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Seater Sees cece eee eee eee cee eres A ABORDAGEM ESTRUTURAL DAS REPRESENTAGOES SOCIAIS* Jean-Claude Abric A nocao de “representacao social” que upresento aqui corresponde a teoria elaborada por S. Moscovici, em 1961 © sucesso desta teoria € testemunho da renovagiio do interesse pelos Yendmenes colctives, e mais exatamente pelas regras que regem o pensamento social. O esiudo do pensamento “ingénuo”, do “senso comum” aparece a partir de {0 como essencial. A identificagio da “visao de mundo” que os individuos ou os grupos tém e utilizam para agir ¢ para tomar posigao, ¢ indispensiivel para compreen- der a dinamica das interagbes sociais ¢ clarificar os determinantes das prticas sociais 41. A Teoria das Representagées Sociais © que constitui 0 ponto de partida desta teoria € 0 abandono da disting3o ica —e, em particular, fortemente desenvolvida pelas abordagens behavioristas — entre sujeito e objeto. A teoria das representagdes Sociais afirma que nao existe separagiio entre 0 universe externo ¢ 0 universo interno do individuo (ou do grupo). Sujeito ¢ objeto nao se forgosamente distintos” (Moseoviei, 1969, p. 9). © objeto esta inscrito num context ative, sendo este contexto concebido pela pessoa ou grupo, pelo menos parci:lmente, enquanto prolongamento do seu comportamento, de suas atitudes ¢ das nezmas as quais ele se refere. Esta hipétese, do abandono da dicotomia sujeito-objeto, confere um novo estatuto ao que se convencionou chamar de “realidade objetiva”, definida pelos componentes objetivos da situagac ¢ do objeto. Nés propomos que nao existe uma realidade objetiva a priori, mas sim que toda realidade é representada, quer dizer, reapropriada pelo individu ou pelo grupo, reconstruida no seu sistema cognitivo, integrada no seu sistema de valores, dependente de sua histéria ¢ do contexte social € ideoldgico que 0 cer B € esta realidade reapropriada e reestruturada que constitui, para o individuo ou 0 grupo, a realidade mesma. Toda representagio é, portanto, uma forma de vis Pur Moreira, AS ¥% 5 ween, D€, (Ory). Espvvs INPERLIASCIVLIDBRES 0S KEYRESENTAL AL SCG/e . Set ANIA AE Editrn , 1996 . Estudos Interdisciplinares de Representagito Social global ¢ unitéria de um objeto, mas também de um sujeito. Esta representacao Teestrutura a realidade para permitir a integragio das caracteristicas objetivas do objeto, das experiéncias anteriores do sujeito e do seu sistema de atitudes e de normas. Isto permite definir a representacdo como uma visio funcional do mundo, que, por sua vez, permite a0 individuo ou ao grupo dar um sentido 2s suas condutas © compreender a realidade através de seu préprio sistema de referéncias; permitindo assim ao individuo de se adaptar e de encontrar um lugar nesta realidade. “Euma forma de conhecimento: 'socialmente eluborada ¢ partilhada, tendo ums orienta- ‘sao pritica ¢ concorrendo para a construgio de ume realidade comuin « uti Conjunto social” Jodelet, 1989, p.36). Ela é, 20 mesmo tempo, “o produto eo prosesso de uma atividade mental, uray ‘grupo reconstitui a realidade com a qual ele se confronta e pura a qual cle atribui um significado especifico” (Abric, 1987, p.64). da qual unt individuo ou um A representacio nao € um simples reflexo da realidade, cla é uma organiza- Gao significante. B esta significagio depende, 20 mesmo tempo, de fatores contingentes (as “circunstancias”, como diz Flament) ~ natureza ¢ limites da -situacdo, contexto imediato, finalidade da situagio ~e de fatores mais globais que ultapassam a situagdo em si mesma: contexto social e ideolégico, Iugar do individuo na organizagio social, histéria do individuo e do grupo, determinantes sociais, sistemas de valores. A representago funciona como um sistema de interpretacio da realidade que roge as relagées dos individuos com o seu meio fisico ¢ social, ela vai determinar seus comportamentos e suas priticas. A representagao € um guia para a acio, ela orienta as agdes.¢ as relagoes sociais. Ela é um sistema de pré-decodificacio da realidade porque ela determina um conjunto de antecipagdes e expectativas. 2. Funcaio das Representacées Sociais Se as representagdes tém um papel fundamental na dinamica das selagies sociais e nas préticas, é porque, como nds pensamos, elas respondem a quatro fungSes essenciais: 2.1 Fungao de Saber: Elas Permitem Compreender e Explicar a Realidade Saber pritico do senso comum, como diz Moscovici, clas permitem que os sores sociais adquiram conhecimentos ¢ as integrem em um quadro assimilavel ¢ rai A Abordagem Estrutural das Representagées Sociais compreensivel para eles préprios, em coeréncia com seu funcionamento cognitivo © as valores aos quais eles aderem. De outro lado, elas facilitam — elas so, quigd, a condigao necesséria para a existéncia da — comunicagio social. Elas definem 0 quadro de referéncia comum que permite as trocas sociais, a transmissio ¢ a difusdo deste saber “ingénuo”. Elas s4o a manifestagao do esforgo permanente do homem para compreender e comunicar, esforgo, 0 qual, Moscovici (1981) acredita ser a esséncia mesma da cognicao social. 2.2 Fungao Identitaria: Elas Definem a Identidade e Permitem a Protecao da Especificidade dos Grupos Além da fungio cognitiva de compreender ¢ de explicar “as representagSes tém por funcdo situar os individuos € os grupos dentro do campo social (permitindo) a elaboracao de uma identidade social e pessoal gratificante, ou seja, ‘compativel com o sistema de normas € de valores social mente ¢ historicamente determi- nados” (Mugny et Carugati, 1985, p.183). A fungio identitéria das representacdes assegura, para estas, um lugar primordial nos processos de comparagao social. As pesquisas sobre o papel das representages nas relagdes intergrupais, apresentadas por Doise, (1973), ilustram bem e confirmam esta funcio. Assim, a representagio de seu proprio grupo é sempre marcada por uma super avaliagdo de algumas de suas caracteristicas ou de suas produgdes (Mann, 1963; Bass, 1965; Lemoine, 1966) cujo objetivo é de garantir uma imagem positiva do grupo de insercao. Por outro lado, 2 referéncia as representagées que definem a identidade de um grupo terd um papel importante no controle social exercido pela coletividade sobre cada um de seus membros, e, em especial, nos processos de socializagao. 2.3. Fungao de Orientagao: Elas Guiam os Comportamentos e as Praticas O sistema de pré-decodificacio da realidade, constitufdo pela representacio, 6, de fato, um guia para a ago. Este processo de orientacio das condutas pelas representagdes resulta de trés fatores essenciais: ~ A representagio intervém diretamente na defini¢ao ds finalidade da situacio, determinando a priori, o tipo de relagdes pertinentes para 0 sujeito, ¢ também, eventualmente, dentro das situagdes de resolucio de tarefas, intervém na definigo do tipo de estratégia cognitiva que ser adotada. Nés pudemos demonstrar, (Abri 1971), que a representagdo da tarefa determina diretamente o tipo de estratégia cognitiva adotada pelo grupo, bem como a maneira como este se estrutura e comunica, independentemente da realidade “objetiva” da tarefa. Codol (1969), na mesma pers- pectiva, pds em evidéncia, como outros elementos da representacao da situagao (representagio de si, representacao do seu grupo e do outro grupo) tém um papel similar na determinagao do comportamento. 29, Estudos Interdisciplinares de Representagao Social ~ A representagdo produz também um sistema de antecipagbes expectativas, sendo, entio, ‘uma agio sobre realidade: sclegao ¢ filtragem das informagbes, interpretagées visundo a adequar esta realidade & representagio. Por exemplo, a representasio nio obedece a uma interagio endo depende de seu desenvolvimento; ela a precede e a determina. Deste modo, 1nés pudemes demonstrar (cf. Abric, 1987) como, dentro de situagbes de interagio conflitual, ‘© mesmo comportamento objetivo de um parceiro pode ser interpretado de maneira radicalmente diferente (cooperativo ou competitive) segundo a natureza da representacio elaborada pelo sujeito. A existéncia de uma representagéo da situagio, pré-existente & teragio em si mesma, faz com que, na maior parte dos casos “os jogos sejam feitos antecipadamente”, as conclusdes esto colocadas antes mesmo que 2 aco s¢ inicie, - Enfim, enquanto representagao social, au seja, refletindo a natureza das regras € dos elos sociais, a representa scritiva de comportamentos ou de praticas obrigatétios. Ela define 0 que é licito, tolerével ou inaceitivel em um dado contexto social 2.4 Fungdo Justificadora: Elas Permitem, a posteriori, a Justificativa das Tomadas de Posigao e dos Comportamentos Nés acabamos de ver como, acopladas a agio, as representagdes desenvol- ven um papel essencial. Mas elas intervém também na avaliagao da aco, permitindo 20s atores explicar e justificar suas condutas em uma situagdo ou face a seus parceiros. Assim é, por exemplo, nas relagées entre grupos. Doise, (1973), mostra como as representagdes intergrupais tém por fungio essencial a justificativa dos comportamentos adotados face 20 outro grupo. Em fungao da natureza das relagdes, mantidas com este tiltimo e da evolucdo dessas mesmas relacées, constata-se que as representagdes do outro grupo evoluem. Deste modo, dentro de uma situagio de relagdes competitivas, representagoes do grupo adversérios vio ser progressivamente claboradas, visando justificar um comporta- mento hostil face a ele. Este € um caso interessante para 0 estudo das relagdes entre praticas ¢ representagées. Trata-se de um caso onde a representagdo € determinada pela pratica das relagées. deste ponto de vista, aparecendo um novo papel das representagbes: o de manter ou reforcar a posigio social do grupo de referéncia. A representagao tem por fung&o preservar ¢ justificar a diferenciagao social, ¢ ela pode estereotipar as relagSes entre os grupos, contribuir para a discriminagao ou para a manutengao da distancia social entre eles. 3. A Abordagem Estrutural: a Teoria do Nucleo Central (Abric, 1976) Uma representagio é constituida de um conjunto de informagées, de crengas, de opinides e de atitudes a propésito de un) dado objeto social. Este conjunto de elementos se organizado, estrutura-se e se constitui num sistema sociocognitivo de tipo especifico. 30 A Abordagem Estrutural das Representagées Sociais Em 1976, nés haviamos proposto a hipétese do nicleo central, que pode ser formulada nos seguintes termos: a organizago de uma representago social apresenta uma caracteristica especifica, a de ser organizada em tomo de um miicleo central, constituindo-se em um ou mais elementos, que dio significado & representaco. a) O nicleo central O niicleo central 6 determinado, de um lado, pela natureza do objeto repre- sentado, de outro, pelo tipo de relagdes que o grupo mantém com este objeto ce, enfim, pelo sistema de valores e normas sociais que constituem o meio ambiente ideolégico do momento e do grupo. O miicleo central — ou niicleo estruturante — de uma representacdo assume duas fungdes fundamentais: - Uma fung@o generadora: ela é0 elemento através do qual se cria, ou s¢ transforma, o significado dos outros elementos constitutivos da representacao. E através dele que os. ‘outros elementos ganham um senti - Uma fungdo organizadora: & 0 nticleo central que determina a natureza dos eles, unindo entrem si os elementos da representacao. Neste sentido, 6 niicleo é 0 elemento unificador e estabilizador da representagio. fo, um valor. Além disto ele tem uma propricdade. Trata-se do elemento, ou elementos, o mais estével, da representaco, aquele que asscgura a continuidade em contextos méveis € evolutivos. Ele seré, dentro da representagio, 0 elemento que mais vai resistir 3 mudanga. De fato, toda modificagao do nficleo central provoca uma transformagdo completa da representacao. Nés afirmamos, entio, que € a identificacio do niicleo central que permite 0 estudo comparativo das representacdes. Para que duas represen- tages sejam diferentes, clas devem ser organizadas em tomo de dois nicleas centrais diferentes. A simples identificagao do contetido de uma representagdo nao basta para o seu reconhecimento e especificagiio. A organizacao deste contetido é essencial: duas representagées definidas por um mesmo contetido podem ser radicalmente diferentes, caso 2 organizagio destes elementos, portanto sua centralidade, seja diferente. E preciso considerar também que a centralidade de um elemento nao pode ser atribuida somente por critérios quantitativos. Ao contririo, 0 nécleo central possui, antes de tudo, uma dimensdo qualitativa. Nao é a presenga maciga de um elemento que define sua centralidade, mas sim 0 fato que ele dé significado a representacao. Pode-se, perfeitamente, identificar dois elementos, dos quais a import&ncia quantitativa € idéntica e muito forte, que aparecem, por exemplo, muito freqiientemente no discurso dos sujeitos, mas, um pode ser central ¢ o outro nao. b) Os elementos periféricos Em tomo do nticleo central organizam-se os elementos periféricos. Eles constituem @ essencial do contetido da representagio: seus componentes mais acessiveis, mais vivos e mais coneretos. Eles respondem por trés fungdes primordiais: 31 - Fungo ae concretizo¢ao: diretamente dependentes do contexto, os elementos peri ricos resuttam da ancoragem da representacao na realidade. Eles constituem a interface entre 0 nicleo central ¢ 2 situagio concreta na qual a representagao é laborada ou colocada em funcionamento. Eles permitem a formulagio da representagao em termos concretos, imediatamente compreensiveis ¢ transmissiveis. - Funcao de regulagao: mais leves que os elementos centrais, os elementas periféricos tém um papel essencial na adaplagao da representagio as evolugdes do contexto. Entio, as informagbes novas ou as transformagoes do meio ambiente podem ser integradas na periferia da representacao. Elementos susceptiveis de entrar em conflito com os fundamentos da representagio poderdo também ser integrados, seja thes atribuindo uma importncia menor, scja Ihes reinterpretando na diregao do signiticado estabelecido pelo nticleo central, ou ainda, Ihes atribuindo um carater de excecao. Face a estabitidade do nécleo central, os elementos periféricos constituem 0 aspecto mével ¢ evolutivo da representacao. - Fungdo de defesa: 0 nicleo central de uma representaco - come ja dissemos - resiste ‘a mudanga, posto que sua transformacio provocaria uma alteragao completa . Entio, 0 sistema peritérico funciona como o sistema de defesa da represeutacao... Ele constitui o que Flament (1994) chama de «para-choque» da representacao. A transformacio de uma representacdo se opera, na maior parte dos casos, através da transformaco de seus elementos periféricos: mudanga de ponderacio, interpretagdes novas, deformacées funcionais defensivas, integracio condicional de elementos contradit6rios. E no sistema periférico que poderio aparecer c ser toleradas contradigdes. Os trabalhos de Flament (1994), constituem um avango importante na andlise do papel deste sistema periférico. Flament considera que, na realidade, os elementos periféricos so esquemas, organizados pelo niicleo central, de tés caracteristicas que Flament thes atribui: “garantindo de modo instantinco 0 funcionamento da representagao como guia de eitura de uma situaca0” (cf. Flament, 1989, p.209). A importaacia destes esquemas no funcionamento da representagao resulta 1) Primeiramente, eles sio prescrifores de conportamentos ~ e, acrescentamos, de tomadas de posicao do sujeito. Eies indicam, de fato, o que € normal de se fazer ou de se dizer em uma dada situacio, considerando o significado e a finalidade desta mesma situago. Eles possibilitam, assim, a orientacdo das agoes e reagdes dos sujeitos de modo instantaneo, sem a necessidade de recurso aos significado centrais. 2) Em seguida, eles permitem uma modulagao personalizada das representacdes € das condutas a elas associadas. Uma representagdo Gnica —logicamente organizada em tomo de um mesmo niicleo central — pode assim dar lugar a diferencas aparentes. Estas diferengas estao ligadas 2 apropriagao individual ou a contextos especificos, que se traduziréo através de sistemas periféricos e, eventualmente, através de comportamen- 10s relativamente diferentes. Sob a condigio, claro, que essas diferencas scjam compativeis com um mesmo niicleo central. 3) Finalmente, os esquemas peritéricos protegem 0 nécleo central, em caso de necessi- dade. Reencontramos aqui a funcao de defesa, da qual j4 haviamos falado anteriormente A Abordagem Estrutural das Representagées Sociais ‘Aprofundando esta andlise, Flament ressalta um dos processas colocados em funciona- mento, quando uma representacao é atacada macicamente, ou seja, quando o nticleo central estd ameacado. Os esquemas normais diretamente associados ao nécleo se transformam entdo em “esquemas estranhos”, definidos segundo quatro caracteristicas: “a lembranga do normal, a designacio do elemento estrangeiro, a afirmagao de uma contradigio entre esses dois componentes, a proposicao de uma racionalizacio permi- tindo tolerar (temporariamente) a contradigio” (cf. Flament, 1987, p.146). Moliner verificou um ponto fundamental da teoria de Flament, o qual esclarece os papéis especificos do niicleo central e dos elementos periféricos no funcionamento da repre- sentagao: “Us esquemas centrais (0 micleo central) sao normattvos no sentido que eles expressam a normalidade, mas ndo a certitude,’ enquanto que os elementos periféricos condicionais, expressam o freqiiente, as vezes 0 excepcional, mas nunca o anormal” (Moliner, 1992, p. 328). 4. As Representagédes como Duplo Sistema As representagdes sociais ¢ seus dois componentes, 0 niicleo central ¢ os elementos periféricos, funcionam exatamente como uma entidade, onde cada parte tem um papel especifico e complementar da outra parte. Suas organizagOes, assim como seus funcionamentos, sao regidos por um duplo sistema (ct. Abric, 1992 e ct. quadro 1): - Um sistema central (0 nécleo central), cuja determinacao € essencialmente social, ligada as condicées hist6ricas, sociolégicas ¢ ideolégicas, diretamente associado a0s valores € normas, definindo os princfpios fundamentais em torno dos quais se constitu- em as representagoes. £ a base comum propriamente social e coletiva que define a homogeneidade de um grupo, através dos comportamentos individualizados que po- dem parecer contraditérios. Ele tem papel imprescindivel na estabilidade e coeréncia da Tepresentago; assegura a perenidade, a manutencio no tempo; ele é duradouro e evolui ~ salvo em circunstancias excepcionais de modo muito lento. Além do mais, ele é relativamente independente do contexto imediato dentro do qual o sujeito utiliza ou verbaiiza suas representagbes; sua origem estd em outro lugar, no contexto global — histérico, social, ideolégico — que define as normas c os valores dos individuos c grupos. - Um sistema periférico, cuja determinagao € mais individualizada e contextualizada, Mais associado as caracteristicas individuais e a0 contexto imedi- ato € contingente, nos quais os individuos estio inseridos. Este sistema periférico permite uma adaptagao, uma diferenciagio em fungio do vivido, uma integracao das experiéncias cotidianas. Eles permitem modulagSes pessoais em referéncia ao niicleo central comum, gerando representacées sociais individualizadas. Bem mais flexivel que o sistema central, ele protege este dltimo de algum modo, permitindo a integracao de informacées, ¢ até de priticas diferenciadas. Permite também uma certa heterogeneidade de comportamentos e de contetido. Nao se trata de um componente Estudos Interdisciplinares de Representacéo Social heterogeneidade de comportamentos € de contedido. Nao se trata de um componente menor da representagio, 20 contrario, ele é fundamental, posto que, associado a0 ‘sistema central, permite a ancoragem na realidade. Entende-se que a heterogeneidade do sistema periférico nao € sinal da existéncia de representages diferentes. Pelo contrario — €a contribuigéo de Flament sobre este ponto é fundamental —a anilise do sistema etiférico (por exemplo, a identificagdo dos “esquemas estranhos” e dos “esquemas condicionais” ) constitui um elemento essencial no estudo dos processes de transforma- slo das representagoes, sendo um indicador bastante pertinente de futuras modificagdes ‘ou um sintoma indiscutivel de uma evolugio nas situagdes onde a transformagao de uma representagao estd em andamento. E a existéncia deste duplo sistema que permite compreender uma das caracteristicas basicas das representagdes, que pode parecer contraditéria: elas sao, simultaneamente, estdveis ¢ méveis, rigidas ¢ flexiveis. Estaveis ¢ rigidas posto que determinadas por um néicleo central profundamente ancorado no sistema de valores partilhado pelos membros do grupo; méveis c flexiveis, posto que alimentando-se das experiéncias individuais, elas integram os dados do vivido ¢ da situagao especifica, integram a evolugdo das relagdes e das praticas sociais nas quais se inserem os individuos ou os grupos. Além disto, as representagdes sdo, ao mesmo tempo, consensuais e marcadas por fortes diferencas individuais. Como sinaliza Doise (1985, p.250) “a identidade dos principios de regulagSo, nid0 impede em nada a diversidade de tomadas de PosigaSo que se manifestam através das atitudes ¢ das opiniées... Uma multiplicidade de tomadas de posicio... (pode ser)... produzida a partir de principios organizadores comuns”. Para nés, a homogeneidade de uma populagdo ndo é definida pelo consenso entre seus membros, mas sim pelo fato de que sua representagao se organiza em torno do mesmo nitcleo central, do mesmo principio gerador do significado que eles dao & situagdo ou ao objeto com 0 qual séo confrontados. Quanro I - Caracteristicas do sistema central e do sistema periférico de uma representagao SISTEMA PERIFERICO + Permite a integragao de experi hist6rias individuais Tolera z heterogeneidade do grupo SISTEMA CENTRAL Ligado & meméria coletiva e & historia do grupo + Consensual © define a homogencidade do grupo © gera o significado da representagio © determina sua organizagio + Estavel + Flexivel + Coerente + Tolera as contradicoes + Rigido + _Resiste as mudanges = Evolutive | + Pouco sensivel a0 contexto imediato + Sensivel ao contexto imediaio + Fungies: + Fungées: © permite a adaptagdo 4 realidade concreta © permite a diferenga de conteido 34 A Abordagem Estrutural das Representagdes Sociais E neste sentido que o estudo das representagSes sociais nos parece essencial na psicologia social, porque ele oferece um quadro de andlise e de interpretagio que permite a compreenséo da interagao entre o funcionamento individual ¢ as condi- gdes sociais nas quais os atores sociais evoluem. Este estudo permite compreender 0s processos que intervém na adaptacao sociocognitiva dos individuos 2 realidade cotidiana e as caracteristicas do meio social e ideolégico. 5. Relagdes entre a Organizagao da Representagao e seus Processos de Transformagao Nés haviamos tentado demonstrar (cf. Abric, 1994) como as processos de evolucio ¢ de transformagio das represcntagées poderiam ser compreendidos através da nossa concepgio de organizagio intema. A questo que nos preocupava — e que, além disto, é uma questo central para 0 estudo das representagées -- referia-se as relagdes entre praticas sociais ¢ representac6es, e pode ser formulada nos seguintes termos: 0 que acontece quando os atores sociais so levados a desenvolver praticas sociais em contradic com seu sistema de representagao? Para responder a esta questo, Claude Flament introduz uma nogio que nos parece essencial: a nogdo de reversibilidade da situagdo. Determinados atores engajados numa situagao e af desenvoivendo certas préticas, podem considerar — com fazdo ou 140, pouco importa — que esta situagio seja irreversivel, quer dizer, que todo retomo as priticas faz-se impossivel. Ou, a0 contrério, podem considerar que a situagio seja reversivel, quer dizer, que o retorno 4s priticas anteriores € percebido como possivel, sendo a situagio atual tempordria ¢ excepcional. Os processos de transformagio que vo se desenvolver sio de natureza radicalmente diferente caso a situagao seja percebida como reversivel ou nao. Nos casos onde a situagdo € percebida como reversivel, as novas praticas contraditérias vio, logicamente, desencadear modificagies na representagao. Os elementos novos ¢ discordantes vao ser integrados na representacao exclusivamen- te através de uma transformagio do sistema periférico, o nucleo central da representaco permanece estével ¢ insensivel as modificagbes. Trata-se, pois, de uma transformagao real, mas superficial da representagao. Por outro lado, nas situagées percebidas como irreversiveis, as praticas novas e contraditérias vao, logicamente, ter conseqiiéncias muito importantes no processo de transformagio da representagao. Sio possiveis en transformagio: 10, trés tipos de 1) Transformagiao “resistente”. E 0 caso onde as priticas novas ¢ contraditérias podem ainda ser gerenciadas pelo sistema periférico ¢ por mecanismos clissicos de defesa: interpretagio ¢ justificagao ad hoc, racionalizagoes, referéncia a normas externas 8 representagio etc. A representagio se caracterizaré entae pelo aparecimento, no sistema periférico de “esquemas estranhos” conforme jé descrevemos anteriormente. 35 Estudos Interdisciplinares de Represersacao Social Estes esquemas estranhos evitam 0 questionamento do nicleo central, permitindo assim uma transformagao que implica somente o sistema periférico, ao menos durante um certo tempo, pois a multiplicagao de esquemas estranhos acaba por induzir a transformagio do nicleo central, conseqiientemente da representago no seu conjunto. 2) Transformagao progressiva da representaciio. Este tipo ocorre quando as priti- ‘cas novas nao s4o totalmente em contradit6rias com o niicleo central. A transformaco da representagio vai entao se efetivar sem ruptura, ou seja, sem explosao do néicleo central. Os esquemas ativados pelas priticas novas vao, progressivamente, se integrar aos esquemas do niicleo central e fundir com estes para constituir um novo nicleo & ‘assim uma nova representagdo. O exemplo mais conhecido deste tipo de transformagio 60 que foi colocado em evidéncia por Guimelli (1988) no seu estudo sobre a evolucao da representagao da caga. i 3) Transformagio brutal. Enfim, quando as novas praticas atacam* diretamente significado central da representacio, sem a possibilidade de se fazer uso dos mecanis- mos defensivos do sistema periférico. Neste caso, a importancia das novas priticas, sua permanéncia e seu carter itreversivel provocam uma transformacao direta e completa do nécleo cenitral, consequentemente, de toda a representagao. ‘As anidlises breves dos processos que operam nas transformages das representagSes parecem, a nosso ver, destacar a necessidade de se considerar a organizagao interna da representagio para compreender a dinamica das representa~ goes sociais. O jogo e a interagdo entre sistema central e sistema periférico aparecem como elementos fundamentais na atualizacao, evolucao € transformagao das representacées. 6. A Verificagao Experimental da Teoria As hipéteses teéricas que nés acabamos de apresentar rapidamente, deram base a um niimero bastante importante de pesquisas experimentais que permitiram valida-las e completé-las. Abric (1989) péde, assim, verificar que 0 micleo central é 0 elemento organizador ¢ 0 mais estavel da representagao dentro de uma experiéncia sobre a representagdo social do artesio. Pedia-se aos sujeitos para restituir— depois de um perfodo de aprendizagem — duas listas de palavras associadas ao artesao. Na primeira lista as palavras referentes ao ntcleo central estavam presentes, conquanto estivessem ausentes na segunda lista. Dois resultados essenciais podem ser assinala- dos: os elementos centrais sio restituidos significativamente melhor que os elementos periféricos. Além do mais, os sujeitos que ndo aprenderam os elementos centrais (como no caso da segunda lista) produziam, apesar de tudo, os elementos centrais nas suas restituigdes. De algum modo, eles os “inventavam”, para dar uma coeréncia & representagZo que eles descreviam, a evocagao da representagao parecia necessitar da presenga do nficleo central. SNe original em francés “lorsque les nouvelles pratiques mettent em cause.” AAbordagem Estrutural das Representagbes Sociais Moliner (1988), utilizando a representacao social do grupo ideal (da qual 0 niicleo central € conhecido e composto de dois elementos, a fratemidade ¢ a igualdade) pode demonstrar que, quando um elemento periférico da representacao é questionado, uma maioria de sujeitos (73%) conservam a mesma representagio. Ao contrario, s¢ trata-se de um elemento do nticleo central que é questionado, 80% dos sujeitos mudam de representacao. Demonstra-se ento, que 0 questionamento (“ata- que”) do nticleo central € necessario para a transformaco de uma representacao. Numerosas pesquisas (Aissani, 1991; Flament et al., 1998; Mugny, 1996, por exemplo) confirmam a necessidade da abordagem estrutural na andlise dos processos de influéncia social e nas transformagées das representagdes sociais. Um novo conjunto de pesquisas experimentais se desenvolve atualmente (cf. Guimelli ¢ Rouquette 1994; Moliner, Joule ¢ Flament, 1995; Abric e Tafani, 1995; Tafani, 1997), buscando trazer respostas através da abordagem estrutural, para uma das questdes importantes da psicologia social: a dos processos envolvidos na mudanga de atitudes. Parece que, sob a luz dos resultados obtidos, de um lado, os elementos avaliativos de uma representagio social constituem a estrutura subjacente de uma atitude relativa a um dado objeto; de outro lado, é somente quando as influéncias contra-atitudinais atingem um elemento central de uma dada representago (a empresa ou os estudos, por exemplo), que elas podem provocar uma mudanga de atitude. A ubordagem estrutural das representagdes sociais aparece entao como um elemento muito importante a ser considerado na andlise de varias questdes impor- tantes relativas as ciéncias sociais: a compreensao ¢ a evolucdo da mentalidades, a agio sobre as atitudes ¢ as opinides, a influéncia social (seja ela minoritéria ou majoritéria) e, enfim, a organizagio interna c as regras de transformagio social. ‘REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABRIC, J-C. Experimental study of group creativity: Task representation, group structure and performance, European Journal of Social Psychology, I, p. 311-326, 1971. Jeux, conflits et représentations sociales, Tése de Doctoral, Université de Provence, 1976. Coopération, compétition et représentations sociales. Cousset-Fribourg: Del Val, 1987. . L’tude expérimentale des représentations sociales. In: D. Jodelet (Ed.). Les représentations sociales. Paris: Presses Universitaires de France, 1989, p. 187-203. 3 FLAMENT, C. 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