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Copyright — Nedra zoo tradugéc® — Vernando de Moraes Barros Ttule original — Uber Wahrheit und Lijge im aupierimoratishen Sinn André Fernandes Brune Costa Turi Pereira Jorge Sallum Oliver Tolle Ricarde Martins Valle Ricardo Vhuisse Corpo editori Dades — Dados Internacionais de Catalegagao Publicagan (CIP) | (a8ce-i0dy. rg. weed ce orate Earrae. - 5 o Madea, “SbF Eereanté de Horne = 18 Direitos res portuguesa somente ados em lingua ara 0 Brasil EDPrORA HEDRA LTDA. Endaregs — KR. Fradique Coutinho, 1149 (subsolo) 05.416-011 Sao Paulo SP Brasil Telefone/Fax | (011) 3097 8504 S-mail — cditora(ajhedra.com.br site — wawhedra.com.br Poi feita depasito legal, Friedrich Nietszche (Récken, 1844-Weimar, 100), fildsofo dogo alemao, foi um critica mordaz da cultura ocidental © m dos pensaderes mais iniluentes da medernidade. Descendente de pastores protestantes, opta no entantn por seguir carreira aead@miea. Aos 25 anus, torna-se professor de letras classicas na Universidade da Basiléia, onde se aproxima do compositor Richard Wagner. Serve como enfermeto: voluntaris nu guerra franco. prussiana, mas contrai difteria, qual prejudica a sua smide definitivaraente. Retorna a Basiléia © passa a freqiemtar mais a easa de Wagner, Em i829, devido a constantes recaidas, deixa a universidade e passa a feceber uma ronda anual. A partir dai assume uma vida errante, dedicando-se exchisivamente 4 reflexao ¢ & redacaa de suas obras, dentre as quais se destacam: O nascimento da traéitia ~ (87a), desi flare Zaratustra (4885-1885), Pare além de ben € mat (1886), Pare a genealogia da morat (1887) e Oanticristo (1895). Em 188g, apresenta os primeiros sintomas de problemas mentais, provayelmente decorrentes de sifilis, Falece em 1900. Sobre a verdade ea mentira no sentido extra-moral (Uber Wahrheit und Lage im aufermoratisehen Sinn) é um optiscule westiga o aleance efetivo da linguagem, sobre a qual se ssenita todo o conhecimento da civilizactio ocidental. Para Nietsche, a confianga do hemem maderno no poder das palavras se funda ne esquecimento de que algo que era evidente quando as criou: elas sao apenas uma metifora para as sas ¢ jamais poderiain encarnar o seu significade. Constata-se, portanto, um desacerie entre o conhecimento: intuitive e as abstracées conceituais. A obra foi ditada pelo autora um amigo no veriio de 1875, mas saiu a lume apenas pds a sun morte. A presente ediclo contém ainda uma seleta oportuna de Fragmentas pbstumos. Fernanda de Moraes Barros ¢ doutor em filosofia pela Universidade de Sao Paulo (Usp) ¢ professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (esc). E autor de A maldic&a transvatoracta ~ 0 problema da civilizacao em O anticriste de Nietzsche (Disourso/Unijul, 2002) # O pensamento musical de Mictasche (Perspectiva, 2007), SUMARIO Introdugae, por Fernando de Moraes Barros 9 SOBRE VERDADE & MEN THEA NO SENTIDO EX PRAGME PRA-MORAL 23 TOS POSTUMOS 53 INTRODUGAO ® De todos os textos de Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral & decerto um dos mais singulares e pregnantes. Ditado ao colega K. von Gersdorff em junho de 1873, 0 escrito é fruto nao apenas de uma refinada espiritualidade, mas também de um importante redimensionamento teérico-especulative. A diferenga de ponderagdes ele o filésofo alemao — anteriores, época, pro- fessor na Universidade da Basiléia — ja nie toma a palavra a fim de caracterizar o despertar da ANOS © inte- gédia atica. ‘Tomado por novos pl resses, abandona-se agora a novas auto-satisfagée: Pe chamadas ciéncias da natureza, comprazendo-se dor livre e laic , debruga-se sobre as assi na leitura de textos tais como, por exemplo, Phi losophiae naturalis Theoria de KR. J. Boscov Luz a eliminar preconceitos e intolerancias, o espirito contide nos métodos cientificos tal ajude a desanuviar as sombras metafisicas que se acumulam em torne do conhecimento. Mai até. Now tiomar »mento em que aprende a que a si mesma, a verdade talvez termine por revelar alguma na tande um »verdade A sua base, pres INTRODUGAO, testemunho inteiramente inesperado sobre si pré pria. & precisamente essa suspeita que vigora en Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Movid tal do pensamento & a mesma de suas r pela crenga de que a forma fundamen- nifesta- goes por palavras, desde cedo, a filosofia nao he sitou em identificar discurso e realidade. Conce- bendo o pensar como uma inequivoca atividade de simbolizagao enunciativa, ela parece ter sempre dado atengio especial a dimen linguagem, tomando enunciados verbais por ver dadeiros ou falsos, & > apofantica da 1 fungao de desereverem cor retamente ou néo o mundo. O que ocorreria, po rém, se a verdade dos enunciados ndo passasse de um tipo de engano sem o qual o homem nao pode- ria sobreviver? E se a condigao da verdade fosse a tavico mesma da me Revela entao, o atira? ei carater dissimulador do intelecto humamno e, com ele, a suspeita de que entre o “refleti: no vigora nenhuma identidade estrutural. eo “di tamente a essa conclusio que Nietzsche espera conduzir-nos. O caminho encontrado pelo filésofo alemao ara abordar a questdo nao se inscreve num regis tro tradicional. Negando-se a separar 0 homem da natureza, sua abordagen procura mostrar que foi para satisfazer as injungées imediatas de sobrevivéncia que os seres humanos for aram e FERNANDO I MORAES BARROS aprimoraram 0 conhecimento. Servindo ao desejo de conservacgdo imposto pela gregariedade, o in- Zaria nogdes aptas a assegurar a vida telecto prior en ijunto e, pelo mesmo trilho, seria obrigada a produzir falsificagdes. Nesse sentido, lé-se: Como um meio para a conservagio do individuo, o in telecto desenrola suas principais forgas na dissimulagao; pois esta constitui o meio pelo qual os individuos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles ender uma jut pela exiss aos quais é de gado em] téncia com chifres e presas afiadas. No homem, arte da dissimulagao atinge seu cume.' Por ser criada sob a pressdo da necessidade de comunicagaio © sociabilidade, a consciéncia de si nao faria parte, em rigor, da existéncia do indi viduo enquanto tal, mas de sua interagdo com o meio e aqueles que o radeiam, referindo-se aquilo que nele ha de comum e trivial. Admitir isso, po m, implica aceitar que os recursos de que o pen- samento se serve para ganhar forma e conteido sio pré-formados pela coletividade, de sorte que estariamos fadados a exprimir nossos racioc sempre com as palavras que se acham & dispo! de toda crew A esse respeito, Nietzsche es ' Friedrich Nietzsche, Stimliche Werke. Kritische Studie naus, ri, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, p. 876, abe, Giorgio Calli e Mazzino Montin: ti INTRODUG. quando justamente a mesma imagem foi gerada mi Ih mens [. sde vezes ¢ foi herdada por muitas geragées de ho- ] entao ela termina por adquirir, ao fim e ao cabo, o mesmo significado para o homem, como se fosse a imagem exclusivament firia (..,] assim como um sonho que se repete eternamente seria, sem davida, sentido ¢ julgado como efetividade. # Reincidentes, as experiéncias em comum com © outro terminariam por se sobrepor aquelas que ocorrem com menor freqiiéncia no seio da colet vidade, Sem ter acesso, em principio, a ov p liberar aquelas de que dispde para outras aplica ras pa a fac lavras, o individuo tan uco ter lidade para cessibilidade, ele é livre gdes. Resignado a tal in somente para falar e pensar como os outros. Com efeito, dizer que sio as palavras comu- mente p: ilhadas que possibilitam a conscientiza- gio do préprio sentir ¢ pensar impel , ao Menos, a nei uma relevante conseq 1: a de que aquilo que o homem sente e pensa a respeito de si mesmo ja se encontra condicionade pelas mais elementares estruturas da linguagem, Para Nietzsche, todavia, as palayras nos iludem quando as tomamos A risca e deixamos de perceber, por meio delas, aconte ci milar. nentes que clas mesmas nao podem a A seu ver, o pensamento tornado consciente seria apenas u produto ac ssério do intrincado pro- 2 Id. ibid, p. 884, FERNANDO DE MORAES BARROS cesso psiquico que 0 atravessa e constitui. Quando 6 vertida em palavras e gnos d comy pagdio, a atividade reflexiva j& se acharia circunscrita esfera da calculabilidade, e estari. iserida en esquemas longamente consolidados de simpli ficagtio e abstragio, com vistas ao nivelamento entificador do fluxo polimorfo do vir-a-ser e da natureza Visto como um epifenémeno de nossas fun ges orgdnicas fundamenta adguire, entao, um sentido ligado a um universo ifra-conseiente bem mais recuado, que engloba o pensamento processos vitais cujo sentido ultimo sempre nos escaparia, Ao dispensar uma subjetividade que os estabelecesse e determinasse, tais processos reguladores assumem um significado associado a recéndita consciéncia pensante detentora de suas rey gdes, que, de resto, nfo pe s operagdes do corpo, nao mais de uma senta- ssaria de um mero vetor auniliar ou instrumento diretivo, A esse respeito, lé-se ainda: abe o hemem, de fate, sobre sim Og Nao se Ihe emudece a natureza acerca de todas as outras coisas, até mesmo rea d seu corpo, para bani-lo e traneafié-lo numa consciéncia orgulhosa ¢ nadora, ao large dos movimentos intestinais, do veloz fluxo das correntes sangiiineas e das complexas vibrages das fi bras! Ela jogou fora a chave: @ coitad desastrosa 13 INTRODUGAO er de riosidade que, através de uma fissura, fosse capa: sair uma vez sequer da cimara da conseiéncia e olhar para baixo, pressentindo que, na indiferenga de seu nao- saber, o homem repousa sobre o impiedoso, voraz, 0 Para chegar a compreender melhor como a linguagem exerce seu efeito dissimulador sobre nsa sobre si mesmo, aquilo que 0 homem sente e ps impée-se saber o que sio as proprias palavras ide: Questio essa A qual se espe De antem4o, um estimulo nervoso t nspasto em wir imagem! Primeira metAfora. A imagem, por seu turna, odelada num som! $ da metafora.* egul Duplo, 0 processo de for ago da palavra com- portaria a seguinte transposigio: uma excitag’o 1 mental e, em nervosa convertida numa im, seguida, a transposigao de tal imagem num som articulade. Heteréclita, a passagem operaria, em rigor, com elementos que pertencem a esferas dis- juntivas, de sorte que uma correspondéncia biu- nivoca entre coisas ¢ palayras sé poderia ser ob tida pela negagao da distancia que separa a sensa- Ao experimentada pelo individuo © o som por ele emitido. Ao acreditar que cada palavra pronunc ido e acertado acerca da designa algo bem defi > Id. ibid., p87, # Id. ibid, p. 879 FERNANDO DE MORAES BARROS do mundo exterior, ele mal pressemte que se trata, aqui, de dominios desiguais. Mas, precisamente por que a palavra foi criada para exprimir uma sensacao subjetiva, ela s6 pode referir-se as relagBes entre as coisas ¢ nés mest nunca as préprias coisas: Acreditames saber algo acerca das proprias coisas. quando falamos de drvores, cores, neve ¢ flores, mas, com isso, nada possuimos senie metaforas das coisas, que nao correspondem, em absolut, As essencialidades originais.* Tod as palavras que veicula, o individuo abrevia aquilo desejoso de encont ar correlatos para que se lhe apresenta conforme seus interesses, op tand , de modo unilateral, ora por este, ora por aquele aspecto da efetividade. Niveladora, a lin guagem da qual ele se serve depende da igualagao do ndo-igual para adquirir autovaloragac o que se torharia patente, por exemple, na propria consti tuigzo das conceit ‘Tao certe como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra, é certo ainda que o conceito de folha é for- di io dess mado por meio de ui rbitraria abstrag2 ferengas individuais, por um esquecer-se do diferenc vel? > Id. ibid, p. 879. * Id. ibid. , p. 880 INTRODUGAO ‘Tomada num sentido univoco e inabalavel, no sentido que Ihe foi dado em todas as épocas, a istindo palavra mesma passa a ser vista como ¢ m 0, © ad aeternum. Instituida nw tempo falante talvez até acreditasse que ela adquire rea- lidade num mundo supra-sensivel. Contrariando esse estado de coisas, o filasofo alemao empreende a pergunta pela produgdo mesma do signo lingiiis- lico e, ao faz lo, termina por colocar a questo cerca das circunst neias de seu aparecimento Com isso, pretende conduzir-nos a idéia de que, na linguagem, o que vigora nao é a imobilidade de s itido ¢ tampouco uma estrutura invaridvel dotada de sign ao idéntica, ma um exército mév foras, metonimias, antropo- meta morfismos, numa palavra, uma soma de relacdes huma nas que foram realgadas poética e retoricamente.? o de formas Porque passa ao largo dessa profus € figuras, a compressao essencialista da inguagem revela-se, desde logo, uma fonte inesgotavel de auto- aganos, Tom ado acidentes por substdne e relagdes por esséncias, ela transpée e inverte as categorias que cla mesma se dedica a engendrar: substituindo coisas por significados, faz crer que as designagées e as coisas se recobrem e, com ? Id. ibid., p. 880. FERNANDO DE MORAES BARROS ilude quem nela procura fiar-se;> condicionando o homem ao habito gramatical de interpretar a realidade vendo nela apenas sujeitos e predicados, incita-o a postular a existéncia de um autor per det as de toda ago; enquadrando aquilo que os seres humanos pensam e¢ falam nos padrdes da causalidade, tal concepgio os impele, em suma, negar 0 carater processual da existéncia. A exigéncia analitica de um modo de expres sio perfeitamente adequado ¢ objetivo, qual um a efe- decalque transparente da esfera que design tividade, s6 poderia ganhar relevo, no ft ndo, pela falta de cautela critica, Dai a oportunidade des cerrada por Nietzsche de combater a idéia de que se possa obter, por meio das palavras, um acess ao nucleo indivisivel e inquestionavel do existir. A seu ver, a verdade que as palavras nos colocari m em mios set ade ordem tautolégica. Através delas, o homem apenas reencontraria aquilo que ele pro prio teria introduzido nas designagdes. A fim de es- clarecer essa curiosa espécic de auto-ofuscamento, © fildsofo alemao prové o seguinte exemplo: Quando alguém esconde algo detras de um arbusto, ‘0 conceito ‘lapis"” — escreve Nietzsche — “é trocado pela ‘coisa’ lapis.” (Id. Fragmento péstumo do verdo de 1872, n® 19 [242]; em Saneliche Werke. Kritische Studienausgabe, Gi Berlin / Nova York, Wal p. 495), no Montinari 199, vol, orgio Collie Maz ter de Gruyter, t 17 INTRODUGAG volta a procura-lo justamente 14 onde © escondeu ¢ além de tudo © encontra, nao ha muito do que se vangloriar nesse procurar e encontrar [...] Se crio a definigdo de mamifero ¢, ai entao, apés inspecionar um camelo, declare: veja, eis um mamifero, com isso, uma verdade decerto é trazida A plena luz, mas ela possui um valor limit © processo que consiste em definir o conceito de animal mai ral ero para, a partir de um ani particular, compor o enunciado “Veja, eis um ma- mifero”, teria como : qiiéncia a idéia de que o “ser” mamifero pertenceria essencialmente ao exemplo individual. O que ja nao ocorreria no se guinte caso: Denominames um homem honesto; perguntamos en tao: por que motive ele agit hoje de modo tao honest? Nossa resposta costuma ser a seguinte: em fungie de sua honestidade.'® A despeito de figurar como uma_proprie dade acidental do suje to da proposigio, o termo “honesto” da a entende: aqui, que a propria “honestidade” pertence & esséncia do sujeito em questao, nie sé como atributo, mas como subs tancia, jA que foi em virtude de tal termo que a denominagao ganhou sentido, de sorte que a entre esséncia e acidente nao alardeada difereng * Id. ibid, p. 883, + Id. ibid, p. 880. FERNANDO DE MORAES BS ROS seria nada inconcussa, mas inteiramente casual. © que também revelaria, uma vez mais. a tauto- logia subjacente 4 propria linguagem: o ser do homem honesto estaria, no fundo, no fato de ele ser honesto. Assim, se pela definigde geral — animal mami fero, por exemplo — niio se te “verd cesso deiro em si”, tampouco cabera as palavras que se aplicam as propriedades particulares torn4-lo aces sivel a nds, Antropomérfica, a oposigio entre un versal e particular nao proviria da esséncia das coi sas, mas de um abuso: Nada sabemos, por certo, a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse a honestidade, sdo an mais, de imimoras agées individe alizadas @, por conse- guinte, design " nestas.'" M redar na trama de suas proprias fic que igualamos por omissio do desi- al © passamos designar, desta feita, como agdes ho- $ se, por aj, o homem nao faz senao se e lhe r uma dimensio mais es, mi seria permitido vislumbr ral, atr se reencontrar vés da qual ele pude ta das coisas em si mesmas, mas aquilo que ha de “inexplorado” na palavra? oa presenga imed afirmativa Na tentativa de responde ente a per- gunta, Nietzsche espera descobrir e afirmar um ' Td. ibid. , p. B80, 19 INTRODUGAO modo de representagio anterior A propria palavra articulada, que viria A tona sob a forma de uma metafora intuitr va. Acerea desta que poderia s racterizada como uma ancestral remote dia do préprio conceito, ele pondera Mesmo o conceito, ossificado © octogonal como um dado € tao rolante como este, permanece tdo-somente 0 residuo de uma metéfora, & do que a ilusio da trans- posiciio artistica de urn estimulo nervose em imagens. se nio éa mie, ¢ ao menos a avé de todo conceito. Como inequivoca parédia da compreensio do uitiva homem acerca da linguagem, a metafora i surge, se nao como a mae, pelo menos enquanto a mae da mae de toda representagao conceitual. Mas, evitando investigar a historia de seus “ante- passados”, a rede humana de conceitos jé niio re conhece as metaforas de origem, como metaforas, e as toma pelas coisas mesmas. E justamente por proceder dessa maneira que a linguagem renuncia ri 4 oportunidade de tomar para si ov ras fungde: soterrando o poder criador ¢ inaudito que traz con sigo. A ess © propésito, 0 filésofo alema iO escreve ainda: minho re A partir dessas inte acesso a terra dos esquemas fantasmagoricos, [...] 0 he mem emudece quando as vé, ou, entao, fala por meio 2 Td. ibid., p. 882 FERNANDO DE MORAES BARROS de metaforas nitidamente proibidas e combinagées con, ceituais inauditas, para av menos carresponder criativa- mente, mediante o desmantelamento e a ridiculariza- cao das antigas limitacdes conceituais, 4 poderosa intui gao atual."* Em vista disso, quem procurasse na linguagem um, nove 4mbito para sua agdo","* seja por m de metaforas j io ‘aibida: seja por meio de arranjos conceituais médites, cncontraria tal senda, “em linhas gerais, na arte. conseqiiéncias dessa aceitagdo que irao impelir Nietzsche, mais tarde, a tentar assegurar a lin el, mas guagem niio um fundo sonoro supra-sen uma musicalidade atinente & propria palavra. E tambén por ai que se compreende o moti » pelo qual a chamada linguagem dos gestos terminara por converter-se, como expressio derradeira e paroxistica do estilo nic ano, na_ propria “elogiiéneia tornada mi Razies bastantes para que a ponderacao contida em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral possa ser vista como a semente a partir da qual nasce e cresce che ¢ a orienta © filoséfica exigida pelo Nietz . Ao mostrar que a ilusao faz upostos da vida, seu autor faz ver maturidade. E nao s5 parte dos pre: 's Id. ibid., p. 889 48 Id. ibid., p. 887. ‘8 Td. ibid., p. 887 INTRODUGAO. 22 | que nés também, a despeito de nossas portentosas verdades, mentimos para viver. SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL SOBRE VERDADE E MENTIRA no sentido extra-moral rT Em algum remoto recanto do universe, que se desdgua fulgurantemente em inumerdveis temas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso ¢ hipécrita da “histé- ria universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Apds alguns respiros da natureza, 0 astro congelou-se, e 0s astuciosos animais tiveram de morrer. Alguém poderia, desse modo, inventar uma fabula e ainda assim nao teria ilustrado sufi cientemente bem quao lastimavel, quéo sombrio e efémero, qua sem rumo ¢ sem motivo se des taca o intelecto humano no interior da naturez: houve eternidades em que ele nao estava presente; quando ele tiver passado mais uma vez, nada tera ocorride, Pois, para aquele intelecto, nao ha nenhuma missao ulterior que conduzisse para além da vida humana. Ele é, ao contrdrio, hu mano, sendo que apenas seu possuidor ¢ gerador © toma de maneira to patética, como se os eixc 26 | SOBRE V RDAD IRA mundo girassem nele. Mas se pudéssemos pér-nos ito, aprender ao de acordo com 0 mosq mos & que ele também flutua pelo ar com esse pathos ¢ sente em si o centro esvoagante deste mundo, Na natureza, nao ha nada tao igndbil e insignifieante que, com um pequeno sopro daquela forga do conhe io inflasse, de stibito, como um imenta, n saco; € assim como todo carregador de peso quer ter seu admirador, 0 mais orgulhoso dos homens, 9 filésofo, acredita ver por todos os lados os olhos do universo voltados telescopicamente na direcao de seu agir e pensar.! curioso que isso seja levado a efeito pelo inte te ele, que foi outorgado apenas lecto, precisame como instrumento auxiliar aos mais infelizes, fra- geis © evanescentes dos seres, para conserva-los um minuto na existéncia; da qual, do contririo, sem essa outorga, eles teriam todos os motives para fu- gir tao rapidamente quanto o filho de Lessing? Nietzsche, Wher Wahrheit und Liige tm ausser Werke. Kritische Studie nausgabe, Giorgio Collie Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, pp. 875-890, 2 ‘Tido por Nietzsche como um “erudito ideal” (Cf. BR. Ni Friedric morelischen Sinne. Fan Sderilic etzsche, Fragmento postumo do inverno de 1869 ¢ da pri mayera de 1870, n® 2 [12], Em Samsliche Werke. Kritis che Studienausgabe, Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Ber lim / Nova York, Waker de Gruyter, 1999, vol. 7, p. 49), Gouthold Ephraim Lessing (1729-1781) ponders numa re Aquela audacia ligada ao conhecer e sentir, que se acomoda sobre os olhos e sentidos dos homens qua! uma névoa ofuscante, ilude-os quanto ao va lor da existéncia, na 1 dida em que traz em si a mais envaidecedo: 1 das apreciagdes valorativas so bre o proprio conhecer. Seu efeito mais universal é engano — Lodavia, os efeitos m. s particulares tan bém trazem consigo algo do mesmo cardter. Como um meio para a conservagio do indivi p na dissimulagao; pois esta constitui o meio pelo duo, o intelecto desenrola suas neipais forgas me qual os individuos mais frac »s vigore conservam-se, como aqueles aos quais ¢ denegado empreender uma lata pela existéneia com chi fres e presas afiadas. No homem, essa arte da dissimulagéo atinge seu cume: aqui, o engano, o adular, me itr e enganar, o falar pelas costas, 0 repre: ar, o viver em esplendor consentide, o velador arta a Johann Joachim Eschenburg, sobre a morte prematura de seu filho: “Min legria durou pouce: perdi o com tamanha rehutancia, esse filhot Pois ele tinh la entendimente! ‘Tanto entendimento! Nao pense que minhas poucas he as de paternidade fizeram de mim uma besta de pail Scio que falo, Nao foi o entendimento que obrigon a puxa-lo a férreo forceps para o mundo? Que tao cedo o levou a pereeber sua desrazio? Nao foi do entendin onto que ele se valeu na primeira opornunidade que teve para abandona lo novamente: (Em G. E, Lessing, Avitit una Dramarungie, fusgerwithlie Prosa, Stuttg S08,

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