Você está na página 1de 71
Afonso H. Lisboa da Fonseca trabalhando CECT ET CH de Rogers RSM UCC fenomenoldgico existenciais | ins Carl Rogers foi um homem eum pro- fissional que esteve a altura de seu tempo ¢ lugar. Das miltiplas influéncias de seu tempo e de sua cultura, soube ativamente produzir e praticar uma sintese que veio a se constituir como uma das mais revo- luciondrias e importantes abordagens da psicologia, da psicoterapia, do trabalho com grupos, da facilitaciio da resolugio de conflitos e do trato com as relagées humanas em geral, engendrando definiti- vamente importantes fundamentos da psi cologia e psicoterapia fenomenoldgico- existencial. Rogers extraiu seus funda- mentos do humanismo norte americano e do poderoso encontro do meio da psicolo- gia ¢ psicoterapia norte americanas com a psicologia e a psicoterapia fenomenol6gico-existencial européia, na primeira metade do século, em particular através de figuras e do trabalho de figu- ras como Otto Rank, K. Goldstein, L. Binswanger e outros. Fazer justiga ao le- gado de Rogers, é, num certo sentido, si- tuar-se na perspectiva fenomenolégico existencial destas influéncias ¢ recuperar e afirmar 0 seu sentido e a produtividade deste sentido para a compreensao e prati- cada Abordagem Centrada na Pessoa. Em particular na medida em que este sentido tem sido obscurecido por toda uma rea- do empirista, ou de cunho religioso, que tem obscurecido as proprias possibilida- des da Abordagem. O intento deste livro é tratar da reafirmagéo de certos aspectos fenomenoldgicos e existenciais da Abor- dagem Centrada na Pessoa, recuperando 0 sentido destes, de forma a colaborar com. aprética produtiva e com o desdobramento da Abordagem. nestes seus tempos pés- Rogers. O autor, Afonso H. Lisboa da Fon- seca, é psicdlogo, psicoterapeuta ¢ facilitador de grupos, ¢ também profes- “Em minha opiniao, ha somente uma afirmagdo que pode igual- mente ser aplicada a todas as teorias — da teoria do flogistico a teoria da relatividade, da teoria que apresento nestas paginas, a que a substituird, espero, dentro de dez anos — a saber, que toda teoria contém, no momento de sua enunciacado, uma medida desconhecida (e neste momento, sem dtivida, desconhecivel) de erros e de defini- ¢6es faliveis. Esta medida pode ser ampla, como na teoria do flogistico, ou reduzida — como suponho que é 0 caso — na teoria da relatividaile. Porém, a menos que tomemos a conquista da verdade como algo concluido, deveriamos esperar que toda teoria, mesmo a mais firmemente estabelecida, venha a se modificar sob o impulso de novas descobertas. Por isto, a consciéncia aguda do fato de que o conhecimento cientifico é essencialmente provisorio, parece-me uma exigéncia fundamental da atitude cientifica. Confesso que me angustia a maneira pela qual certos espiritos estreitos se apegam a uma teoria qualquer e a elevam a condi¢éo de verdade ou de dogma. Se estivéssemos dispostos a tomar os sistemas teoricos pelo que séio, isto é, espécies de envoltorios de filigrana contendo os dados macigos da realidade, estes sistema poderiam, entdo, cumprir sua funcdo propria: o estimulo ao pensamento cria- dor.” Carl R Rogers, 1964. Afonso H Lisboa da Fonseca TRABALHANDO O LEGADO DE ROGERS Sobre os Fundamentos Fenomenoldgico Existenciais PEDANG Centro de Estudos de Psicologia e Psicoterapia Fenomenolégico Existencial Programa de Publicagio FONSECA, Afonso H Lisboa da. TRABALHANDO O LEGADO DE ROGERS - Sobre os Fundamentos Fenomenoldgico Existenciais, Maccid, Grafica Edi- tora Bom Conselho Ltda., 1998. 138 p. © Afonso H Lisboa da Fonseca Rua Alfredo Oiticica, 106 Farol. 57050-320 Maceid AL. Brasil, Fone/Fax: 082-2218175/2318191. Internet: e-mail: affons@nornet.com.br Site: http://www.terravista.pUFerNoronha/ 141 1 Macei6, 1998. INDICE Apresentagdo Introdugdo CAPITULO 1 AS CONDICOES FACILITADORAS BASICAS COMO PRINCIPI- OS DE METODO FENOMENOLOGICO EXISTENCIAL I, CONSIDERACAO POSITIVA INCONDICIONAL ... CAPITULO 2 AS CONDICOES FACILITADORAS BASICAS COMO PRINCIPI- OS DE METODO FENOMENOLOGICO EXISTENCIAL I. A RELACAO EMPATICA. Empatia e dialogicidade ... CAPITULO 3 AS CONDICOES FACILITADORAS BASICAS COMO PRINCIPI- OS DE METODO }ENOMENOLOGICO EXISTENCIAL II. IIL. GENUINIDADE ... . CAPITULO 4 . AVALIACAO ORGANISMICA DA EXPERIENCIA. Consciéncia, Liberdade Experiencial E Afirmacdo, No Trabalho Psicolégice E Psicoterdpico .... CAPITULO 5° DE COMO PSICOLOGOS E PSICOTERAPEUTAS DESCOBREM A FENOMENOLOGIA E O EXISTENCIALISMO. . « E sobre a importincia de um inicio de si mesmo para a compreensdo e pratica da psicologia e psicoterapia fenomenoldgico existencial u.... 57 CAPITULO 6 FENOMENACAO. Psicologia e psicoterapia fenomenativa existencial? ... CAPITULO 7 FATAL MESMO £ CRER NA FATALIDADE ! Dialogicidade, Superagao, Teoria E Prdtica Da Psicologia E Psicoterapia Fenomenoldgico Existencial AT 27 a ST AT APRESEN A compreensao da Abordagem Centrada na Pessoa pressupde um resgate de sua concep¢ao filosdfica: Fenomenologia e Existencialismo. Nao a fenomenologia Kantiana, cuja critica é a pre- tensao do conhecimento de atingir o fendmeno, nem a Hegeliana, no movimento dialético da negagao da negacao para a superagao. Deve- se seguir em busca da Fenomenologia de Husserl, fundamentada no dinamismo intencional de uma consciéncia aberta. Intencionalidade significando que aquilo que um objeto é constitui-se espontaneamen- te na consciéncia, e que considera que os conceitos e os termos de- vem permanecer em “devir”, sempre prontos a se diferenciar confor- me o avanco da analise da consciéncia e do conhecimento de novos niveis fenomenologicos Fenomenologia surgida em momento de crise, no qual a critica de Husserl dirigia-se as teorias cientificas apegadas a objetividade e a crenga de que a realidade reduz aquilo que percebemos pelos senti- dos. Existencialismo de Nietzsche — para quem a filosofia é uma “vi- sio” de acordo com a qual o homem deve viver. Como atitude exis- tencial, sentido de experimentar novas evidéncias, abandonando anti- gas posigdes na criagéo apaixonada da verdade, embora.dela todos nds tenhamos receio. “Ao homem cabe, como tarefa, fazer com que a sua existéncia néo seja um simples acidente sem significado, pois 0 problema fundamental do homem consiste em alcagar a verdadeira existéncia em vez de deixar a vida se erduzir a um simples acidente.” (Gilles). O critério de valor da existéncia nao é apenas a simples vida, e sim a vida aperfeicoada e transfigurada. Vontade de Poténcia — con- ceito nietzscheano — , significando a vontade de superagao de si mesmo, auto-superaco, e o eterno retorno como antitese da desvalo- tizagao do momento no finito do individuo. —"_—ss-—SsSCSSt—t SSCS eee Em Martin Buber — Filosofia Dialégica da Relagdo — compre- ende-se a concepgao do papel do terapeuta, o desdobramento da con- cepgao deste papel e da conceituagao da psicoterapia e do trabalho clinico. ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA — TRABALHAN- DO O LEGADO DE ROGERS — Sobre os Fundamentos Fenomenolégico Existenciais. Constitui-se como obra primeira, na medida em que aponta para uma reflexao sobre a concep¢ao filosofi- ca que fundamenta a ACP. Constitui-se de uma coletanea de ensaios, resultado de estudos, reflexao e experiéncias desenvolvidas pelo autor em seus ensinamentos em universidades, cursos de formagao, facilitagao de grupos como também de sua efetiva pratica clinica. Identifico neste trabalho dois momentos: primeiro o exame dos pontos de contato entre a Fenomenologia, o Existencialismo e a Abor- dagem Centrada na Pessoa. Segundo, proporcionar uma introdugao ao pensamento filosdfico as pessoas interessadas na teoria de Carl Rogers. Como professora, psicoterapeuta, aluna, considero o texto de exemplar clareza de compreensio da Filosofia a Teoria de Carl Rogers e 4 pratica clinica. Estabelece uma ldgica tal, que dele se pode usu- fruir, na medida em que vem a prencher lacunas existentes no campo académico Como pessoa, um sentimento de orgulho e a reafirmagao de respeito por vocé, Afonso. Diana Belém, psicdloga. Recife, Abril de 1997 RODUCAO A partir do trabalho de Carl Rogers, a Abordagem Centrada na Pessoa constituiu-se como uma vigorosa opgao, com amplas possibi- lidades de aplicagSes no Ambito das relagdes humanas, no campo da psicologia e da psicoterapia, da pedagogia, do trabalho com grupos. Algo que se pode com certeza dizer de Rogers, é que ele esteve produtivamente a altura de seu tempo e lugar. Trabalhou intensamente, desde a primeira metade do século, na constituigao de sua abordagem. A partir de sua formagao, no ambito da cultura e do meio da psicologia e, posteriormente, da psicoterapia norte americanas, Rogers soube usufruir produtivamente de influén- cias da cultura chinesa, que ent&o chegavam aos BUA, e a qual visitou na juventude; soube usufiuir essencial e produtivamente das perspec- tivas da fenomenologia e do existencialismo em psicologia e psicoterapia, que igualmente chegavam, entao, aos Estados Unidos, através, em particular, da psicologia organismica de Kurt Goldstein, e da influéncia de intelectuais europeus e de dissidentes do movimento psicanalitico, como Otto Rank e Ludwig Binswanger, influéncias que fecundavam poderosamente o meio da psicologia e da psicoterapia norte americanas, redundando no desenvolvimento da psicologia humanista. O trabalho de Rogers, a abordagem cenirada na pessoa, foi, e é, um dos grandes tributarios deste movimento, que contava com as contribuigdes de figuras como, A. Maslow, R. May, A. Angyal, e com acontribuigao de todo o processo fermentativamente produtivo que a cultura norte americana desenvolveu a partir das influéncias que lhe chegavam da Europa, no periodo imediatamente anterior, durante e posteriormente a segunda guerra. Rogers usufruia de um modo igual- mente produtivo, da influéncia do meio da Psicologia e da Cultura Norte Americanas, em especial da ampla influéncia de William James, e de pensadores como R. W. Emerson. As cisdes provocadas por C.G. Jung Qo movimento psicanalitico, e, em particular, a nietzscheana in- fluéncia de Otto Rank, e as concepgdes de Martin Buber tiveram um papel fundamental no desenvolvimento das perspectivas, teorias e pra- ticas de Rogers. A partir de sua formagao, Rogers cuidou de desenvolver os an- tidotos pragmaticos para as tendéncias fortemente abstracionistas, filosofantes e teorizantes das influéncias que lhe chegavam a partir da filosofia e da psicologia e psicoterapia fenomenoldgico existenciais européias. A abordagem de Rogers desnvolveu-se, e ganhou autonomia propria, ¢ ousadia para influenciar criativamente todo o ambiente que a engendrara, e, de um modo geral, a psicologia e 4 psicoterapia em todo o mundo. A partir de suas influéncias, o trabalho de Rogers configurou-se significativamente, em importantes de suas dimensdes, como um pro- cesso de desconstrucdo: desconstrugao de um modelo clinico de psicoterapia, fortemente baseado, frequentemente, numa perspectiva empirista e aniquiladora. Desconstrugao de uma concep¢ao empirista e objetivista, por um lado, da pessoa e do cliente, ou de uma concep- cdo universalizante e universalista deles. Desconstrugao de uma pers- pectiva autoritaria e manipulativa nos trabalhos com grupos e na rela- ao com o cliente individual. Desconstrugao da possibilidade de uma exclusividade ou hegemonia da Psicanalise, e/ou do Comportamentalismo. Propés, alternativamente, um modelo fenomenativo existencial de psicologia, de psicoterapia, de trabalho com grupos, de pedagogia, centrado fundamentalmente, nao na aplicacdo de teorias e de técni- cas, mas na relacdo fenomenativa existencial atual entre seus agentes. Propés, em particular, uma opgao de exercicio do poder, fundada na valorizagao dialogica da atualidade e em referenciais fenomenativos e existenciais. Rogers contou, no fluxo de seu processo produtivo, com o im- pulso vigoroso do movimento de certos segmentos culturais da soci- edade mundial e norte americana, nas trés primeiras décadas da se- gunda metade do século, de cunho fortemente existencial e libertador. Por outro lado, foi heterogéneo com relacao as tendéncias for- temente religiosas de negagao do corpo e da vida, e com relagdo as tendéncias fortemente empiristas da cultura norte americana, de onde ele proprio provinha. Estas tendéncias fortemente religiosas e de negag4o do corpo e do vivido, naéo obstante, tém cobrado um pesado tributo da fenomenologia e do existencialismo, como fundamentos da ACP e da psicologia e psicoterapia fenomenativa existencial norte americana. Na medida, em particular, em que desenvolveram progressivamente, e desenvolvem, um forte movimento reativo contra a perspectiva fe- nomenal e contra uma postura de afirmacéo do corpo e de afirmagio da vida, levando estas abordagens, as vezes fortemente, a acentuadas distorgdes pragmatico-empiristas ou idealistas, ligadas 4 perspectiva de um ideal ascético, e potencializadas pelo desconhecimento dos seus fundamentos e raizes fenomenativas e existenciais. Disseminando-se pelo mundo, a ACP desenvolveu-se na Amé- rica Latina e no Brasil, configurando-se como uma op¢do extrema- mente rica, no campo das psicologias, das psicoterapias, pedagogias e modelos de trabalhos com grupos de cunho fenomenoldgico existen- cial. Tem também sofrido criticas intensas, tanto de seus praticantes como de fora da comunidade destes. Estas criticas parecem estar sur- tindo o seu efeito, na medida em que tém potencializado uma reflexao sobre os seus fundamentos e sobre as suas distorgdes. Na medida, em particular, que tém possibilitado uma reflexio sobre nossa posigao especifica, enquanto brasileiros, latino-americanos, no contexto da teoria e da pratica desta abordagem. Acredito que uma parte fundamental deste processo, e do pro- cesso de desenvolvimento da ACP, é esta reflexao sobre seus os fun- damentos fenomenoldgico-existenciais, a recuperacao e a explicita reiteragao destes fundamentos. Na medida em que, em fungao de toda a distor¢ao pragmatico-empirista e idealista, eles ficaram frequente- mente confusos e até esquecidos. E nesta perspectiva que se inserem os ensaios deste livro. Busco nos trés primeiros capitulos indicar os fundamentos fenomenativo existenciais das chamadas condigées facilitadoras bd- sicas: a consideragdo positiva incondicional, a compreensdo empdtica e a genuinidade. Dedico um capitulo a discussaéo da concepgao de avaliagdo organismica da experiéncia, a partir de sua perspectiva fenomenativa existencial. Discuto, em um outro capitulo - De Como Psicélogos e Psicoterapeutas Aprendem a Fenomenologia e o Existencialismo —, 0 modo como psicdlogos e psicoterapeutas apren- deram a fenomenologia e o existencialismo e como elas Ihes servem em suas concepgées e trabalhos, a partir, em particular, da valoriza- gao de uma atitude fenomenoldgica, e da valorizagao de uma atitude e de valores de afirmagao da vida.. Comento, num outro capitulo — Fenomenagéo —, 0 modo eminentemente ativo da concepgao do fe- nomenal em psicologia ¢ psicoterapia, em contraposig&o com tendén- cias que escorregam para a valorizagdo de uma perspectiva reflexiva por sobre a perspectiva do vivido. No ultimo capitulo — Fatal Mesmo é Crer na Fatalidade —, busco expor alguns aspectos que me pare- cem fundamentais na contribuigo da perspectiva dialdgica da filoso- fia da relagéo de M. Buber para a psicologia e psicoterapia fenomenativa existencial Como se pode observar, nao pretendo estabelecer verdades, mas fazer jus ao legado de Rogers e dos psicdlogos e psicoterapeutas fenomenoldgico existenciais, assim como fazer jus a nds préprios em nossa atualidade e realidade, pela discuss4o do que me parecem pon- tos de interesse para o desenvolvimento da perspectiva desta aborda- gem e da perspectiva da psicologia e psicoterapia fenomenativa exis- tencial. Agradego a todos os colegas que leram discutiram e revisaram 0s originais, em especial a Diana Belém que, emprestando sua compe- téncia, leu, exaustivamente discutiu erevisou, além de me ter honrado com a apresentagao. Capitulo 1 AS CONDIGGOES FACILITADORAS BASICAS COMO PRINCIPIOS DE METODO FENOMENOLOGICO EXIS- TENCIAL.: 1. CONSIDERAGAO POSITIVA INCONDICIONAL. Se tudo que uma pessoa exprime (verbalmente ou ndo verbalmente, direta ou indiretamente) sobre si mesmo, me parece igualmente digno de respeito ou de aceitagdo, isto é, se ndio desapro- vo nem deprecio nenhum elemento expresso des- sa forma, experimento em relagdo a esta pessoa uma atitude de consideragio positiva incondi- cional. (Carl Rogers/ G. Marian Kinget) A fenomenologia significou um momento particularmente marcante no desdobramento do pensamento da Civilizagao Ociden- tal. Um momento em que buscou-se uma relativizagao dos juizos, do conceitual, do teérico, do abstrato, e da abstracao, privilegiando-se a fonte de onde eles emergem, a experiéncia viva, pré-reflexiva, pré- conceitual, pré-teorizante: o encarnado, o efetiva e pontualmente vi- vido. Constituiu-se assim a fenomenologia como uma ontologia, como uma epistemologia, como uma filosofia, como uma perspectiva de ciéncia, como uma atitude fenomenologica, que busca partir des- tes niveis origindrios da experiéncia e do devir, 0 nivel da intuigdo 7 origindria da vivéncia de consciéncia, A fenomenologia foi ai, j4, uma revolugao: ...Nao s6 relativizar, mas subalternizar a consciéncia reflexiva, os juizos, 0 tedrico, o conceitual, numa cultura que, desde Sécrates, instalava-os no apice dos valores e dos critérios do conhecimento... Eleger a infuigdo origi- ndaria da vivéncia de consciéncia como o critério por exceléncia do conhecimento e da existéncia: 0 nivel do conhecimento (vivencial) anterior a qualquer forma de conhecimenio (reflexivo).’ Foi uma modificagaéo completa do ponto de referéncia. Uma revolugao de mentalidade no ambito da socratica Civilizagdo Ociden- tal. A consciéncia pontual e pré-reflexivamente vivida, em seus ni- veis mais originarios, foi restituida a sua importancia e valor, no pro- cesso de constituig¢do da existéncia e do conhecimento humanos: 0 seu lugar de raiz de todas as coisas, e 0 seu lugar, nada menos que, de condigdo de apari¢do do mundo, raiz do mundo... Mundo a ela origi- naria e indissociavelmente correlativo, anteriormente a qualquer pos- sibilidade de ciséo. A preconizagao de uma atitude fenomenologica, que buscasse uma compreensdo (e nao uma explicagdo) do mundo, e da existéncia — em sua globalidade, detalhes e fragmentos — , a partir, especifica e particularmente, de sua vivéncia. Uma suspensao da crenca no valor dos juizos, conceitos e teorias a respeito do mundo e da existéncia, para enfatizar a importancia fundamental de sua vivéncia, na intwigdo origindria da vivéncia de consciéncia. “O mundo ndo tem existéncia, o mundo é fenémeno...”” Tudo isto representou ja uma revolucionaria mudanga de crité- 'D’ARTIGUES, André - © QUE E A FENOMENOLOGIA, Sio Paulo, Moraes, 1992. * op. cit 18 tios e de pontos de vista, de atitudes e de valores. Mas para a fenomenologia, como para o humano, de um modo geral, resta ainda, pelo menos, uma questao crucial: ...a consciéncia enquanto tal nao é wnica, nao existe isoladamente no mundo. Para a consciéncia ha sempre a crucial questo da outra consciéncia, do ou- iro, com os quais a consciéncia nao apenas relaciona-se dialogicamente, mas imbrica-se dialogica e necessariamente, num processo de mitua constituigao e reconstituigao. Rapidamente, a consciéncia constata que nao se trata, apenas, de viver num mundo de coisas que tém sentido. Mas de viver num mundo com outros. Outros que sao um eu para si proprios. De outros que constituem a sua propria unidade, de outros que sao focos auto- nomos de produgdo de seu proprio sentido (Husserl). Ou, como observa Lyotard: “A alteridade do outro distingue-se da transcendéncia simples da coisa pelo facto de 0 outro ser para si proprio um Eu e de a sua unidade nao estar na minha percepcao, mas nele proprio; por ou- tras palavras, o outro é um Eu puro que de nada care- ce para existir, é uma existéncia absoluta e um ponto de partida radical para si mesmo, como eu 0 sou para mim. A questdo transforma-se entdo em: como é pos- sivel um sujeito constituinte (0 outro) ‘para’ um sujei- to constituinte (eu)?”. “% E um segredo da arte do humano. Ser e viver com outros. Relagao com outros que pode ser, e é, a fonte de ameaca e de nossa destruicao. Relacao com outros que é a fonte de nossa criagaio e realizacao. Tamanha é a importancia do significado da possibilidade pre- 19 senga do outro que interessa-nos radicalmente respeita-lo em sua outriade, e interagir com ele em sua particularidade e singularidade. Nao posso abrir mao da afirmagiio de meu eu em devir, na rela- ¢a0 com 0 outro. Mas interessa-me a relagio com a sua diferenga e particularidade préprias, a owtridade do outro. Interessa-me respeitar a sua particularidade e a sua diferenca prdprias, e com elas interagir. Buber colocaria isto de uma forma primorosa: “Este ser humano é outro, essencialmente ou- tro do que eu, e é esta sua alteridade que eu tenho em mente, porque é ele que eu tenho em mente; eu acon- firmo, eu quero que ele seja outro do que eu, porque eu quero 0 seu modo especifico de ser? , Nao é por questdo de alguma forma de altruismo, ou por algum principio moral. E que “O eu se cria na relagdo com o tu”* Nao existe eu que se consititua que no seja dialogicamente na relagio com o Tu. De modo que a estratégia existencial fundamental do cres- cimento é a relagao com o diferente, com 0 outro — pessoal, impes- soal, individual, coletivo, situacional, humano, nao humano... E do meu interésse dialogicamente abrir-me e interagir com a diferenga do m. E a forma privilegiada do processo de minha auto- constituigao. A psicoterapia mergulhou de cabega na revolugao que configu- Taram a fenomenologia e a sua conotagao existencial, constituindo linhas especificamente fenomenoldgico existenciais de psicoterapia. OO * BUBER, Martin - DO DIALOGO E DO DIALOGICO, sa “BUBER, Martin - EU E TU, Sio Paulo, Moraes, 1983 7 Sto Paulo, Perspectiva, 1284. 20 Com isto, constituiu-se uma revolugao propria e particular no seu campo especifico, e, porque nao dizé-lo, no ambito das relagdes soci- ais na cultura ocidental. Revolugao potencializada e potencializante inclusive da propria emergéncia e desdobramentos da fenomenologia e do existencialismo. Isto significou, de imediato e preliminarmente, no encontro e confronto com o cliente, a assungao do ponto de vista epistemologico da fenomenologia, ea elei¢ao do ponto de vista fenomenal como cri- tério superior de conhecimento e de vida. Ou seja, alternativamente ao conceitual, ao reflexivo, ao tedrico, a assungao do ponto de vista da intuicdo origindria da vivéncia de consciéncia, do vivido, do pré- reflexivo, como critério superior do conhecimento e de orientagao e avaliagao da vida. Isto marca uma revolugio histdrica, epistemoldgica, conceitual, técnica, politica, no 4mbito dos trabalhos de psicoterapia, de satide mental e de manejo das relagGes sociais. Revolugaio que ainda esta por desdobrar-se, e produzir os seus melhores efeitos. Marca uma revolucao, sobretudo, do ponto de vista ético. Na medida em que reconhece-se inquestionavelmente o direito do outro a sua propria subjetividade fenomenal, e ao seu exercicio. Nao se trata apenas do direito do outro a sua propria conscién- cia, mas do direito a validade inquestionavel da fonte vivencial e pré- reflexiva de sua consciéncia, da intui¢ao originaria de sua vivéncia de consciéncia como raiz do mundo para ele. o% De modo que, com relagao a subjetividade do cliente (tantas vezes massacrada em sua vida cotidiana, e frequentemente, em parti- cular, pelo proprio poder institucional do profissional), com relagao ao seu (do cliente) ponto de vista fenomenal, desenvolve-se um res- peito radical, de quem, enquanto psicoterapeuta, se auto-concebe como humano, em primeiro lugar — e néo como um técnico —, e esta visceralmente interessado na humanidade original e unica de seu par- 2 PF ceiro de relagéo — mesmo que seja esta uma relacao emoldurada pelo vinculo profissional. Respeito ao cliente nao apenas de um ponto de vista abstrato, teorico, conceitual, egotica e narcisicamente projetivo, mas do ponto de vista fenomenal e pontualmente vivido dele préprio, cliente, pessoa, ser humano, consciente e auténomo, afetivo, em crise existencial mais ou menos aguda, e em devir. Por outro lado, para além do conhecimento, as psicoterapias fenomenoldgico existenciais assumiram a perspectiva existencialista da propria afirmagGo do vivido, e do valor da criatividade existencial, emergente na afirmagao deste vivido. A perspectiva da afirmagio da existéncia, como postura ética, e como estratégia, digamos, terapéu- tica, ou de crescimento humano, existencial. Pensadas no que concerne ao cliente, estas premissas fenomenolégico existenciais da psicoterapia convergiram naturalmente, assim, num principio de respeito radical a sua diferenga enquanto ou- tro, consciente, reflexiva e, sobretudo, pré-reflexivamente. Mais do que respeito, convergiram no interésse por sua diferenga particular, por sua outridade propria. Um interesse por uma compreensio e con- firmacéo da pessoa dele, naquilo que ele pontualmente se percebe, vivencia e comunica como sendo ele proprio, no modo como ele com- preende e vivencia as questées, pessoas e vinculos significativos de sua atualidade existencial Posso colocar-me em relagdo com o cliente. Com a sua comu- nicagao voluntaria ou involuntaria. Mas, tal como a minha, a sua cons- ciéncia constitui-se auténomamente. E, 6, fenomenologicamente, a raiz do mundo para ele. De modo que, se posso, e interesso-me, por colocar-me dialogicamente em relaco ativa com ele, a partir da sin- gularidade pontual de mim mesmo, ndo me concerne avaliar ou tentar condicionar o ponto de vista fenomenal de sua consciéncia com rela- go a ele proprio, ao seu mundo, a seus vinculos, a suas questdes existenciais. Este ponto de vista existe necessariamente, e é imanente a existéncia de sua pessoa na relagao com o mundo que lhe diz respei- 22 to. Ea raiz do mundo para ele. De modo que o que interessa a um terapeuta fenomenolégico existencial é que o cliente possa afirmar a afirmacdo que ja é este seu ponto de vista fenomenal. E o respeito incondicional por este ponto de vista fenomenal do cliente, por sua experiéncia, pela sua afirma- giao. No pragmatico desenvolvimento da terapia centrada na pessoa, cedo percebeu-se que era este respeito incondicional pelo ponto de vista fenomenal do cliente, e por sua afirmag&o, que se constituia como uma condi¢ao fundamental para a criagado de um clima terapéutico, de possibilitagao de “cura”, e de facilitagao de seu crescimento huma- no. Uma atitude de Consideragdao positiva incondicional pela ex- periéncia do cliente por parte do terapeuta logo revelou-se como um poderoso fator de constituig&io de um clima de relago passivel de propiciar condigdes ao cliente para uma progressiva reorganiza¢ao de seu modo de funcionamento psiquico e comportamental, propician- do-lhe condigdes para uma reorganizacao da sua imagem de seu si- mesmo, e uma melhor atengao a sua experiéncia organismica, no sen- tido do desenvolvimento de padres mais livres de vivéncia desta sua experiéncia e de criatividade e poténcia no Ambito de sua existéncia. Como pedra de toque, a consideragdo positiva incondicional cria condigdes para que o cliente possa afirmar o seu vivido, e progressi- vamente com ele identificar-se de um modo habitual. De-modo que a habitual identificagao do cliente com o seu vivido permite-Ihe uma potencializagao de sua originalidade e de sua criatividade, de suas forgas e vontade, na resolugao e encaminhamento de suas questdes existenciais. Este conceito, e a pratica efetiva de uma consideracdio positiva incondicional pela experiéncia do cliente, passou entao a constituir- se como elemento fundamental da teoria e da pratica da Terapia 23 (la a Centrada na Pessoa, da mesma forma em que passou a ser entendido como um fator fundamental para o desenvolvimento de uma persona- lidade humana plenamente funcionante. Entendendo-se levar a sua caréncia regular ao desenvolvimento de um estado de mal funciona- mento da personalidade, de desajuste social e desequilibrio psicolégi- co. Os praticantes da terapia centrada na pessoa, desenvolveram estudos para verificar hipdteses relativas 4 consideragao positiva. E, como na quest&o da empatia, ha que se reconhecer a Rogers o mérito de ter investido a sua vida profissional na afirmagdo do valor e da importancia da consideragdo positiva incondicional no ambito da psicoterapia, da pedagogia e dos trabalhos com grupos e de facilita- gao das relagdes humanas em geral. Infelizmente, 4 medida em que vai se desenvolvendo na ACP uma pragmatico empirizagao de seu fundamento fenomenoldgico e existencial — o que significou uma perda de densidade fenomenoldgico existencial dialogica em sua concepgao, na concepgao de seus concei- tos, principios e na sua pratica— ha um empobrecimento conceitual e pratico da idéia de uma consideragdo positiva incondicional pela experiéncia do cliente. E interessante observar, num primeiro momento, que, ao longo desse processo, 0 contetido fenomenoldgico existencial dialogico do conceito vai sendo misturado com contetidos da filosofia dos direitos da pessoa humana. Interessante. No limite, a pessoa ¢ aceita como um valor em seu direito pes- soal de cidadao, a pessoa em si é aceita como um valor. Evidentemente que isto é uma premissa fundamental da relagao com outros seres humanos, conquista das revolugdes burguesas da Europa e dos Estados Unidos. Mas a questao de uma consideragdo positiva incondicional pela pessoa do cliente nao pode parar sim- 24 plesmente por ai. Nio se trata de uma consideragao positiva incondicional pelo outro como pessoa abstrata, tedrica, que eu projeto egdtica e narcisicamente sobre o meu parceiro de relag&o. Nao se trata, tam- bém, o que da mais ou menos no mesmo, de uma consideragao posi- tiva pelo outro apreendido e concebido meramente como pessoa empirica ¢ empiricamente comunicante e comunicada. Trata-se do reconhecimento e confirmag&o pontual do outro enquanto outro fenomenal, consciente e em devir, diferente e auténo- mo, dialogicamente em relagdo comigo, Trata-se de uma considera- go positiva incondicional pelos niveis mais informes e frescos de sua consciéncia com relagao a si proprio ¢ ao mundo que lhe diz respeito. Trata-se do reconhecimento do seu direito a diferenca e a autonomia, em sua relac&o pontual comigo, pessoa ¢ instituigao, locus de poder. Trata-se em particular do interesse vivencial, nao altruista, de pér-me em relacao dialogica com a sua diferenga e autonomia: Trata-se do meu interesse na parceria com ele num processo de constituigdo de minha atualidade, de meu presente. Presente que, como diz Buber, sd existe na presenga. Presenga que é a presenca do, e relagdo com o, tu, alteritario, em sua diferenga propria e autonomia.* De modo que nao se trata, por exemplo de um conceito moral ou altruista de aceitagao do outro. Nao se trata de simplesmente reco- nhecer — premissa fundamental, mas insuficiente — o seu direito a ser aceito incondicionalmente como um valor por ser pessoa. Nao se trata da aceitag&o de sua pessoa empirica. Trata-se, na consideragdo positiva incondicional pela pessoa e pela experiéncia do cliente, de uma abertura para a relagao com ele *BUBER, Martin - Op. Cit. 25 em sua outridade prépria, e de uma compreensio e consideragio po- sitiva, ativa e vivencial, pelo seu ponto de vista fenomenal, como ine- vitavel e irrecusavel raiz do mundo para ele, Trata-se de um principio de método fenomenolégico-existencial de pratica da psicologia e da psicoterapia, que carece de ser entendido de uma perspectiva especi- ficamente fenomenoldgica e existencial. Do contrario, coma perda da densidade fenomenolégica ¢ existencial de sua concepgao, a conside- taco positiva é facilmente confundida com uma incondicional aceita- 40 moral do outro, facil e rapidamente refutada como impossivel. Enquanto que a consideragao positiva incondicional constitui-se efe- tivamente como interesse existencial para quem efetivamente a prati- ca. Nao custa recordar Fritz Perls: “Mil flores de plastico nao fa- rao o deserto florescer.”" 26 "eee ee Capitulo 2 AS CONDIGOES FACILITADORAS BASICAS COMO PRINCiPIOS DE METODO FENOMENOLOGICO EXISTENCIAL: Il. A RELAGAO EMPATICA. Empatia e Dialogicidade. O objeto deve consumir-se para se tornar presenca, retornar ao elemen- to de onde veio para ser visto e vivi- do pelo homem como presente. (M. Buber) Quando se concebe a idéia de empatia, n&o se observa, nor- malmente, a dimensio da dinamica de interagao e de re-criagao de diferengas entre os parceiros, inerente ao processo da relagao empatica. Tem-se sempre em mente 0 esforgo, a disposigao, o gesto do terapeuta, no sentido de uma compreensao do como 0 cliente se percebe ou se ssente no momento, como percebe o mundo que lhe diz respeito e as suas relagdes, da forma a mais acurada possivel Naturalmente que a definigao deste esforgo, desta disposigao e gesto do terapeuta, so componentes fundamentais de um certo modo do que se pode entender como empatia. Limitado, entretanto, a esta perspectiva, este parece ser um modo grosseiro, e, pior que isto, um modo de compreensao passivel de gerar mal-entendidos que compro- metem bsicamente 0 que se quer ter por empatia. O mais grave desses mal-entendidos é que a limitagao a este modo de formulagao reflete uma certa concep¢do objetivista do ‘ou- tro’, e (pasmem) uma certa concep¢do objetivista de sua subjetivida- de! O que é certamente um absurdo. Concebe-se frequentemente a 27 empatia como um esforco cognitivo, inorganica e artificialmente arti- culado a afetividade do terapeuta. Este modo de concepgao perde o que existe de fundamental no processo da relag&o empatica. Na medi- da em que o cliente é constituido desta forma como objeto de relagao e de conhecimento. E, seguindo Buber, o que é fundamental é, exata- mente, que 0 parceiro ndo seja objeto, mas vivido. Que o parceiro nao seja, empiristicamente, entendido como um objeto auténomo, dissociado de mim, terapeuta. Esta pessoa do cliente, tal como me aparece na minha relagao com ele, s6 existe como tal em fungao desta relacao em que sou polo. O que me implica inextrincavelmente, nos niveis existencialmente mais basicos de mim mesmo, vivenciais, pré-reflexivos. O fundamental é que o cliente nao seja entendido como objeio de conhecimento abstrato, mas afirme-se e confirme-se na relagao comigo como um parceiro efetiva e fenomenalmente vivido, dialogicamente, no confronto com, e privilegiamento de, suaalieridade viva, ativa e auiénoma. Que ele nao objetificado, assepticamente, teorizado ou simplesmente conhecido reflexivamente, por este seu parceiro num evento da vida, eventualmente terapeuta. Uma relagdo empatica objetivista perde o valor de sua dimen- sdo existencial, do seu poder de atuagao e de trans-form-agao produ- tiva, tanto da existéncia do cliente como da existéncia do terapeuta Ou seja, perde a referéncia deste poder como seu sentido e condigao de sua possibilidade. Mais importante, transforma-se em sofisticado dispositivo de manipulagao e de produgao da subjetividade do cliente. Para compreendermos e efetivarmos a relag4o empatica, é interessan- tea preservagao deste seu carater duplo, de transformacao existencial tanto do cliente como do terapeuta.* « Wood ¢ O'Hara apontam para este cariter da relagio empética, Cf. Rogers e outros EM BUSCA DE VIDA, Sio Paulo, Summus, 1984, 28 Mais que isto, é fundamental enfatizar que € exatamente a interagao pontual, sincrénica e sinténica, desses processos simultane- os ¢ diferenciados de transformagio existencial que se configura como relac3o empatica. Em momento algum, na efetiva relag&o empatica, 0 cliente (e muito menos 0 terapeuta) € objeto — de relagao, de conhe- cimento ou de uso — na medida em que © processo desta relagao desdobra-se numa esfera vivencial, vivida, de relacao entre’ parceiros fenomenativos que, em momento algum, sao circunscritos objetiva- mente. Os parceiros de relag&o estao fenomenal e existencialmente implicados em seu processo relacional. De modo que nenhum dos dois é isento do outro ou de si mesmo, de modo a poder constituir 0 parceiro ou constituir-se a si proprio como objeto. O outro, portanto, na duragao da relagéo empatica, é sempre parceiro vivo e em devir, na dinamica fenomenoldgico-existencial do encontro, co-participante, nunca objeto; nem mesmo de conhecimen- to. Com o outro, na empatia, a relagio é ontoldgica, relagéo de totalidade de ser, existencialmente produtiva, nunca uma busca objetivista de conhecimento, muito menos um esfor¢go de uso do par- ceiro, em nenhuma de suas modalidades — homem nenhum é meio para outro (Kant). De modo que a empatia é, fundamentalmente, um processo existencial de dupla constituigao. A empatia cria e recria 0 si mesmo do terapeuta, ao mesmo tempo em que torna possivel a cria- gio e recriacao do cliente. “O outro é uma modificagdo do meu eu”. (E. Husserl). Reside ai muito do que se pode atribuir de valor terapéutico a relagao empatica. ” Cf BUBER, Martin EU ETU, Sao Paulo, Summus, 1983, e DO DIALOGOE DO DIALOGICO, Sio Paulo, Perspectiva, 1985. 29 Um equivoco comum quando se concebe vulgarmente a idéia de empatia é o de julgar que esta consiste, atomisticamente, numa suposta apreensio do estado do outro. Quase como se 0 outro fosse um continente de cujo conietido eu quisesse e pudesse cognitivamente apropriar-me. E, nesta visao distorcida da empatia, quase como se 0 outro fosse um recipiente de conteidos psico-afetivos, dos quais eu me aproprio compreensiva (tolerante) e bondosamente, de um modo as vezes quase que felepdtico. O outro em questo é, assim, um obje- to (sem duvida nobre objeto, mas ainda objeto) de conhecimento, ou, no maximo, de relacionamento. Por mais que a este esforgo cognoscente tente-se, mecanicamente, adicionar uma dimensio afetiva. O terapeuta é, neste caso, por mais que 0 negue, “neuro”, por mais que represente ou simule um envolvimento com o cliente. Mecanicamente, o que o terapeuta parece as vezes tentar é a reprodugao cognitiva em si proprio do que ele imagina apreender do cliente como objeto de atengao. O que de fato ocorre, na apreensio que o terapeuta faz do cliente, é um esboroamento das diferengas existentes e engendradas como processo de diferenciagdo entre o terapeuta e o cliente, uma tedugao do conflito, potencialmente produtivo e criativo, entre alteridades. Terreno fértil este para potentes manipulagdes por parte de terapeutas eventualmente incompetentes e dominadores. So existe Empatia na relagao fenomenal efetivamente vivida entre diferentes. Mais que isto, entre diferentes que privilegiam, que podem e querem fascinar-se pelas respectivas diferengas, e pelos flu- xos dos processos destas. S6 existe empatia no fluxo de processos de diferenciagao, que se engendram reciprocamente entre os parceiros em interagio. A tensao da relacdo fugaz entre diferentes é condigao de possibilidade da empatia. Compreender o outro em sua particularidade é, fundamental e inevitavelmente, relacionar-se efetivamente com o diferente, com a 30 diferenga, com configuragdes de diferengas em fluxo, devir. E isto exige, e s6 é possivel, na medida em que, em me abrindo para a dife- renga do outro, efetivamente sou afetado por sua outridade, e me crio como diferente, dele e de mim mesmo, como diferenga, como fluxos de diferenga. De modo que a empatia nao tem a ver com um tornar-se simi- lar, igual, ao cliente, ou vice-versa. Nao tem a ver com uma redugao das diferengas entre eu e ele. Muito pelo contrario, a empatia nutre-se fundamentalmente da diferenga, configura-se basicamente como pro- cesso de diferenciagao, no qual as diferengas se encontram, confron- tam-se, e sao recriadas, como diferenci/agéo. Paradoxalmente talvez, para um certo tipo de perspectiva, néio é isto que me distancia do parceiro de relagdo, Muito pelo contrario © processo da diferenciacao ao longo da relagio é condigao de possi- bilidade de uma relagdo de vinculos saudaveis e fortes. Negar ou re- duzir as diferengas, é inviabilizar a possibilidade da relagao, é negar ou reduzir 0 outro e a mim mesmo, é reduzir a possibilidade do nds: de um nds vitalizado e rico, de vinculos fortes, nao de um 76s conflu- ente e amorfo. A negacao da diferenga do outro é a primeira e a mais basica impossibilidade da empatia, e da relagao. A relagao empatica desdobra-se exatamente a partir do interesse espontaneo e ativo pela diferenca do outro, que permite uma abertura para esle enquanto tal Para o bom terapeuta, o cliente é, sempre e sempre, inevitavel- mente outro, e auténomo em sua outridade. Mais que isto, 0 bom terapeuta privilegia 0 reconhecimento e a afirmagao deste dado da realidade, e faz dele a fonte da criatividade, e a forga motriz, do pro- cesso da psicoterapia. Evidentemente que o terapeuta nado pode relacionar-se com todos os possiveis desta outridade do cliente, nem mesmo acompa- nhar todos os fluxos de suas variagdes. Da mesma forma que nem mesmo o proprio cliente pode dar-se conta em si dos matizes e fluxos, 31 , acada momento, da outridade de si proprio. Mesmo que a cada mo- mento esta se apresente sob formas de configuragées significativas totalizadas. Mas, a cada momento, existe a possibilidade de abertura pontual do terapeuta na relagao com a particularidade desta outridade do cliente. Nos momentos em que efetiva-se esta possibilidade, terapeuta e cliente ja nao so simples objetos em relacionamento( /sso e Isso, como diria Buber), j4 nao séo um para o outro objetos de relag&o, de conhecimento, ou de uso, mas s&o co-participes, co- laboradores em um processo relacional, sutilmente imprevisivel, que mobiliza em sua duracao a constituigao de suas respectivas conscién- cias vivenciais. “Parceiros em um evento da vida’(Buber). Relacao imprevisivel, em particular, porque configura-se como momento emi- nentemente plastico existencialmente, plasticidade 4 qual nenhum dos dois parceiros é imune, e a qual nenhum dos dois pode controlar. A relagio empatica é, assim, fundamentalmente marcada pelo que Buber chamava de Dialogicidade.* “O homem se torna EU na relagdo com o TU.” Dai ser o momento empatico um momento eminentemente plas- tico de criagio e recriaciio. Criagao e recriagao que afetam e implicam tanto ao cliente como ao terapeuta. Podemos dizer que s6 existe empatia quando existe afetamento e implicag4o reciprocos. Contami- nagao (pela outridade). Impregnagao, no sentido gravidico (existen- cial) do termo. Arbitrariamente — porque em realidade isto nao tem esta or- dem —, podemos tomar este ponto como ponto de partida da relagao empatica. E esta impregnacao, este emprenhamento, pela outridade do outro, os efeitos de uma certa vulnerabilizagao e afetacao por esta outridade, que permite ao terapeuta ser empatico. Sop.cit *. BUBER, Martin, op. cit. p. 32. Usemos os termos de Buber. A efetivagao da abertura do terapeuta’ em relagéo com a outridade do cliente s6 € possivel na medida em que, para si proprio, © terapeuta pode modificar-se, e ser também um outro do que era. A abertura efetiva do terapeuta para o cliente enquanto TU so é possivel na medida em que o terapeuta se recria o enquanto EU. O que marca edefine o 7U é exatamente a sua diferenca, a presenga de sua outridade, de sua alteridade: relacionar-se com o TU implica na atualizagao de potencialidades, de possibilidades de ser, para estar-se a altura (diga- mos) da relacéo com a sua novidade — “O outro é uma modificagdo do meu eu” (Husserl): e isto nada mais é do que recriagdo do*préprio EU. Para o cliente, naturalmente, o terapeuta ¢ também, sempre e sempre, inevitavelmente outro. Evidentemente que ele, cliente, também nao pode dar-se conta de todos os possiveis desta outridade, nem acompanhar os fluxos de sua variagao. Mas 0 cliente também pode abrir-se eventualmente para a atualidade da outridade do terapeuta, e com ele relacionar-se en- quanto TU. Pode vulnerabilizar-se e impregnar-se pela relagao com a alteridade do terapeuta, e, ainda que auténomamente, recriar-se como EU, na relag&o com ele. Ora, nos fluxos e contra-fluxos da relagéo terapéutica, existe uma dimensao particular da objetivagao do TU do terapeuta a qual o cliente é particularmente sensivel e vulneravel: 0 terapeuta é pessoal- mente afetado a medida em que se abre para a relacao com o cliente enquanto 7U. Este afetamento especifico, como vimos, implica de um modo particular, a recriagao do EU do terapeuta. Recriagiio que se da pontual e especifica e necessariamente na relago com o cliente parti- ® Eventualmente usamos aqui os termos rerapeuta e cliente, mas processo da relagdo pode desenvolver- see efetivamente desenvolve-se entre quaisquer parceiros humanos, 33 TN cular. E a participagio deste EU assim recriado na relag&o com o cliente, a sua objetivagao, que configura-se como o proprio nucleo do que chamamos de resposta e aco empaticas do terapeuta. O cliente é particularmente sensivel a esta forma de objetivagao e do ser e estar do terapeuta. Desta forma particular de ser do terapeuta que é para ele efetivamente terapeuta como TU, como um outro que dialogicamente com ele se relaciona. Esta dita forma de objetivagdo, de ser e estar do terapeuta, cria-se, engendra-se, na relacdo especifica, particular, pontual e intransferivel com ele proprio (cliente). Num certo sentido, consti- tui-se como uma ressonancia do proprio ser do cliente, ainda que seja, sempre e sempre, inevitavelmente outro. Na verdade, é uma incontrastavel confirmacdo” de seu (do cliente) proprio eu, da efetividade e existencial realidade deste. Na relagao viva com o desafio deste TU que é outro e que mesmo assim confirma-o efetivamente, o cliente pode recriar-se de modo efetivo, superando, sempre que possivel e interessante, 0 seu proprio sfatus-quo. A empatia tem a ver, assim, com a oferta, com a objetivacao por parte do terapeuta de uma dimensao fenomenoldgico-existencial sua que elabora-se especificamente na relagao com o cliente. Dimen- sao que exige expressar-se em seu lugar e tempo proprios, que é a telagao entre o cliente e o terapeuta particulares, na atualidade de um momento e lugar particulares. Esta dimensao configura-se inequivocamente como pertinente a particularidade do terapeuta, a sua outridade em relagio ao e como cliente. Engendra-se na relagao particular com este, mas esta fora de seu controle, uma vez que elabora-se como EU do terapeuta. Nela ‘of. BUBER, Martin, DO DIALOGO E DO DIALOGICO, Sao Paulo, Perspectiva, 1982. 34 nao existe simetria com relagao ao cliente, ou com relagao a um esta- do seu, nao existe aproximagao redutora de diferengas, mas, basica- mente, a reafirmagao e a recriacao delas. E isto é bom, benigno, sau- davel e produtivo, criativo, potencializador de vinculos saudaveis. Ao apreender a particularidade do outro, o apreendido ja nio guarda semelhanca com o outro em questao. Intimamente articulado ale, é nao obstante, elaboragao do sujeito que apreende. Esta elaboragio é absolutamente idiossicratica e envolve, in- clusive, a imaginagao, e em particular a responsabilidade do sujeito que apreende. Como observa Buber, os dados empiricos da experién- cia néo nos oferecem 0 outro em sua particularidade e completude. E necessario uma vigorosa penetracao imaginaria no outro, uma fanta- sia do real, como chamava", para que possamos configura-lo em nossa consciéncia. Uma fantasia que, como tal, ¢ imaginaria, mas que nao se pauta pelos i/imites da imaginagao, mas amarra-se a peculiaridade efetiva e imediata da atualidade do outro em inter/acao. De modo que a apreensao que tenho do outro nao configura- se como similaridade do outro, representagdo do outro, em minha consciéncia. Mas é, em todos os momentos, elaboragéo minha. Cons- tituida, oferecida, objetivada, como participagdo minha na relagao: é a particip/agéo de uma produg&o minha — engendrada na relagao com 0 outro — que ao outro é oferecida. Evidentemente que todo este processo exige do cliente a pre- servagao ea atualizacdo de uma abertura para a relagdo com o terapeuta enquanto TU. Num certo sentido, exige-se do cliente a mesma capaci- dade e disposigao de ser empdtico, para que possa ser a ele acessivel a empatia do terapeuta. Mop. cit, 35 Naturalmente que esta capacidade do cliente correlaciona-se necessariamente, no fluxo da relagdo empatica, com a capacidade do terapeuta de ser, para o cliente, simplesmente interessante, no sentido relacional e existencial do termo. Uma capacidade do terapeuta que tem um de seus pontos culminantes em sua condig&o de poder vulnerabilizar-se a outridade peculiar, enquanto tal, do cliente, de ser por ela afetado e recriado, e de poder oferecer, objetivar, na relagao com este, a efetividade deste seu eu recriado. A empatia, portanto, ao contrario do que se pode eventual- mente pensar, vive da diferenga, da articulagao e interagao de diferen- cas, da relagdo de alteridades, que se afirmam e se recriam como alteridades nos processos de sua interagao. Capitulo 3 AS CONDIGOES FACILITADORAS BASICAS COMO PRINCiPIOS DE METODO FENOMENOLOGICO ExIS- TENCIAL. Ill. GENUINIDADE. As premissas da psicologia e psicoterapia fenomenologico-exis- tencial, em especial tal como elas se constituem na Abordagem Centrada na Pessoa, requerem radicalidade em sua proposigao e pra- tica efetiva. Radicalidade no sentido original da palavra, de toma-las efetivamente pela raiz. A Consideracao positiva incondicional pelo outro em sua outridade e por sua experiéncia viva, vivido, pontual — em particular por sua experiéncia de si —, ou uma compreensio efetivamente empatica do outro, enquanto diferente que nos encontra dialogicamente, que nos confronta, afronta e se revela — ou nio —, uma abertura para sua diferenca pontual, nao podem ser fingidos. E interessante atentar para os sentidos da palavra “fingir”: “inventar, fabular, supor, fantasiar, aparen- tar, simular, dizer sem sinceridade, ser ou mos- trar-se dissimulado, hipocrita; fazer crer que é: simular ser; dar-se ares; querer passar; dar-se ares de; querer passar por...” A genuinidade é uma das condigées basicas da concepgao e da pratica da psicoterapia, e das outras modalidades, da Abordagem Centrada na Pessoa. A genuinidade pessoal do profissional em uma relagao que privilegia sempre e fundamentalmente o seu carater " BUARQUE DE HOLLANDA, Aurélio DICIONARIO AURELIO ELETRONICO, Rio, Nova Fronteira, 1994. 37

Você também pode gostar