade, mas antes de utilizar uma palavra, simples nocio, como 0 fermento metoduligico mais adequado possivel para compreender relagoes ¢ fend- menos sociais ainda em estado nascente, mas dos quais 6 dificil recusar a importan- cia quantitative e qualitativa. Em resumo, vale mais ser um socidlogo da pés-moder- nidade de que um socidlago pés-moderno! E nos perfodos de mudancas civilizacio- nais que importa ser, para citar mais uma vez 0 revigorante Schopenhauer, um “Sel- bstdenker”, 0 que se pode traduzir por pen- sador livre. Interessa mais a preocupacaa com um procedimento altaneiro do que com a pritica intelectual mesquinha, bas- tante comum, de adaptacio de grandes conceitos a pequenos pensamentos. Isso poder levar a nao se temer a pos-moder- nidade, desde que nos contentemos em identificar nela uma nova fase do inexors- vel processo baseado na saturacdo, em cer- to momento, dos valores que regeram, av longo de um periodo mais ou menos longo, © estar-junto social. Trata-se pois do que a Filosofia da Idade Média chamava de “con- digao de possibilidade”, premissa de toda pesquisa em profundidade: delimitacao de um recorte, identificagao das linhas de for- a, avaliagao das categorias em jogo. Se permanecemos classicos, isso tem uma “pars destruens" © uma “pars construens”. Nao ¢ 0 caso de afirmar-se, infantilmente, por oposigio, mas de ver 0 que cessa para melhor apreciar o que tende a ocupar-the o Tuga. Nos momentos fundadores, deve-se precisar também isso, nao € possivel criar sistemas ou ser “autor de manual”. Assim, como se pode dizer em relagio a Mareel Mauss num contexto nao necessariamente diferente, & preciso saber, se queremos co- nhecer em profundidade o que germina, formular hipoteses ¢ propor pistas de refle- xao audaciosas ou mesmo pouico canoni- cas, Logo, de onde viemos? Quais sio 0s valo- res sociais que, progressivamente, se impur seram para constituir a chamada modemi dade ou, mais exatamente, a “pos-medievali- dade"? Sabemos que nada ¢ eterno. Tudo se quebra, tudo passa, tudo cansa. O que nos parece da ordem da evidéncia foi elabora~ do-a partir da implosao da dade Média. Ha uma expresso de Auguste Comte que sintetiza bem essa evidéncia moderna: “re- ductio ad unum”. E verdade que, em todos 5 campos, a unidade do mundo ¢ das re- presentagdes lentamente prevaleceu. Tal unificagao pode ser observada em todos as 4reas, mas de maneira esquematica é espe- cialmente visivel no que diz respeito ao politico, ao social ¢ a ideologia Ha, naturalmente, interagao constante en- tre esses elementos, mas © politico pode servirthes de fundamente, Exemplo disso 6a constituigao do Estado-nagao, Certo, ha © caso Francés, ou mesmo o ingles, centrali- zado muito cedo, mas é no sécula XIX e, mais precisamente, em 1848, na Europa, que se afirma, com vigor, o sentimento na- cional ou mesmo nacionalista. Assim, as ersas particularidades regionalistas, as especificidades locais, os muiltiplos diale- tos, 05 usos ¢ costumes, os modos de vida e mesmo as instincias de administragao ou de governos provinciais sa, pouco a pou- £0, esvaziados, suprimidos, em prol dos es tados nacionais e dos seus organismos re- presentativas. Tudo isso em nome dos valores universa- listas e da organizagao racional da socieda- © Resfiba FAMECOS « Porta Alage «wi 8 ull 1996 » seat de, Conforme a expresso de H. Arendt, 0 bem comum tende a uniformizar-se em re- feréncia a um “ideal democratico”, negan- do 05 miltiplos enraizamentos locais que caracterizaram a Idade Média e os seus feudos. © mesmo vale para as instituicdes sociais. (Os trabalhos de Norbert Elias e do proprio Michel Foucault, ou: os de inspiragao fou- caldiana, bem focalizaram o lento processo de “curializagao” ou de domesticagao dos costumes que desembocou na constituicio “do” social, isto 6, de um estar-junto singu- larmente mecanizado, perfeitamente previ- sivel e essencialmente racionalizado. “Ra- sionalizagao generalizada da existéncia”, segundo Max Weber, 0 que, em termos de tendéncia, é irrefutavel. Em todo caso. tal processo presidiu o nascimento de uma fa- milia cristalizada na sua estrutura nuclear, © que permititi a “muse au travail” & engen- drou as grandes instituigdes educativas, as do trabalho social, sem esquecer a da sati- de e dos diversos “encarceramentos” que marcaram as séculos XIX e XX. ‘Ao corrigir, tanto quanto podia, os efeitos perversos do devir econdmico do mundo e do seu produtivismo inerente, tal “social” trouxe uma inegavel seguranga a maioria. Mas, ao mesmo tempo, ¢ no sentido literal do termo, “enervou" 0 corpo comunitario transferindo para instincias longinquas ¢ abstratas o cuidado de gerir o bem comum ¢0 vinculo coletivo, Tudo isso me levou a dizer que, sob muitos aspectos, assistiu-se 4 instauragao da “violéncia totalitdria”, a qual, invertendo a terminologia de Du- rkheim, permitin o deslizamento da “soli- dariedade orginica", mais proxima do co- tidiano, para a “solidariedade mecanica”, promovida por uma tecno-estrutura auto- proclamada como garantia do bom funcio- namento da vida social. Triunfo dos experts de todo género, conhecedores, a partir da incontornavel logica do “dever ser”, da maneira correta de pensar e de agir. Em tal Jégica, o mundo tornou-se estranho mesmo aos que nele vivem.* Enfim, yale o mesmo para a ideologia, no sentido literal do termo, isto é, 0 conjunto die representacoes através das quais uma época se descreve a si mesma, Assim, na contramao das mitologias, dos contos e das Jendas estruturalmente plurais da pré-mo- demidade, assiste-se a uma homogenciza- a0 crescente, Lembremo-nos do que J. F. Lyotard chamou de “grandes narrativas le- gitimadoras”. Poucos e, para além de algu- mas variagdes de pequena importancia, os sistemas de explicagao do mundo, elabora- dos na segunda metade do século XIX como 0 marxismo, o freudismo ou o func onalismo, baseiam-se todos numa visio positivista, teleolgica e material da evolu- ao humana. Sistemas monistas, igualmen- te, na medida em que se assentam sobre uum causalismo exclusivo e excludente. Sis- temas exclusivos, pois a causa identificada € determinante, “sobredeterminante”, he- gemonica, unificada, Sistemas excludentes, ois nao ha salvacdo fora do modelo expli- cativo supostamente fornecido pela causa. Dai o fideismo rigorose, com o seu cortejo de fanatismos, de dogmatismos, de esco- listicas de todas as espécies, sem esquecet, naturalmente, as intolerancias, exclusdes demais excomunhoes. Portanto, homogeneizagao nacional, insti- tucional e ideolégica. Ainda que de manei- ra inconveniente, vale uma palavra, entre- tanto, para delimitar a ordem epistemold- gia na qual se move essa homegenizacio. imagem do mistério da Trindade, um s6, Deus em trés pessoas, ha também aqui uma triade fundadora: o Individuo, a His- toria, a Razao, Encaremos aqui a doxa que vé no indivi duo e no individualismo as caracteristicas de nossa época. Numerosos sio os traba- Ihos de fildsofos, historiadores, antropélo- gos, a exemplo de Louis Dumont, que mos- traram como a pés-medievalidade nasceu com a invencao do individuo. O livre-arbi- Reviste PAMECOS * Porto Alegre #.2°8 «ull 1998 + semestral — @ trio introduzido pela Reforma, Descarte ¢ 0 seu cogito, 0 sujeito auténomo das Luzes, eis, ao lado de muitas outras, as grandes etapas que fizeram do individuo o mestre € @ possessor de si mesmo ¢ da natureza. A formula emblematica de Corneille, em Cin- na, resume com perfeigao tal filosofia: “Eu sou mestre de mim, assim como do univer- so...", Resumo, em poueas palaveas, da dia- Ietica entre a economia de si e a economia do mundo, gragas a qual a modernidade conheceria 0 seu desenvolvimento espeta- cular. Tanto quanto os deuses o haviam sido para as épocas anteriores, o Individuo tora-se o “axis mundi” em torno do qual tudo vai e pode articular-se. Pivé que justi- fica ¢ serve de ponto fixo a inexorivel evo- lugao da Historia teleologizada. Fis a segunda idéia-forga da triade episte- moldgica moderna; a historiografia dos acontecimentos cede lugar 4 Historia triun- fante, a grande marcha real do Progresso, desenvolvimento rumo ao Espirito absolu- to, gracas aos quais a humanidade realiza~ ria a sua reconeiliagio consigo mesma. Os roteiros podem variar um pouco, o objet ‘vo continua 0 mesmo: evoluir do mais bar- ‘aro dos obscurantismos para a mais civili- zada das realizacoes. A politica, a educa 20 © a economia acreditam nisso; a exis- téneia, individual ¢ coletiva, sé tem senti- do quando se projeta. Em tudo, 6 preciso encontrar a arte a-maneira de adaptar, por tatica © estratégia, os meios ao fim es- tabelecido. O projeto (a projecio) & bem a “ultima ratio” davida que, sem isso, seria, propriamente, sent sentido, sem. significa sio, (© que da sentido e significado, justamente, deusa-mae da nossa trindade, a Razio “justifica” 0 Individuo senhor do mundo & a Historia onde a sua aco desenvolve-se. Precisemos, entretanto, que a razio moder- na € apenas uma das formas da racionali- dade humana. Para retomar uma tematica caracteristica da Escola de Frankfurt, trata- se de uma “razao instrumental”, uma “Zweckrationalitit”, na qual 56 valem os fins, o que pode ser manipulado, utilizado, incluido na ordem utilitéria ou mesmo “instrumental”, Razao abstrata da tecno- estrutura que pretende, do exterior, suprir as necessidades do individuo, corrigir os defeitos sociais, apertelgoar o que perma- nece inacabado na natureza humana. Nao foi por acaso que a Revolugao Francesa ce- Iebrou a “Deusa Razao". Por seu lado, Marx salienta que cada sociedade s6 se poe os problemas que pode resolver. Ha na base do racionalismo moderno um otimis- mo ao qual nao falta grandeza. Em todo caso, ele permite o desenvolvimento cienti- fico e tecnolégico que, para 0 melhor ou 0 pior, conduz-nos a fronteira do terceiro mi- lénio. Com tudo isso na mente, podemos compre- ender a emergéncia do que se convencio- nou denominar pés-modernidade. A con- textualizacao nao é intitil, pois nada nasce “ex nililo". O que P. Sorokin dizia da satu- ragio das obras culturais pode aplicar-se aqui. Nao existem comegos ou fins abrup- tos, Quando os diversos elementos inte- grantes de determinada identidade nao po- dem mais, por desgaste, incompatibilida- de, fadiga, etc., permanecer ligados, entra- rao, de maneiras variadas, em outra com- posigio, favorecendo assim 0 aparecimen- to de outra entidade. Foi esse proceso que levou a emergércia da “pés-medievalida- de”, na seqiiéncia chamada de modernida- de. E isso também que, antes de receber um nome adequado, preside a elaboragao da pés-modernidade. Saturagio, recomposi¢io. Talvez essa seja a tinica lei que possamos identificar no transcurso-cactico das histé- rias humanas. O que pode ser a recomposigao pés-moder- na? E, naturalmente, bastante delicado “re- mexer” nas panelas do futuro. Entretanto, podemos dar algumas indicag6es, reunir alguns indicios para sugerir grandes ten- déncias, Ainda mais que, como foi dito, ve- mos retornar, levemente modificado, 0 que 10 Revists FAMECOS « Porto Alegre © nS * jullo 1998 semesteal acreditavamos superado. Para sermos mais precisos, nda se trata aqui do "eterno retor- no” do mesmo, mas, conforme indicava em sua época o filésofo N, de Cusa, de um crescimento em forma de espiral. Para dizé-lo ainda mais claramente, se uma de- finigdo, provisoria, da pés-modernidade devesse ser dada, seria a seguinte: “a siner- gia de fendmenos arcaicos ¢ do desenvolvimen- to teenolégico” Fis a espiral. Evidentemente, essa defini- cio nao foi elaborada a partir de um esque- ma preestabelecido ou em fungio de pres Supostos teGricos até certo ponte abstratos. Fla saiu,, ao contrério, de simples constata- des empiricas que qualquer um pode fa- zet na sua vida afetiva, profissional, civica, com alguma fucidez e sem ser prisioneito dos diversos @ prior? que, freqdentemente, condicionam © mundo intelectual. Aquilo que € 6 Além disso, de acordo com a eti- mologia e a semintica, é bom, de vez em quando, por “humildade” sabermos voltar ao “hamus” com o qual ¢ modelado 0 “ser humano”. E Assim, retomando os grandes temas expli- cativos da pos-medievalidade (modernida- de), estado-nagao, instituigao, sistemas ide- oldgicos, pode-se constatar, quanto a pés- modernidade, © retorno ao local, a impor- tancia da tribo e a colagem mitolégica. Comecemos pelo local. Primeiro indicio da heterogeneizacao galopante que percorre as nossas sociedades, Seja de maneira os- tensiva, caso do ex-império do Leste, seja nas pacificas mas firmes reivindicacdes de autonomia ou de soberania ou, ainda, nas politicas de descentralizagao, tal “localis- mo” é uma das caracteristicas centrais des- ta época. £ interessante, quanto a isso, ob- servar © retorno Vigoroso, Nos mais varia~ dos discursos saciais, de termos como “pais”, “territérie”, “espace”, os quais re- metem ao sentimento de filiagao € 4 parti- tha emocional, Em sintese, ao fato que 0 lugar serve de vineulo. Lago que nao ¢ abs- trato, teérico, racional. Vineulo que nao se constituin a partir de um ideal longinquo, mas, ao contrario, baseia-se organicamente ha posse comum de valores enraizados: lingua, costumes, culindtia, posturas cor- porais. Coisas do cotidiano, concretas, que aliam, num parasoxo nao apenas aparente, ‘© material e « espiritual de um povo. Mate- rialismo espiritual, que provoca a reflexio, vivido lacalmente, tomara, cada vez mais, © lugar do politico ‘nas suas diversas mo- dulagoes. Enraizamento dindmico que € causa e efei- to da fragmentacaa institucional. De fato, as diversas instituig6es sociais, tornadas cada vez mais abstratas e desencarnadas, nao parecem conectadas com a reiterada exigencia de proximidade, Dai a emergén- cia de um neotribalismo pés-modemo ba- seado, como sempre, na necessidade de solidariedade e de protegao que caracteri= zam 0 conjunte social. Nas selvas de pedra que so as megalépales contemporineas, a tribo desempenha o papel que tinha literal- mente na selva verdadei Assim, surpreende constatar que as varia- das instituigdes nao sao mais contestadas nem defendidas, mas simplesmente corroi- das, servindo de nicho para microentida- des baseadas na escolha e na afinidade, Afinidades cletivas que encontramos nos partidos, nas universidades, nos sindicatos em outras organizagdes formals que fun- cionam segundo as regras de solidariedade de uma franco-magonaria generalizada Tudo isso, naturalmente, para bem ou para mal. Inumeraveis tribos religiosas, sexuais, culturais, esportivas, musicais, de estrutu- ra idéntica: ajuda muitua, partilha de senti- mentos, ambiéncia afetual. Pode-se supor que essa fragmentagao da vida social ve- nha a desenvolyer-se de maneira exponen- cial, constituindo assim uma nebulosa ina- preensivel sem centro preciso nem periferi- as identificaveis. Disso resulta uma sociali- dade baseada na concatenagao de margina- lidades destituidas de hierarquia. Reriita FAMECOS © Porta Alegre * w' ¢ lho 1998 seinestral 14 Essa estrutura 5 (mas ¢ de fato de soci- al que se trata ainda?) gera uma colagem mitolégica, Nao é, talvez, oportuno falar do fim das ideologias. Em contrapartida, pode-se constatar a transfiguracao destas. Elas adquirem outra imagem, no caso, a das pequenas narrativas especificas, pro- prias, claro, @ tribo que as encarna. As “grandes narrativas legitimadoras” partir cularizam-se, encarnam-se, limitam-se 4 dimensao de certo territério.. Dai as prati- cas de linguagem juvenis, a volta dos dia- letos locais, a recrudescéncia dos diversos sineretismos filosdficos ow religiosos (dos quais © New Age serve de exemplo flagran- te), sem esquecer as “narrativas” sociol6; cas, politicas, psicanaliticas ligadas as st tas de mesmo nome que se constituem a partir do discurso fundador de um herdi epdnime cuja pureza deve ser preservada, A verdade absoluta, a ser atingida, frag- menta-se em verdades parciais que con- vem experimentar, Eis os contornos da es- trutura mitol6gica. Cada territério, real ou simbélico, destila, de alguma maneira, o seu modo de representagao e a sua lingua- gem “cujus regio cujus religio”. Dai a babeli- sagao potencial constantemente negada com a invocacao do espectro da globaliza- s40. Em tealidade, existem muitas unifor- mizagoes mundiais: econdmicas, musicai consumistas; mas é preciso que nos questi- ‘onemos sobre o verdadeiro alcance delas. Talvez devéssemos nos perguntar se a ver- dadeira eficdcia nao se encontra no domi. nio dos mitos tribais e das suas caracteristi- cas existenciais, A comunicacio em rede, da qual a Internet é a boa ilustragao, leva ria, nesse sentido, a repensar, para a pés- modemidade, 0 “universal concreto” da fi- losofia hegeliana Se tomamos por hipotese a existéncia de um local tribal gerador de pequenas mito- logias, qual seria 0 seu substrato epistemo- Idgico? Empiricamente parece que o Indi- viduo, a Historia e a Razao cedem, mais ou menos, lugar 4 fusdo afetual encarnada no presente em toro de imagens de comu- nhao. © termo individuo, ja o disse, parece-me superado, ao menos no sentido estrito. Tal- vez se deva falar, quanto a pos-madernida- de, em uma persona que desempenha diver- sos paptis nas tribos as quais adere. A identidade fragiliza-se. As diferentes iden- tificagées, em contrapartida, multi se. As grandes reunides musicais, esportivas, consumistas, demonstram isso. Em cada um desses casos, trata-se de se perder no outro. “Despesa”, no sentido dado ao ter- mo por G, Bataille, como busca de fusao. Cada um s6 existe no e pelo olhar do outro, seja a tribo de afinidade, a alteridade da natureza ou © Grande Outro que é a divin- dade. Fusdes e confusdes de diversas or- dens que nio deixam de lembrar o mito di- onisiaco. Trata-se de um proceso nada ex- cepcional que remete a simples realidade cotidiana. Numerosos sao os fendmenos da vida corrente que, sem isso, ficam incom- preensiveis. Em todos os campos, 0 “tor- nar-se moda” do mundo esta na ordem do dia © as “leis da imitacao”, propostas, ex- temporaneamente, por Gabriel Tarde pare- cem ser a regra atualmente. Em sintese, nio & mais a autonomia que prevalece, 0 eu sou a minha propria lei, mas a heteronomia, a minha lei é o outro, Talvez seja essa a mudanea paradigmatica mais importante e que avanga em paralelo com a inversio de tempo responsavel pela ‘maior revelancia das historias humanas so- bre a Hist6ria linear. Péde-se falar em “Einsteinizagia” do tempo, ou seja, que tempo se contrai em espaco, Em stima, pre- domina 0 presente que vivo com os outros em determinado lugar. Seja qual for o nome que Ihe «éem, tal “presentefsmo” contaminara as representagdes e as priti- cas sociais, especialmente as juvenis. Carpe diem de antiga memoria que traduz bem 0 hedonismo disseminado, O gozo nio é V2 Revise FAMECOS + Porto Alegre WB pull 1998 © smesto mais remetido a algum hipotético “ama- nha que canta”, nio € mais transferido para um paraiso do futuro, mas vivido, do jeito que da, no presente Nesse sentido, o presente pés-moderno as- socia-se 4 filosofia do “kairos” que enfatiza aS ocasides e as boas oportunidades. A existéncia nao passa, de qualquer maneita, de uma seqiiéncia de instantes eternos que devem ser vivido, da melhor forma, aqui ¢ agora, Talvez seja o caso de lembrar aqui a importante distingao entre drama e tragico. Enquanto o drama, na sentido etimolégico, evolui para uma solugao possivel, como se pode ver no burguesismo moderno, o tra- gico é “aporético”, isto é; nao busca nem espera Solugbes, Pode-se mesmo dizer que se baseia na tensio de elementos heterogé- neos. Conseqiténcia logica do proceso dialético, © drama desemboca na sintese, enquanto o tragico, de acordo com 0 neologismo utili- zado ao mesmo tempo por $. Lupasco ¢ por G, Durand, baseia-se essencialmente no “contraditoral”, 0 contraditrio vivido como tal. Trata-se de outra maneira de ex- pressar a aceitacao do presente pelo que cle &, sem se projetar no futuro. Seja como for, a saturagao do projeto ea desconfianga em relagao a uma Historia teleologica le- vam a busea do seritida no proprio ato ¢ nao mais num objetivo longinquo e ideal. Assim, a pos-madernidade nao acredita mais no aspecto inexoravel do progressis- mo, mas da muito mais importancia 4 sa~ bedoria “progressiva” que busca a realiza- ao do eu € o desobrochar pessoal na ins- tante e no presente vivides com toda a in- tensidade. Ultime ponto, enfim, do substrata episte- molégico pés-moderno: a importancia da imagem na constituigao do sujeito ¢ da so- ciedade. Ainda ai, 56 podemos ser alusivos € remeter a5 analises que tratam desse pro- blema. Basta lembrar que, na esteira da tra- digio judaico-crista, a modernidade foi es- sencialmente iconoclasta. Assim como, na tradigao biblica, o icone ou 0 idole impedi- am de adorar 0 verdadeiro Deus, “em espi- rito © em verdade”, a imagem ou o imagi- ‘nario, de Descartes a Sartre, entravavam o bom funcionamento da razao, Lembremos aqui a expressao filosdfica tornada popular que fez da imaginacao a “folle du logis” (a Jouca da casa). Estigmatizagio que marcou profundamente as nossas maneiras de pen- ‘sar ¢ toda a nossa sensibilidade tedrica, Ora, o que se observa atualmente, a no ser © retorno vigoroso da imagem negada e re- ia? Imagem publicitaria, imagem tele- visual, imagem virtual, Nada Ihe escapa. “Imagem de marca” intelectual, religiosa, politica, industrial, etc. Tudo deve ser visto © apresentar-se em espetaculo. Pode-se di- zer, na ética weberiana, que é possivel compreender o real a partir do irreal (ou considerado como tal). Ocorre que, duran- te a modernidade, © desenvolvimento tec- noldgico tinha, duravelmente, desencanta- do o mundo. Ja na pés-modernidade nas- cente, a tecnologia favorece um teal reen- cantamento do mundo, Para enfatizar tal fendmeno, podemos falar de (re)nascimento de um “mundo imagi- nal”, ou seja, de uma maneira de ser e de pensar perpassadas pela imagem, pelo imaginario, pelo simbdlico, pelo imaterial. A imagem como “mesocosmo”, isto ¢, como meio, vetor, elemento primordial do vinculo social Seja qual for a maneira de expressdo do “imaginal”, virtual, idico, onirico, ele es~ tara presente e, pregnanle, nao seré mais relegado & vida privada e individual, mas figurara como elemento constitutive de um estar junto fundamental, Isso permite afi mar que 0 social cresce em socialidade in- tegrando, de maneira holistica, parametros humanos descartados pelo racionalismo modermo. O imaginal consiste, assim, nou- tra maneira de prestar atencao na socieda- de complexa, na solidariedade organica in- Revista FAMECOS + Porto Alegze © 1° 8 pullo 1988 = sensesral cipiente, na “correspondéncia”, no sentido baudelairiano, entre tados os elementos do meio ambiente social e natural A época apresenta-se, talvez, mais atenta a instabilidade das coisas mais instituidas. Com certeza, a emergéncia de valores ar- caicos, considerados totalmente ultrapas- sados, deve nos alertar para o fato de que as civilizages sao mortais, enquanto a Vida perdura. Assim, sem dar ao termo um. estatuto conceital muito rigido, a pos-mo- demidade nascente lembra-nos que a mo- dernidade foi uma “pés-medievalidade” e permitiu uma nova eomposigao do estar- junto. Devir espiralesco do mundo! Quando cessa a evidencia de uma idéia na qual se basea~ va determinada civilizagao, outra constela- do aparece integrando certos elementos do que foi e revitalizando outros que ti- nham side descartados, Com esse esquema em mente, de forma nao judicativa, nao normativa, pode-se epifanizar as grandes caracteristicas do pensamento pds-moder- no. O que M. Foucault fez com 4 moderni- dade, falta realizar para a época que se anuncia. Trata-se de um desafio de enver- gadura que exige uma postura intelectual audaciosa. Desafio a ser enfrentado para nao acontecer a marginalizagao do pensa mento, ainda mais que, como relatava Vi tor Hugo noutra época, “nada pode parar uma idéia cujo tempo chegou" « Notas 1 Cf BAUMAN, 2 Intimations of posimoterity, London, Roulledge, N92. E Modervty and ambicuene, Cambridge, Polity, 193, La ease rispeits 0 exclene listo de FOURNIER, ML Marcel Mauss, Paris, Fayard, 1994, pp. 352-353, 3° Ck a minha andlise, MAFFESOLI, M. la Violence {otnittarre, Paris, Méridiens, 1979. Sobre a inversio das “caldaredaes’, ver p. 210, nota |, Wg Reuista FAMECOS + Porte Alegre * 8 © ull 1998 semesteal

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