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Aureo Trono Episcopal e um cadeirao de Jacaranda Angela Brando No texto “Cotidiano e contexto cultural nos passos de Aleijadinho”, que com- pée conjunto de ensaios reunidos para a exposicio Aleijadinho ¢ seu tempo, de 2006, Angelo Oswaldo de Aratjo Santos escreveu: Nio escaparia ao menino de 10 anos a repercussio das grandiosas fes- tas do Aureo Trono Episcopal com quea cidade de Mariana recebe, em 1748, o primeiro bispo das Minas Gerais, dom Frei Manuel da Cruz — trono mais tarde executado em madeira pelo grande artista.! Seria instigante, se nao literdrio, imaginar que aquele que seria mais tarde um escultor tenha vivenciado, ainda que por meio de notici menino ainda, 0s acontecimentos que marcaram a cidade vizinha de Mariana, nas festividades de recepcao de seu primeiro bispo — festa narrada em detalhes na conhecida crénica intitulada “Aureo Trono Episcopal”. A ideia de que este mesmo trono — simbélico — tenha se materializado como talha em madeira pelas as, com olhos de um maos do escultor ou de outro marceneiro ou entalhador de seu tempo nao seria de todo inu: o da diocese de Mariana ainda ada. A grande festa de inaugura ecoava sobre as recordacées da cidade. Foi corrente, entre os séculos XVII ¢ XVIIL, a organizagio de importantes projetos e cendrios decorativos para festas, como arte efémera capaz de envolver grandes artistas. Assim como constam efeitos de decoragio luminosa € carros alegéricos nas descricoes da festa de Mariana de 1738, hd muitas noticias de festas consideradas essencialmente “barracas”, tanto no ambiente da Minas do século XVIII (Triunfo Eucaristico e exéquias de dom Jodo V) quanto no amplo universo das cortes ¢ igrejas europeias de entio. SANTOS, Angelo Oswaldo de Araijo. Cotidiano e contexto cultural nos passos de Aleijadinho. In: MAGALHAES, F.; CURTL.A. H. (01g). Aad eseu tere: engenho eate io de Janeiro: Centro Cultural Banco do Bras 2006. p.43. 169 EscnmTOs Entre outros estudos acerca da decoragdo efémera para festas barrocas, no universo de relagdes artisticas entre Portugal e Roma durante o periodo joani- no, podemos indicar aquele realizado por Marianna Brancia di Apricena — “Gli apparati effimeri ¢ le cerminonie portoghesi nella chiesa dell’Aracoeli”. Aqui, a autora reconstitui, a partir de generosas descrigées em cronicas da época, todo © aparato efémero projetado e executado as expensas da igreja de Evora — na fachada e dependéncias da Igreja dell’Aracoeli e em Sao Pedro de Roma, por ocasiio da beatificagio de trés santos, Giacomo della Marca, Francesco Solano e Margherita da Cortona; e da beatificagéo de Andrea Conti, Giovanni da Parado, Giacinta Marescotti e Michelina da Pensaro (Conto de Valladolid), entre 1726- 1728. O conjunto compreendia tapecarias, procisses, decoragdes luminosas, teci- dos, entre outros aparatos, caracterizando uma “fusio cenogrifica das trés artes, arquitetura, pintura e escultura”. Em Portugal, desde 1640, 05 modelos romanos de arte efémera foram adota- dos: arcos para entradas régias, fogos de artificio em festas reais, aparatos méveis, etc. Arcos e carros alegéricos eram construidos também para festividades reli giosas, procissdes ou canonizagdes de santos, seguindo, muitas vezes, programas iconograficos retirados da mitologia classica, representados entre rochedos ¢ nu- vens, adaptados as circunstincias da festa. Alguns carros alegéricos se autodes- truiam com fogo no final da celebracio. Os melhores arquitetos eram chamados para colaborar nesses aparatos, Antonio Canevari foi contratado para os fogos comemorativos do amtincio do duplo casamento entre as Casas Reais da Espanha ¢ Portugal, em 1728. Em 1719, Ludovice desenhou as arquiteturas efémeras pa © percurso de Corpus Christi, de acordo com a disposig¢ao de dom Joao V para reformular e aumentar o espetaculo da fé crista> O sentido de integracao da arte barroca e da composicao das decoragées para festas indica que: 2 APRICENA, Marianna Branca di. Gli ApparatiEffimer ele Cerimonie Portoghesi nella Chiesa delAracoeli In: BORGHIN Gabriele; ROCCA, Sandra Vasco (Org). Giovanni Va Portogallo (1707-1750) ela altura Romana del suo tampo, Roma: stiuto Centrale peril Catalogo e fa Documentazone, Ministero peri Ben Cultural e Ambiental, 1995. p. 231-246 Ver também: MAGNE, Emile, Les fétesen Europe au Xie sil. Pars [s. 1.1930. * PEREIRA, Jodo Caste-Branco rte Efémera In: PEREIRA, |. F(Org).Diciondio de arte barca em Portugal. isboa: resen- 2.1989, p. 48-51. 170 Do relato ao entalhe:o Aureo Trono Episcopal eum cadeirdo de Jacaranda Se os pintores, os escultores e os arquitetos contribufram muito para a invencio destes espetdculos que constituem obras barrocas “avant -la-lettre”, as festas propiciaram & pintura, 2 escultura e 4 arquitetura aquilo que elas as tinham emprestado. Antes de ser quadros efémeros estritamente, as obras barrocas foram quadros vivos.* A imagem levantada, talvez. como efeito literdrio, de que Anténio Francisco Lisboa tivesse tomado contato direto ou indireto com as manifestagées da festi vidade para a chegada do primeiro bispo de Mariana, e 0 conjunto de festas rea- lizadas no contexto das cidades de Minas Gerais do século XVIII, tanto aquelas conhecidas por registros narratives quanto aquelas que nio tiveram registro escrito, tudo indica, como era préprio ao universo artistico setecentista, uma possivel vinculacio entre projetos artisticos de carter efémero, realizados para as festas e procissies — carros alegéricos, temas, elementos decoratives, masca- radas, cendrios, fantasias, decoragdes luminosas —, e os projetos artisticos “feitos para durar”, E possivel se supor um sentido comum na concepgio simbélica e formal do trono episcopal — como elemento para o cendrio das festas de 1748 — ¢ 0 objeto concretizado como pega de mobilidrio entre 1778 e 1783, cerca de 30 anos depois? No que se refere especificamente & percepedo artistica de Antonio Francisco Lisboa, recorremos ao que John Bury bem preciso captou instintivamente as nogées bisicas do barroco em termos de movimento, auséncia de limites e espirito teatral, bem como a ideia de que todas as artes, arquitetura, escultura, talha, douramento, pintura € até mesmo espetdculos efémeros como um cortejo ou uma exibicao de fogos de artificio, deveriam ser usados como elementos que contribuissem harmoniosamente para um grandioso efeito ilusorio!? * ROY, Claude apud CORTANZE, Gérard de. Promenades baroques. Paris: Arsenal, 1995. p. 149. * BURY, John. Arqitetuae ate no Brasil clonal. Brasil: phan, 2006. p45. (Série Monumenta). fo nosso. 171 EscnmTOs As festas e sua organizacio decorativa deveriam emprestar uma série de ele- mentos formais, tematicos, alegéricos para outras formas artisticas, digamos, “nao efémeras”, e vice-versa. A festa realizada em Mariana, em 1748, para receber seu primeiro bispo, dom Frei Manoel da Cruz, foi cercada de uma série de atuacdes andnimas, especial- mente no que se refere ao relato de descricao da festa publicada em Lisboa no ano seguinte — onde se tem indicado apenas o editor. Alguns “padres-poetas”, orga- nizados em torno da Academia do Aureo Trono, formularam poemas, discursos, sermées, cangdes, encenagGes teatrais para honrar e celebrar a chegada do bispo. Entre as tantas alegorias e emblemas criados para a festa, estava 0 “sol mitrado”. Este “simbolo” aparece tanto nas poesias como materializado em decoragio das prociss6es realizadas por ocasido da festa. Sua criacdo foi atribuida a Francisco Xavier da Silva, padre-poeta talvez nascido e bacharelado em Portugal, cuja atu- acdo nas festas de posse do bispo teria se destacado — como mais tarde se tornaria cOnego prebendado do colégio capitular do novo bispado e representante ilustre da intelectualidade eclesidstica de seu tempo. Com pendores para as artes plisti- cas, teria criado o emblema do sol-mitra, representado num carro triunfal em 28 de novembro de 1748 e explicado por ele mesmo num longo poema.‘ Esses personagens — organizados em torno da Academia do Aureo Trono sua historia e seus escritos apresentam um fragmento, dao uma ideia, do que teria sido o papel e a mentalidade da “comiténcia” — 0 mecenato artistico por parte do bispado e do clero daquele momento Paio (Sampaio), que no periodo das festividades do Aureo Trono atuava como vigdrio encomendado da Vila do Ribeirao do Car- Domingos José Coelho de mo, teve atuacio importante no programa festivo, colaborando na ornamentagio da cidade. Assim como Francisco Xavier da Silva, apresentava talento e sensibili- dade para as artes plisticas, criando o projeto de iluminagio da sé para as trés noi- tes que se seguiram a chegada do bispo, com frases, figuras e simbolos luminosos.” Embora se tenha indicagio de uma atuacio mais direta desses dois padres no programa iconografico € na idealizacdo em todo ou em parte — ou, ao me- © AVILA, Affonso, Residuos seiscetistas er Minas: textos do século de ouro eas projecdes do mundo barroco, Belo Horizonte: Arquivo Piblico Mineiro, Secretaria do Estado da Cultura de Minas Gerais, 2006. p. 648. "Ibid, p. 652-663. 172 Do relato ao entalhe:o Aureo Trono Episcopal eum cadeirdo de Jacaranda nos, Francisco Xavier de Brito teria concebido o sol-mitra, como forma plastic: ¢ postica, e Domingos José Coelho Sampaio teria desenvolvido o projeto de iluminagio decorativa da sé de Mariana —, € possivel se supor que um esforgo coletivo, que reunira tanto os representantes da igreja como talvez arquitetos, escultores e entalhadores, tenha se dado em torn da decoracdo efémera e dos carros alegéricos, etc., durante as festas do Aureo Trono. Mas, qual seria a importancia do Trono Episcopal, qual seu sentido poético ¢ decorativo na descri¢éo das festividades para a chegada do primeiro bispo?’ O- proprio titulo do relato que descreve as festividades e retine parte das criagées li- terdrias lidas e declamadas durante as celebrac6es remete-se ao trono: um trono de ouro, 0 “éureo trono episcopal colocado nas Minas do Ouro”, a cadeira a ser ocupada por dom frei Manoel da Cruz. O sentido, talvez dbvio, de que a presen- cada cadeira dava origem e era a propria cétedra, e que, portanto, transformava a igreja matriz da cidade de Mariana, igreja de Nossa Senhora da Assungao em catedral era exposto, entretanto, no Sern dedicacao da nova Catedral de Mariana [...] mudado pelo Sumo Pon- o no Segundo Dia do Triduo com que se celebrou a criagio e tifice o titulo da Conceigdo, que tinha a igreja paroquial antiga, no da é:“ Lia representa auma Igreja Catedral, visto que é Igreja com Prelado; porque da Ca- Assuncao da Virgem Santissima, que deu a Nova S deira Pontificial é que se chamam Catedrais, ou Sés as Igrejas, em que resiclem Bispos”." * Nao sera preciso etomara histra do sentido honorfico da cadeira desde as origens da cvlizacao. Desde os eapcios, os inventores da cadeira, est objeto revestiu-se de um sentido de so —o sentar-sesimplesmente —e de um sentido honori- fico. star sentado representava pode, dignidade, distinc. Assim as cadiras se revesiram de uma monumentalidade e as civilizagies antigas — mesopatémicos, egipcios, gregos e romanos — impuseram-lhe um carater formal e simbélico, transformando-as em objtos emblematicos. LUCE-SMITH, E Furniture: a concse histor. London: Thames and Hudson, 2000. ® MORAES, José de Ancradee.Sermao no Sequndo dado Triduo com que se celebroua criagio e dedicacao da nova Cate- TAVARES, Jorge Campos. Dicondrio de santos, p. 162-163. % AUREO Trono Episcopal collocado nas Minas do uro... Lisboa: Miguel Manescal da Costa, 1749. Edicao fac-simile em AVILA, Affonso Residuosseiscentistas em Minas, p. 407. Grifo nosso. 179 EscnmTOs Na Segunda noite se observou exaltada sobre outra estrela uma Cruz, ¢ nos lados uma Mitra, e um Bago Episcopal, rodeando a distancia da Igreja o nome de S. Exceléncia, tudo por arquitetura luminosa.” No desfile de oito figuras a cavalo, cada uma trazia um dos simbolos associa- dos ao bispo. A décima figura levava uma coluna, ¢ no alto dela uma Mitra com o seguinte letreiro: Firmabitur, & non flectetur |...) A undécima figura levava uma Mitra exaltada sobre uma nuvem, ¢ no alto da dita Mitra uma Estrela, cuja letra era seguinte: Contulit ei Splendorem” A mitra apresentava-se, assim, ao lado dos demais simbolos associados ao bispado. Num dos carros triunfantes, como vimos, varios anjos sustentavam a mitra, o chapéu e 0 bago. Mostrava a efeitos da pintura sair de uma concha, ¢ esta de uma nuvem, que tocava o chao. Conduzia-se por quatro rodas, a que dava movimento um artificio oculto. Levava no alto da popa um Sol Mitrado, exaltado sobre uma gloria de Anjos e Seral mo Bago, e Cruz Episcopal. ns, e da mesma entre resplandores s: Entre 12 figuras, viam-se: [...] emblemas e letras seguintes Uma Mitra com a letra: Optime Certante. Uma Cruz Episcopal: Salus Reipublicae. Uma Mitra, Bago, e Chapeo: virtutis proemia. Uma Cadeira ® Ibid, p 395. 2” Ibid, p. 464 As enpresses em latim querem dizer: “Fimar-se-e no dobrara’”Conferu-he esplendor’ ad, Lourengo de Oliveira, p. 627-642. 180 Do relato ao entalhe:o Aureo Trono Episcopal eum cadeirdo de Jacaranda debaixo de um dossel: Ubigue Primus. Uma Mitra ilustrada por um sol: Lustrans universa in circuitu |...) Uma Mitra sobre uma almofada: Collatus honore.* A associagao do sol mitra, criada em forma plistica e em forma pottica pelo cOnego Francisco Xavier da Silva (“No ambito de todo o carro se liam os seguin- tes elegantes versos feitos pelo M.R. Cénego Francisco Xavier da Silva, como exposicao do emblema do Sol Mitra, cuja propriedade, e empresa se deve ao mesmo Autor da Poesia, que se segue.”), aparecia em muitas estrofes: “[...] ne Sol a Divindade/ Com o nome de Mitra reconhece [...] a Mitra de Luz”, “Que os raios do Sol Mitra sejam aios, Da Mitra do seu Sol, e dos seus raios”.” A imagem plastica e postica criada para a ocasido da chegada do bispo A Mariana foi assim descrita, detalhadamente, em outro ponto do texto: E tava a Mitra do Sol, ou o Sol Mithren, como glorioso jeroglyfico do io me engano; porque aquele andante, ou movido sélio susten- Preclaro Pontifice Marianense, Luzido retrato para tanta gléria! Pro- digiosa Metamorfose de luz para os auspicados, brilhantes progressos de nossa Mariana! Tinha esta cidade no Carmo 0 timbre das Estrelas para luzir, agora aumenta-se-lhe o esplendor, porque um Sol mitrado € 0 que Ihe ilustra, a coroa a sua grandeza. Sim, que é todo o sol nos luzimentos, ¢ na claridade das virtudes 0 excelentissimo Prelado, 0 sagrado Pastor, que a ilumina.*” A cidade é, portanto, transformada pela luz advinda da mitra-sol, da “cla~ ridade das virtudes” do primeiro bispo. Porém, o sol de Mariana é também combinadb, sob as formas poéticas presentes no relato do “Aureo Trono”, como ® ‘bid, p. 441-443. As expresses em latin querem dizer: "Combatendo otimamente”; Salva do bem comu;"Pé- ‘mios da vrtud", "Em qualque ugar, oprimeio’“Adarando tudo em vla’;"Colado com hon’ Tra. Lourenco de Oivel- 1a. p.627-642. > bid, p. 442-450. » Ibid, p. 480. 181 EscnmTOs metifora do ouro: “E Mari neta de ouro”."! na, que gera o metal louro/O Bispado é do Sol, Pla- O conjunto de cadeiras destinadas ao bispo de Mariana, aparentemente com- posto de ao menos cinco pecas iguais e um trono monumental, todos entalhados em jacarandé, revelam em maior ou menor grau, restos de douramento. Parece provayel que nao tivessem sido totalmente douradas as pecas, mas somente nas partes entalhadas, tendo sido deixada a madeira natural, o negro do jacarandé, aparente nas partes lisas. O douramento sobre mobilia dizia respeito a uma lon- ga tradi¢io, Longe demais, talvez, recordar os tronos egipcios que fizeram uso de metais preciosos como revestimento ou como estrutura. Também os romanos conceberam mobilidrio como pega metilica. Depois do predominio do uso apa- rente da madeira, ainda que ricamente entalhada, no mobilidrio de luxe medie- val ou renascimental, o gosto pelo aspecto dourado, ou mesmo prateado, aplicado aos méveis ressurge na ebanisteria barroca. Em alguns casos, pecas inteiramente metilicas foram concebidas, mas prevaleceu a talha em madeira folhada a oure ou prata. No mobiliério barroco luso-brasileiro, tanto no perfodo nacional-portugués como joanino, o uso do douramento nao ofuscou a preferéncia pela cor natural do jacaranda, uma espécie de opgao por um material proveniente do Brasil, se- melhante ao ébano. Na medida em que o artesao, altamente especializado, optou pelo jacarand4 ao conceber as cadeiras encomendadas pelo bispo Domingos da Encarnacéo Pontével, sabia que selecionava a matéria mais nobre a sua disposi- Gio, a “madeira negra” (em oposi » ao “pau-branco”, como eram designados os méveis de menor importancia pelos inventarios). A nobreza do jacarandé era, no entanto, acrescida de um elemento duplamente precioso: evocative de uma longa tradicdo do mobilidrio, de um gosto proprio das cortes europeias, de uma tend@ncia do rococé francés —em trabalhar com o contraste entre a talha dourada e superficies lisas ndo douradas. Mas aliada ao savoir faire do artista que as conce- beu, de uma consciéncia clara da exceléncia de seu oficio, nao poderia ecoar ainda a metéfora que décadas antes tinha circulado sobre carros alegéricos, erguida por figuras a cavalo, entoada em poemas, pelas ruas de Mariana? Um trono de ouro. ‘A mitra apareceria, assim, como simbolo a coroar 0 espaldar das cinco cadeiras Ibid, p.447 182 Do relato ao entalhe:o Aureo Trono Episcopal eum cadeirdo de Jacaranda que, 20 menos cinco, circundavam o trono; apareceria a coroar o préprio tron, levada pela cabecinha do querubim sorridente, mas apareceria também doura- da, exatamente como a mitra-sol de 1748: "A coroa éa Mitra mais brilhante”.°"” O anjo que se coloca 4 direita do trono carrega nas maos o baculo.* Este importante atributo episcopal aparecera em muito menor medida nos relatos da chegada do primeiro bispo a Mariana. No entanto, fora tomado, ao lado do chapéu, da mitra, da cruz, como representativo do poder e como enaltecimento, sob forma plastica e poética, da presenca do primeiro bispo. O baculo surge em efeito luminoso na decoragio efémera da fachada da recém-criada catedral: “Na segunda noite se observou exaltada sobre outra estrela uma Cruz, ¢ nos lados uma Mitra, e um Bago Episcopal |...| tudo por arquitetura luminosa”.* Assim, a0 lado da mitra e da cruz, 0 baculo aparece nao apenas em simbolo luminoso, mas também em outro dos aparatos organizados para as festividades, dessa vez a ser transportado em carro triunfal, onde fora apresentado transpor- tado por anjos: Seguia-se um carro triunfante tre os quais se viam varios Anjos, uns pegando em tarjas [..., e outros ocupados com Mitra, Chapéu, ¢ Bago. [...] Levava no alto da popa um Sol mitrado, exaltado sobre uma gloria de Anjos, ¢ Serafins, e da mesma entre resplandores safam o Bago, e Cruz Episcopal. ..| relevos de primoroso engenho, en- © bid, p.449, Ver LUCLE-SMITH,E. Furniture a concise history. ® Obéculoou bago desus), como aparece quase sempre no texto doAureo Tono tornou-seun dos sibolosepiscopais por um camino humlde, Na histria da lorja, os papas e bispos, quase sempre de idade avancada,usavam bastoes ou bbengoas para seapoiarem, estes cbjetos foram ganhando significado simbalico, dando origem aideia debasto ou ajado older dos homens. Uma das primeira formas de béculo fio cajado de pastor com um gancho na ponta para abarcar 0 pescogo da ovlhaetazé-a para o bom camino, reconduzindo-aao rebanho. Ese tipo de iculo foi usado na landa at «século Il. culo como topo em forma de tau ou aredondado foi muito usado ene abades até oséculo XI. partir do século VI tera apaecido o baculo com topo em forma de espral, com longa carrera 20 longo dos séulos. 0 biculo & sado por bispos, arcebispose cardeas, abades regulate eabades comendatirios (nos limites das mosteiros).£pribido, no entanto, as abadessas. TAVARES, 1. Dinar de santos, p.165. ° AuteoTrono Episcopal. In: AVIA, A. Residuosseiscentitasem Minas, p. 385. Grif nosso, 183 EscnmTOs E, mais adiante, levados por uma entre 2 mas ¢ letras estavam “Uma mitra, Bago e Chapéu: Virtutis proemia (Prémios da Virtude)”.® Resta saber qual seria o terceiro simbolo presente no trono episcopal de Ma~ riana, o que seria levado pela mao do anjo mutilado: um anel, uma cruz, um cha s doze figuras que portavam emble- péu? Se levarmos em conta, mais uma vez, 0 relato do Aureo Trono, mesmo que se trate de uma simples e livre associa anos, mas considerando que tais simbolos atribuidos aos bispos tem permanéncia secular, podemos imaginar como se tomou, no ambiente restrito do bispado de Mariana, de modo mais recorrente cada um desses atributos. Vimos que a Mitra foi, sem davida, o elemento preponderante na poesia ¢ na decoracio efémera (0, distanciada no tempo em mais de trinta durante as festas de 1748 e ela estava, ali, a coroar a mobilia dos anos 1780-1790. Assim também o biculo, em menor medida, pertencera ao universo das festivi- dades do Aureo Trono. Talvez o elemento presente em maior ntimero de vezes, associado aos simbolos anteriores, tenha sido a Cruz Episcopal. Também esta consistia no simbolo preponderante do retrato de dom Frei Domingos da Encar- nagdo Pontével, 6 quarto bispo de Mariana, para quem a mobilia teria sido feita. Embora, nesta imagem de autoria desconhecida (retrato que se encontra exposto na mesma sala do Trono do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana), © bispo marcasse com o dedo indicador uma das piginas de um pequeno livro — a Biblia ou um missal — como quem tivesse interrompido a leitura, momentane- amente; embora revelasse discretamente o anel episcopal na mao direita, é uma pesada cruz metilica 0 foco central de seu retrato, despido de qualquer outro ornamento e marcado por um sentido completo de austeridade”. Se 0 préprio frei Domingos da Encarnagio Pontével na concepedo de seu préprio retrato ou do conjunto de méveis que comporiam ivesse interferido, de alguma maneira, ® bid, p. 442-443. Grifo nosso, % caradora do Museu Arquidocesano de Arte Sacra de Mariana apontou como uma dos possivesobjetosasersustentado pelo anjo a direita do Trono, um tivo, levando em consideragao que em alguns dos retratos dos Bispos do século VII de Mariana, eles aparecem retratados com um vo nas mos. °” (uz peitra -j no sécul X muitos bispos usavam cuz no peito como devogio particular No século XVI assum di tivo proprio dos bsp, arebisposcardeais edo papa (TAVARES, Jorge Campos. Dconrio de Santos, p. 165). 184 Do relato ao entalhe:o Aureo Trono Episcopal eum cadeirdo de Jacaranda o sali de visitas de “seu” Paldcio, nfo teria escolhide como um dos emblemas predominantes a cruz episcopal mesma? © momento que marcara as comemoragdes da chegada do primeiro bispo a Mariana, dom Frei Manoel da Cruz, distava em trinta ¢ um anos do exercicio do governo deste quarto bispo. Entre a morte do primeiro Prelado e a chegada de dom Frei Domingos da Encarnagio Pontével passaram-se quinze anos, peri- odo em que o bispado de Mariana foi administrado por procuradores, cujos dois bispos, o segundo ¢ o terceiro, mantiveram-se a distancia, governando através de delegados. Esta auséncia do poder episcopal, uma lacuna de quinze anos, teria sido um dos motivos para o desenvolvimento de um ambiente de dispu- tas e desobedigncia por parte do Cabido de Mariana, O episddio de retorne de um bispado presente, na figura de Frei Domingos da Encarnacao Pontével, teria marcado, por um lado, uma atmosfera de reviver a chegada do primeiro bispo — pois este era de fato o segundo bispo a estar presente em Mariana. Por outro lado, teria provocado a necessidade de reafirmar a disciplina de um po- der agora presente, recobrar © controle de um clero disperso por interesses ¢ rivalidades®, Desta forma, poder-se-ia estabelecer, por outro caminho, a ligagio entre o ambiente em torno do Aureo Trono Episcopal, de 1748, ¢ 0 contexto de confecgiv do Trono Episcopal em madeira entalhada dos anos 1780-90 — ambos os momentos de importante afirmacao do poder do bispado; no primeiro caso, em meio a uma diocese recém-criada ¢, no segundo, em meio a uma diocese governada durante quinze anos por procuradores. Entre os muitos livros de interesse diverso, da misi a A culiné 1, presentes no inventdrio de morte de Pontével, constava, como nao poderia deixar de ser, 0 relato do “Aureo Trono Episcopal”, de 1749. Aquele que teria encarregado ao marceneiro a concepgio e a execucdio de um trono episcopal tinha certamente em mios, entre seus livros, o relato festas da chegada solene do primeiro bispo em Mariana e todo o repert6rio das imagens pkisticas e poéticas, organizadas de modo efémero em torno do trono 4ureo, Porém, haveria uma imagem literdria, impressa nas primeiras paginas da cré- jades do Aureo Trono Episcopal, que indicava um an- nica narrativa das festir seio em concretizar aquelas palavras e aqueles acontecimentos em forma plastica. ® SANTIAGO, Pe. Marcelo Moreiaet al. lgrejace Mariana 100 anos como aruidocese, Mariana: Dom Vigoso, 2005 . 49-52 185 EscnmTOs Nas Licengas do Santo Oficio, Aprovagao do M.R.P. M. Frei Franciseo de Sant-lago, Ex-leitor Jubilado, Consultor do Santo Oficio, e da Bula da Cruzada, lia-se: Sao 05 livros os tesouros, em que se depositam as mais preciosas me- mérias para a posteridade; ¢ o que hoje se escreve em papel, gravavam 0s antigos para memoria de futuro em laminas de metal. Em laminas de fino ouro se devia esculpir 0 que contém este livro".” Tratava-se apenas ¢ certamente de um recurso ret6rico, mas poderia soar, talvez, a um leitor talentoso, como um convite A escultura. SANTIAGO, Frei randso. Lcencas do Santo Oficio.In:Aure Trono Episcopal. In: AVILA, A Residvossescentists em Mi- ‘nas: textos do século de ouro 22s projees do mundo baroce.p. 350. 186

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