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65 ‘Antropologia culeural antropologia moderna reside, a meu ver, na énfase exagerada que da A reconstrugao histérica — cuja importancia nao deveria ser minimizada — como algo oposto a um estudo aprofundado do individuo sob a pressao da cultura em que ele vive. Raga e progresso* 1931 Permitam-me chamar atengao para 0s aspectos cientificos de um. problema que hé muito tem agitado nosso pais e que, pelas suas implicagdes sociais € econdmicas, tem suscitado fortes reagdes emocionais e produzido diversos tipos de lei. Refiro-me aos pro- blemas surgidos com a mistura de tipos raciais. Se desejamos adotar uma atitude sensata, é necessério sepa- rar claramente os aspectos bioldgicos e psicol6gicos das implica- Ges sociais € econdmicas da questo. Mais ainda, a motivagao social daquilo que est acontecendo precisa ser examinada, nado do estrito ponto de vista de nossas condigdes presentes, mas de um Angulo mais amplo. (0s fatos com os quais estamos lidando sio diversos. O siste- ma de plantation do sul dos Estados Unidos trouxe parao pais um grande contingente de populagao negra. Consideravel mistura ocorreu entre senhores brancos € mulheres escravas durante 0 periodo da escravidao, de forma que 0 nimero de negros puros foi diminuindo continuamente, e a populagio de cor tornou-se gradualmente mais clara. Houve também uma certa mistura en- tre brancos e indios, mas, nos Estados Unidas e no Canad, isso nunca se deu num grau suficiente para transformar essa mistura ‘num importante fendmeno social, Com o aumento da imigrasao, Conferéncia proferida no encontro da American Association for the Advancement of Science, Pasadena, 15.6.1931. Franz Boas estava entio sssumindo a presdéncia da assocagio. [87] 7 6 Antropologia cultural uum contingente populacional do sul e do leste da Europa viu-se atraida para os Estados Unidos e atualmente compée uma im- portante parcela de nossa populagio. Esses migrantes diferem entre si segundo alguns tipos, embora os contrastes rac eles sejam muito menores do que os existentes entre indios, ne- gros e brancos, Outro grupo chegou ao nosso pafs com a imigra- «20 do México e das Antilhas, parte deles de descendéncia sul-eu- ropéia, parte de descendéncia negra ou india misturada. A to- dos devem-se adicionar grupos chineses, japoneses ¢ filipinos, {que exercem um papel particularmente importante na costa do Pacifico, is entre primeiro ponto em relagio ao qual necessitamos de escla- recimento refere-se ao significado do termo raca. No linguajar comum, quando falamos de uma raga, queremos denotar um grupo de pessoas que tém em comum algumas caracteristicas corporais ¢ talvez também mentais. Os brancos, coma pele clara, 608 cabelos lisos ou ondulados e narizes afilados, so uma raga claramente distinta dos negros, com a pele escura, cabelos cres- pos e narizes achatados. Em relagao a esses tracos, as duas rag sdo fundamentalmente distintas. Nao tao definida ¢ a distingao entre tipos asiéticos orientais ¢ europeus, porque ocorrem for- mas de transi¢do entre individuos brancos normais, tais como rostos achatados, cabelos negros isos e formato dos olhos pareci- dos com os dos tipos asiaticos orientais; inversamente, tragos de tipo europeu sao encontrados entre asiaticos orientais. Em rela- 680 a negros e brancos, podemos falar de tragos raciais herediti- trios, & medida que nos referirmos a essas caracteristicas radical- ‘mente distintas. Em relagZo aos brancos e asiaticos orien diferenga nao é tio absoluta, porque podem ser encontrados al- guns poucos individuos em cada uma dessas racas aos quais esas caracteristicas raciais nao se aplicam bem; por isso nado cabe falar, em sentido estrito, de tragos raciais hereditérios to- talmente validos. Raga € progresso 9 Essa condigdo prevalece numa extensio muito mais mar- cante entre as diferentes ragas assim chamadas européias. Esta- ‘mos acostumados a nos referir aos escandinavos como altos, loi- 10s € de olhos azuis; a um italiano do sul como baixo, moreno e de olhos escuros; a um boémio como de porte médio, olhos mar- rons ou cinzentos, rosto largo ¢ cabelos lisos. Estamos aptos a construir tipos ideais locais baseados em nossa experiéncia coti- diana, abstraidos a partir de uma combinagao de formas mais freqtientemente vistas numa dada localidade, € nos esquecemos de que hi imiimeros individuos para os quais essa deseriga0 nao é verdadeira. Seria um empreendimento temerario determinar a locali- dade na qual a pessoa nasceu unicamente a partir de suas carac- teristicas corporais. Em muitos casos, podemos ser auxiliados em. tal propésito por maneiras de arrumar o cabelo, maneirismos peculiares de movimentos e pela indumentéria, mas esses tragos nado devem ser tomados de forma equivocada como essencial- mente hereditérios. Nas populagoes de varias partes da Europa encontram-se muitos individuos que podem tao bem pertencer a uma parte do continente quanto a outra. Nao ha verdade na ale- ‘gagdo tantas vezes formulada de que dois ingleses se assemelham. mais em formas corporais entre si do que, digamos, um inglés e um alemao, Um maior ntimero de formas pode se duplicar na dea mais restrita, mas formas similares podem ser encontradas, por todo o continente. Hé uma sobreposigao de formas corporais, entre os grupos locais. Nao 6 justficavel supor que individuos que nao se encaixem no tipo ideal local, que se constr6i a partir de impressdes gerais, sejam elementos estrangeiros a essa populagao, e que sua presen- ‘ga sempre se deva & mistura com tipos alienigenas. Uma caracte- ristica fundamental de todas as populagdes € que os individuos diferem entre si, ¢ um estudo mais detalhado mostra que isso & vilido tanto para os animais quanto para os homens. Nesses ca- 80s, ndo € portanto apropriado falar de tragos hereditérios no 7 Ancropologia cultural tipo racial como um todo, pois muitos deles também ocorrem em. outros tipos raciais, Tra¢os raciais hereditarios deveriam ser com- partilhados por toda uma populacao, para que se pudesse realcé- los em contraposigao a outras populagées. Oassunto é bem diferente quando os individuos sio estuda- dos como membros de suas préprias linhagens familiares. Here~ ditariedade racial implica necessariamente a existéncia de unida- a existéncia, numa certa época, de um pe- queno mimero de ancestrais de formas corporais definidas, dos quais a populagio atual descende. & praticamente impossivel re- construir essa ancestralidade pelo estudo de uma populagao mo- derna; mas muitas vezes é possivel o estudo de familias que se estendem por varias geracoes. Sempre que ele foi realizado, des- cobrimos que as linhagens familiares representadas numa dada populagao diferem muito entre si, Em comunidades isoladas, nas 4quais as mesmas familias casaram entre si por varias geragdes, as diferengas sdo menores do que entre comunidades mais amplas. Podemos dizer que cada grupo racial consiste de muitas linha- gens familiares que sdo distintas em formas corporais. Algumas dessas linhagens estao duplicadas em territérios vizinhos; e, quanto mais duplicacao existe, menor é a possibilidade de falar- mos de caracteristicas raciais fundamentais. Essas condigdes sa0 to manifestas na Europa, que tudo o que podemos fazer ¢ estu- dar a freqiiéncia de ocorréncia de varias linhagens familiares por todo o continente. As diferengas entre as linhagens familiares pertencentes a cada drea mais ampla sio muito maiores do que as diferengas entre as populagdes como um todo. Embora nao seja necessério considerar as grandes diferen- 4,28 de tipo que ocorrem numa populagao como fruto da mistura de diferentes tipos, é facil perceber que a mistura desempenhou ‘um papel importante na histéria das populagées modernas, Re- cordemos as migrages que ocorreram em tempos antigos na Eu- ropa, quando os celtas da Europa ocidental espalharam-se pela Italia ¢, no sentido leste, até a Asia Menor; quando as tribos teu- Rasa ¢ progresso n tOnicas migraram do mar Negro em diregdo oeste, para a Itdlia, a Espanha e mesmo para o norte da Africa; quando os eslavos ex- pandiram-se na diresao nordeste, sobrea Réissia, eno sentido sul, sobre a peninsula dos Bales; quando os mouros ocuparam uma grande parte da Espanha; quando os escravos gregos ¢ romanos desapareceram em meio a populagao geral; e quando a coloniza- «fo romana atingiu uma grande parte da regio mediterranea. £ interessante observar que a grandeza espanhola sucedeu o perio- do de maior mistura racial, e que seu declinio comegou quando a populagao tornou-se estivel, a imigragao foi interrompida. Isso deveria fazer com que paréssemos para pensar, antes de falar so- bre os perigos da mistura de tipos europeus. O que est aconte- cendo hoje na América do Norte é uma repeticao, em maior esca- laenum perfodo de tempo menor, daquilo que ocorreu na Euro- pa durante os séculos em que os povos da Europa setentrional ainda nao estavam firmemente assentados sobre o solo. Isso nos leva a considerar qual pode ser o efeito biologico da mistura de diferentes tipos. Muita luz se tem langado sobre essa 10 por meio do estudo intensivo do fendmeno da heredita- ques riedade. £ verdade que somos limitados, no estudo da heredi- tariedade humana, pela impossibilidade de experimentagao, mas podemos aprender muito coma observacio ea aplicacio de estu- dos sobre hereditariedade em animais e plantas. Um fato se des- taca claramente: quando dois individuos sao acasalados, geram. uma numerosa prole e,além disso, nao existe um fator ambiental perturbador, entao a distribuigao de diferentes formas na prole é determinada pelas caracteristicas genéticas dos pais. Aqui ndo nos interessa o que pode acontecer apds milhares de geracoes. Nossas observacdes precedentes a respeito das caracteristi- cas de tipos locais mostram que acasalamentos entre individuos essencialmente diferentes em tipo genético devem ocorrer mes- ‘mo na populagdo mais homogénea. Caso se pudesse mostrar, como as vezes se pretende, que a descendéncia de individuos de proporsdes corporais decididamente distintas pode resultar na- n Antropologia cultural quilo que se tem chamado de carter desarménico, isso deveria ‘ocorrer com considervel freqiiéncia em toda populacao, pois en- contramos, digamos, individuos com mandibulas e dentes gran- des ¢ outros com mandibulas e dentes pequenos. Supondo que, na descendéncia mais recente, essas combinagdes possam resul- tar numa combinagao de pequenas mandibulas e dentes grandes, entao terfamos uma desarmonia, Nao sabemos se isso de fato ocorre; estou meramente exemplificando a linha de raciocinio. Nos acasalamentos entre varios grupos europeus essas condigdes no se alterariam significativamente, embora diferengas maiores centre pais pudessem ser mais freqiientes do que numa populagao homogénea. ‘A questao essencial a ser respondida & se temos qualquer evidéncia que indique que os acasalamentos entre individuos de descendéncia ¢ tipos diferentes resultariam numa prole menos vigorosa do que a de seus ancestrais, Nao tivemos nenhuma oportunidade para observar qualquer degeneracio no homem que se deva claramente a essa causa. Pode-se demonstrar que a alta nobreza de todas as partes da Europa é de origem muito misturada, Populagdes urbanas da Franga, Alemanha ¢ Itai derivadas de todos os distintos tipos europeus. Seria dificil mos- trar que qualquer degeneracao que pudesse existir entre eles pode set atribuida a um efeito maléfico do interacasalamento. A dege- neragio biolégica é mais facilmente encontrada em pequenas re ‘gides com intensa endogamia. Aqui novamente ndo se trata tanto de uma questao de tipo, mas da presenga de condigdes patolégi- «cas nas estirpes familiares, pois sabemos de varias comunidades intensamente endogimicas que sio perfeitamente saudaveis ¢ vi- gorosas. Elas so encontradas entre os esquim6s ¢ também entre muitas tribos primitivas nas quais 0 casamento com primos é prescrito pelo costume. Essas observagdes ndo tocam no problema do efeito sobre a forma corporal, a satide e 0 vigor dos descendentes de casamen- tos entre ragas que sao biologicamente mais distintas do que os silo Raga © progresso 2 tipos europeus. Nao ¢ tao facil fornecer evidéncia absolutamente conclusiva a respeito dessa questdo, Julgando-se meramente com base em caracteristicas anatomicas e condigdes de satide de po- pulagdes misturadas, nao parece haver razao alguma para supor resuiltados desfavoraveis, tanto nas primeiras quanto nas mais re- centes geracdes da prole. Os descendentes mestigos de europeus € indios norte-americanos so mais altos e mais férteis que os in- dios puro-sangue. Sao mais altos ainda que as racas de seus pais. (Os mestigos de holandeses e hotentotes do sul da Africae os mes- ticos malaios da ilha de Kisar sao de tipo intermedidrio entre as dduas ragas e nao exibem qualquer traco de degeneragao. As popu- ages do Sudo, misturas de tipos negrbides € mediterraneos, tém sempre se caracterizado por grande vigor. Também resta pouica dtivida de que na Reissia oriental ocorreu uma considerd- vel infusaio de sangue asidtico. As observagies sobre nossos mula- tos norte-americanos ndo nos convencem da existéncia de qual- quer efeito deletério de mistura racial que seja evidente na forma € fungio anatémicas. ‘Também € preciso lembrar que em ambientes varidveis as formas humanas nao sio de forma alguma estaveis, e que muitos tragos anatémicos corporais estdo sujeitos a uma limitada quan- tidade de modificagées conforme o clima e as condigdes de vida. ‘Temos evidéncias definitivas de mudangas nas medidas corpo- rais, A estatura das populagdes européias tem aumentado desde ‘meados do século XIX. Guerra e fome deixaram seus efeitos nas criangas que cresceram na segunda metade de nosso século. As proporgdes do corpo também mudam conforme a ocupagio. As formas da mao do trabalhador e do miisico refletem suas ocupa- ‘goes. As mudangas que se tém observado em relagao ao formato da cabeca sao andlogas aquelas observadas entre animais sob condigdes variiveis de vida, entre ledes nascidos no cativeiro ou entre ratos alimentados com diferentes tipos de dieta. Nao se co- hece a extensio em que ambientes sociais e geogrificos podem alterar formas corporais, mas a influéncia de condigdes externas 4 ‘Antropologia culural tem que ser levada em consideragao quando comparamos dife- rentes tipos humanos. Os processos seletivos também atuam no sentido de alterar as caracteristicas de uma populagao. Diferentes taxas de nasci mento, mortalidade e migragdo podem produzir mudancas na composicao hereditéria de um grupo. A magnitude dessas mu- dangas ¢ limitada pela extensio das variagoes dentro da popula- 40 original, A importincia da selegio sobre o cardter de uma populagao é facilmente superestimada. E verdade que certos de- feitos sao transmitidos por hereditariedade, mas nao se pode pro- var que toda uma populagio degenera fisicamente gragas a0 au- mento do ntimero de degenerados. Estes sempre incluem os fist camente deficientes ¢ outros, vitimas de circunstan A depressao econdmica de nossos dias mostra claramente com que facilidade individuos perfeitamente competentes po- dem ser levados a condigdes de pobreza abjeta ¢ serem submeti- dos a uma carga de presses 4 qual apenas as mentes mais vigoro- sas podem resistir. Igualmente injustificavel é a opiniao de que a guerra ea luta entre grupos nacionais € um processo seletivo necessirio para manter a humanidade em sua marcha para adiante. Noticiou-se que sir Arthur Keith, em sua conferéncia como reitor da universidade de Aberdeen, ha apenas uma sema- na, teria dito: “A natureza mantém seu pomar humano saudavel pela poda, ea guerra ¢ seu pod,” Nao vejo como essa declaragao possa de modo algum se justificar. A guerra elimina os fisicamen- te fortes, aumenta todos os devastadores flagelos da humanidade, tais como a tuberculose ¢ as doencas venéreas, ¢ enfraquece a ‘geragao em crescimento. ‘A historia mostra que a agdo energética das massas pode ser liberada, nao apenas através de guerra, mas também por outras forcas. Nos podemos nao compartilhar o fervor ou acreditar nos ideais estimulantes; 0 ponto importante é observar que as duas coisas podem despertar 0 mesmo tipo de energia que é liberada nna guerra. Tal estimulo foi a entrega a religito na Idade Média, Raga € progresso 7s como tal é 0 estimulo da entrega da moderna juventude russa a seu ideal. ‘Até agora discutimos os efeitos da hereditariedade, do am- Diente e da selecdo sobre as formas corporais. Mas nao estamos to preocupados com a forma do corpo quanto com suas fun- _g6es, pois na vida de uma nagao as atividades dos individuos con- tam mais que suas aparéncias. Nao tenho dividas de que hé uma associagio bem definida entre a constituigdo biol6gica do indivi- duo ¢ 0 fancionamento fisiol6gico e psicologico de seu corpo. A pretensao de que apenas as condigdes sociais e ambientais deter~ minam as reagdes do individuo desconhece as observagdes mais clementares, tais como diferencas em ritmo cardiaco, metabo- lismo basal ou desenvolvimento glandular; e também as diferen- cas mentais em sua relagao com distiirbios anatémicos extremos do sistema nervoso, Ha raz6es organicas pelas quais individuos

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