Você está na página 1de 16
Dents Russo BURGIERMAN UM Novo JEITO DE PENSAR: PANORAMA DO DEBATE GLOBAL SOBRE. POLITICAS DE DROGAS E O QUE ESPERAR DO FUTURO Joralista,diretor de redacdo da revista Superinteressante e autor do livro O Fim da Guerra sobre novos modelos de poliicas de drogas 283 UM NOVO JEITO DE PENSAR PANORAMA DO DEBATE GLOBAL SOBRE POLITICAS DE DROGAS E O QUE ESPERAR DO FUTURO Denis Russo BURGIERMAN sar substincias psicoativas tem sido uma caracteristica de pratica- mente qualquer comunidade humana, desde as cavernas de tempos némades até as megalépoles contempordneas. Das sociedades tribais aos grandes impérios, dos reinos medievais as nagGes modernas, € muito diff cil encontrar um tinico exemplo de agrupamento humano em qualquer regio do mundo onde nao haja pelo menos uma substancia alteradora da consciéncia, seja para uso medicinal, religioso, recreativo ou alguma combinacao dessas trés esferas.! Essas substancias sao por natureza perigosas, afinal mexem com a esséncia daquilo que somos: a forma de nosso eérebro perceber o mundo. Por isso, sempre foram tratadas com muito cuidado. Tradicionalmente, por milénios, o principal instrumento que a humanidade usou para lidar com uso de drogas foi a cultura ~e nao a lei. Em cada sociedade de cada lugar do mundo, sempre houve uma série de regras, interdigdes ¢ rituais regulando o uso das drogas, de maneira a reduzir seus riscos e danos.* Essas regras quase nunca eram escritas. Nao passavam de memes’, que surgiam mais ou menos espontaneamente & iam passando de individuo para individuo, de geracao a geragio, lenta mente se adaptando aos tempos, infhuenciando comportamentos. 1 Um bom ensaio sbre as possiveisexpicagies evolutivas para o uso de drogas pela human dade pode ser encontrado na hvra The Botany of Des, de Polan (2002), 2 Olivo Drogas eCultun: Novas Pespetous,crganizado por Labate etal. 2008), traz uma série {de exemplos de como essa regulagdo pla cultura e 3. A teosia dos memes, como so denominadss as unidades minimas de informaséo cultural, andlogas 20s genes, que sio as unidades minimas de informagio genética, uma riage do bié- ‘ogo evolucionista Richard Dawkins, em seu clissico O Gene Etta, de 1976 284 Ao longo da histéria, houve algumas raras experiéneias mais for- mais de controle, Por exemplo: a Franga napoleénica proibiu 0 consumo de maconha no Egito ocupado, em 1798. Mas leis como essa sempre foram, raridades histéricas ~ excegdes localizadas em meio a um mundo no qual a regra eram sutis controles culturais Foi assim até o século XX, quando, subitamente, a humanidade resolveu experimentar uma nova estratégia para lidar com as drogas: a proibicao. Ao longo da primeira metade do século passado, diversas regi- Ges foram decretando leis que criminalizavam o comércio e o uso de certas drogas, e, gradualmente, o rigor dessas leis foi crescendo, Na década de 1970, o presidente americano Richard Nixon batizou essa nova politica global que tomava forma: Guerra as Drogas. O século chegou ao final com praticamente todos os paises do mundo impondo leis criminais severas para coibir 0 comércio © o uso de drogas ~ muitas vezes mais severas até do que as leis para punir homicfdio, Era o épice da Guerra as Drogas. ‘Ao que tudo indica, esse pice esté pasando. Embora a proibicao continue vigorando em quase todos os paises do mundo para quase todas as substancias psicoativas (com algumas excecdes notéveis, como as dro- gas ptoduzidas pelas indtistrias farmacéutica, do alcool ¢ do tabaco), hé por todos os lados indicios de que o péndulo chegou ao extremo ¢ comega a voltar. Estamos assistindo a uma constatagdo bastante generalizada de que a Guerra as Drogas foi um imenso fracasso, jé que nao apenas nao resolveu os problemas ligados ao uso de drogas, mas criow uma série de ‘outtos, alguns muito mais graves que os que se tentou solucionar. Por exemplo, ela aumentou a violéncia, porque criou um mercado imensamente lucrativo sem nenhuma fiscalizacao ou regulacdo do Estado. ‘Com isso, produziu um incentivo para que grandes organizacdes crimino- sas se formassem, de maneita a disputar esses mercados. Criou também. uma imensa fonte de renda que enriqueceu essas organizagées, Outro efeito colateral da Guerra as Drogas em certos paises, inclusive o Brasil, foi um proceso de encarceramento em massa, principalmente entre as classes mais baixas ¢ as minorias étnicas, mais vulnerveis & aco policial,’ 47 Uma boa andlise das motivas pelos qual a Guera is Drogas tende alevat ao encarceramento preferencial de minovias énias, lasses mats bas indviduos mais jovens esti em Drags and Drug Policy What everyone needs to hue, de Kleiman, Caulkins e Hawken 2011}, 285, ‘que institucionaliza o racismo e desmoraliza o Estado perante esses gru- pos. Sem falar que um mercado tao rentavel ’s sombras da lei acaba se tornando uma fonte inevitSvel de corrupgio, o que cori as instituiges & enfraquece a democracia. ‘Um marco da mudanga de maré no debate sobre drogas foi o ano de 2011, quando varias das principais liderancas politicas que comandaram a Guerra is Drogas nos anos 1990 fizeram uma declaragdo conjunta assu- mindo seu fracasso ¢ sugerindo uma mudanga de curso no novo século, rumo a uma regulacao mais flexivel e eficaz, (GLOBAL COMISSION ON, DRUG POLICY, 2011). Mundo afora, a maioria dos sistemas politicos tem. reagido lentamente a essa mudanga de mentalidade, porque a opiniao piblica tende a instintivamente preferir abordagens mais rigidas, devido a0 medo generalizado que as drogas causam, Mesmo assim, comegam a pipocar em vérias partes do mundo, especialmente nas Américas e na Europa, experimentagses com leis menos rigidas e mais cheias de sutilezas, que se propdem a regular o uso de drogas, em vez de simplesmente proibir tudo. Ou seja: uma regula- «20 complexa, sem respostas tinicas, algo talvez mais parecido com os sis- temas baseados na cultura que a humanidade adotou por milénios para lidar com as drogas. Duas escolas de pensamento dominaram as politicas puiblicas sobre drogas na segunda metade do século XX: a Guerra as Drogas (GD) e a Redugo de Danos (RD). A GD, concebida pelos Estados Unidos a partir da burocracia do governo federal, parte do prinefpio de que drogas so por definigao ruins e devem ser implacavelmente combatidas — a producéo tem que ser destrufda, todas as pessoas envolvidas devem ser encarce- radas, todo uso deve ser coibido. O objetivo da GD € erradicar definiti- vamente a droga do mundo, e sua medida de sucesso é simplesmente reduzir 0 uso de droga © outro paradigma, a RD, tem suas origens nos anos 1960, quando se tornou o prinefpio-guia inicialmente na Holanda e logo em seguida em. outros pafses europeus, como Suiga, Alemanha, Dinamarca e, em certa 286 medida, Reino Unido. A RD é mais pragmitica: admite que a meta de acabar com a droga & um desvario utépico, impossivel de ser realizado. também mais ponderada: considera que hé usos melhores ¢ piores de drogas e que fazer com que estes migrem para aqueles jé é um ganho. A agio cléssica dos primérdios da RD foi distribuir agulhas para usudrios de herofna para evitar uma epidemia de aids com potencial para prejudicar toda a sociedade — verificou-se que esse tipo de ago ndo aumenta 0 uso de drogas, mas reduz.significativamente as contaminacées de HIV ¢ os gastos de satide publica, Segundo esse modo de pensar, mais importante do que acabar com a droga ou simplesmente reduzir as taxas de uso & tentar diminuir ou eliminar os danos causados por elas. Entre as duas abordagens, no século XX, a GD ganhou de lavada em termos de influéncia. Apesar do razoavel predominio da RD em partes da Europa Ocidental, Austrélia, Canada e mais um punhado de paises, a maior parte do mundo embarcou na canoa americana, até porque havia timos incentives financeiros para quem o fizesse, na forma de acordos internacionais de cooperagio. Mas, no crepiisculo do século, os dados sobre os resultados concre~ tos das duas abordagens comegaram a se acumular, E a conclusio é bem. clara: nem RD nem GD conseguem evitar que as pessoas usem substan- cias psicoativas. Mas a RD é muito melhor em diminuir os estragos que elas causam, Paises que optaram pela RD tém menos aids, menos hepatite C, menos uso de drogas por menores de idade, drogas menos potentes, quase nenhuma overdose, menos superlotacao prisional, menos crime, ‘menos dependéncia. Enfim, RD funciona melhor? ‘Tanto & assim que hoje, em 2015, a maior parte dos pafses do mundo adotou pelo menos uma parte do receituério da RD em seus sistemas.* E, mesmo onde as leis ndo mudaram, o discurso mudou: hoje até os mais conservadores admitem que é mais importante diminuir o dano causado pela droga do que preocupar-se apenas com os indices de uso. 5 Um bom sumo das vantagens da RD sobre a GD pode ser encontrado no relator on Drag (i), 6 OrelatérioToking Control: Patnoays to drug policies that work, da Global Commission on Drug Policy 2014), traz um resume das mudangas mais bem-sueedidas que estdo ocortendo ao redor do mundo. 287 ‘Quando a Guerra as Drogas foi formulada, a partir dos anos 1960, sabfamos muito pouco sobre 0 funcionamento de sistemas complexos — foi s6 naquela época que a complexidade passou a ser pesquisada nas universidades.’ Hoje se sabe que, por conta desse desconhecimento, as pessoas que planejaram e implantaram a GD cometeram alguns erros conceituais sérios. A.GD foi declarada para fazer com que menos gente usasse drogas —na verdade, naquela época, acreditava-se que ela seria capaz de erradicar definitivamente a droga, livrando 0 mundo desse mal. © plano era bem simples, bem linear: profbem-se as drogas, destroem-se todos os plantios, as pessoas param de usar ¢ a guerra est vencida, Como se sabe, deu bem. cerrado: na verdade, hoje se debate se a GD nao acabou provocando um. aumento no uso de drogas (© erro est em ignorar que o consumo de substincias psicoativas obedece a uma dinamica muito mais complexa que uma simples relagao linear de causa-consequéncia. Ha milhdes de diferentes motivagdes para se usar drogas, as mais diversas: relaxar, escapar de responsabilidades, tratar alguma dor, sentir-se vivo, matarse, por razdes sociais, afetivas, miédicas, religiosas, divertir-se, esquecer ~ ¢ essa lista poderia seguir por dezenas de paginas. Os formuladores da GD nao se deram conta de que, a0 instituir a proibigao, eles estavam apenas enroscando mais um fio no gt0ss0 cipoal de diferentes motivos para usar ou nao usar drogas Nao é possivel colocar regras rigidas em sistemas complexos. A ciéncia da complexidade ensina que, em vez disso, o melhor que se pode fazer é modular incentivos no sistema, de maneira a convencer o maior riimero possivel de pessoas a voluntariamente comportarem-se melhor. Um dos erros da GD foi nao prever aquilo que ficou conhecido como feito bexiga. O efeito, hoje muito bem compreendido, descreve uma pro- priedade do mercado de drogas: ele se comporta do mesmo jeito que um. daqueles baldes inflaveis de festas infantis. Vocé aperta uma ponta, a outra infla, E 0 que tende a acontecer toda vez que a GD faz uma aco. Quando 7 Um bom lnvo-texto sobre estratégias para lidar com complexdade & Making Things Work Solong complex problems in a complex word de Bar-Yam (2005). 288 se destroem plantagées de coca na Coldmbia, novas lavouras surgem no Peru ¢ na Bolivia. Se traficantes sdo presos na favela, outros ingressam na carreira. Se uma droga é fortemente reprimida, outra surge no mercado. E, quanto mais se aperta a bexiga, mais ela infla: quanto mais violenta a represséo, mais violento é 0 tréfico. Esse fendmeno acontece porque o mercado de drogas é insana- mente lucrativo, ¢ a demanda nao cessa nunca, © ganho financeiro & grande demais—e fica maior quanto maior a repressio. Por maior que seja orrisco, sempre haverd alguém disposto a encaré-lo — ja que a recompensa 6 imensa, Uma tinica transagao bem-sucedida rende facilmente milhoes de délares. Isso ajuda a entender por que nao se consegue evitar que haja farta disponibilidade de drogas nem mesmo onde 0 comércio delas & punido com pena de morte A.GD falhou porque ignotow o principio fundamental das politi- cas pliblicas complexas: o sistema que controla uma coisa jamais pode ser menos complexo do que a prdpria coisa. Nenhum governo jamais seré capaz de controlar em detalhes um comportamento complexo que esteja difundido por grande parte da populagio. & fisicamente impossivel -teri- amos que contratar um agente ptiblico para seguir cada usuétio, nico jeito de controlar um sistema tao complexo é eriando uma rede igualmente complexa para zelar por ele. Essa rede precisa ser a socie- dade toda, ou, pelo menos, boa parte dela, incluindo o sistema de edu- cacao, de satide, a familia, a cidade, 0 mercado de trabalho. A policia e a justiga criminal, sozinhas, jamais serao capazes de regular algo téo imen- samente complexo. Em 2001, um pequeno pais bem préximo dos brasileitos colocou em ago uma nova estratégia nacional para lidar com a droga, totalmente baseada em RD. Portugal retirou de sua lei qualquer intengdo moral € definiu um novo procedimento para lidar com os usuérios, que combi- nava todas as estratégias que haviam comprovadamente funcionado a0 redor do mundo. Descriminalizou 0 uso de drogas, montou um sistema inteligente na satide para lidar com quem precisasse de ajuda, mas ndo 288 legalizou droga alguma - todas continuaram proibidas.* Hoje, os bons resultados do novo sistema portugués sdo bem evidentes tanto na satide quanto na seguranca publica.” ‘Uma caracteristica interessante do sistema portugués é sua disposi a0 de influir nas dindmicas culturais que cercam a droga, em vez de sim- plesmente impor um comportamento tinico a todos. O sistema tenta se aproximar dos usudrios, compreender seus padroes de uso, mapear os ris- cos ¢ af desenvolver estratégias para mitigé-los. Trata-se de uma estratégia muito mais complexa do que as da GD, que se limitava a enviar viaturas a esses locais, prender todo mundo, apenas para encontrar as bocas nas ios de outras pessoas no dia seguinte, com varias consequéncias nega- tivas inesperadas, inclusive um frequente aumento da violéncia, causado pela disputa pelos pontos de venda vagos. Mais recentemente, um outro pais pequeno e préximo do Brasil ganhou as manchetes ao redesenhar seu sistema para lidar com a maco- nha. © Uruguai implantou em 2014 o Regulacién Responsable e se tornou 0 Xinico pais do mundo onde a maconha é legalizada e regulamentada para producao, distribuigdo e uso." (© sistema da agora seus primeiros passos, ainda que sejam meio ttdpegos. O plantio caseiro e o uso medicinal estéo em pleno funciona- mento, mas a venda em farmédcias se revelou mais dificil de implementar do que se imaginava. Os usuérios também esto resistindo a se cadas- trar no sistema, por preocupages com sua privacidade. Ainda é cedo para analisar os resultados. Mas os modelos mais ousados de novos sistemas para lidar com drogas esto surgindo em um lugar surpreendente: os Estados Unidos © pais que comandou a implantagao global da GD tornou-se na iiltima década o principal foco de experimentaga0 com novas politicas de dro- gas, principalmente para a maconha. Em parte, isso se deve a duas carac- teristicas da repdblica americana: o federalismo e a democracia direta. 8 Fizuma descrigio mais detalhada do sistema portugués em meu lvzo O Fim da Guerme (Bur sierman, 2010) Uma boa andlise dos resultados abtides nos des pvimeitos anos de implantagio do sistema portugués pode ser encontrada em What Caw We Lear Fron the Portuguese Decrminalizaton of Mca Drags, de Hughes Stevens (2010. 10 Para conhecer em dealheso sistema urugualo, visite o site wurregulacionresponsableorg uy 280 Nos BUA, cada estado tem uma autonomia bem grande para eriar suas proprias leis, e também ha vérios mecanismos para que os cidadaos pro- ponham novas leis ¢ as aprovem por referendo. For meio desses meca- rnismos, quase metade do pafs legalizou o uso medicinal de maconha, ¢ quatro estados — Colorado, Washington, Oregon e Alaska — legalizaram a producdo, o comércio e a venda de maconha para qualquer uso (0 distrito de Columbia, onde fica a capital Washington, também legalizou o uso de maconha, mas ndo o comércio) Em muitos desses experimentos de flexibilizagao das leis de drogas, um fendmeno notével foi que o nivel de controle sobre os usos e os mer cados de drogas aumentou, em vex. de diminuir, porque o Estado delegou, em parte, essa tarefa a setores interessados da sociedade. Por exemplo, a Holanda, nos anos 1970, quando legalizou o comércio de maconha nos coffee shops, determinou que cabia aos estabelecimentos zelar pela ordem. piiblica e pela seguranga dos usuérios. O resultado foi uma redugéo da violéncia ¢ dos riscos associados a esse comércio, Fatos semelhantes tém sido observados em vsrias partes do mundo. Por exemplo, na cidade de Oakland, na Califémnia, a indiistria de maco- nha medicinal ajuda a financiar o policiamento e a iluminagao das ruas da regidio onde esta instalada. Na Espanha, algumas das cooperativas de usu- Srios de cannabis, que mantém cultivos coletivos, possuem programas de redugao de danos, com o objetivo de educar usuérios para que eles evitem. padtées danosos de consumo (BURGIERMAN, 2011). Uma coisa em comum entre essas experiéncias que, apesar de toda a expectativa que elas geraram, quando finalmente foram implemen- tadas, seguiu-se uma normalidade surpreendente. A coisa mais interes- sante que aconteceu foi que nao aconteceu quase nada. O uso de drogas no explodiu, as pessoas nao ficaram doidas, Mais ou menos os mesmos que jé usavam drogas continuaram usando-as. Enquanto isso, houve uma série de pequenos ganhos na satide, na seguranga, no espago piblico, na arrecadacao de impostos, na vida das pessoas. 2a ‘Outra mudanga que esté ocorrendo no debate mundial sobre pol ticas de drogas é que a discussao parece no se limitar mais aos danos causados pelas drogas, Hi também os beneficios. Por exemplo, os usos medicinais de substancias como a maconha e as drogas alucindgenas, Por muitos anos, pesquisas sobre o potencial medicinal de drogas ilegais foram tremendamente dificultadas pelas restricdes legais. Afirma- bes de que essas substancias tinham utilidade farmacéutica eram ridicu- latizadas ¢ ativamente combatidas, por contrariarem a premissa bésica da GD, de que drogas sao sempre ruins. Mas, nos tltimos anos, um grande mimero de cientistas sérios, de instituigdes sélidas, vérios deles sem nenhum apreco anterior por drogas, comegou a fazer pesquisas de qualidade sobre o assunto, E um fendmeno recente, tipico do século XXI, e, portanto, os resultados permanecem muito preliminares. Mas jd ndo ha muita diivida de que a maconha contém um arsenal bioguimico que pode ser muito relevante para o tratamento de uma extensa série de condigées médicas comploxas, do cancer As doengas autoimunes, das dores crdnicas as doencas degenerativas e a diversas condigbes neuro- logicas ¢ psiquidtricas.”” A maconha pode sim ser tremendamente nociva para algumas pessoas. Mas, para outras, pode salvar da morte ou reduzir muito 0 sofrimento. ‘Outta érea de pesquisa que ganhou solidez nos iiltimos anos é sobre 6 potencial terapéutico de substancias psicodélicas como a psilocibina (do cogumelo), 0 LSD, a ibogaina e a ayahuasca."” Aparentemente, essas subs- tancias sao todas capazes de proporcionar experiéncias muito intensas, que tém o poder de alterar substancialmente a atitude de uma pessoa perante a vida, Esse efeito parece ser muito titil para ajudar pacientes a lidarem com problemas comportamentais. Por exemplo, ajudar depen- 11.0 documentivi leg, diigido por Tarso Araijo © Raphael Prichssen, do gual fui um dos produtares, raz um bom balango do debate sobre cannabis medicinal no Bras 12 A histéria do ressurgimento da pesquisa com psicodlicos € contada primorosamente por “Michael Pollan na reportagem The Tip Treatment, pablicada pela revista The Neo Yorker em § de fevereito de 2015, 22 dentes a abandonar um vicio, Ou dar forgas a pacientes terminais para vencer a depressio e encarar a morte com maturidade e tranquilidade. Todas essas pesquisas dao o que pensar sobre o papel biolégico das drogas psicoativas para nossa espécie. Se quase todas as comunidades, de todas as regides do mundo de todos os perfodos da histéria, fizeram uso de algum psicoativo, seré que nao é indicio de que essas substancias sio de alguma forma importantes para nés - ou pelo menos para alguns entre nbs? Bebés de um ano de idade comumente gostam de girar no proprio cixo até ficarem tontos ~ ¢ antes dos dois anos sdo capazes de achar graca nese efeito e de rir enquanto cambaleiam. Criangas e adolescentes so no geral as pessoas mais propicias a buscarem experiéncias que alterem sua percepedo dos sentidos - especialistas especulam que seja uma estratégia que a evolugéo imprimiu no nosso cérebro para expandir a capacidade cognitiva durante os anos de desenvolvimento cerebral. Nossa espécie — assim como muitas outras - dotada de um"ape- tite” por drogas (assim como hé um apetite por comida e outro por sexo) (SIEGEL, 1989). Em situagdes de grande estresse, por exemplo, muitos de nés temos um desejo quase irresistivel de alterar a consciéncia. Repri- mir apetites usando uma forga externa é algo que raramente funciona, como sabe qualquer um que conviva com um disttirbio alimentar ou com. alguma dependéncia comportamental. Mas isso nao significa que seja impossivel conviver de maneira saudvel com um apetite grande demais. Uma pessoa que sofre de com- pulsio alimentar pode se educar para comer cenouras em vez. de bacon, por exemplo, com grande ganho de qualidade de vida. $6 que gerar essas alternativas nao é coisa que se possa fazer por meio do Cédigo Penal. Uma lei proibindo o bacon provavelmente sairia pela culatra, aumentando o res- sentimento infantil contra a cenoura, ao mesmo tempo em que daria con- digdes para o surgimento de um violento comércio clandestino de bacon, $6 a cultura 6 suficientemente complexa e sutil para colocar incenti- vos diversos no caminho das pessoas, de maneira a favorecer os melhores 28 habitos e desestimular os piores. Cada vez mais, os sistemas para lidar com. drogas sdo intrincadas redes de incentivos, desenhadas para influenciar a cultura, em vez de regras rigidas aplicadas de maneira idéntica para todos. Isso € uma mudanga profunda de mentalidade, No século XX, acre- ditava-se que a tinica maneira de lidar com um problema tao sério quanto as drogas seria com um esforgo global, centralizado, de ligica hipervertical: a ONU acordando regras e cada governo nacional implementando-as a0 ‘mesmo tempo, sem espaco para experimentacdes. Hoje vai ficando claro que essa maneira hierdrquica de pensar simplesmente nao funciona com. problemas complexos. Como o uso de drogas é uma questao individual, que varia tremendamente de pessoa para pessoa, s6 é possivel controlé-la com uma rede horizontal de regulacao, flexivel e diversa. Cada vez mais, as solugdes para o problema sio locais, idealizadas para situagSes especificas, capazes de serem aplicadas de modo diferente para cada um. Claro que essa mudanga néo aconteceré de uma hora para outra Em boa parte do mundo, os governos, as policias e os sistemas de justiga esto nas mos de gente criada sob a influéncia da GD. & natural que essas pessoas nao queiram abrir mao do poder de reger os sistemas em. seus paises de maneira centralizada, O que se esté vendo agora € uma Ienta troca de guarda, com uma nova geragdo, criada jé dentro de um novo paradigma, gradualmente assumindo 0 comando das instituigdes. Essas pessoas tendem a no cometer os mesmos erros. Um novo jeito de pensar jé domina o debate qualificado sobre dto- gas. E de se esperar que essas ideias novas acabem resultando em um. novo jeito de lidar com a questéo — um jeito que esteja & altura da com- plexidade humana. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BAR-YAM, ¥. Making Things Work: Solving complex problems in a complex ‘world. Cambridge: Neesi Knowledge Press, 2005, BURGIERMAN, DR. O Fim da Guerra: a maconha ¢ a criagdo de um novo sis- tema para lidar com as drogas. Sio Paulo: Leya, 2011 298 DAWKINS, R. O Gene Egoista, Sao Paulo: Companhia das Letras, 2007. GLOBAL COMISSION ON DRUG POLICY. Wet on Drugs. 2011. Disponivel em: _http://www.globalcommissionondrugs.org/wp-contentithemes!gedp_vl/ pdfiGlobal_Commission_Report_English pdf. Acesso em: 25 abr. 2015. GLOBAL COMISSION ON DRUG POLICY, Taking Control: pathways to drug policies that work. 2014, Disponivel em: hitp:iwwwglobalcommissionondrugs.o7g/ reports/Acesso em: 25 abr 2015, HUGHES, C. E, STEVENS, A. What Can We Learn From the Portuguese Decri- minalization of Ilicit Drugs. Oxford: Oxford University Press, 2010, KLEIMAN, M. A. R; CAULKINS, J.P; HAWKEN, A. Drugs and Drug Policy What everyone needs to know: Oxford: Oxford University Press, 2011 LABATE, B. C. et al (Org). Drogas ¢ Cultura: Novas perspectivas. Salvador Edutba, 2008, POLLAN, M. The Botany of Desire: A plant’s-eye view of the world. New York Random House, 2002 POLLAN, M. The'Tiip Treatment, The New Yorker, New York, 9 fev. 2015. Dis- ponivel em: http://www.newyorker.com/magazine/2015/02/09/trip-treatment. ‘Acesso em: 15 abr. 2015, SIEGEL, R K. Intoxication: Life in pursuit of artificial paradise. NewYork: Dutton, 1988.

Você também pode gostar