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\ Africa e brasilidades em arte A Africa, com uma superficie de cerca de 30 milhdes de km?, corresponde a quase % do total das terras emersas do globo D> terrestre. Dividida ao meio pela linha equatorial, é também atravessada pelos trépicos de Cancer e de Capricérnio, Junto com a Europa e a Asia, forma o Antigo Continente, expresso de cardter tipicamente histérico. Ao norte, a Africa est separada da Europa pelo Mar Mediterraneo. A nordeste, o Mar Vermelho isola-a da Peninsula Arabe, pertencente geograficamente @ Asia. Porém, ha um pequeno ponto de ligacdo entre esses dois continentes, através do istmo de Suez. A ocidente, a Africa é banhada pelo Atlantico; a oriente, pelo indico. Um grande continente, mas praticamente 2 terca parte dele é formada por deserts. O litoral Pouco recortado, no seu conjunto, e os poucos rios navegavels oferecem dificuldade tanto para o comércio. externo como para a penetracdo territorial. Apesar da brilhante civiliza¢o egipcia, dos contatos com a cultura greco-macedénica, da posterior presenca Fomana, bizantina e especialmente drabe-islamita na Africa Mediterranea, as relacbes entre esse continente ©. Europa, até 0 século XV, eram pouco importantes. Foi entao que se intensificou 0 comércio, baseado Principalmente na exportagao de pessoas escravizadas para o trabalho em outros con- Estitua de chefe sentado, 1850, Estilo moxico, Madeira, latao, cabelos _tinentes. naturais, contes, 45 em de altura, Em 1441, 05 primeiros negros foram apre- sados pelos portugueses. Nos cinco anos se- Quintes, cerca de 500 escravos chegavam anualmente a Portugal. No fim desse século, © trafico era bastante significative, aumentando ainda mais com a descoberta e a colonizacéo europeia do continente americano, 0 tréfico negreiro foi uma das principais atividades comerciais entre os europeus © a Africa. Por trés séculos e meio, chegaram a América cerca de 10 milhdes de cat. vv9s, no se considerando os que morreram na luta contra "os cacadores de gente” © nos navios negreiros. No Brasil, estima-se o desembarque de cerca de 4 milhoes de escravos, enquanto durou o trafico (até 1850). Historiadores qualificam essa tragédia como um “verdadeiro genocidio”. Porém, a partir do século XIX, os euro- eus ampliaram seu interesse em relacso 20 continente africano, para atender as suas novas necessidades colonialistas. Propor uma definicao geral da arte na qual se incluiria a afro-brasileira colocar- -nos-ia diante de uma velha discussio, inesgotavel, que jé foi explorada pelos filosofos, historiadores, criticos de arte, socidlogos e antropélogos. Nos tempos atuais, 0 termo “arte” mudou de sentido e evoca preferencialmente tudo aquilo que concerne o dominio da estética da cri vidade livre e desinteressada. Trata-se de uma atividade tipicamente cultural. A arte € maltipla em suas formas: arquitetura, pintura, escultura, poesia, musica, danca, cinema, fotografia etc, todas consideradas como produtoras de profundas emocoes e de beleza, Descobrir a africanidade presen- te ou escondida nessa arte constitui uma das condicées primordiais de sua definicéo. Mas que africanidade é essa, quando sabemos que os criadores dessa arte s5o descendentes de africans escravizados que foram transplantados no Novo Mundo? Transplantagao essa que operou um corte €, consequentemente, uma ruptura com a estrutura social original. A partir dessa ruptura, que, hipoteticamente, teria pro- vocado uma despersonalizacao, ou seja, uma perda de identidade, ficam colocados © problema e as condicées de continuidade dos elementos de africanidade nessa arte, por um lado, e 2 questao das novas formas recriadas no Novo Mundo e de como essas novas formas poderiam ainda ser impreg- nadas de africanidade, por outro. Como escreveu Roger Bastide, 0 proble- ma que se coloca em primeiro lugar é 0 de compreender como tantos elementos Estatua funeraria, Madeira e pigmentos, 61 cm de altura. Grupo funerdri. Madeira @ pigmentos, 69 em de altura 4 a a culturais africanos puderam resistir a0rrolo compressor do regime servil. Para que os elementos culturais africanos pudessem sobreviver 8 condicao de despersonalizacao de seus portadores pela escravidao, eles deveriam ter, a prior valores mais profundos. Sabe-se, por exemplo, que durante a escravidao foram toleradas ¢ até institucionalizadas as ceriménias de coroacao dos reis do Congo. Mas essa sin- gularidade concedida aos cativos elibertos bantos do Congo 6 era possivel dentro do Méscar congo. penaze ©8860 das confrarlas religiosas as quais ee ot pertenciam, tais como a Venerdvel Ordem Terceira do Rosario de Nossa Senhora das Portas do Carmo, Séo Benedito etc. No entanto, nao puderam, dentro do contexto colonial e escravocrata vigente, reinventar objetos referidos, tradicionalmente zados nas instituig6es politicas africanas da época. Todavia houve um campo cultural muito resistente, no qual se péde nitidamente observar o fendmeno de continuidade dos elementos culturals africanos no Brasi Este campo, muito estudado pelos especialistas sociais de varias disciplinas, é 0 da religiosidade. ‘Mascara de madeira, Réfia.ecauris, 25cm de altura Trazidos pela forca ao Brasil, nas condiges conhecidas, esses africanos escravizados ‘nao podiam carregar em suas bagagens (0 que certamente nao fizeram) todos 0s ob- ietos necessarios as atividades cultuais, e simbolos dos deuses e espiritos ancestrais. Alguns teriam trazido escondidos (supde-se) pequenos objetos de culto, amuletos Protetores e pequenos utensilios. No entanto, encontraram no Brasil condigées eco- logicas semelhantes as do ecossistema de suas origens, que ofereciam, entre outras coisas, as mesmas esséncias vegetais, 0 que teria facilitado a continuidade de uma religiao cuja relacao entre o homem, a sociedade e a natureza é primordial. Visto por esse prisma, conclui-se que uma parte de sua medicina e da producdo dos objetos simbdlicos ligados as suas préticas e 20s seus cultos religiosos teria encontrado um terreno fecundo e minimas condicdes de resisténcia, continuidade e até inovacbes, apesar da adversidade explicita no sistema colonial e escravista. assim que nasce @ primeira manifestacao das artes plasticas afro-brasileiras. Uma arte, sem divida, teligiosa, funcional e utilitara. Insistimos em dizer que a primeira forma de arte plastica afro-brasileira propria- mente dite € uma arte ritual, religiosa. Seu nascimento seria dificil de datar por causa da clandestinidade na qual se desenvolveu, uma vez que a religido oficial era 0 catolicismo, Essa clandestinidade, acrescentada ao cardter coletivo dessa arte, deixou no anonimato os artistas e arte- 40s que a produziram. Durante quase trés séculos, essa arte, seguindo 0 passo da sua matriz africana, ficou totalmente ignorada, nao apenas do grande piiblico, mas também do mundo erudito historiador, critico de arte, sociélogo ou antropélogo. Um bom exemplo da arte afro esta em Heitor dos Prazeres. Conheca algumas de suas obras. Celt ace loruba, Portadora do calles Madeira, Teac INHECENDO HEITOR DOS PRAZERES Heitor dos Prazeres nasceu no dia 23 de setembro de 1898, uma década apés a Abolicdo da Escravatura. Era chamado carinhosamente de Lino, por suas irmas. Foi crescendo e aprendendo os Primeiros pasos e as primeiras palavras no convivio daquela familia, onde todos Procuravam manter a unio no trabalho Para que pudessem conservar aquele nivel social € nao acontecesse como em outras familias negras que, marginalizadas por perseguicdes raciais ¢ sociais, néo arran- javam emprego, moradia e escola e pas- Heltor dos Prazeres, 1963. savam a se agrupar em morros perto dos grandes centros, criando assim as favelas. Heitor cresceu junto com o crescimento das favelas, Heitor era negro, franzino e arisco, com gingado de capoeira, e aos 12 anos, ja participava das reunides nas casas das tias. “Em meio a artistas profissionais do pincel, no faltou quem the quisesse dar conselhos. Mas por um sentimento forte preferiu ficar no seu canto, pintando como as coisas lhe vinham a cabeca. Escapou desse modo ao pe. rigo comum aos ingénuos, o de ficar sabido, aprendendo certos truques, amaneirar-se, perdendo os valores expressivos.” Por iniciativa do seu amigo e admirador Augusto Rodrigues sua tela Festa de Sao Jodo foi enviada a Londres para participar da exposicao coletiva de artistas em beneficio da RAF, tendo sido a obra adquirida pela entéo princesa Elizabeth. Hoje seu nome figura no boletim de divulgagio do MOMA, Nova York, ao lado de Portinari, Guignard, Matisse, Picasso, Renoi Van Gogh, Orosco, dentre outras celebridades. Jacques Ardies, coautor, ao lado de Geraldo Edson de Andrade, do livro Arte naif no Brasil, nos esclarece: “No Brasil, o movimento cresceu a partir de 1937 com Heitor dos Prazeres, Cardosinho e Silvia. A arte naif brasileira, Portanto, nao toma emprestada a inspiracdo da vanguarda parisiense, mas reflete uma realidade nacional. Sem mimetismo, extremamente rica © variada, é auténtica e, na maioria das vezes, otimista e alegre. Heitor dos Prazeres com exposicéo de obras ¢ Heitor dos Prazeres Filho; a reedi §0 bilingue do livro: Heitor dos Prazeres sua arte e seu tempo e show de Heltorzinho com a terceira geracSo dos Prazeres, Flavio Prazeres (sax) € Duda Prazeres (percussao), cantando obras suas e do Mestre, Levando a outros centros a arte genuinamente brasileira”. Dancando 0 frevo, 1961. TMSC, 29 cm x 22 cm, Terreiro de preto velho, 1959. leo sobre duratex, 47 cm x 63 cm. Sem titulo, 1965. Oleo sobre tela, 50,2 «mx 61,3 cm.

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