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2, Artifices da graga nacional: humoristas no Rio de Janeiro Hei de ter senspre a mentatidade de 1906: rua estreita, bonde de burro, casa de pasto, piada do Emilio de Menezes. Agrippino Grieco, Gralhas e paves, 1988 DILEMAS DA IMAGINAGAO NACIONAL E HUMORISMOS DA DESILUSAO REPUBLICANA Semanzrio alegre, politico, critico e esfuziantes noticia rio avariado, telégrafo sem arame, cronica epidémica; tiragem de cem mil quilémetros, por ora; colaboragae de graga, isto é, deespirito. “Apresentagao,em forma de subtttulo, da For- fort 1911 CO humor que perdura na Belle Epoque brasileira serd um humor quealme- ja cultivar a bonomia, que vé a si proprio como civilizador e cultor de gestos nobres,embora nem sempre esta imagem correspondaa realidade. H,em prin- cipio,a producio humoristica que surge ligada, quase toda cla, aosentimento és 66 desilusdo republicana que atinge a intelligentsia brasileira que passou pelos eventos da aboligao e da Reptblica. Abre-se um espaco para a representacao bumoristica pela inflexio provocada pelos préprios eventos e pelas promessas de transformagoes sociais que eles traziam. Contudo, se por um lado a aboligao ea inauguragao do regime republicano comecam aalimentar muitos sonhos e expectativas sociais, por outro virdo ape- nas aguear antigos dilemas:o que significava ser brasileironaquela realidade cada sez mais paradoxal, infinitamente variada, regionalmente diversificada e, sobre- sudo depois daqueles eventos cruciais, uma realidade indefinida em termos de futuro? Nos circuitos jé instaveis e pouco sedimentados da vida nacional, como cepresentar e conceber uma identidade de brasileiros, como sentir-se parte daquela comunidade politica imaginada chamada nagao? O pais, sufocado pelas estruturas escravistas, pela instabilidade populacional e econ6mica e pela inci- piente urbanizagio durante quase todos os decénios anteriores, encontrar iater- reno para se desenvolver com as mudangas desencadeadas na transigao para 0 periodo republicano? A interrogacao de Sérgio Buarque de Holanda, em conhe- da anilise do advento da Republica, pode se constituir numa sintese concisa este tema: “Como esperar transformacées sociais profundasem pais onde eram =antidos os fundamentos tradicionais da situagao que se pretendia ultrapas- sar?”!A Reptiblica criou uma cidadania precéria, porque calcada na manuten- So da inigitidade das estruturas sociais —acentuowas distancias entre as diver~ sas regides do pais, cobrindo-as com a roupagem do federalismo difuso da “politica dos governadores”, ou dando continuidade a geografia oligarquica do poder que, desde o Império, dilufa o formalismo do Estado ¢ das instituigdes.* A condigso agréria retrégrada esubalterna do pais,no contexto internacio- nal da uma segunda revolucao industrial ¢ tenolégica, também voltou a ser posta em relevo com as expectativas criadas pela aboligio e pela Repiblica. No Slano da vida humana, os processos de desestabilizagao das regides periféricas, erados pela revolucao tecnolégica, vieram consagrar a hegemonia européia sobre todo o globo terrestre, que viu seus modos de vida, usos, costumes, formas de pensar, ver e agir sufocados pelos padrdes burgueses europeus. O antigo eo moderno, o Império ea Republica eram sentidos como camadas pouco sedi- mentadas, numa sobreposigao de ritmos temporais diversos. O advento da Repiiblica viria proclamar, inicialmente, uma atitude de reptidio difuso a vida cotineira e aos arcafsmos, que seriam a propria negacao do progresso, como 67 Os impasses da passagem da Mo- narquia a Replica vistos pelo angulo htumoristico da auséricia ou dda recriagao de signifieadas. (“15 de novembro’, desenho de K. Lixto para a capa da revista Fon-Fon!, 13.11.1913.) “15 NOVEMBRO 'A Monarquia — Nao é por falar mal, mas com fran- queza...eu esperava outta coisa ‘A Reptiblica— Eu também!” forma de os individuos desamarrarem-se dos modos provincianos € das socia- bilidades geradas pela sociedade escravista. Assim, uma atmosfera que ansiava por cosmopolitismo, geradaa partir do Rio de Janeiro, auténtica capital cultural do Brasil na Belle Epoque, percorteo pais numa ansia séfcega pela europeizacio ce pela modernizagao. $e asua difustio foi, com efeito, pouco abrangentee limita- daasincipientes manchas urbanas no Brasil de fin-de-siécle, seu efeito descon- certante foi, por isso mesmo, maior e mais profundo. Se durante a independén- cia esta mesma ansiedade expressava-se, culturalmente, pela atragao € busca de raizes nativistas e pelo “desejo de ser brasileiros” — na expresso de Antonio 68 Candido —, neste momento manifesta-se, paradoxalmente, quase que um “desejo de ser estrangeiros”? Esta atitude ansiosa de cosmopolitismo, ja existente no periodo imperial, porque inspirada nos modelos de sociabilidades européias, exerce seu dominio sobre a imaginacao da sociedade brasileira e se desdobra na Repiblica, superfi- cialmente, naquela sofreguidao por “maquinas, invengoes, ingresias, francesias, ianquices que acelerassem entre eles o ritmo do progresso: industrial, técnico, mecAnico e também, por coeréncia, politico e social”. Inovagdes que tornassem os brasileiros mais donos, tanto de si mesmos como dos vastos espacos do terri- torio brasileiro — mais donos até do que vinham sendo sob a protegao de “um imperador voltairiano e de guarda-chuva"* Na Belle Epoque brasileira, que comeca a se definir na virada do século, vivenciou-se, talvez de maneira mais ambigua, a tensdo expressa na ironia euro- péia do vocabulo, com seu tom meio sério e meio irénico: um amélgama de tem- poralidades, a sobreposigao do futuro no passado ¢ uma visio nervosa do pais, singularmente hesitante entre a frivolidade ea autenticidade, tudo isso represen- tado pelas intimeras e incertas correntes literérias predominantes do periodo. Améalgama de temporalidades, projecdo do passado no futuro, deslo: significados da vida e da historia. Assim, do ponto de vista dos atores hist6ricos e mento de do limiar dos seus destinos na hist6ria do pais, era dificil pensar numa represen- tagao da sociedade brasileira que nio fosse pela via da constatacao da auséncia de sentido ou da recriagao do sentido— que sempre foram as caracteristicas intrinse- casde uma representagao comica ou humoristica do mundo e da vida. Esta repre- sentacao buscava resolver impasses muito peculiares a histéria brasileira, quevol- tavam a tona num momento critico de reajustamento social e politico.” Uma das manciras de representacao desses impasses e dessas temporalida- des diversas da historia brasileira, no perfodo inaugurado pela abolicao e pela Reptiblica, foram os registros cémicos; eles constituiram, talvez, ndo apenas mais uma das formas de representar a Repiblica, mas uma forma privilegiada para Tepresentar as condi¢Ges, possibilidades e vivéncias da histéria do pais. Uma das formas de representagao cultural, porquanto impalpével, da propria sociedade e das suas formas de vida; wma das formas, ¢ nao a tinica, jé que outras formas de atepresentacio da sociedade, pela via do informal, do nao-explicito foram possi- veis."Mas 0 comico correspondia nao apenas a busca de uma singular e peculiar 69 forma de representacao, como também a uma fuga ou a uma busca de um outro caminho, uma espécie de alternativa as formas convencionais de representagio, sempre comprometidas com a racionalidade dos valores vigentes. ‘Numa producao vasta, impossivel de ser quantificada de maneira precisa dada a variedade de formatos, intrinseco cardter efémero e circunstincias de publicacao, optamos por procurar distinguir qual seria a figura tipica do humo- rista brasileiro. No interior da intelligentsia brasileira da época, como distinguir esituar a figura do humorista? Quase todos os escritores brasileiros da Belle Epoque escreveram paginas humoristicas, mas quais foram, a rigor, os humoris- tas desse periodo? Concentrados no Rio de Janeiro — a capital cultural do pafs entre o final do século x1x e a primeira década do seguinte— temos um cfrculo de humoristas que se confunde com a boemia intelectual. Esse movimento comega, na yerdade, com a fermentagao satfrica provocada pelo inicio da Repiblica, formando-se um grupo de intelectuais que se caracteriza pela irreve- réncia e por uma producao jornalistica fortemente inspirada no humorismo. E a geracao de Pardal Mallet, Liicio de Mendonga, Paula Nei, Artur Azevedo, José do Patrocinio e outros. O caso de José do Patrocinio é 0 mais curioso, pois até 1905, ano de sua morte, constituiré uma espécie de guia da boemia carioca de humoristas e jornalistas irreverentes, Este grupo cultiva o humorismo da‘“desi- lusio republicana” até o momento em que o regime se torna mais estivel, coin- cidindo com a emblematica reforma urbana do Rio de Janeiro. De qualquer maneira, deslocando ou alterando significados, o comporta- mento humoristico parecia corresponder a uma atitude geral do brasileiro no sentido de ajustar-se a vida na sua repeticao cotidiana e aquela sobreposigio de temporalidades, aparando ou, pelo menos, sublimando os impasses, 0s conflitos sociais e as perspectivas de futuro, Parecia mesmo que © humor ajudava os bra- sileiros a viver, dando-Ihes uma espécie de ética iluséria e efémera capaz de coli- mar, ao menos provisoriamente, os obstaculos e as dificuldades que se esgarca- vam naquele momento critico de transigao de regime politico. Parodiando a famosa afirmacao de Gramsci, diriamos, neste caso, que todos os homens eram humoristas, mas apenas alguns exerceram as fungdes de um humorista. A“desilusao republicana” foi o mével central da grande producao humoris- tica da tiltima década do século x1x, ¢esteve presente na produgao circunstancial de autores consagrados sob a forma de crénicas e contos publicados em jornais. 70 © MALHO _.. B® COMMEMORACAO DE HOJE “Adesilusto com osdestinos da Repabics, que erxergavao pats eos seus precirios cdadfos mu ese “dade erbnico desequilfbrio, esteve no centro da vasta produgdo humortstica brasileira, como nesta caricatura comemorativa de Storni, ert 1913. (© Malho, 15.11.1913.) Essa producao foi uma fonte de inspiracao para o grupo de humoristas mais jovens, j4 que tais autores eram parte das suasleituras € da sua formacao geral. ‘Alguns exemplos podem servir para ilustrar as diversas maneiras como os humoristas irdo se utilizar desses processos de criagao cémica nas décadas seguintes. © tema da desilustio republicana sempre colocado sob a dtica dos snteresses individuais das elites brasileiras ou, quando muito, na perspectiva de uma visio doméstica ou mesmo familiar da coisa publica. A mistura,a confusio ea passagem répida da vida publica para o microcosmo da casa jé delineavam 0 formato do procedimento cmico brasileiro. Colhida ao acaso na producao de intimeras fontes literarias, temos 0 exemplo da célebre cronica de Machado de Assis que narraa histogia de um brasileiro, da elite urbana do Rio de Janeiro, que resolve proclamar a aboligao dentro de sua propria casa, alforriando 0 escravo doméstico de dezoito anos chamado Panericio. A carta de liberdade é entregue n solenemente num banquete, sob légrimas convulsivas e vibrante aplauso dos convidados — todos amigos intimos do benfeitor. No dia seguinte, o escravo Pancricio, assustado com aquela encenacao doméstica (muito parecida com a encenagao puiblica), decide ficar, aceitando um ordenado simbélico (e miseré- vel) de seis mil-réis. Mas, por nao escovar diteito as botas do dono da casa, acaba Pimentoes (Rimas dO FiMoqe) Rio de Janelro- 5.Pauto -Recife —1857- | “Berean 8 (2. dorones Passaeranes Versoes apimentadas, quando nao obscenas, da vida puiblica, que expressavam, através do cémico, dimensdes da vida privada, seriam depois desprezadas pelos proprios autores, como o livro Pimentoes, de Guimaraes Passos e Olavo Bilac, (Reprodugao da capa do livro Pimentoes, 1897.) 7 por levar uns petelecos do patrao que, afinal, acaba por explicar-Ihe (na sua filo- sofia para uso exclusivo no ambito doméstico) que 0 “peteleco, sendo um impul- so natural, nao podia anular o direito civil adquirido pelo titulo de liberdade”. Esta crénica de Machado de Assis’ retrata o exemplo de um curioso personagem que insiste em trazer uma questo publica para o ambito da casa, talvez um local privilegiado para exercer tutela, revelando uma cémica incapacidade de dimen- sionar uma questo pertencente ao dominio ptiblico. Parece mesmo que o filé- sofo benfeitor retratado na crénica ferina de Machado de Assis s6 conseguia exprimir-se sobrea dimensao publica, nao através dos cédigos impessoais e hie rarquicos, mas apenas através do universo doméstico. A mesma incapacidade, desta vez desdobrada em equivocos da fala e da expressao, pode ser por nés verificada num poema comico de Guimaraes Passos —originalmente publicado no semanirio O Filhote—no qual se narramas des- venturas domésticas de José, um an6nimo brasileiro de sotaque lusitano, num. dia todo especial para a Republica —o dia estabelecido para o especifico exerci- cio da cidadania, 0 dia da eleigao: José, natural das Hhas, que fala cerrado e grosso, disse anteontem para asfilhas: votem-meo diavo du almogo! Beijam se andam mais dipressa! Bamos! preciso cumer, Porque. eleicao ja cumegas Quero cunprir meu deber! . ia dele, mulata, Acode: Que é, seu Zezinho? Jesus! este home me mata... Aami Por queé que sai tao cedinho? Eo Zé palpando a barriga: Tenho pressa dalmucar! 7 Saiva voc’, rapariga, Que o seu home bai botar! Bela: Vocé botar? ickel Seu Zezinho, tome nota! ndio caia n ’alguin espiche: Hé tanto tempo nao bora!” Aqui talvez se entenda por que Guimaraes Passos insistia em chamar os seus versos desta fase de“piment@es’ pois muitos deles, alguns escritos em par- ceria com 0 jovem Olavo Bilac que ainda se escondia atras do pseudonimo Puff, vyeiculavam uma versio apimentada da cidadania eleitoral e das instituigoes republicanas, ena qual até mesmo 0 yocabuldrio civico induziaa equivocos da sntimidade, misturando-se com referénciaseréticas eobscenas, Naoé por coin- cidéncia que muitos dos versos do livro Pimentoes serio relegados a condicao de versos marginais, jé que adotavam um humor francamente pornografico € extravagante. Alias, este livro, escrito sob pseudénimos, ainda continuava @ ocupar 0 mesmo espaco do interdito a que 0 comico era relegado, sendo que neste caso especifico também ajudou o proprio contetido intrinseco do livro, com poemas francamente alusivosa homossexualismo, cenas erdticas e simbo- Jos obscenos. Passos também parece ter posteriormente relegado este livro a ‘uma parte menor e“nao séria” da sua obra, prosseguindo na produgao de ver 0s comicos, embora de forma apenas circunstancial, nas colunas de jornais especialmente dedicadas ao humorismo, como esta quadra publicada na sega0 “Casa de Doidos” da Gazeta de Noticias, na qual ele fazia, na chave do pitoresco, um brevissimo epitéfio para o século que morti CO século que agui dorme Najo acharéi quem o pinte, Foi em torpezas enorme E morreu tito desconforme Que, morrendo, deu no... XX" Mas o clima humoristico no final de século era outro e, de alguma manei- za,uum tanto diferente do clima da primeita década republicans. Ainda neste 74 na eee ae | clima humoristico da desilusao republicana, é também pela via do cOmico que 08 eventos publicos sao vistos na conhecida historia do velho Lima, uma histo- rieta de jornal escrita por Artur Azevedo, O velho Lima, funcionario publico de uma repartigao do Ministério do Interior no Rio de Janeiro, a capital do pais,caiu de cama seriamente enfermo no dia 14 de novembro de 1889, eali ficou por oito dias. Como a grande maioria dos brasileiros néo tinha o habito de ler jornais, e ignorando completamente que 0 Império se transformara em Repuiblica, Lima tomou o trem e se dirigiu para 0 trabalho como sempre fazia. Assustou-se, em primeiro lugar, com todas as pessoas que o saudavam com um “Bom dia, cida- a0” blasfernavam contra o Império e arrancavam os simbolos imperiais de edi- ficios e gradis. Mas ficou ainda mais impressionado com 0 funcionario que, a0 retirar o retrato oficial de d. Pedro 1 da sala da reparticao, respondeu ao Lima: “Ora, cidadao, que fazia alia figura do Pedro Banana?” Eassim 0 velho Lima, de- pois do que virae ouvira, chegava a seguinte conclusdo: “Nao dou trés anos para que isto seja Repiblica!”,O velho Lima acabou sendo um personagem eterniza- do por Artur Azevedo em 1895"para expressar, por meio de uma situacdo comi- ca, a anghistia e 0 estranhamento que os eventos publicos passavam a ter na vida cotidiana de cada brasileiro. ‘Avasta produgdo desse humorismo da desilusio republicana pode até hoje serlida —e ha queméo tenha feito, ao menos parcialmente—na chave desmis- tificadora das falsidades do regime recém-instalado. A Repiiblica deveria se constituir num solo naturalmente propfcio para engendrar essa sintonia entre «98 espacos publicos e os espagos privados, pdr entre os quais os individuos se movimentariam e construiriam suas existéncias. A ironia dos répidos flagrantes comicos de Artur Azevedo, Machado de Assis e Guimaraes Passos nos revela, pelo deslocamento, todo 0 dilema hist6rico da Repiblica brasileira, construida sobre arranjos instaveis e informais entre as bases sociais e as estruturas poltti- cas, Mostrava ainda comoa situagao jé era, por simesma, paradoxal, emais aces sivel a olhares cOmicos do que sérios: como imaginar a nacao brasileira, ¢ os bra- sileiros como cidadaos, com uma Constituic¢ao formalmente liberal, olhando paraa realidade daquela replica oligarquica, coronelista, nepotistae, acima de tudo, excludente?"" Bsses desafios e contrastes flagrantes fornecerao parte dos temas cémicos para o grupo de humoristas da geragao mais nova. é pela sua bizarra trajetoria B ee ————"_—~—s de“herdiem disponibilidade’,a figura carismatica de José do Patrocinio consti- tuird, por assim dizer, uma espécie de referéncia para esse grupo de humoristas que surge no inicio do século, congregando homens dos mais yariados estilos como Bastos Tigre, Emilio de Menezes, Jos¢ do Patrocinio Filho, Raul Peder- neiras, K. Lixto, J.Carlos, Storni, Yantok e outros, ese juntarao a eles posterior- mente Humberto de Campos, Antonio Torres, Joao Foca etc. No fundo este grupo vivia, como todos os homens de letras no periodo, o dilema geral da impossibilidade deespecializacdo da intelligentsia brasileira, massua caracteris tica mais notavel é que todos eles continuarao a praticar humorismo para além daquela conjuntura da “desilusao republicana” que jé havia se esgotado, Os ana- listas do perfodo trataram esse grupo de intelectuais da perspectiva da dissemi- nacao literdria de uma atitude geral de boemia, cuja decadéncia coincidiria com a reforma urbana e sanitiria do Rio de Janeiro." Noutra perspectiva, mais coe- rente com a histéria social do perfodo, foi sugerida uma divisio no seio de inte- ligencia — para além das suas filiagoes estéticas parnasianas, simbolistas, deca- dentistas ou regionalistas —, entre a cal mada dos escritores “vencedores” ¢ a dos escritores “perdedores”!*Sem contrariar nenhuma dessas interpretacdes que, @ rigor, se completam, 0 que sugerimos € que esse grUPO de humoristas continua a produzir buscando formas alternativas de manter sua atuacao jornalistica, embora quase todos tivessem outras atividades, Na tabela 2 selecionamos, entre muitos, um total de dezesseis humoristas mais significativos que atuaram no Rio de Janeiro. Algumas caracteristicas foram comunsa todos eles:a maioria teve uma formagao superior truncada pela atuagio precoce no jornalismo, ligando-se muitas vezes a empregos publicos modestos; mais da metade: deles praticou outras formas de expressao, amargem daliteratura, como teatro de revista (texto, desenho de figurinos ou, em alguns casos, como atores), caricatura desenho, publicidade e misica; a maior parte de sua produgao foi circunstancial:a produgao jornalistica foi par: jalmente reu- nida em livros de publicacao posterior (ver tabela), ea produgao publicitéria de teatro de revista em grande parte se perdew, sendo conhecida apenas aquela dosanosem que vieram a pablico;a grande maioria desses hhumoristas ficou dis- tante das atividades politicas, mas principalmente— com excecio de trés deles ficou distante dos circulos da literatura culta, como 4 ‘Academia Brasileira de “Letras,"*Esse grupo de bumoristas acompanha também, nas primeiras décadas 76 do século, o surgimento da publicidade, 0 incremento do teatro de revista €0 aparecimento das primeiras produgdescinematograficas. Quase todos eles, com raras excecoes, atuaram nas primeiras revistas ilustradas surgidas na primeira década do século. Todos esses espagos de produgao vao estar, portanto, estreita- mente associados a producao humoristica. O humorista tipico desse perfodo da historia brasileira, como se pode notar pela andlise da trajetoria de muitos deles, condensou em si mesmo as figuras do caricaturista e do cronista da imprensa ligeira, do publicitirio, do revistografo e, em alguns casos, do misico e do ator. O humorista foi, assim, uma figura miiltipla, com alta capacidade de transito entre diferentes praticas culturais, ea trajet6ria de alguns deles ¢ exemplo desta multiplicidade. Aprimeirae mais elementar atitude desse grupo de humoristasacompanha o sentimento generalizado daquilo a que chamamos de“humorismo da desilu- sao republicana”, presente na maior parte da intelligentsia brasileira no perfodo ‘Aliés, uma das caracteristicas desses humoristas é que eles continuaram com sua producao comica mesmo quando o tema da “desilusao republicana” ja tinha,em parte, se esgotado, e muitos escritores, sobretudo aqueles situados na camada dos “vencedores?, jé haviam abandonado a produgao propriamente comica, relegando-a para as margindlias do conjunto da obra. ais humoristas vivencia- ram os mesmos dilemas da intelligentsia brasileira, com a diferenca, dequeapré- pria pratica da produgao cOmica irs possibilitar-Ihes a sobrevivencia, de uma forma mais flexivel, nos estreitos circuitos culturais existentes. A idéia de “mis so” frentea uma sociedade analfabeta,*com a qual elesaao tinham possibilidade de dislogo, ou em face das elites que Thes deixavam & margem do processo poli- tico nao desaparecera totalmente da auto-imagem desses intelectuais humoris- t ., mas certamente tomou um sentido um tanto diferente: de derrisao, de ab- rogacao dos compromissos duraveis, de transmutagao da sua impoténcia no humor. Vendo suas préprias carreiras de escritores incompletas ou truncadas pelas atividades jornalisticas de intelectuais do dia-a-dia, voltam-se para dentro de si mesmos ou transfiguram-se de “mosqueteiros intelectuais” em “mosque- teiros da satira”, ou melhor,em Dom Quixotes da comédia, para utilizar o noté- vel cognome posteriormente utilizado por Bastos Tigre. Como grande parte da geragao que apostou naabolicao ena Reptiblica, tais humoristas nao retiveram nenhuma das ilusdes com o novo regime. A peculia- 7 ‘TABELA 2 — HUMORISTAS D \A BELLE EPOQUE — RIO DE JANEIRO Artur N Belo jvToRES Arakes de AlfedoStorni Anton Torres Casto Condeico Emilio de Guat Raul de Humbsrtode Soto Baia Azevedo Meneres Cron Bouquet campos Versi _ Cotto pas 1865-1908, Ta 1966, Tans 1994 1677-1957 1466-1918, Te70-1918 7886-1934 1997-1916 SOMETTRINse Elhoherdm —— Stornt “ArmandeSivio; — E-Lixto ‘Gabriel do Gano Bouquet GonselbehroN Xs JoroFocs seunontos —— Gavroch Yingentinba: Anincio Ratisia,otrocista; Luis Phos rivaling ‘Tonmés Rubi F. Reporter Joao Kactano5 Batista, otrocista Joao Episcope: ‘Micromegess Branco Alvims Helios “Tonted0: Sandinha de Nantes TORING so finasah urea ginascls a raaly Gono iousah —_careoegial vA Fea Normal Engenharia autodata Aesenho seminarista Belas- Artes (Hiumanidades) autodata Lincompleto) atti INIBADES Tornalist aaane Sweets (ate Carini Tornalistas Jornalistas Tosmalsts Comets, promssionas ——ealr6l0g0 Tel}joralista; — professorde funcionsrio teatrdloge foncioninio jocnalistas ingress na esenhio paleo publica conkerencistss carteira consular ator teatrloge partirde 1919 TRISTAN Tia Moderne; O Malo: Gasvurile Gira Cama Vilatederne,— DiirodeNercas Gazetade Cidade to Ris remio0cos Gazttade Noticias Tieo-Tico Novicias.A Noite; D. 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(commedine™ ate) (2909) Tidade dos humoristas desta nova geracdo foi que eles nao abandonaram com- pletamente essa atitude, pelo contrério, desenvolveram-na utilizando-se de Outros recursos cémicos mais apropriados as revistas, as legendas das caricatu- Tas, ao cinema, aos jornais falados, 4 musica ¢, afinal, ao humor radiofénico. Talvez por isso representaram, sobretudo nos momentoscriticos da historia bra_ sileira na Primeira Republica, a consciéncia mais radical, exercitando sobre ela todaasua vocacdo de irreveréncia cortante. Suas préprias condig6es intelectuais dectiagdo, contudo, eram ambiguas, eno limite lindavam como insdlito. Deum lado, eram forgadosa dialogar coma cultura culta da geragao parnasiana e sim- bolista que os formou e que os obrigou a enquadrar suas piadas nos sonetos, nos versos alexandrinos, metrificados ebem construidos. De outro, eram forgadosa ouvir outras vozes, as daquele publico que comecava a se formar e que criava, ainda que demaneira ténue eprecéria, formas de representacio calcadas na ora. lidade € no nao-escrito, Por tudo isso é dificil, se nao impossivel, definir um limiar do que seria este estreito e efémero territério de inspiragao desses humo- ristas. Nas duas primeiras décadas do século, que correspondem, a rigor, ao perfodo da Belle Epoque, o humorista é aceito pelos circuitos cultos da cultura, mas depois sua producdo sem ressondncia e sem nenhum compromisso, sobre- tudo sem ligasdo com nenhuma mensagem programatica, passa a ser vista com desconfiansa, recebe olhares de velada censura e,nao raro, érelegada ao lugar da anarquia dispersiva, dissoluta ou inofensiva. A DANGA DO HUMOR: ANUNCIOS F TEATRO DE REVISTA Brasileirismo mesmo s6 existe na revista e na burleta Essas rfletem qualquer coisa nossa, Nelas éque agente vai encontrar, deformado e acanathado embora, um Pouco do que somos. O esptrito do nosso povo tem nelas o seu espelhinho de turco, ordindrio e barato, Ant6nio de Alcdntara Machado, Cavaquinho & Saxofone, 1967, p.234

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