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CAPITULO V FORMAGAO E EVOLUCAO DA SOCIEDADE DE CORTE EM FRANCA. Cada forma de dominagdo é 0 reflexo de uma luta social ¢ a con- cretizagio da partilha de poder dela resultante. A época dessa con- cretizagao e 0 estidio da evoluedo social no momento da génese do regime determinam a sua forma especifica € a sua evolucdo. Isto ex plica que, por exemplo, 0 absolutismo prussiano, que se formou mais que teriam sido a francés ou de MO NOUITO, a No- tiva, mas os reis de © poder que tinham conquistado ¢ consolidado da mesma maneira que os reis da Prissia no século XVIII. Estamos perante um fendmeno historico bastante sob varios aspectos, mais tardia, resoiva os seus problemas institucio- nais de uma maneira mais moderna que 0 que o precedeu no mesmo percurso evolutivo. Algumas instituigdes que Frederico II péde esta- belecer no seu pais, como a fungSo piiblica e a ad 680, 56 tie ‘Vveram equivalentes em Franca durante a Revolucao e o Império: mas a Revoluctio ¢ Napoledo resolveram, por sua vez, alguns problemas ‘que a Prissia ¢ a Alemanha s6 resolveram muito mais tarde. A ques- to de saber 0 momento — o que também quer sempre dizer a ma- neira — em que os grandes paises ocidentais levantaram e resolveram problemas sociais recorrentes é extremamente importante para o des tino © para jonomia» dos povos. Os reis inscreviam-se na mes- ma linha ev era ela que lhes ditava os seus problemas e as, suas tarefas, era ela que inflectia as suas tendéncias naturais num ou noutro sentido, era ela que sufocava & nascenca alguns dos seus dons iat que eles ndo parecem pertencer Por filiagdo directa a nenhuma das mento e dos seus actos pelas caracterist ‘ais da sua pers e lida- oe PORES! © tipo das suas m © objectivos, eram sempre rit Bert fica, das suas relagdes com crenata se et es tm apoleAo ou Frederico II da Pris na sua qualidade de artesfios de uma revolugdo social ou de um: insformagao estatal ¢ dé sobera- nos de periodos de ruptura com a tradi 0, sio ambigue comportamento, enquanto outros sao mi faceis de classifi Tegime. A julgar pelo seu tipo de comportamento, pelas suas motiva- gdes, pelo seu ethos, pertenciam evidentemente a camada aristocrati- deia de um halo de menosprezo e eta de um hal prezo ¢ de censura as qualidades posit Para compreender por que motivo o rei de Franca Pertencente a nobreza, por que se prociamava a si proprio «o primel, To nobre de Franea» (), por que era educado num espirito e numa tradiedo aristocraticas todos os seus pensamentos acgoes e de acordo com essa tradi¢z0, seria preciso recuar a origem da uma mentalidade igual 4 sua, se sentisse muito mai i is solitario com es sa camada que os reis de pafses onde houve uma ruptura entre a Ida. La France sous Charles VIII, Louis X11 et Fran P24, ©; Pars, Hat 122 de Média e a Epoca Moderna, onde o espirito aristocratico estava ‘menos desenvolvido e era menos original. Um segundo facto, estreitamente lizado ao primeiro ¢ igualmente importante passa em geral despercebido: os reis de Franea mantive- ram durante séculos, at Henrique IV e, em certa medida, até Luis XIV, uma batalha sempre indecisa, néo contra toda @ nobreza — ja que uma parte importante da aristocracia combateu sempre a0 lado dos reis —, mas contra a alta nobreza ¢ 03 seus partidarios. Ora, as estruturas do modo de vida aristocratic transformavam-se necessariamente A medida que a vit6ria ia tendendo a ser do rei, que antiga diversidade daya lugar & concentracéo num local, Patis, ¢ num éredo social, a corte réxia, Os reis que foram os artestos desta transformagao sofreram-Ihe 0 contragolpe. Nunca se situaram fora jobreza, a0 contrario do que mais tarde fez a burguesia. Desta ‘tima podemos dizer com alguma razdo que ela se afasiou pouco a pouco do modelo aristocratico, que acabou por nao compreender a atitude dos nobres, que venceu a nobreza pelo exterior, tornando-se defensora de uma atitude absolutamente ndo-aristocratica. Contudo, a instauragao da realeza absoluta, a contencio da grande ¢ da peque- na nobreza pelos reis de Franca fos séculos XVI e XVII ndo foram, em certo. sentido, sendo uma deslocacdo do centro de gravidade no interior da mesma eamada social ‘A nobreza espalhada por todo 0 pais deu origem a um nicleo ¢ uma forga centrais, a nobreza de corte agrupada em torno do rei Tal como a maioria dos nobres passaram da qualidade de cavalei para a de senhores ¢ grandes senhores da corte, também, os Q caso de Henrique IV era semelhante: sendo informado um dia, na sua qualidade de chefe dos Huguenotes e de grande vassalo do rei de Franca, de que o seu adversirio, 0 dugue de se preparava propds-Ihe que resolvesse a querela por um combate esigualdade de posicdes ntio me impedira.», Propds fesse um contra um, dois contra dois, dez contra dez, ia. Depois de subir ao trono, encarn dos reis de tipo cayaleiresco para os 1 homens, antes is. Se € verdade gas, nem por isso 123 io para os seus contempordnéos que néo estava habi- tuado a envolverse em pessoa, a iutar de armas na mfo, No testo de Luis XIV, 0s préprios torneios tinham perdido o caracter de com. bates homem a homem, de luta pessoal. Tinham-se transformado nut rma espécie de jogo cortés. A descrigto de um torneio em 1662 mos- tra-nos como 6 rei se comportava como um perfeito cortesdo, como tocrata, embora a sua pessoa desirutasse de um prestigio inigua, vel que afastava de todos os outros: ‘ (2). Mas, de momenio, ‘A apropnagio por Fran a iza¢ao para recompensar os homens qui SSS tha are doh abr dees st rantéme deixou-nos um: a0 vive o scutes prefervel a quasguer eomeneasaes es ConmEON ae Igreja. A politica lo entre uma im- (©) «Paris vate bem uma missay. Em francés no original. (N, T.) 138 dos e assegurar para si 805 mostruosos que havia nes Obier novos recursos. para ret dos bens da coroa ¢ das para cobrir 0 los a monges preguicosos que, como ele dizia, s6 sabiam comer, be- er, levar vida folzada e, quando wer cordas de tripa, ra- tociras e apanhar pardais.» «Noto que, deh algum tempo para ca, sobt lo da Liga, algumas pessoas conscienciosas ot Alguns lisongeiros astuciosos, come, bres detentores de bens da Igreja. Afirmayam que estes nao Ihes per- tenciam de modo nenhum visto que esses bens pertenciam ao clero € ue essa espoliacdo fora um erro grave, uma falta que devia pesar na que os nobres recebessem esses bens da Tereja a lo de propriedade privada... mas que mal fez a esses _ se depois do bispo, dos monges, dos pobres, a dizima jgagbes a entregar a0 rei, os nobres ol migalhas que caem da mesa do Senhor [0 r Jhor?t> @) Noutzo passo, Brantéme acrescenta: (absolutista), O érgao social onde, de- pois das guerras de Religito, se fundiram as fungdes da «dlependén- cia» e do «distanciamento» foi a corte, na forma definitiva que assti- miu no reinado de Luis XIV. Foi na corte e através da corte que uma grande parte da nobreza ficou para sempre sem autonomia ¢ passou a estar dependente do ica entidade capaz. de assegurar a sua sobrevivencia. ‘A dupla face da corte, instrumento com 0 qual o rei subjugava € mantinha a nobreza enquanto aristocracia, responde com preciso a0 caracter ambivalente das relagdes entre a nobreza e 0 rei no seio da corte. Porém a corte nao assumiu esta dupla funcao de um momento para 0 outro, como se fosse uma ideia de genio safda ‘da cabeva de uum rei, Desenvolveu-se lentamente, em funcéo das transformacdes da posicdo de forea objectiva da nobreza e dos reis até ao momento em que Luis XIV, agarrando a oportunidade que fez cons- ientemente da corte um instrumento de dominio atribuindo-lhe a dupla fungao de subjugar ¢ de manter a nobreza, Vamos procurar deserever em tragos largos essa transformagio. No reinado de Henrique IV ¢ mesmo de Luis XIII, os cargos de corte a maior parte dos cargos militares caracterizavam-se pela sua yenalidade, caracteristica muito propria do funcionariato do absolu- tismo senhorial. Os cargos eram portanto propriedade daqueles que 65 detinham. Nem os postos de governador e de comandante militar das varias provincias do reino escapayam 4 regra. E certo que 0 com- prador de um cargo 56 podia exercé-lo com 0 acordo do rei ¢ que, em certos casos, 0 cargo podia ser dado por mercé do rei, se a este Ihe aprouvesse. Qualquer dos critérios eta muito usado, o da ven: dade © 0 do favor do rei estavam em equilibrio. Pouco’a pouco, po- rém, a venalidade comecou a prevalecer. dos nabres no dispunha de tanto capital liquido como a burguesia, o tereeiro estado ou, pelo menos, familias oriundas do terceiro estado ou nobres de fresca data foram-se apoderando, pouco a pouco, mas inexoravel- mente, de todos os cargos e fungdes. Eram muito poucas as grandes familias da nobreza que dispunham — gracas & dimensto dos seus dominios ou as pensdes que os reis hes davam — de dinheiro sufi ciente para poderem participar no leilao @), Ora nao hé diivida que adam os frequentes movimentos de revolta destes egrandes»> TAIV, nio se deve perder de vista que as suas fontes de rend ‘menio estavamn em baixa coisante em relapao as do rel e das eamadas burguesas. 152 tanto Henrique IV como Luis XII e Richelieu se esforcaram por apoiar a nobreza: interessados em afasta-la por qualquer preco da es- fera onde se jogava o poder politico, queriam e deviam apoid-la co- ‘mo Factor social, Depois do assassinato do seu antecessor, Henrique IV comegou or depender inteiramente da nobreza e confirmou com um juramen- fo real um pacto escrito no qual se [é: «Nés prometemos-lhe servigo ¢ obediéneia em troca do juramento eda promessa que nos fez por escrito que até daqui a dois meses Sua Majestade interrogaré e reunira os ditos principes, duques e pares, oficiais da coroa ¢ outros stibditos que foram servidores fitis do rei defunto... para que todos em conjunto possam ter conselho e tomar decisdes sobre os assuntos especificados nas ditas promessas da dita Majestade.» @) E preciso comparar este texto com o convite. formal pelo qual Henrique LV, depois da sua aclamagao e ainda em plena reconquista do reino, propée aos chefes do Périgord que «se reunam e saiam de suas casas para virem ao seu encontro e servir nas ocasides que se apresentarem ¢ dai em diante» (#); apcla & «sua fiel nobreza da Tha de Franca, Beauce, Champagne ¢ Brie» ¢ encarrega os governadores Picardia de Jhe trazerem «os seus bons e fiéis servidores» (). Foi no entanto ele quem tomou as iniciativas decisivas que levariam 4 transformacdo dos antigos lagos patriarcais entre o rei e a nobreza, da solidariedade entre suserano ¢ vassalos ¢ homens I pendéncia absolutista cuja expresso mais tipica & a relacdo entre reis € cortesaos, relagdes a que Luis XIV deu forma definitiva. Pouco de- pois dos acontecimentos que dao lugar aos textos que citamos, Hen- Fique IV ira tomar a atitude necessariamente contraditoria dos reis € dos representantes dos reis desse regime em relaclo & nobreza, E certo que Henrique IV ainda acha natural a solidariedade que o li- ga nobreza. Toda a sua vida se desenrolara no seio de uma socie- dade de nobres. Lamentava as inimeras «boas ¢ antigas familias» ameacadas pela ruina, esforgava-se na sua acedo legislativa por ajuda-los a sair da sua situaao de endividamento. Nao se poupava a esforgos para se reconciliar com os seus compankeiros de armas, in- ciuindo a nobreza protestante de que se tornara o chefe catélico na Sequéncia da sua reviravolta religiosa. Mas a logica imanente da sua posi¢&o foreava-o, ao mesmo tempo, a reprimir qualquer veleidade de revolta entre os nobres desorientados e que por vezes se considera- vam mal pagos pelos seus scrvigos. Pelo menos @ principio, o rei, lembrando-se sem davida dos combates travados em comum e das Promessas que fizera, mostrou-se humano e moderado. Contentava- Koser, Die Epoche der Absoluten Monarohie in der Geschichte, p. 263, (G2) Avenel, carts de Henrique IV, colecsto de documentos inéditos da Hibvore 153. -se em exigir dos rebeldes um acto de autocritica e oferecia-thes o seu perdao, desde que confessassém ¢ reconhecessem o seu erro; caiam de novo em graca ¢ no os perseguia pelos seus anteriores erros de conduta. Neste ponto, no entanto, era implacavel: nao havia remis- silo sem submissio e confissao da falta. E nao podia ter tomado ou- atitude: tendo sabido que o duque de Biron preparava uma rebe- lio, convidou-o durante um encontro a expor-lhe os seus planos de reyolia e deu-lhe a entender que poderia contar com alguma indul- géncia se confessasse ¢ se se arrependesse dos seus crimes. Como 0 duaue tivesse recusado, Henrique IV, sem ter em consideracao os servicos que outrora o rebelde Ihe prestara e que este veementemente Ihe recordou, f8-lo conduzir perante um tribunal que 0 mandou exe- cutar, Se certo que o rei resolveu o dilema entre o seu dever de so- lidariedade para com a nobreza e as exigéncias do exercicio do seu dominio por un fe firme mas no undo moderada © concilia- dora —de que 0 Edicto de Nantes é um exemplo— nao & menos ver- dade que, de certo modo, foi empurrado para a realeza absoluta pela forea das oportunidades com que deparou: Henrique IV nunca cum- priui a promessa de convocar os Estados Gerais. «f voulait au manie- iment de ses affaires d’Estat estre crew absolument et un peu plus que ses predecesseurs n’avoient diz dele um homem de toga) i itou apoiar e chamar a si a nobreza; mas havia Jé apontdmos as consequéncias que afluxo de novos meios d do campo social. Para mi ta quanto as guerras de Religito produzi que todas as guerra civis produzem nas ocultavam-lhes a sua queda irreversivel no abismo! As perturbacdes, , as possibilidades de saques, a facilidade de nia salvar a sua posigd brecimento. Porque as vitimas nBo faziam ideia das alteragoes eco micas que eram a causa do turbiliio em que se viam envolvidas. In- terpretayam 0s novos fendmenos segundo o esquema da sua expe- riéneia passada, ou seja, com uma utensilagem mental ultrapassada. ara termos uma ideia mais nitida das fantasias com que a nobse- za se iludia, ougamos uma testemunha destes acontecimentos, um no- bre, ¢ em que termos comenta o alluxo inesperado de metais precio- S08 ¢ as suas consequéncias «Embora esta guerra civil tenha empobrecido a Franga, também a enriqueceu, porque descobriu e pés em evidéncia uma infinidade de tesouros escondidos debaixo de terra que nao servia nada e pai (YE. Pasquier, ctado por Marfjl, op. eit, p30 154 {grejas e puseram-nos de tal modo ao sol € converteram-nos em bolas ¢ boas moedas em tio grande quantidade que se viu em iiga reluzirem mais milhes de our que antes milhdes de libras de ‘prata e apareceram mais tostdes novos, belos, bons e finos, fundidos esses belos tesouros escondidos, que antes dozeno: 4B no € tudo: os ricos negociantes, os usurdtios, os banguciros & " piitros papa-dinheiros, até aos prebostes que tinham os seus escudos Wieondidos e fechados nos seus cofres e nao t wompra ou penhora de terras, bens e casas por vil preco: de modo We 0 fidalgo que durante as guerras estrangeiras se tinha empenhado # empobrecido ou vendido os seus bens, j& nao tinhia para onde se Yoltar porque esses usurdrios rapineiros tinham ficado com tudo: Wits esta boa guerra civil restaurou-os e deuslhes vida nova. De tal jMlodo que tenho visto nobres ¢ de boas terras, que antes calcorrea- ‘vain 0 pais com dois cavalos ¢ um escudeiro © qu ‘yam que foram vistos durante ¢ depois da guerra ‘Hons cavalos... E eis como a valente nobreza francesa engordou pela Se cn ees) parser oder a 5 No realidade, a maior parte da nobreza francesa encontrou-se, no Youresso dessa cboa» guerra civil gracas & qual esperava engordar, MMhis ov menos arruinada c endividada. O custo de vida subira. Os (edotes, mercadores, usuarios, banqueiros, sobretudo homens de Jogi, pressionavam os nobres delapidados ¢ tomavam-lhes as pro- ppriedades e muitas vezes também os titulos. : 0% nobres que tinham conservado os seus dominios verificaram Ae 05 rendimentos j4 nem sequer cobriam as despesas: '4Os senhores que tinham cedido as suas terras aos camponeses inuavam a receber 0 mesmo rendimento jassado custara cin- (Os nobres empo- breciam sem saber» @) : Como sempre sucede as camadas superiores em perda de veloci- dade, o que as ameacava nao cra a pauperizacéio pura e simples mas fetraimento dos seus recursos face as exigéncias sociais e as ne- Se 0s nobres que perderam os seus rendimentos e que estdio in- Uvelmente agravados de dividas quisessem usar de prudéncia e bom woverno, nfo ha divida que, com a facilidade de vida que iém, con- Hopuiriam restadelecer as suas finaneas, se nfo totalmente, pelo me- Hos om grande parte porque, vivendo normalmente nas suas terras, lam viver sem ter, por assim dizer, que levar a mio & bolsa. Miase todos teriam lenha para se aquecer, campos onde colher 0 tri ne, Osusres Com) pp, 328-330, ‘op. di Be 2 155 go.e.o vinho, pomares de fruta, belas avenidas cobertas de folhagem Yerde por onde passear, coutadas de lebres e coelhos, campos para cacar, pombais com pombos, eapociras com galinhas, etc...» @”) Se os nobres tivessem decidido viver das suas rendas em generos € renuinciar ao dinheiro e @ tudo 0 que o dinheiro proporciona — pen- sa 0 autor desta obra, 0 embaixador de Veneza, Duodo — se estives- sem dispostos a tornar-se «gentlemen farmersn, teriam podido salvar- “Se. ‘Mas como muitos nobres no estavam dispostos a mudar de vida, como preferiam lutar por manter um estilo de vida ai i reram para a corte onde cairam na dependénei sultado daquilo a que se tem chamado, até certo ponto bem, a entre a nobreza ¢ rei». No encadeado de acontecimentos que en- yolveram a nobreza, tudo bate certo: os nobres empobr se sentem obrigados pelas normas da tradicdo ¢ da opinido social a anter o seu nivel de vida e 0 seu prestigio, a viver das suas rendas, vas; ora a desvalorizacao da moeda col ir com as camadas burguesas profissio- Ot Mais exactamente, a maior parte dos nobres estd perante a alternativa de levar uma vida de camponeses ou dos os efei- tos, uma vida miseravel, sem qualquer nexo com a idei seu proprio valor, ou entdo de ir para a corte e assentar o seu prest gio social em novas bases. Uma parte consegue-o, a outra fracassa. ‘Acreestruturagiio da nobreza, a sua reinstalagdo e a sua insereao na vida de corte, que ja so perceptiveis no reinado de Francisco I se fazem de tim dia para 0 outro. A nova orientacio nao esti nada no tempo de Henrique 1V. O afluxo da nobreza provinei ral A corte, as tentativas desses sectores menosprezados de se integra- rem na sociedade de corte nunca esmorecem durante o antigo regime agem de um grupo para outro vai-se tornando cada vez mais di ‘A cotte, regida pela economia enquanto a reconverséo da antiga, economia baseada nas trocas em géneros nao est terminada, serve de colector de certas correntes sociais. Quanto mai se en chia, mais dificil se tormava aos homens da nobreza rural ¢ provincial ibém A burguesia seguirem uma dessas correntes. Como conse- dava-se um deslocamento de pressdes no dessa pres- | cujo oreo central eta a corte até que, p a0 cabo de flutuaebes e oscilacdes, todo o sistema explodiu, desagrega- do pelas suas tensbes internas. , ndo € 0 rei que por uma medida politica detiberada jembros da alta ¢ pequena nobreza a instalarem-se na cor- te, sob a proteceao régia. E pouco provavel que Henrique IV tivesse 1528, in Alberti, «Relazione Venete» in De Vaissit er Reto de Pevo Duct & . 226, 0, Gentishommes Campagnards, tor. 156 puma ver tido meios financeitos suficientes para instalar uma corte Pigantesca com todo o seu cortejo de cargos, favores ¢ penisdes. Ao {gontrério de Luis XIV, nao quer fazer da corte uma sociedlade de no- ‘bres, um local onde possam encontrar uma base de existéncia. A so- ledadle de corte ainda esta em movimento, Aleumas familias nobres ecaer € sto substituidas por familias burguesas. As ordens existem, ira que as separa nao & trticas vai-se bloqueando, A corte ¢ a sociedade de corte evoluem para uma formacao cujos costumes, habitos, formas de falar ¢ de Yyestit ¢ de se movimentar se distinguem dos das formagées nfo cu- finis. Torna-se cada vez mais dificil a quem nao nasceu na corte ou niela nao viveu desde a mais tenra infancia desenvolver 0 «est G0 € mental pelo qual os aristocratas se distinguem dos nobres © dos, Wurgueses que a ela nao tém acesso e através do qual se reconhecem entre si. A medida que a corte do rei da Franca evoluia no sentido de ser com fronteicas rigorosamente delimitadas, assiste- inevitavel de uma dada formacio soci ppinstio continua — a génese de uma toformas desta civilizacéo quanto aos gostos, 4 maneira de falar, 20 famnor, ao gosto — para s6 citar algumas — jé existiam na Idade Mé- @ia, na corte do rei e, mais ainda, nas cortes dos senhores rials, Se nos quisssemos dar a esse trabalho, poderiamos seg HO A passo 0 desenvolvimento daquilo a que se chamou a «civilizacto de corten, que nao € senao um dos aspectos de uma formacao Fla que pouco a pouco se destaca do campo social. Esse estudo talvez puidesse contribuir para associar o termo «civilizagdom, no qual mui- Jos gostam de ver um fendmeno independente e pairando acima dos homens, com a evolucto social de agrupamentos humanos fora dos guiais & impossh Iturais ou, para usar ou- {fa expressdo, as stoulos XVI ¢ XVI io progressiva das estruturas do itéria do pais. O processo de distan- € de isolamento da sociedade de corte estava mais ou menos minado no tempo de Luis XIV. Durante o seu reinado, as hipdte- fle integracio na corte diminuiram consideravelmente, tanto para (04 burgueses como para a nobreza provincial. A corte foi-se transformando gradualment ima espteie de orga- jento de dominio rinham por diversas vyezes, em conflito aberto ou latente, medido forgas e 0 poder de que cada um dispunha, Aproveitando a sua situagdo de forea, Luis XIV assenhoreou-se com energia ¢ determinagio de todas as oportunida- ides que este campo social Ihe oferecia. Para compreender qué essas atitudes, nada melhor que a leitura de uma peticao da nobreza ‘a0 rei com o titulo «Requestes et articles pour le retablissement de 1a noblesse» com a data de 10 de Fevereiro de 1627, dirigida ao anteces- sor de Luis XIV @*). Depois de cerem explicado que a manutencio da coroa se devia em primeiro fugar a ajuda de Deus ¢ a espada de Henrique TV ¢ logo depois 4 atitude da nobreza numa epoca em que a maior parte das foutras camadas sociais nao queriam sendo deixar-se envolver na re- volta, a peti¢io constata que, apesar diss ‘.uEla [a nobreza] esta pobreza perseguea... a oci reduziu ao desespero.. Como causas desta situacao, o texto indica expressamente a des- confianca que alguns membros desta ordem inspiram ao rei, pela sua arrogancia e pelas suas exigncias. Por este motivo, os reis acabaram por crer que era necessério reduzir 0 seu poder e aumentar o do ter eiro estado, excluindo a nobreza de todos os cargos ¢ honrarias de que poderia abusar, a tal ponto que j4 ndo era possivel encontrar ne- hum nobre na administragto da justia e do fisco, nem nos conse Thos do Rei. ‘© documento considera portanto que a a do rei, que con: siste em opor uma ordem a outra, em jogar com as tensdes @ as opo- sigdes, € uma atitude que se insere na tradicAo. ‘Em seguida, a nobreza formula as suas reivindicagdes em vinte © ig0s: 0S postos de comando militar dos diferentes governos do reino, os cargos civis e militares da casa real — ou seja, a ossatu- ra da organizagdo que fara mais tarde da corte uma instituicao de su porte da nobreza — deverSo deixar de se poder comprar; todos esses cargos deverao ser reservados aos nobres. Consentindo nesta dltima exigéncia, Luis XIV assegurou na prética a sobrevivéncia mas tam- am a sujeigao da nobreza. Reservou os cargos de corte para a no- breza e distribuiu-os conforme the aprouve, ficando entendido que esses cargos deveriam ser pagos se passassem de uma fam! ouira visto que, como qualquer outro cargo, eram propriedade do seu detentor. ‘Todavia, a nobreza formula nestes vinte ¢ dois artigos muitas ou- miserdvel que nunca... & -A... & OPFESSAO quase @ tras exigéncias: reclama certa influéncia na administrarao provincial, em como a nomeacdo de alguns nobres particularmente qualificados para os parlamentos, pelo menos com voto con lo ho norifico. Pede que um tergo dos membros do Conselho de Finangas, (@ Mariel, op. elt, p. 390 158 para fonselho de Guerra e de outros drgios do governo real sejam s- j0s entre as suas fileiras. Porém, de todas estas reivindicagoes icantes — 6 a primeira : 08 cargos de corte foram reservados a no- 5 pedidos que visavam a participactio, mesmo que modesta, MMe cio iecverio © na administragia do, pais foram. recusedae, uanto Luis XIV foi vivo. stamos na presenca de um quadro particularmente instrutivo do Vlocamento de equilibrio que conduziu em Franca a instituicdio da je enquanto organismo de apoio de uma parte da nobreza, A so- lo oposta, a que para os alemaes surge como normativa, & a soli Ao prussiana do mesmo problema. Taine afirmas Prederico TI, depois de the terem descrito essa etiqueta, dizia fosse rei de Franga, o seu primeiro edicto seria para fazer rei egiento iaborioso de funeiondrios itl. stamos nos antipodas do tipo de nobreza mantis it erada dos reis de Franca, i Ampossivel resolver ‘convenientemente a questdo de saber por raztio a evolucdo tomou um sentido na Préssia e outro. em Fran- em abordar o problema das diferentes evolugbes nacionais dos paises, E de salientar que a organizagio da Prissia se ressentiu facto de que a corte moderna do rei teve de ser criada ex 7 inde medida copiando modelos estrangeiros, enquanto a js de Franca foi o resultado de uma evolucdo secular e nao f “Nesessirio «crif-lay na verdadeira acepoto do termo. Deverd re ‘ae jambém que a completa auséncia de qualquer elaboracao comum. “tie ma mentalidade de corte de acordo com uma solidariedade tradi- entre 0 rei e a nobreza teve consequéncias muito evidentes na sia, O desenvolvimento relativamente modesto da burguesia ur ia den & sociedade estatal prussiania caracteristicas muito particu- Qs sr uma das diferencas entre as duas es- jais em relacdo directa com o problema da formagao da is de Franga. Na Alemanha nota-se, a partir da Reforma, "W) Talne, Les Origine Gf. por exe } 6 nimero de jovens nobres que travam cursos no purou de crescer a partir da 159 de se queriam abragar a cai Moderna nao encontramos juristas oriundos da «nobreza de espa- da» (1), Diga-se de passagem que este problema esta intimamente li- gado ao da formagao e reerutamento dos ‘Alemanha. Na Alemanha, a universidade era um instrumento essen- cial de formagaio: em Franca, a universidade de antigo regime nunca esteve em contacto com a sociedade de corte, berco da civilizaydo propriamente dita. Na Alemanha, a intelectualidade era em larga me- dida constituida por eruditos ou, pelo menos, por universitarios, a0 ‘paso que em Franca a selecgao ndo se fazia na universidade mas na corte, na «Sociedade», no sentido amplo ow esirito do termo. Na ‘Alemanha, apesar das relagdes sociais que existiam entre intelectuais, ro era © meio de gomunicacto por exceléncia entre eles; em Franga e por maior que fosse 0 seu amor pelos livros, os homens co- ‘municavam entre si em primeiro lugar pela conversagdo. Estes so dados cuja relagao directa com a posigao privilegiada da Universida- de na Alemanha e com o divércio entre universidade e civilizacao de corte em Franea, salta aos olhos. Nao é apenas a estrutura da nobreza que cra diferente em Franga, ena Alemanha ou, melhor dizendo, na Prissia: é também a estrutu- ta da funedo ptibliea, Os dois fenémenos esto intimamente ligados ¢ ndo se podem compreender isoladamente. Ao mesmo tempo, ext cam a transformaco da corte em local de apoio da nobreza. Limite- mo-nos a fazer aleumas observagdes: Um dos tracos mais tipicos da fungio publica do antigo regime era @ venalidade dos cargos. Pouco importa agora a sua origem: 0 facto & que se tornara um habito, com algumas flutuagdes no decor ret do século XVI. No reinado de Henrique IV teria sido jé impossi- vel suprimi-lo sem profundas comog6es sociais. A realeza de corte do Reforma.» Que a so da nobteza na fungdo piblica — sobretudo os fills mats (beriticas — comegau mals cedo na Alemanha € comprovado "A casa deste evoluea0 & um ‘Ainds no s ‘monte para @) Cf, tambem Brantéme, sex concelo sted a Ponue os nobes do su eno 0 {Seem pole ei See gades nomeados pare os seus prlamentesc para 0 Tho de Estado.» a 160 10 regime, pelas suas estruturas, estava indissoluvelmenti essa instituicao. E completamente init liscutir se & luz dos critérios de valor dos dias de hioje a venalidade dos cargos era uma instituicAo «boa» ou lumi, A nossa poca é uma fase posterior de evoluedo; por este mo- tivo, a questao, além de ociosa, esté mal posta. Os critérios de valor ‘que marcam a nossa ética da funeao publica, tal como as estruturas modernas da burocracia, t2m origem em estruturas mais antigas nas Quais é preciso incluir a venalidade dos cargos. A sua introducao foi, ssposta a problemas financeiros bem determinados: a ima importante fonte de rendimento do rei. Mas foi just icitamente pela preocupagao dos reis de subtrair a fungao pilblica ao dominio da nobreza e impedir que a feudalidade Ihes atrebatasse o aparelho de Estado. Assim, esta instituigao era também, em parte, uma arma do rei no seu combate contra a nobre- 2a ¢ muito especialmente contra a alta nobreza. Teria sido absurdo e, além disso, incompativel com a politica dos reis o acesso da nobreza 20 circuito da venalidade dos cargos, insti (glo nascida em parte das tenses entre o rei ¢ a nobreza ¢ definitiva- mente legalizada por Henrique IV. Tal tentativa estaria de resto con- denada ao fracasso. So a supresso pura e simples da venalidade dos cargos — pela qual a nobreza nunca deixara de batalhar — teria per- mitide aos nobres © acesso as funcdes administs 10 que 05, imeios eram muito limitados. Tal reforma teria sido, por outro la do, extremamente onerosa, porque o rei se teria visto obrigado ou a devolver as somias recebidas ou a confiscar sem contrapartida os car- gos venais que constituiam um bem; neste tltimo caso, daria um golpe profundo a burguesia e portanto poria em risco o equilibrio de foreas. Fosse como fosse, tal reforma seria contraria aos interesses do rei: @ vyenalidade dos cargos era uma fonte de rendimentos importante © a ‘sua supressao teria comprometido 0 equilibrio social do Estado. ‘Enquanto durou o antigo regime, todas as tentativas para abolir a venalidade dos cargos falharam sempre, ou por razOes financeiras, hobres. Nao era uma me tomar nesse campo social, ile interesses coma p de 1627 de que citamos extractos passa em revista todas as espécies de métodos para socorrer c salvar a nobreza sem sequer mencion fade. A nobreza apenas exige a admissio de deierminados hobres nos tribunais e nos parlamentos a titulo de «conselheiros» € sem ret 19. Nao procura empregos: quer posigbes de forea. ‘Além dos dominios, pensbes dons do rei, & nobreza sO restayam como meios de existéncia os cargos na corte e alguns postos na dipto- 161 \obreza era e continuava a ser uma ordem de guerreiros sem actividade profissional cujos membros sé estavam na universida- de se queriam abracar a carreira eclesiéstica. Na Franga da Idade Moderna néo encontramos juristas oriundos da «nobreza de espa- da» 4), Diga-se de passagem que este problema esta intimamente li- gado ao da formagio ¢ recrutamento dos intelectuais em Franca e na ‘Alemanha. Na Alemanha, a universidade era um instrumento essen- ial de formacao; em Franca, a universidade de antigo regime nunca com a sociedade de corte, bergo da civilizacao , a intelectualidade era em larga me- 8 ou, pelo menos, por universitérios, a0 passo que em Franca a seleceao nao se fazia na universidade mas na torte, na «sociedade», no sentido amplo ow estrito do termo. Na ‘Alemanha, apesar das relagdes sociais que existiam entre intelectuais, © livro era o meio de ‘comunicaco por exceléncia entre eles; em Franca e por maior que fosse © seu amor pelos livros, os homens co municavam entre si em primeiro lugar pela conversago. Estes so dados cuja relagdo directa com a posicao privilegiada da Universida- de na Alemanha e com o divércio entre universidade e civilizacio de corte em Franga, salta aos olhos. Nao é apenas a estrutura da nobreza que era diferente em Franca. ena Alemanha ou, melhor dizendo, na Prussia: é também a estrutu- ra da funedo publica. Os dois fendmenos estao intimamente ligados ¢ nao se podem compreender isoladamente, Ao mesmo tempo, expl cam a transformagao da corte em local de apoio da nobreza. Li ‘mo-nos a fazer algumas observagses: Um dos tragos mais tipicos da fungao pablica do antigo regime era a venalidade dos cargos. Pouco importa agora a sua origem: 0 facto & que se tornara um habito, com algumas flutuacdes no, decor rer do século XVI. No reinado de Henrique IV teria sido jé impossi- vel suprimi-lo sem profundas comogdes sociais. A realeza de corte do dida constituida por er ‘Reforma Que ullizeo da nobreza na fungto piblica — elo a Al tho de Estado.» 160 igo regime, pelas suas estruturas, estava indissoluvelmente ligada fhessa instituigao. E completamente int das de hioje a venalidade dos cargos era uma tamén. A nossa época € uma fase posterior de evolusdo; por este mo- tivo, a questdo, além de ociosa, esta mal posta. Os eriterios de valor que marcam a nossa ética da fungao pablica, tal como as estruturas odernas da burocracia, tém origem em estruturas mais antigas nas € preciso ineluir a venalidade dos cargos, A sua introdueao foi, ‘4 resposta a problemas financeiros bem determinado: argos era uma importante fonte de rendimento do rei ¢ pela preocupacio dos reis de subte ‘que a feudalidade thes arrebatasse o aparelho de Estado. Assim, esta instituigao era tambérn, em parte, uma arma do rei no seu combate contra a nobre- a ¢ muito especialmente contra a alta nobreza. TTeria sido absurdo ¢, al rels 0 acesso da nobreza ao circuito gjlo nascida em parte das tensbes entre 0 r Iente legalizada por Henrique LV. Tal tentativa estaria de resto con- enada ao fracasso, S6 a supresso pura ¢ simples da venalidade dos cargos — pela qual a nobreza nunca deixara de batalhar — teria per- Initido aos nobres © acesso as fungdes administrativas, visio que os Sets meios eram muito limitados. Tal reforma teria sido, por outro la- do, extremamente onerosa, porque 0 tei se teria visto obrigado ou a ddevolver as somas recsbidas ou a confiscar sem contrapartida 0s car- os veriais que constituiam um bem; neste tltimo caso, daria um golpe profundo a burguesia e portanto poria em risco o equilibrio de foreas. Fosse como fosse, tal reforma seria contréria aos interesses do reit @ venalidade dos cargos era uma fonte de rendimentos importante e a Sa supressto teria comprometido 0 equilibrio social do Estado Enquanto durou o antigo regime, todas as tentativas para abolir a vyenalidade dos cargos falharam sempre, ou por razdes financeiras, ‘1 por causa da resistencia feroz dos proprietérios de cargos. E pre- iso dizer também que durante o periodo crucial da reestruturacao da hobreza francesa ninguém pensou seriamente na funcionalizagao dos hobres. Nao era uma medida possivel nem razoavel que se pudesse dos diversos ce vealeza, A de 1627 de que citémos extractos passa em revista todas as espécies de métodos para socorter e salvar a nobreza sem sequer mencionar: essa possibilidade, A nobreza apenas exige a admissdo de determinados hhobres nos tribunais e nos parlamentos a titulo de «conselheiros» ¢ fem reiribuigo. Nao procura empregos: quer posigdes de fore ‘Alem dos dominios, pensOes e dons do rei, a nobreza s6 restavam como meios de exist@ncia os cargos na corte e alguns postos na diplo- 161 \obreza era ¢ continuava a ser uma ordem de guerreiros sem actividade profissional cujos membros sé estavam na universida- de se queriam abracar a carreira eclesiéstica. Na Franea da Idade Moderna néo encontramos juristas oriundos da «nobreza de espa- da» @), Diga-se de passagem que este problema esta intimamente li- gado a0 da formagio ¢ recrutamento dos intelectuais em Franga e na ‘Alemanha. Na Alemanha, a universidade era um instrumento essen- ial de formacao; em Franga, a universidade de antigo regime nunca esteve em contacto com a sociedade de corte, berco da civilizacdo proptiamente dita, Na Alemanha, a intelectualidade era em larga me- dida constituida por eruditos ou, pelo menos, por universitarios, a0 passo que em Franga a seleceao nao se fazia na universidade mas na torte, na «sociedade», no sentido amplo ou estrito do termo. Na Alemanha, apesar das relagdes sociais que existiam celectuais, © livro era o meio de ‘comunicacio por exceléncia entre eles; em Franca e por maior que fosse o seu amor pelos livros, os homens co municavam entre si em primeiro lugar pela conversagfo. Estes sio dados cuja relagao directa com a posicao privilegiada da Universida- de na Alemanha ¢ com o divércio entre universidade e civilizacho de corte em Franga, salta aos olhos. Nao € apenas a estrutura da nobreza que era diferente em Franca ena Alemanha ou, melhor dizendo, na Prissia: também a estrutu- ra da funedo publica. Os dois fenomenos estao intimamente ligados e no se podem compreender isoladamente, Ao mesmo tempo, exp! cam a transformagdo da corte em local de apoio da nobreza. Li ‘mo-nos a fazer algumas observacdes: Um dos tracos mais tfpicos da fungao publica do antigo regime era a venalidade dos cargos. Pouco importa agora a sua origem: 0 facto € que se tornara um habito, com algumas flutuacdes no, decor~ rer do século XVI. No reinado de Henrique IV teria sido jé impossi- vel suprimi-lo sem profundas comog6es sociais. A realeza de corte do ki “Que ull da nobrees ne fungto pablicn — fovos das fais aistorateas — comeyou mais cedo na Al , pelas suas estruturas, estava indissoluvelmente ligada ‘essa instituicao. E completamente int lias de hoje a venalidade dos cargos era uma instituig&o «boa» ou mma. A nossa época € uma fase posterior de evolusao; por este mo- tivo, a questdo, além de ociosa, esta mal posta. Os eriterios de valor ‘que marcam a nossa ética da fungao pablica, tal como as estruturas moderns da burocracia, t€m origem em estruturas mais antigas nas ‘quais € preciso incluir a venalidade dos cargos. A sua introdusto foi, dle inicio, a resposta a problemas financeiros bem determinados: venda de cargos era uma importante fonte de rendimento do rei. Mas {oj justificada explicitamente pela preocupagio dos reis de subtrair a flingao piblica ao dominio da nobreza e impedir que a feudalidade thes arrebatasse o aparelho de Estado. Assim, esta inst também, em parte, uma arma do rei no seu combate cont a ¢ muito especialmente contra a alta nobreza. Teria sido absurdo ¢, al rels 0 acesso da nobreza a0 circuito gjlo nascida em parte das tensbes entre o r Iente legalizada por Henrique LV. Tal tentativa estaria de resto con- denada ao fracasso. S6 a supressao pura ¢ simples da venalidade dos cargos — pela qual a nobreza nunca deixara de batalhar — teria per- Initido 0s nobres © acesso as fungdes administrativas, visio que os Seis meios eram muito limitados. Tal reforma teria sido, por outro la- do, extremamente onerosa, porque 0 tei se teria visto obrigado ou a ddevolver as somas recsbidas ou. a confiscar sem contrapartida 0s car~ gos venais que con: sm bem; neste filtimo caso, daria um goipe profundo a burguesia e portanto poria em risco 0 equilibrio de foreas. Fosse como fosse, tal reforma seria contréria aos interesses do reit @ Yenalidade dos cargos era uma fonte de rendimentos importante e a Sia supressto teria comprometido 0 equilibrio social do Estado Enquanto durou o antigo regime, todas as tentativas para abolir a vyenatidade dos cargos falharam sempre, ou por razdes financeiras, Oli por causa da resistencia feroz dos proprietérios de cargos. E pre- iso dizer também que durante 0 periodo crucial da reestruturacao da hobreza francesa ninguém pensou seriamente na funcionalizagao dos razodvel que se pudesse rios de valor dos de 1627 de que citamos extractos passa em revista todas as espécies de métodos para socorter e salvar a nobreza sem sequer mencionat essa postibilidade. A nobreza apenas exige a admissdo de determinados obres nos tribunais e nos parlamentos a titulo de «conselheirosy & sem retribuicSo. Nao procura empregos: quer posicdes de forca. ‘Alem dos dominios, pensbes e dons do rei, & nobreza so restavam como meios de existéncia os cargos na corte e alguns postos na diplo- 161 macia € no extreito, As reivindicagdes da nobreza que visavam reset= var alguns cargos para os nobres néo foram portanto satisfeitas se- nfo, em certa medida, nalgumas areas bem delimitadas: mas isto s6 no teinado de Luis XIV. No tempo de Luis XIII c de Rich ca em que a petigao da nobreza foi formulada, a ocasidio ainda néo estava amadurecida. A balanca de foreas nfo pendera ainda definiti- vamente para o lado da realeza e os «grandes» do quais tinham saldo alguns chefes do partido huguen gavam 0 poder absoluto do rei. Se procurarmos ter uma nocdo das estruturas de corte e do nivel das tenses socials 20 sabor das quais a corte se foi lentamente for mando, do antagonismo entre a realeza e seus representantes, de um ado, ¢, do outro, uma nobreza acossada por um terceiro estado em plena ascensdo, 0 panorama que se oferece ao observador, no tempo de Richelieu, @ 0 seguinte; os Ordos representativos da nobreza en- ‘quanto ordem e, com eles, a maioria dessa mesma ordem ja nfo de- sempenhavam praticamente nenbum papel auténomo enquanto fac- tor politico n: jontra 0 poder real. Os estados gerais de 1614 de- monstraram imeira vez a saciedade a forca do terceiro estado; puseram em evidéncia que a nobreza enquanto ordem, ameacada pe- a burguesia, jA dependia demasiadamente do apoio ¢ da arbitragem da realeza para se poder opor eficazmente as suas exigéncias Em compensago, os grupos de nobres que seguiam na esteira do alta nobreza, tendo A frente os principes de sangue, os duques rel, . E facil ver as razdes da e pares sua forga: dores e chefes 1as provincias e pragas fortes. Etam as tilkimas posigées de forea que restavam & nobreza depois de ter sido afastada de todas as outras estruturas de dominacio. ‘A isto deve acrescentar-se que 0 rei ¢ 0 proprio Richelieu se mos- traram indulgentes para com os parentes proximos da casa real, de- signadamente com @ mae ¢ 0 imao do rei. Foi preciso a experiéncia reiterada da ameaga que constituia para 0 seu poder a ingerén- cia dos parentes nos negécios de Estado e foi preciso que Luis XIV ven- esse as suas prOprias fraquezas para permitir a esse artesto do abso lutismo tomer a medida politica de afastar radicalmente 05 parentes ¢ uma atitude ). No tempo s todas as rédeas de poder. F jora maioria dos casos, a vultos da alta nobreza. Gracas a eles, facg0es da corte, que sempre existiram mas que, sem estes apoios, joa teriam passado de grupos insignificantes ¢ sem perigo para 0 am dum poder social que nao era de desprezar. , Gastao, duque de Or- ersarios do Cardeal ¢ ter retirado a sua amizad talando-se em Orléans pai com 0 apoio da sua praca forte. Em circunstancias semelhantes, formara-se uma faccao em torno lo dugue de Vendéme, bastardo de Henrique IV, irmao natural do Tel, O seu ponto de apoio cra a Bretanha, de que era governador; jerava que, pelo casamento, adquirira Wlireitos sobre essa pro- a essas pretensoes. Encontramos 0 ses ¢ lutas entre o representante do nobreza. A resisténcia ora provinha do governador da Provenca, ora do governador do Languedoc, 0 du- {que de Montmorency. Os movimentos de insubordinacao da nobreza Huguenote apoiavam-se em posigdes de forca andlozas. Como a orga- niizagto do reino ainda nao estava completamente centraliza- da, como os governadores das provincias tinham tendéncia para con- Jderarem os postos que ocupavam, como propriedade sua, visto que inham comprado € pago, € como os pr gozavam de uma autonomia muito co que ainda Ihe permitia orga- Nao foi certamente por acaso que a assen Yocada em 1627 sob orientacdo de Richeli ue nenhuma fortaleza fosse entregue aos «grandes», que todas as flortalezas que no fossem necessirias defesa do pais fossem arrasa- ’inguém tivesse direito de possuir ou mandar fazer peoas sem autorizacao da Coroa; a assembleia, depois de algu- ‘mas questitinculas sobre © montante e a forma de colecta da contri- uigdo clas provincias, concedeu sem reservas as somas necessarias & onganizacao de um exército permanente de 20 000 homens, ficando imente afirmado que ele serviria nao s6 para a defesa contra de forca da alta nobreza. Os opositores 5, ha pristio, nos campos de batalha e no ex 163 Ja tinham as mulheres: no plano social, os homens, riores as mulheres. Esta sociedade de corte era no entanto ainda ivamente descentalzaa, O estilo de vida cavalersco.c 0 st 9 espeifico ainda nfo tina desapareido mas condziam gre Imente a nobreza de espada para a rina; ethos esse que fora ou- celéneia do prestigio ¢ do éxito. ie enconravam ses homens sda de funcaon. A sua situagio era tal que a atitu- Itadisional, que correspondia a ideia que tinham do seu one lr, que conduzira os pais e 05 avés e que os conduziu talvez a el prios, ne juventude, a gloria e ao éxito social condenava-os ago- Tum mundo transformado por acontecimentos que nao com- ‘ fracasso © 4 perda de tudo o que eram. Uma cena des- iusira to bem o destino de um dos altimos repre- 05 a0 prazer de a ainda suficientemente poderosa para resistir ao rei. Mas como um personagem enérgica fizera sua a causa da realeza, a forea do «grandes», sempre zangados uns com 0s outros, sempre BO chegou pata os tornar vence realizar 0 seu projecto de substituir de trés ein trés anos todos 0s governadores de provincia, nem por isso deixou de os ter Sob controle apertado ¢ revogava-os ‘sempre que Ihe convinha, 9 que era humitha-los bastante. Assim, nas suas Memdrias, esclarece: «Pensarem que por serem filhos ou irmaos do rei ou principes de sangue podem impunemente perturbar o reino, € estarem enganados, E muito mais sensato garantir 0 Reino e a Realeza que ter em atene 8 as qualidades que lhes conferem lade.» (3) Era sua intene#o subordinar a «qualidade» da nobreza as exigén- cias do poder real. Esta balanca de forgas entre a nobreza e a realeza, ira determinar também as estruturas da corte tais como se institui- Flam no reinado de Luis XIV. A corte erescera pelo afluxo de muitos nobres desenraizados. Formava, tal como na época de Henrique TV, uma espécie de cadinho onde s¢ encontravam e misturavam pelo ca: samento burgueses que tinham aproveitado a venalidade dos cars membros da toga recém-nobilitados @ nobres de velha e2 fase, a corte ainda nao ¢ o domicilio permanente dos pais e 0 centro social impar da Franca. Mas a vida cavaleiresca que assegurava ao nobre um dominio rural, um domi guerra itinerante e, a sua mulher, um campo de acti terminado, acabara de vez para Para uma parte da nobreza ndo era apenas a degradacdo progres- siva da sua base material que se perfilava no horizonte: via também inuir 0 seu campo de actividade e as S Bis da leiresca que ndo res antes da tradi¢do cavaleiresc de a feprodurir aqui. © duque de Montiorency, fio. de um dos princi de Henrique 1V,revoltarase. Era. am homem Jas suas qualidades de principe e de cavaleiro, generoso, femerario e ambicioso, Tambem servia 0 seu rel, mas n20 ‘por que razio este, ou, mais exactamente, por - a governava sozinho. Assim, escolheu a insurreigfo, C i rs as fr0- ltto do rci, Henrique de Schomberg, colocara-se com as st numa posicgo eratgica destavoravel. as ougamos a dexeric30 ‘He Ranke: a ity Bra uma vantagem de que Montmorency no se quis aproveitar. ‘Ao Ver a hoste inimiga, propds aos seus passarem imediatamente a0 iWiaque, Para clo, a guerra era no essencial uma valorosa carga de ca- Yplitis. Uin companheio experimentaco, o conde de Rieux, suger He au esperassem que unas peas de artiatia aus etavam a che izassem 0 exército inimigo. cy estan’ as et icreprimivel de combater. Declarou q praticamente desaparecido, A realizacdo pessoal ¢ 0 prestigio que, a longo prazo, 36 a vida de corte podia dar, estavam completamente ausentes das possibilidades dessa fracedio da nobreza, Outros tinham encontrado na corte régia, em Paris ou na corte de um dos grandes senhores de provincia, um novo local para viver, alias bastante instavel. Para estes nobres tal como para os teis, of, ominios rurais assumiam cada vez mais o cardcter de ancxos de um Aétel na cidade ou da corte. Desde que n&o pertencessem ao niimero dos banidos nem dos caidos em desgraca viviam, pelo menos tempou rariamente, na cotte, mesmo que essa corte ainda nao fosse o seu do- icilio permanente. A. sociedade do tempo de Luis XIV jé era uma. Sociedade de corte. Um dos seus tragos caracteristicos era o papel im- is e brancas; atravessou o fosso com alguns companheiros cavam todos os que se The deparavam na corrida; ¢ foi com- Htendo. que chegaram ao rosso da Tormagio inimiga. Esperava-os Wn fortssima descarga de mosquetes: 0s homens esiram por terra, Fidos on mortos. O conde de Rieux e quase todos os seus compa {helros foram atingidos mortalmente pelas balas; 0 dugue de Mont cujo cavalo fora atingido, caiu por terra ¢ foi feito prisio- Ranke, foe. eit, Livro X, cap, Ill, pp. 315-316 165 Richelieu levou-o a julgamento perante um tribunal cujo veredic to era de antemfo conhecido; assim morreu decapitado o tiltimo Montmorency, no patio da Camara Municipal da cidade de Tou- louse. © acontecimento ¢ banal e sem incidén loa que se con- voncionou chamar a «grande historian, mas é tfpico e tem um valor Nao foram as armas de fogo propriamente ditas que puse- ram fim @ antiga nobreza mas a sua incapacidade de abandonar um modo de vida ¢ de comportamento em que se baseavam 0 seu respci- to proprio e o seu prazer. O exemplo mostra-nos que um comporta ‘mento que foi outrora realista se pode transformar, em consequéncia das modificagdes do contexto social, em comportamento irrealista, Porque os acontecimentos podem fazer diminuir as hipéteses de um campo ¢ aumentar as de outro. Compreende-se por que razio a ria do rei era inevitivel e como uma nobreza guerreita se transfor~ ‘mou numa aristocracia de corte relativamente resignada. Quando, atingida a maioridade, Luis XIV subiu ao trono, 0 des tino da nobreza jé estava tracado. A desigualdade de vantagens da \obreza e da realeza e a energia e a competéncia do representante do tei, que iniciou a luta tirando proveito da situagio, terminou com a expulséo da nobreza de todas as suas fe "Apesar da notoria fraqueza da posicao da nobreza, Luis XIV sen- tia-se de tal modo ameagado por ela, muito em especial pela alta no- 5 membros da sua propria casa que esse sentimento, for- os seus stibditos — era uma d Sempre que as quesides de predominio, de nivel hierar tigio ou de superioridade pessoal estavam em causa, 0 rei abandona- vva a impassibilidade que, como em muitos homens de corte, era a sua atitude face a problemas de ordem economica. Naqueles casos Luis XIV perdia o sangue-frio: apresentava-se tenso ¢ agia implaca- Yelmente, como, de resto, todos os outros cortesdos.. Nunca teve a ideia ot o desejo de se desembaracar pura e sim- plesmente da nobreza: a gloria e a prestigio do seu reino, a sua repu- facao como fidalgo, a sua necessidade de se rodear de uma sociedade e de um «mundo» cheios de distinetlo, a sua ascendéncia aristocrat ca, tudo 0 impedia de o fazer e sequer de o pensar, tanto como equilibrio das estruturas da sua dominacéo. Nao dependia dele man- ter ou deixar ruir a nobreza. Vimos que precisava dela por vérios motivos, A sua observagdo sobre a partida de Saint-Simon — «Mais tum que nos deixal» — € uma prova, entre outras, disso mesmo, Nao € de admirar que Luis XIV desse especial atencdo aos pelo seu nivel hierérquico, estavam mais prOximos da pessoa do na corte francesa pode observar-se uma particularidade estrutural d Estados dindsticos que € a existincia, apesar de todas as qualidades 166 ‘ wel de uma espécie de antagonismo entre os pretendentes a0 trono — frequentemente parentes do monarca — ou mesmo entre 0 erdeiro directo ¢ o principe reinante. Assim, Luis XIV via com mui- to maus olhos que o seu filho mais velho tivesse a sua corte em Meu- don, que «repartisse cortes», para usat uma expresstio da época. De- pois da morte do Delfim, Lufs XIV mandou vender a pressa 0 re- cheio do palécio, com receio de que os netos, que o herdariam, fizes- sem dele 0 mesmo uso e a corte se voltasse a «tepartir» Esta inquietacao era, na op) jint-Simon, absolutamente infundada. Nenhum dos netos d ja ousado desagradar ao mo- narea, Mas quando era do seu pres jagao do seu po- der que se tratava, Luis XIV nio fi membros da sua familia ¢ os outros nobres. ‘Alguns exemplos repugnantes permitem-nos fazer uma ideia exac- ta deste misto de recusa € ac iedade ¢ distanciamento que caracterizavam as rclacdes mobreza, Certo dia o rei quis, como era seu costume, ir do seu paldcio de Marly para Versalhes. Partia-se do principio do que toda a corte © ‘em especial os seus parentes mais proximos o deviam acompanhar. Ora a duquesa de Berry, esposa de seu neto, estava gravida pela pri- meira vez, de trés meses. Nao se sentia bem e tinha febre alta, Fa- gon, médico pessoal do rei e da familia real, era de opiniao que a viagem para Versalhes nao era compativel com o estado da jovem duquesa. Mas nem esta nem seu pai, 0 duque de Orléans, ousaram. referir 0 assunto ao rei, O marido fez ao rei uma alusto que foi mal recebida. Tentaram que a senhora de Maintenon interviesse ¢ esta, embora achasse que a empresa era muito arriscada, acabou por falar ao rei, apoiada no conselho do médico. O pedido foi rejeitado. A se nhora de Maintenon e 0 médico insistiram ¢ a discussao prolongou-se durante trés ou quatro dias. O rei zangou-se mas cedeu, ou seja, con- sentiu que a duquesa adoentada fizesse a viagem de barco, em vez de usar um coche real. A duquesa ¢ o duque dev ixar Marly um dia mais cedo ¢ passar a noite no Palacio Real; depois de um dia de repouso, segairiam viagem, O duque obteve licenga de acompanhar a esposa mas o rei proibiu-o de sait do Palacio Real, nem sequer ir & Opera, embora houvesse uma passagem directa do palacio para 0 ca~ marote do duque.. «Nao perderia tempo a descrever esta bagatela que aconteceu du- ante a viagem — acrescenta Saint-Simon — se nao servisse para des- erever melhor 0 earacter do rei.» C7) Se o rei usava estes processos quando se tratava da sua autorida- de € do seu prestigio no pequeno circulo dos seus parentes mais pr6- ximos, nao era menos brutal quando a sua dominacao propriamente (2) Saine Simon, Mémoires, vol. X cap, 308, sp. 107, p. 24 I. 167 dita estava em jogo. Assim, no tolerava sob que pretexto fosse que nenhum dos seus parentes obtivesse qualquer cargo que Ihe puidesse dar influéncia, Luis XIV munca esqueceu 0 apoio que 0s postos no governo tinham constituido para os rebeldes no tempo de seu dificuldades que seu tio, Gastdo de Or cudado na sua posi¢ao de governador, seu espirito. Por isso, quando seu irm&o lugar seguro» respondeu-lhe de Franea & 0 coragao do tei 1e pedity um goyerno eum ‘O lugar mais seguro para um filho ‘A nobreza est pois domesticada, Como suportar ¢ dependéncia que € a0 mesmo tempo uma humilhagao? De que modo demonstra a sua resisténcia interior, j de resisténcia Ihe esto pr estado de dependéncia total reflectem-se directamente na da corte. Estaria a nobreza interiormente domada e décil ou sera pos- sivel encontrar nas suas relagdes com o rei, mesmo no enquadramento Pacificado da corte de Luis XIV, uma ambivaléncia de altitudes? Os nobres acorrentados corte de Luis XIV dispun para responder — sempre nos limites preseritos pela propria igo — ds situagdes conflituosas resultantes da sua atitude am. bivalente perante o rei e para realizar as suas vides realizando-se a si proprios. Sentiam talvez que os vexames ¢ as humilhagdes que suportayam a0 servigo do rei eram t&0 bem recompensados pela consciéncia de serem influentes na corte, pelos ganhos financeiros e de prestigio de Que beneficiavam que a sua antipatia pelo rei e 0 seu deseio de se li. bertarem do jugo podiam ser sublimados; no se manifestavam, nes te caso, sendio por via indirecta como, sas com outros nobres. De todas as espécie de caso extremo. A sua encarnagao mai de La Rochefoucauld, guarda-roupa do re Um nobre de corte podia, pelo contrério, dar preponderaincia aos aspectos negativos da sua relago com o rei. Era-lhe facil formular, em conversas privadas ou no circulo dos seus familiares, eriticas se. Yetas ao governo régio e propor planos para o estabelecimento — apés a morte do monarca — dos direitos da nobreza face a alte nobreza ¢ aos ministros de origem plebeia. Enquanto Luis XIV foi vivo, a oposigo sé dispunha de um meio realista — pondo de parte © abandono da corte — para p6r fim a «reputacdo» do nobre: entrar em. contacto com o sucessor ao trono e tentar capté-lo para as suas ideias. A resisténcia aberta era absolutamente impossivel. O de que passava pelo Delfim foi o meio escolhido por Saint-Simon, Este descreve-nos 0 tipo do cortesdo sob a aparéncia fisica do duque de La Rochefoucauld: a era 0 duque Iho do autor das Méximas, grao-mestre do 168 Ld Se 0 Senhor de LLa Rochefoucauld viveu toda a vida sob o favor mais declarado, também € preciso dizer que isso the custou muito ca~ se teve alguns sentimentos d i r lacaio de ninguém com tanta assiduidade e, & preciso dizél, inta baixeza, de forma to propria de um eseravo. Nao é f tender que possa ter havido alguem que tenha aguentado mais. de jafenta anos semelhante vida. O levantar¢ 0 delta, as dvas outa mudangas de trajo durante 0 dia, as eagadas © os passeios do rey também todos 0s dias; nunca faitou a nada, as vezes durante dez anos a fio sem dormir sendo onde o rei don bara se ausentar, nfo era para dormir nouto slenta anos no deve ter dormido mai thas pata ir jantat fora da corte e nfo poder apresentar-se a0 pat : munca esteve doente a nao ser no fim, mas raramente, por cau- 38) , inarmos a carera dese omen, vemos que seu pai = ira durante as Tutas da Fronda: nunca foi A corte por perdoara a sua rebeldo. Assim, o filo chees.& corte sem fagens: «ninguém 0 reveavan, explica Saint-Simon. Begiuitatesgorn idades. As suas esperaneas como herdeiro jimas porque a familia perdera a maior parte da fortuna du- les tempos conturbados. Como se isto tudo nao bastasse, a a no 0 favorecia. De qualquer maneira, acabou mnevolénca do rei, Assim comoyou a sua ascensio i «monteito-mor» e de hierarquia da corte. Obteve 0 cargo de «moni \gpdo-mestre do gvarda-roupa>. Mantinha relapses de amizade com a Senhora de Montespan, a amante do rel. Quando esta se afastou da ort, detou de et qualquer apoio além do do prépso ei es 0 jsamente apreciava nele. A imbricagiio das * dias sarge aqui com nitidez. Como La Rocheloueauld tina benef ciado dos favores da Senhora de Montespan, as suas relagdes com a substituta, a Senhora de Maintenon, estavam de antemao comprome- fidas. Entendia-se mal com os ministros. Os outros meios corteses também 0 evitavam. O rei pagou-lhe por trés vezes todas as dividas e acedeu a muitos dos seus pedidos, se nao a todos! Mas exigia enor- mes contrapartidas. © duque podia falar abertamente com 0 rei, sem consideraeto por terceros; o rei estimava-o, Os outros receavam-ne Drecisamente por isso. Se tomara o partido de por a sua vida a0 ser Vigo do rei, ndo fora por livre escolha mas porque dependia tora. mente dele. Pobre, lho de um rebelde; Eee , sem a aparéncia fisica agradavel que 36 abrir tiguins portas 0 duque de La Rochetouceula nfo take futuro: 0 rei tinha-o tirado do nada. relagd (0) Saint-Simon, op. cit cap. 204, p. 71 169 O destino deste cortesao € a varios titulos exemplar: os filhos de rebeldes quando recuperam a benevoléncia do rei tornam-se os seus servidores mais dedicados, «Esta histéria de La Rochefoucauld & parecida com a de Condé © principe também se tornou corteso; seu filho nunca sair de a0) © neto acabaré por casar com uma filha bastarda do rel, Os La Rochefoucauld © os Condé passaram da revolla & serviddo.» (8) jon deu-se 0 inverso: seu pai fora louvado por Luts XIII com altos cargos ¢ grandes dignidades. Fora confidente do rei, defendera — mesmo depois da morte de Luis XII — com leal dade imperturbavel a causa da realeza, apesar de os nobres da oposi- sfo terem feito grandes esforgos para ‘0 atrairem A sua causa, Saint= Simon, 0 autor das Memdrias, fez assim a sua entrada na corte au. ido de gloria ¢ dispondo de uma fortuna consideravel, Escusado serd dizer que também dependia do rei: como ele proprio afirma por Vatias vezes, 0 desagrado do rei teria sido o fim da sua existéncia so, cial. De qualquer modo}.a:sua dependéncia era incomparavelmente menor que a de La Rochefoucauld. este titulo, gozava da mais ampla auto- nomia. Bem 0 demonstrou quando renunciou s suas fungdes milita: Tes em resposta a uma injustica de que fora vitima, Chegou a es que o rei lhe confiasse um posto na diplomac na corte sem nela ter nenhum cargo, apenas obrigado aos seus deve. tes de duque © par de Franca € &s recomendardes que o rei ditigia a todos os membros da alta nobreza. Depois da morte do primeiro e do segundo Delfim, o duque de Orléans passava aos olhos de toda a gente pelo futuro Regente, Duc rante algum tempo Saint-Simon foi a tinica pessoa que manteve r 0es com ele, Todavia, Luis XIV nao admitia que alguem fosse ami g0 do duque, que era considerado responsdvel pela morte de seus ne. tos. Assim, © duque de Orléans estava completamente isolado, “A. acreditar em Saint-Simon, foi ele durante algum tempo a inica pes- seou com ele nos jardins de Versalhes até que o seu desprezar e 0 inti a afastar-se da corte por algum tempo, se ndio queria ser definitivamente banido. Saint Simon obedeces Uma atitude independente s6 era possivel nesses estreitos limites. Mas a independéncia de Saint-Simon ja se mostrara antes, nas © neto de Luis XIV. A deseri- “i © ameagou com 0 suas relagdes com 0 segundo Del glo dessas relagdes e do mundo de ideias que as conversas entre esses homens revela tem um enorme interesse porque nos permite conhecer ° Lavisse, «Louis XIV», pp. 103-104, 170 ‘a psicologia do sector da nobreza animado por um sentimen- Josi¢ao ao rei. Hira presso.demonstrar uma enorme prudéncia antes de ser poss encetar na corte 0 dislogo entre estes dois homens que ainda se to bem: ie oni err diz-nos Saint-Simon, poulasim eo ° satin . it lias di Hi juma Oca: eiros dias da sua nova gloria... Nao perdi nenh ins ar uma palayra sobre a nossa dignidade... Disse-lhe some ‘he parecia que ele tinha arzio em nao perder de vista nenhum dos itimos direitos, mesmo os mais infimos; aproveitei a sea Mincia favordvel para Ihe dizer que se ele, apesar da sua gran¢ ae “da sua posicdo, tinha mil vezes razao em velar pela sua manutencdo, Wig &famos mais obrigados a isso, ja que tantas vezes Viamos eo 9s ¢ até nos espoliavam deles sem que ou- jeM0s Sequer queiKar-nos.. 5 : On conversa eneaminhou-se para 9 rel. © deli referiu-o om muita ternura ¢ gratidao; declarei-me animado dos mesmo: ‘muitos assuntos aos nsesivel i viva, ressondncia. @ corda, ao ser vibrada, produziu uma viva a ‘admitiu o bom fundamento do que eu acabara de dizer ¢ os ministros. Desenvolveu 0 tema da autoridade que tisham usurpado e que wsavam mesino em relagao 80 rma perigosa como a exerciam, da imp ade de fazer jegar ao rei algumas mensagens ou de as receber sem que eles i m, Nao referiu nomes, mas deu-me a entender sem equivoco que esta forma de governo era contraria aos seus gostos € aos seus cipios. i Pavellando a falar do rei deplorou a mA educagao que Ihe ti har duo a milos pemnisiosas em que (antas vere caira desde nto, Daste modo ¢ como, sob 0 pretesto da polticae da autoridade, todo © poder cara nas mags dos ministros, 0 corardo do rel que era Born justo por natureza fora constantemente desviado do bom camin} ue ele desse por isso. ‘i 3s Para com os duques e mesmo pesoas de condi¢o ainda mals slevada, Exaltou-e por nos terem recusado o titulo de Monsenho quando os proprios ministros 0 reclamavam para si ¢ nfo tinham is direitos a ele que 0s da ‘toga’. iano afin en dsrever como ea inscléni o chon ¢.a que ponto desaprovava que a burguesia fosse assim distinguida ¢m detrimento da alta nobreza.» (!) ) Saint-Simon, Mémoires, cap. 106, p. Sess m Nesta fase final vem mais uma vez ao de cima o problema de fundo! Sob a capa do absolutismo, o antagonismo entre a nobreza e a burguesia con! mesma dureza. Nao obs- ‘ante @ amizade que ligava alguns nobres, incluindo o proprio Saint. -Simon, alguns ministros, apesar dos casamentos das filhas de ale ministros com nobres de corte, esta tensdo essencial do campo soci em geral também se manifesta no grupo central da cotte, embora sob outra forma, Saint-Simon tem evidente prazer em ci mirével» do velho marechal de Villeroy go um primeiro-1 i que por amigo um bur- gues» (4), Esta conversa traduz ao mesmo tempo, sem ambiguidades, 4 atitude ambivalente da nobreza para com o rei; nao € certamente Por acaso que uma mesma frase exprime simultaneamente a oposigdo da nobreza ao rei ¢ & burguesia arrivista. Ea evocagdo dos dois peri. 40s paralelos que ameagam a exi la nobreza. Esta atitude esta ainda mais patente nas reflexes que Saint-Simon, nas suas Memé- Fias, atribui ao Delfim, depois da morte deste: elas tevelam, de facto, © pensamento de Saint-Simon, a situagdo e os projectos da nobreza de corte que secretamente se opunha a Luis XIV: <0 aniquilamento da nobreza era-Ihe odioso e a sua igualdade in- terna insuportavel. Esta tiltima novidade, que s6 cedia nas dignidades ndia o nobre com o fidalgo e todos com os senhores pa- justicas € esta falta de graduacio uma causa capaz de arruinar e destruir um reino, Lembrava-se que 0 monarca ho tempo de Filipe de Valois, de Carlos V, de Carlos VIL, de Luis XII, de Francisco I ¢ dos seus netos, de Henrique IV, s6 ficara 8 dever a sua salvardo a essa mesma nobreza que nao se conhecia en- tte sie se mantinha nos limites das suas diferencas reciprocas, que ti ha a vontade e os meios de se pér ao servigo do Estado, em bandos € Por provincias, sem dificuldade e sem confustes porque nenhum ia do seu estado e no punha objeccdes a obedever a um seu supe rior em estado. Em contrapartida, via esta entreajuda destruida pelos contrérios: em breve néo haveria ninguém que nfo se considerasse a todos e, por consequéncia, ndo passaria a haver nada de or. ido, nao haveria comando e acabaria a obediéncia. «Quanto aos melos, o delfim estava profundamente impressiona- do com a ruina da nobreza, com caminhos abertos sempre seguidos para @ levar a ruina e garantir que ela assim permanecesse, com 0 ebastardamento que a miséria e as misturas de sangue produzidas pe- Jos maus casamentos, necessarios para ter po, tinham produzido nas coragens, no valor, na virtude ¢ nos sentimentos. Estava indignado Pot ver que a nobreza francesa, to célebre, tdo lustre, se tornara scburgutsy tem im travo depreciat ta ent a burguesia © o proletaiado me {eéricos do provetariado foram busct-lo 4 rosiedade de corte ue no nascev da © a nobreza, Os In um poyo quase igual ao proprio povo © s6 se distinguia dele pelo fac- fo de 0 povo tet liberdade de tabalhar, de fazer negboion, a de usar armas, a0 passo que @ nobreza se tornara outro povo que nao ti ‘opstio sentio a de uma ociosidade letal e ruinosa que pela sua inutilidade para tudo se toma um alvo de desprezo, ou enido ir ara a guerra para ser morta, através dos insultos dos agentes dos se- ctetérios de Estado ¢ dos seus secretérios e intendentes, sem que os maiores de toda esta nobreza, maiores pela sua dignidade ou nas. em os colocar fora desta ordem, os situa acima itar esse mesmo destino de inutilidade nem os desgostos es diio os mestres da pluma quando seryem nos exércitos... «ste principe ndo se conformava com o facto de nao ser possivel governar 10 todo ou em parte, se ndo se tivesse sido pri- meiro oficial de diligéncias © que fosse nas maos da juyentude dessa 8 as provincias para serem gover- sob todos os aspectos e s6s, cada um a sua, & sua ple- io, com um poder infinitamente maior ¢ uma auto- ridade mais livre € mais total que a que os antigos governadores des- ©) sas provincias alguma vez sonharam te Esta critica e este programa de um circulo de opositores da corte poem vez, em evidéncia, no seu conjunto, o problema que constitui © objecto do nosso estudo. ‘Chamémos a atengao do leitor para a existéncia na corte de um estado de tenso bastante caracteristico entre os grupos e as pessoas ue $6 a0 rei deviam a sua ascensfo ¢ aquelas que se orgulhavam de m titulo de nobreza herdado; era jogando nessa tensao que o rei go- Yetnava a corte, Mostramos igualmente que o equilfbrio de forcas no teino era outra das condigdes da dominapto do rei ¢ que ela propi- ava aos seus representantes a oportunidade de fazerem essa extraor- dinaria concentragto de poder que deu origem ao monarquia absolutista. As tenses na corte © 0 eq no reino sto particularidades estruturais de uma dada fase da cvolu- gilo da sociedade francesa no seu conjunto ¢ da formacio s0- ‘ial enquanto todo. Apoiando-se na forga crescente das camadas burguesas, 0 rel ia stanciando cada vez mais do resto da nobreza e vice-versa. Ao mes- mo tempo, ia favorecendo a ascensto de certos grupos burgueses; da vaslhes oportunidades econémicas, bem como oportunidades de pres- igio concedendo-lhes cargos, mas também os punha em xeque. A burgucsia © a realeza fortaleciam-se gragas a um apoio miituo, en- quanto a nobreza per formacao burguesa 0% tragio — a que Saint-Simon alude quando fala da «ma; da «plumay — ultrapassavam os limites que 0 rei Ihes Saint-Simon, op. ct, cap. 322, p. 222 €., 173 este metia-os na ordem com a mesma brutalidade com que tratava os 1t6 certo ponto a decadéncia da nobre- posto em risco a sua propria existén- ia @ retirado todo o significado & sua propria func&o; era para lutar contra a nobreza que o rei tinha necessidade das camadas burguesas ‘A nobreza perdera muitas das suas antigas funcBes, a administracao, fa justica © até uma parte das fungées militares, em beneficio dos gru- ‘pos burgueses; a maioria dos cargos governamentais estava também confiada a burgueses, 'A niobreza que assim perdeu, uma a uma, todas as suas fungdes tradicionais acedeu, no entanto, a uma funcao inédita ou, mais exac- recuperou uma fungao muito antiga que deixara de estar em primeiro plano: a de ser a nobreza do rei Habitudmo-nos a ver na nobreza do antigo regime uma camada sem funeao. Esta perspectiva justifica-se se concebermos a fungio ‘com fazendo parte de um encadeado de fungdes no interior do qual cada camada ou grupo satisfaz num dado campo social, directa ou indirectamente, as necessidades de todos os outros grupos; encadea- ‘mento de fungSes que se observa por vezes nas nagdes burguesas pro- fissionais. Ora a nobreza do antigo regime nao tinha nenhuma fun- co para a «nacéo». ‘Mas 0 encadeamento de fungdes, ‘d@ncias do antigo regime eram, sob mi de uma «nacdo» burguesa. E impensdvel que a nobreza francesa se jido manter se nfo tivesse nenhuma fungi. Para a «na- ou de «Estado» en- te na consciéite:s dos , OW seja, 0s eis € Os . J& tivemos ocasiéo de mostrar que para seus representant Luls XIV a finalidade especifica desse campo social era o rei e que, na sua consciéncia, todos os outros factores da autoridade real nao serviam senfio para exaltar e conservar o rei. E neste contexto que se justifica a afirmaeao de que a nobreza nao tinha qualquer fungaio pa~ Ya a cnagdom mas que tinha uma funedo para o rei. A sua domina- co baseava-se na existéncia da nobreza, que contrabalancava a bur~ guesia, e na da burguesia, que contrabalancava a nobreza. E foi esta fungi que deu precisamente a nobreza de corte 0 seu cardeter espe- effico. E fécil compreender que a transformacao de uma nobreza rel vamente independente numa nobreza de corte implica também transformagao e uma reesiruturacao da sua As reflexdes de Saint-Simon que transcrevemos poem em evidéncia que no reina- do de Luis XIV a nobreza ainda se opunha com vigor a essa reestru- turag2o, a que se pusesse em causa a ordem aristocratica pri ‘ou, pelo menos, tradicional, em beneficio de uma ordem nov 1m posta pelo rei. Mostram que a nobreza do tempo de Saint-Simon ain- da sonhava com 0 restabelecimento da velha nobreza independente. Valha a verdade, a realidade nua e crua escapava e con’ caparlhe: a nobreza estava mais ou menos 4 mercé do sim como tinha 0 cuidado de manter no seu reino 0 eq bburguesia e @ nobreza também faria na corte uma politica que procu- tava resistir & press da velha nobreza pela valorizagdo do elemento burgués ou por um tratamento de favor concedido aos membros da nobreza que nao deviam 0 seu pader e 0 seu prestigio aos titulos her- dadgs mas apenas benevolencia do rei E contra esta politica que Saint-Simon se insurge; ¢ esta que desenvolve as caracteristicas humanas que consideramo: dos homens da corte. No inicio desta exposiedo, levantamos o problema das condigdes sociais que permitem @ uma instituigo como a corte reproduzir-se de geragio em geraglo. A resposta é a seyuinte: a nobreza precisava do rei porque so @ vida na corte the oferecia condigdes economicas € condigoes de prestigio sem as quais nao poderia levar uma vida aris- tocrética, O rei precisava da nobreza: vigos particulares que ela the esse fer posto um firm & sua I nobreza, que prolongava a antiga relacdo entre o suseran salos; mas tinha necessidade da nobreza pera garantir 0 eq) nfmico entre as camadas sociais que constitulam a sua base de apoio. E falso ver no rei apenas o opressor da nobreza; & igualmente fal- s0 ver nele apenas o seu conservador. Na realidade o rei era simulta neamente as duas coisas e seria igualmente errado ver a relagio entre © tei € a nobreza apenas na perspectiva da dependéncia desta em re- Jago Aquele. O rei dependia em ceria medida da nobreza — tal co mo qualquer monarea depende sempre daqueles sobre quem reina ¢ io em especial dos grupos elitérios. Embora o rei dependesse em tga medida da existéncia da nobreza para salvaguardar as con des eminentes de poder da sua posigao social, € evidente que pendEncia de cada nobre em relacdo ao rei cra inf \dependéncia do rei em relagdo a qualquer nobre, tomado iso mente, Se umn determinado nobre desagradasse ao rei, este dispanha de um verdadeiro «exército de reservay gracas 0.4 i fubstituir um nobre por outro. E esta balanca de interdependéncias, ex pudesse ter passado sem os set- Sa repartigo das dependéncias que dava a instituic&o especifica a Que chamamos «corte» as suas caracteristicas proprias — abstraindo {08 ministros e outros funcionarios recrutados na burguesia ou na no- bbreza de toga, que faziam parte da corte mas que, embora podero- io passavam de figuras marginais da sociedade de corte. Neste io de tensGes, os dois grupos mantinham-se como. dois 195 ir boxeurs num corpo @ corpo: nenhum se arrisea a mudar de posiclo com medo que isso beneficie 0 outro; e nao havia nenhum arbitro para separar os lutadores! As interdependéncias compensavam-se de waneira que a atrac¢4o ¢ a repulso reciprocas praticamente se am. Jé vimos que, durante a fase final deste regime, mesmo os sitta- dos mais alto na escala hierérquica, ou seja, o Tei, a rainha, os mem- bros da casa real com as suas damas ¢ 0s seus cortesaos eram de tal io cerimonial e da etiqueta que verga- jo que cada ac¢do, cada gesto, izava 05 privilégios de determinada pessoa ou de determinada & etiqueta podia provocar 0 desagrado ¢ a oposi¢do activa de o legiadas, rem wu-se a qualquer modificag&o com receio de que, atacando os pri légios dos outros, se acabasse por prejudicar os proprios. A etiqui corte simbolizavam de certo modo as inter-relagbes, regime em geral. Quer se tratasse de um mono- sobre determinados cargos, de um direito sobre certas fontes de 10 ou vantagens de titulo e de prestigio, toda a gama dos privilégios, ndo s6 da familia real como da nobreza de espada, de to- ga, dos grandes arrematadores de impostos ou dos grandes financei- Tos — que, apesar de numerosas relac6es horizontais, cram nao obs- ie dotados d forte para aumentar ou diminuir os pri ites, ¢ adaptar assim a rede das tensOes as nec« is XIV, com toda a sua vasta fami mo regulador das interdepenc se em grande medida ser controlad9 Em vez de 0 controlar por ele, Semelhante a um movimento perpétuo fantasma, forgava to- dos aqueles que constitulam as suas engrenagens a defenderem, em permanente emulagio, a base privilegiada da sua existéncia e a rem-se demasiados para os lugares disponiveis. Era este «corpo-a- “corps que imobilizava os grup« que uma deslocacao do centro de gravidade produzisse o seu pr contra esta paralisia que chocaram todas as tent , da iniciativa de homens pertencentes as elites privilegia- das, para fazer reformas, mesmo moderadas, do sistema de dor cdo. Houve muitas tentativas, houve mesmo uma superabundéncia de propostas de reestruturago. Mas s6 raramente se baseavam numa anélise realista das formac6es privilegiadas. Ora, a necessidade de uma reforma impunha-se cada vez com maior evidéacia, pois a press4o exercida pelos grupos nao-privilegia- 176 J contra os grupos privilegiados aumentava constantemente. Mas fa compreender bem esta situagao € preciso nunca perder de vista © fosso que, numa sociedade como a do antigo regime — e apesar da yel de vida das populagdes era completamente alheia & maioria destes homens. Nao era, a seus olhos, um valor. A manutenc4o dos privilé- ‘ios da sua existéneia Social era, para eles, um valor em si, O destino das massas estava para além do seu horizonte ¢ despertava a maioria, dos privilegiados uma grande indiferenca. Mal se apercebiam das lavam sobre as suas caberas. Como era impos quebrar gelo das tensdes sociais congeladas nas camadas dirigentes tudo foi arrastado pelo maremoto que se desencadeou sob essa cama- da de gelo, 1G0es, Outra estrutura de dominacao caracterizada por 10 de forcas e outro equilibrio de tensoes. Embora o Pi maerecesse um exame mais aprofundado, a nossa anélise afirmar que a imagem vulgarmente utilizada da & simplesmente um método que visa assegurar a0 objecto do nosso estudo uma maior distancia, uma maior autonomia face aos eritérios de valor, frequentemente fiteis ¢ efemeros, que decotrem das grandes opgGes ideoldgicas com que 0 inyestigador se debate. S6 dando aos objectos do nosso estudo uma maior autonomia — critério de valor fundamental — conseguiremos ‘eseapar 20 dominio dos valores heterénomos que assaltam o investi- gador que parte 4 descoberia do homem. E substituindo os valores heteronomos por valores auténomos que podemos continuar a ter al- fpuma esperanga de entrar em contacto mais proximo com o contexto dos factos, com a rede de interdependéncias do objecto dos nossos estudos, de poder elaborar modelos dessas interdependéncias, mode Jos que nao corram 0 risco de serem desagregados pelos nossos pre= conesitos € as nossas ideologias. Tals modelos tém @ vantagem de permitir as geracdes vindouras retomar 0 nosso trabalho ¢ assegurar lima maior continuidade & pesquisa sobre o homem. © panorama da sociedade de corte tal como se reconstitui com 0 nosso estudo constitui, em pequena escala, um modelo como os que Teferimos. Vimos que’ os homens desse sociedade mantinham lagos 180 reefprocos — constitulam formagdes — que eram, sob miiltiplos as- pectos, muito diferentes dos que mantém entre si os membros das so- Ciedades industriais e que diferentes sao também a sua evolucao ¢ Seti comportamento. Esta alteridade dos homens que pertenceram a sociedades diferentes nao foi interpretada, no decorrer da nossa and- lise, numa perspectiva relativista, como uma coisa estranha ou bizar- ra nem foi reduzida, numa perspectiva absoluta, a alguns elementos Guniversalmente e eteriamente humanos». Vimos que a determinagao das interdependéncias nos permite deixar aos homens de outras socie- dades o seu caracter especitico, diferenciado, continuando a encara-los como seres humanos colocados num lugar e numa situa- go em que nos podemos pér a nds proprios, com os quais nos pode- mos identificar por uma atitude essencialmente humana. ta observago nfo se aplica apenas 20 rei, que pela sua posigao social pode parecer uma individualidade absolutamente auténoma e ndo dependendo de ninguém; aplica-se também aos membros da no- bbreza desde que nos démos ao trabalho de os destacarmos, com o seu perfil proprio, da massa anonima dos nobres. Aplica-se ao duque de Montmorency. O seu fim, que tem 0 valor de um exemplo, ilumi- nna de forma brutal alguns tragos do seu cardcter. Faz sobressair tam~ ‘bém a deslocacéo do centro de gravidade da estrutura social que, de~ pois de muitos movimentos pendulares na luta tenaz entre a nobreza @ a realeza, acabou com a vit6ria desta iltima. Permite compreender melhor a atitude respectivamente de Saint-Simon e a de La Roche- foucauld, visto que nos damos conta de que ambos tendem, nos limi- tes da margem de manobra de que a aristoctacia dispunha na corte de Luis XIV, para polos opostos. A ideia de que as andlises sociolo- gicas nivelam e esbatem a imagem do homem enquanto individuo tanto mais justifiada quanto se apliquem a investigacdo teorias ¢ métodos sociolégicos que, em vez de verem nos fenémenos s formaedes de individuos, os situem para fora e para além dos it duos. Conseguiremos atingir um nivel de compreensiio mais vivo € mais profundo da individualidade de cada ser humano se o situarmos no interior das formagdes que ele constitui com outros seres huma- nos: 181

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