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JOSE MURILO DE CARVALHO ‘continuou fora do alcance da protegdo das leis ¢ dos tribunais, AA forte urbanizacao favoreceu os direitos politicos mas levou a formagio de metrépoles com grande concentracao de populagdes. marginalizadas. Essas populagGes eram privadas de servicos turbanos ¢ também de servigos de segurana e de justiga. Suas, reivindicagdes, veiculadas pelas associagdes de moradores, ti- nham mais éxito quando se tratava de servigos urbanos do que de protegio de seus direitos civis. As policias militares, encar- regadas do policiamento ostensivo, tinham sido colocadas sob © comando do Exército durante os governos militares e foram usadas para o combate &s guerrilhas rurais e urbanas. Torna- ram-se completamente inadequadas, pela filosofiae pelas taticas adotadas, para proteger 0 cidadio e respeitar seus direitos, pois 6 viam inimigos a combater. A policia tornou-se, ela propria, um inimigo a ser temido em vez de um aliado a ser respeitado. A.expansio do tréfico de drogas e o surgimento do crime organizado aumentaram a violéncia urbana e pioraram ainda mais a situagdo das populagdes faveladas. Muitas favelas, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, passaram a ser controladas por traficantes, devido a auséncia da seguranga publica. Seus habitantes ficavam entre a cruz dos traficantes a caldeirinha da policia, e era muitas vezes dificil decidir qual a pior opgao. Pesquisas de opinido piiblica da época in- dicavam a seguranga publica como uma das demandas mais importantes dos habitantes das grandes cidades. AA precariedade dos direitos civis langava sombras amea~ cadoras sobre 0 futuro da cidadania, que, de outro modo, parecia risonho ao final dos governos militares. riruuow: A cidadania apés a redemocratizagao Apesar da tragédia da morte de Tancredo Neves, a retomada da supremacia civil em 1985 se fez de maneira razoavelmente ordenada e, até agora, sem retrocessos. A constituinte de 1988 redigiu e aprovou a constituigo mais liberal e demo- critica que pais jd teve, merecendo por isso o nome de Constitui¢ao Cidada. Em 1989, houve a primeira eleigao direta para presidente da Repiblica desde 1960. Duas outras, eleigdes presidenciais se seguiram em clima de normalida- de, precedidas de um inédito processo de impedimento do primeiro presidente eleito. Os direitos politicos adquiriram amplitude nunca antes atingida. No entanto, a estabilidade democritica nao pode ainda ser considerada fora de perigo. ‘A democracia politica no resolveu os problemas econdmicos mais sérios, como a desigualdade e 0 desemprego. Conti- nuam os problemas da area social, sobretudo na educagao, nos servigos de saiide e saneamento, e houve agravamento da situaco dos direitos civis no que se refere & seguranca individual. Finalmente, as r4pidas transformagoes da eco- nomia internacional contribuiram para por em xeque a propria nocio tradicional de direitos que nos guiou desde a independéncia. Os cidadaos brasileiros chegam ao final do milénio, 500 anos apés a conquista dessas terras pelos 201 JOSE MURILO DE CARVALHO Portugueses e 178 anos apés a fundacio do pais, envoltos num misto de esperanga e incerteza. ‘A EXPANSAO FINAL DOS DIREITOS POLITICOS A Nova Repablica comecou em clima de otimismo, emba- lada pelo entusiasmo das grandes demonstracdes civicas em favor das eleigdes diretas. © otimismo prosseguiu na eleicgdo de 1986 para formar a Assembleia Nacional Constituinte, a quarta da Repiblica. A Constituinte trabalhou mais de um ano na redagao da Constituigao, fazendo amplas consultas a especialistas ¢ setores organizados ¢ representativos da sociedade. Finalmente, foi promulgada a Constituicao em 1988, um longo e minucioso documento em que a garantia dos direitos do cidadao era preocupagao central. A Constituigo de 1988 eliminou o grande obstéculo ainda existente a universalidade do voto, tornando-o facultativo aos analfabetos. Embora o ntimero de analfabetos se tivesse redu- Zido, ainda havia em 1990 cerca de 30 milhdes de brasileiros de cinco anos de idade ou mais que eram analfabetos. Em 1998, 8% dos eleitores eram analfabetos. A medida significow, entdo, ampliagao importante da franquia eleitoral e pés fim a uma discriminagao injustificavel. A Constituigao foi também liberal no critério de idade. A idade anterior para a aquisigio do direito do voto, 18 anos, foi abaixada para 16, que é a idade minima para a aquisigao de capacidade civil relativa. Entre 16 € 18 anos, o exercicio do direito do voto tornou-se facultativo, sendo obrigatério a partir dos 18. A tinica restri- lo que permaneceu foi a proibigio do voto aos conscritos. Embora também injustificada, a proibigio atinge parcela 202 CIDADANIA NO BRASIL equena da populagio e apenas durante periodo curto da ja. Na eleicio presidencial de 1989, votaram 72,2 milhdes eleitores; na de 1994, 77,9 milhdes; na iltima eleigo, em 998, 83,4 milhdes, correspondentes a 51% da populagio, orcentagem jamais alcangada antes e comparavel, até com jantagem, a de qualquer pais democratico moderno. Em 998, o eleitorado inscrito era de 106 milhdes, ou seja, 66% a populacao, ‘Também em outros aspectos a legislacdo posterior a 1985 i liberal. Ao passo que o regime militar colocava obstécu- a organizagio e funcionamento dos partidos politicos, a islacio vigente é muito pouco restritiva. O Tribunal Su- rior Eleitoral aceita registro provis6rio de partidos com a sinatura de apenas 30 pessoas. O registro provis6rio permite © partido concorra as eleigdes e tenha acesso gratuito a levisdo. Foi também extinta a exigéncia de fidelidade par- fdiria, isto é, o deputado ou senador nao é mais obrigado ‘Permanecer no partido sob pena de perder 0 mandato. enadores, deputados, vereadores, bem como governadores e efeitos, trocam impunemente de partido, Em consequéncia, Sresceu muito o ntimero de partidos. Em 1979, existiam dois irtidos em funcionamento; em 1982, havia cinco; em 1986, Ouve um salto para 29, estando hoje o niimero em torno de 30. Muitos desses partidos s4o miniisculos ¢ tém pouca ppresentatividade. De um excesso de restrigdo passou-se a grande liberalidade. Do ponto de vista do arranjo institucional, o problema ais sério que ainda persiste talvez seja o da distorgao re- jonal da representagio parlamentar. O principio de “uma a, um voto” é amplamente violado pela legislagao bra- ira quando ela estabelece um piso de oito e um teto de 70 203 JOSE MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL deputados. Os estados do Norte, Centro-Oeste e Nordeste sig sobrerrepresentados na Camara, enquanto os do Sul e Sudeste, sobretudo Sio Paulo, sdo sub-representados. Uma distribuigag das cadeiras proporcional a populagio daria aos estados do Sul e Sudeste mais cerca de 70 deputados no total de 513. Em 1994, 0 voto de um eleitor de Roraima valia 16 vezes o de um, eleitor paulista. O desequilibrio na representagao é reforgado pelo fato de que todos os estados elegem o mesmo niimero de senadores. Como favorece estados de populagio mais rural € menos educada, a sobrerrepresentacdo, além de falsear 0 sistema, tem sobre o Congresso um efeito conservador que se manifesta na postura da instituicdo. Trata-se de um vicio de nosso federalismo, e dificil de extirpar, uma vez que qualquer mudanca deve ser aprovada pelos mesmos deputados que se beneficiam do sistema. Outros temas permanecem na pauta da reforma politica. ‘Tramitam no Congresso projetos para alterar o sistema elei~ toral, reduzir 0 mimero de partidos e reforgar a fidelidade partiddria. O projeto mais importante é 0 que propoe a introdugéo de um sistema eleitoral que combine o critério proporcional em vigor com o majoritario, segundo o modeld. alemao. A ideia é aproximar mais os representantes de seus eleitores e reforcar a disciplina partidéria, Sao também nus merosos os partidérios da introducao do sistema parlamentar de governo. Tais reformas so polémicas sobretudo por causa! da dificuldade em prever o impacto que podem ter. No que se refere & pratica democritica, houve frustragoes mas também claros avancos. Um dos avangos tem a ver com 0 surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST). De alcance: nacional, o MST representa a incorporagao a vida politica dé parcela importante da populagio, tradicionalmente excluida ppela forca do latifiindio, Milhares de trabalhadores rurais se organizaram e pressionam 0 governo em busca de terra para cultivar e financiamento de safras. Seus métodos, a invasio de terras piblicas ou nao cultivadas, tangenciam a ilegalidade, ‘mas, tendo em vista a opressio secular de que foram vitimas € extrema lentidao dos governos em resolver o problema agririo, podem ser considerados legitimos. O MST é o me- Thor exemplo de um grupo que, utilizando-se do dircito de “organizaco, forca sua entrada na arena politica, contribuindo assim para a democratizagio do sistema. Houve frustragao com os governantes posteriores a de- ‘mocratizacao. A partir do terceiro ano do governo Sarney, 0 desencanto comecou a crescer, pois ficara claro que a demo- cratizacao nao resolveria automaticamente os problemas do dia a dia que mais afligiam 0 grosso da populacao. As velhas praticas politicas, incluindo a corrupgao, estavam todas de volta. Os politicos, os partidos, o Legislativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando nao de corruptos ‘ voltados unicamente para seus préprios interesses. Seguindo vyelha tradicao nacional de esperar que a soluc3o dos proble- mas venha de figuras messianicas, as expectativas populares se dirigiram para um dos candidatos eleigao presidencial de 1989 que exibia essa caracteristica, Fernando Collor, em- bora vinculado as elites politicas mais tradicionais do pais, apresentou-se como um messias salvador desvinculado dos Yicios dos velhos politicos. Baseou sua campanha no combate a0s politicos tradicionais a corrupgao do governo. Repre~ sentou o papel de um campedo da moralidade .a renovacio da politica nacional. O uso eficiente da televisa. foi um de seus pontos fortes. Em um pais com tantos analfabetos ¢ semianalfabetos, a televisio se tornou o meio mais poderoso 208 205, JOSE MURILO DE CARVALHO de propaganda. Fernando Collor venceu o primeiro turno das eleigdes, derrotando politicos experimentados e de passado iatacavel, como o lider do PMDB, Ulisses Guimaraes, e 9 lider do PSDB, Mario Covas. No segundo turno, derrotou © candidato do PT, o também carismatico Luis Inécio Lula da Silva. As eleigdes diretas, aguardadas como salvagao nacional, resultaram na escolha de um presidente despreparado, autori- trio, messinico e sem apoio politico no Congresso. Fernando Collor concorreu por um partido, o PRN, sem nenhuma re- presentatividade, criado que fora para apoiar sua candidatura, Mesmo depois da posse do novo presidente, esse partido tinha 5% das cadeiras na Camara dos Deputados. Era, portanto, incapaz de dar qualquer sustentagdo politica ao presidente. A vit6ria nas urnas ficou desde o inicio comprometida pela falta de condigdes de governabilidade. O problema era agravado pela personalidade arrogante e megalomaniaca do candidato eleito. Os observadores mais perspicazes adivinharam logo as dificuldades que necessariamente surgiriam. Embalado pela legitimidade do mandato popular, o pre~ sidente adotou de inicio medidas radicais e ambiciosas para acabar com a inflagdo, reduzir 0 nimero de funcionérios piblicos, vender empresas estatais, abrir a economia 20 mercado externo. Mas logo se fizeram sentir as dificulda- des decorrentes da falta de apoio parlamentar e da falta de vontade e capacidade do presidente de negociar esse apoio. Paralelamente, foram surgindo sinais de corrupgio praticada por pessoas proximas ao presidente. Os sinais tornaram-se certeza quando o préprio irmao 0 denunciou publicamente. Descobriu-se, entao, que fora montado pelo tesoureiro da campanha presidencial, amigo intimo do presidente, 0 €5- 206 CIDADANIA NO BRASIL hema mais ambicioso de corrupcdo jamais visto nos altos aloes do governo. Por meio de chantagens, da venda de jores governamentais, de barganhas politicas, milhdes de Glares foram extorquidos de empresérios para financiar smpanhas, sustentar a familia do presidente e enriquecer 0 queno grupo de seus amigos. Humilhada e ofendida, a populagdo que fora s ruas oito nos antes para pedir as eleigdes diretas repetiu a jornada para dir 0 impedimento do primeiro presidente eleito pelo voto fireto. A campanha espalhou-se pelo pais e mobilizou prin- palmente a juventude das grandes cidades. Pressionado pelo ito das ruas, o Congresso abriu o processo de impedimento resultou no afastamento do presidente, dois anos e meio spois da posse, e em sua substituicdo pelo vice-presidente, smar Franco. O impedimento foi sem diivida uma vitéria fvica importante. Na historia do Brasil e da América Latina, regra para afastar presidentes indesejados tem sido revolu- e golpes de Estado. No sistema presidencialista que nos -viu de modelo, o dos Estados Unidos, o método foi muitas, 5 0 assassinato. Com excego do Panama, nenhum outro is presidencialista da América tinha levado antes até 0 fim processo de impedimento. O fato de ele ter sido com- etado dentro da lei foi um avango na pratica democratica, Deu aos cidadaos a sensagao inédita de que podiam exercer gum controle sobre os governantes. Avango também foram duas eleiges presidenciais seguintes, feitas em clima de ormalidade, Na primeira, em 1994, foi eleito em primeiro urno o socidlogo Fernando Henrique Cardoso. Durante seu mandato, o Congreso, sob intensa presséo do Executivo, sprovou a reeleigio, que veio a beneficiar o presidente na iso de 1998, gana por ele também no primeiro turno, 207 JOSE MURILO DE CARVALHO DIREITOS SOCIAIS SOB AMEACA A Constituigao de 1988 amplion também, mais do que quak quer de suas antecedentes, os direitos sociais. Fixou em um salirio minimo o limite inferior para as aposentadorias ¢ pensies e ordenou o pagamento de pensio de um salatio minimo a todos os deficientes fisicos e a todos 0s maiores de 65 anos, independentemente de terem contribuido para a previdéncia. Introduziu ainda a licenga-paternidade, que dé aos pais cinco dias de licenga do trabalho por ocasizo do nascimento dos filhos. . A pratica aqui também teve altos e baixos. Indicadores basicos de qualidade de vida passaram por lenta melhoria, Assim, por exemplo, a mortalidade infantil caiu de 73 por mil criancas nascidas vivas em 1980 para 39,4 em 1999, A esperanca de vida ao nascer passou de 60 anos em 1980 para 67 em 1999. O progresso mais importante se deu na direa da educagao fundamental, que é fator decisivo para a cidadania, O analfabetismo da populagao de 15 anos ou mais caiu de 25,4% em 1980 para 14,7% em 1996. A escolariza- Gio da populagao de sete a 14 anos subiu de 80% em 1980 para 97% em 2000. O progresso se deu, no entanto, a partie de um piso muito baixo ¢ refere-se sobretudo a0 nimero de estudantes matriculados. O indice de repeténcia ainda é muito alto, Ainda sio necessdrios mais de dez anos para se completarem os oito anos do ensino fundamental. Em 1997, 32% da populagio de 15 anos ou mais era ainda formada de analfabetos funcionais, isto é, que tinham menos de quatro anos de escolaridade. No campo da previdéncia social, a situagio é mais com- plexa. De positivo houve a elevacao da aposentadoria dos 208 CIDADANIA NO BRASIL trabalhadores rurais para o piso de um salério minimo. Foi também positiva a introducdo da renda mensal vitalicia para idosos e deficientes, mas sua implementagao tem sido muito restrita. O principal problema est nos beneficios previden- cidrios, sobretudo nos valores das aposentadorias, A neces- sidade de reduzir o déficit nessa 4rea foi usada para justificar reformas no sistema que atingem negativamente sobretudo 0 funcionalismo piblico. Foi revogado 0 critério de tempo de servico, que permitia aposentadorias muito precoces, substituido por uma combinagio de tempo de contribuigao ‘com idade minima. Foram também eliminados os regimes especiais que permitiam aposentadorias com menor tempo de ‘contribuigao. O problema do déficit ainda persiste, e, diante das pressdes no sentido de reduzir 0 custo do Estado, pode-se ‘esperar que propostas mais radicais como a da privatizagdo do sistema previdencisrio voltem ao debate. Mas as maiores dificuldades na area social t8m a ver com a persisténcia das grandes desigualdades sociais que carac- terizam o pais desde a independéncia, para nao mencionar ‘0 periodo colonial. O Brasil € hoje o oitavo pais do mundo ‘em termos de produto interno bruto. No entanto, em termos de renda per capita, é 0 34°, Segundo relatério do Banco Mundial, era 0 pais mais desigual do mundo em 1989, me- ida a desigualdade pelo indice de Gini. Em 1997, o indice ‘Permanecia inalterado (0,6). Pior ainda, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econdmica Aplicada (Ipea), a desigual- dade econdmica cresceu ligeiramente entre 1990 e 1998. Na primeira data, 0s 50% mais pobres detinham 12,7% da renda Macional; na segunda, 11,2%. De outro lado, os 20% mais ticos tiveram sua parcela da renda aumentada de 62,8% para 63,8% no mesmo periodo. 209 JOSE MURILO DE CARVALHO A desigualdade é sobretudo de natureza regional e racial, Em 1997, a taxa de analfabetismo no Sudeste era de 8,6%; no Nordeste, de 29,4%. O analfabetismo funcional no Sudeste era de 24,5%; no Nordeste era de 50%, e no Nordeste rural, de 72%; a mortalidade infantil era de 25% no Sudeste em 1997, de 59% no Nordeste, e assim por diante. O mesmo se 4 em relagio a cor. O analfabetismo em 1997 era de 9,0% entre os brancos e de 22% entre negros e pardos; os brancos tinham 6,3 anos de escolaridade; os negros e pardos, 4,3; entre os brancos, 33,6% ganhavam até um salério minimo; entre os negros, 58% estavam nessa situagao, e 61,5 % entre os pardos; a renda média dos brancos era de 4,9 salirios mi- nimos; a dos negros, 2,4, ea dos pardos, 2,2. Esses exemplos poderiam ser multiplicados sem dificuldade. A escandalosa desigualdade que concentra nas mios de poucos a riqueza nacional tem como consequéncia niveis dolorosos de pobreza e miséria. Tomando-se a renda de 70 délares — que a Organizacdo Mundial da Satide (OMS) con- sidera ser 0 minimo necessério para a sobrevivéncia — como a linha diviséria da pobreza, o Brasil tinha, em 1997, 54% de pobres. A porcentagem correspondia a 85 milhdes de pessoas, numa populagao total de 160 milhdes. No Nordeste, a por~ centagem subia para 80%. A persisténcia da desigualdade € apenas em parte explicada pelo baixo crescimento econémico do pais nos iiltimos 20 anos, Mesmo durante o periodo de alto crescimento da década de 70 ela no se reduziu. Crescendo unio, o pais permanece desigual. O efeito positivo sobre a distribuigo de renda trazido pelo fim da inflagao alta teve efeito passageiro. A crise cambial de 1999 e a consequente redugio do indice de crescimento econdmico eliminaram as vantagens conseguidas no inicio. 210 CIDADANIA NO BRASIL JREITOS CIVIS RETARDATARIOS. Js direitos civis estabelecidos antes do regime militar foram superados apés 1985. Entre eles cabe salientar a liberdade expresso, de imprensa e de organizacao. A Constitui¢ao 1988 ainda inovou criando o direito de habeas data, em tude do qual qualquer pessoa pode exigir do governo acesso is informagGes existentes sobre ela nos registros pablicos, mo as de cardter confidencial. Criou ainda o “mandado injunga0”, pelo qual se pode recorrer a justiga para exigir cumprimento de dispositivos constitucionais ainda nao sgulamentados. Definiu também 0 racismo como crime ina- fancvel e imprescritivel e a tortura como crime inafiangével ‘fo anistivel. Uma lei ordindria de 1989 definiu os crimes sultantes de preconceito de cor ou raga. A Constitui¢ao -denou também que 0 Estado protegesse 0 consumidor, ispositivo que foi regulamentado na Lei de Defesa do Con- imidor, de 1990. Fora do 4mbito constitucional, foi criado 1996 o Programa Nacional dos Direitos Humanos, que revé varias medidas praticas destinadas a proteger esses ireitos. Cabe ainda mencionar como relevante a criagdo dos Iuizados Especiais de Pequenas Causas Civeis ¢ Criminais, 1995, Esses juizados pretendem simplificar, agilizar e rratear a prestacdo de justiga em causas civeis de pequena complexidade e em infragdes penais menores. Essas inovagées legais ¢ institucionais foram importan- s, ¢ algumas ja dio resultado. Os juizados, por exemplo, im tido algum efeito em tornar a justiga mais acessivel. No entanto, pode-se dizer que, dos direitos que compoem ’ cidadania, no Brasil so ainda os civis que apresentam as Imaiores deficiéncias em termos de seu conhecimento, exten- a JOSE MURILO DE CARVALHO sdo e garantias. A precariedade do conhecimento dos direitos civis, e também dos politicos e sociais, é demonstrada por pesquisa feita na regidio metropolitana do Rio de Janeiro em 1997. A pesquisa mostrou que 57% dos pesquisados no sa- biam mencionar um s6 direito e s6 12% mencionaram algum, direito civil. Quase a metade achava que era legal a prisio, por simples suspeita. A pesquisa mostrou que o fator mais importante no que se refere ao conhecimento dos direitos €a educacao. O desconhecimento dos direitos caia de 64% entre 6s entrevistados que tinham até a 4* série para 30% entre os que tinham o rerceiro grau, mesmo que incompleto. Os dados revelam ainda que educacio é 0 fator que mais bem explica 0 comportamento das pessoas no que se refere ao exercicio dos direitos civis e politicos. Os mais educados se filiam mais a sindicatos, a érgaos de classe, a partidos politicos. A falta de garantia dos direitos civis pode ser medida or pesquisas feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia ¢ Estatistica (IBGE), referentes ao ano de 1988, Segundo o IBGE, nesse ano 4,7 milhdes de pessoas de 18 anos ou mais envolveram-se em conflitos. Dessas, apenas 62% recorreram a justiga para resolvé-los. A maioria preferiu nao fazer nada ou tentou resolvé-los por conta propria. Especificando-se 0 conflito e as razdes da falta de recurso a justiga, os dados sio ainda mais reveladores. Assim, nos conflitos referentes a roubo e furto, entre 0s motivos alegados para nao recorrer a justica, trés tinham diretamente a ver com a precariedade das garantias legais: 28% alegaram nao acreditar na justiga, 4% temiam represélias, 9% no queriam envolvimento com a policia. Ao todo, 41% das pessoas nao recorreram pot nJo crer na justiga ou por temé-la, Os dados referentes a0s conflitos que envolviam agressio fisica revelam que 45% no 2 CIDADANIA NO BRASIL recorreram a justia pelas mesmas raz6es. E importante notar gue também nessa pesquisa o grau de escolaridade tem grande "importincia. Entre as pessoas sem instrugdo ou com menos de um ano de instrugao, foram 74% as que no recorreram, A porcentagem cai para 57% entre as pessoas com 12 ou mais anos de instrucao. A pesquisa na regio metropolitana do Rio de Janeiro, ja mencionada, mostra que a situagio “no se alterou nos tiltimos dez anos. Os resultados mostram ‘que 86 20% das pessoas que sofrem alguma violagio de seus direitos — furto, roubo, agressao etc. — recorrem & polici para dar queixa. Os outros 80% nio o fazem por temor da policia ou por nao acreditarem nos resultados, A falta de garantia dos direitos civis se verifica sobretudo no que se refere a seguranca individual, a integridade fisica, a0 acesso a justiga. O rapido crescimento das cidades transfor mou ‘0 Brasil em pafs predominantemente urbano em poucos anos. Em 1960, populagao rural ainda superava a urbana, Em 2000, 81% da populagdo jé era urbana. Coma urbanizacio, surgiram as grandes metr6poles. Nelas, a combinagio de desemprego, trabalho informal e trfico de drogas criou um campo fértl para a proliferagao da violencia, sobretudo na forma de homicidios dolosos. Os indices de homicidio tém crescido sistematicamente, ‘Na América Latina o Brasil s6 perde para a Colémbia, pais em guerra civil. A taxa nacional de homicidios por 100 mil habi- tantes passou de 13 em 1980 para 23 em 1995, quando é de 8,2 nos Estados Unidos. Nas capitais e outras grandes cidades, ela é muito mais alta: 56 no Rio de Janeiro, 59 em Sao Paulo, 70 em Vitoria. Roubos, assaltos, balas perdidas, sequestros, assassinatos, massacres passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, trazendo a sensagdo de inseguranga a populago, sobretudo nas favelas e bairros pobres, 2 JOSE MURILO DE CARVALHO problema é agravado pela inadequacao dos drgios en- carregados da seguranga publica para o cumprimento de sua fungao, As policias militares estaduais cresceram durante a Primeira Republica, com a implantacio do federalismo. Os grandes estados, como Sao Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, fizeram delas pequenos exércitos locais, instrumentos de poder na disputa pela presidéncia da Repiblica, Uma das exigéncias do Exército apds 1930 foi estabelecer 0 controle sobre as policias militares. No Estado Novo, elas foram postas sob a jurisdigio do Ministério da,Guerra (como era entio chamado 0 Ministério do Exército), que Ihes vetou o uso de armamento pesado. A Constituicao democritica de 1946 manteve parte do controle, declarando as policias estaduais forcas auxiliares e reservas do Exército. Durante o governo militar, as policias militares foram postas sob o comando de oficiais do Exército e completou-se o processo de militarizacéo de seu treinamento. Elas tinham seus 6rgios de inteligéncia € repressio politica que atuavam em conjunto com os seus correspondentes nas forgas armadas. A Constituigao de 1988 apenas tirou do Exército 0 controle direto das policias militares, transferindo-o para os governadores dos estados. Elas permaneceram como forcas auxiliares e reservas do Exército e mantiveram as caracteristicas militares. Tornaram-se novamente pequenos exércitos que as vezes escapam ao controle dos governado- res, Essa organizagio militarizada tem se revelado inade- quada para garantir a seguranga dos cidadaos. O soldado da policia € treinado dentro do espirito militar e com mé- todos militares. Ele é preparado para combater e destruir inimigos, e nao para proteger cidadaos. Ele é aquartelado, responde a seus superiores hierdrquicos, ndo convive com ae CIDADANIA NO BRASIL ‘0s cidadaos que deve proteger, no 0s conhece, nao se vé como garantidor de seus direitos. Nem no combate a0 crime as policias militares tém se revelado eficientes. Pelo contrario, nas grandes cidades e mesmo em certos estados da federacao, policiais militares e civis tém se envolvido com criminosos e participado de um mimero crescente de crimes. Os que so expulsos da corporacio se tornam criminosos potenciais, organizam grupos de exterminio e participam de quadrilhas, Mesmo a policia civil, que néo tem treinamento militarizado, se vem mostrando incapaz de agir dentro das normas de uma sociedade democrati- ca. Continuam a surgir deniincias de prdtica de tortura de suspeitos dentro das delegacias, apesar das promessas de mudanga feitas pelos governos estaduais. S40 também abundantes as dentincias de extorsio, corrupgio, abuso de autoridade feitas contra policiais civis. Alguns casos de violéncia policial ficaram tristemente cé- lebres no pais, com repercussao constrangedora no exterior. Em 1992, a policia militar paulista invadiu a Casa de De- tengio do Carandiru para interromper um conflito e matou 111 presos. Em 1992, policiais mascarados massacraram 21 pessoas em Vigario Geral, no Rio de Janeiro. Em 1996, em pleno Centro do Rio de Janeiro, em frente a Igreja da Cande- liria, sete menores que dormiam na rua foram fuzilados por policiais militares. No mesmo ano, em Eldorado do Carajas, policiais militares do Pard atiraram contra trabalhadores sem-terra, matando 19 deles. Exceto pelo massacre da Can- delaria, os culpados dos outros crimes nao foram até hoje condenados. No caso de Eldorado do Carajés, 0 primeiro julgamento absolveu os policiais. Posteriormente anulado, ainda nao houve segundo julgamento. A populagao ou teme 21s JOSE MURILO DE CARVALHO © policial, ou nao the tem confianca. Nos grandes centros, as empresas ea classe alta cercam-se de milhares de guardag particulares para fazer o trabalho da policia, fora do controle do poder piblico. A alta classe média entrincheira-se em con- dominios protegidos por muros e guaritas. As favelas, com menos recursos, ficam 4 mercé de quadrilhas organizadas ue, por ironia, se encarregam da tinica seguranca disponivel, Quando a policia aparece na favela é para trocar tiros com as quadrilhas, invadir casas e eventualmente ferir ou matar inocentes. O Judicidrio também ndo cumpre seu papel. O acesso a jus- tiga élimitado a pequena parcela da populagio. A maioria ow desconhece seus direitos, ou, se os conhece, no tem condig&es de os fazer valer. Os poucos que dio queixa a policia tém que enfrentar depois os custos ¢ a demora do processo judicial s custos dos servigos de um bom advogado esto além da capacidade da grande maioria da populagdo. Apesar de ser dever constitucional do Estado prestar assisténcia juridica Bratuita aos pobres, os defensores piiblicos sio em nimero insuficiente para atender 4 demanda. Uma vez instaurado 0 processo, hd o problema da demora, Os tribunais esto sempre sobrecarregados de processos, tanto nas varas civeis como nas criminais. Uma causa leva anos para ser decidida. O tinico setor do Judiciério que funciona um pouco melhor é o da justiga do trabalho. No entanto, essa justica s6 funciona para 60s trabalhadores do mercado formal, possuidores de carteira de trabalho. Os outros, que so cada vez mais numerosos, ficam excluidos. Entende-se, entdo, a descrenga da populaga0 na justica e 0 sentimento de que ela funciona apenas para 08 ricos, ou antes, de que ela ndo funciona, pois os ricos nd0 sio punidos e os pobres ndo sao protegidos. 26 CIDADANIA NO BRASIL A parcela da populacao que pode contar coma protegao da lei é pequena, mesmo nos grandes centros. Do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadaos brasileiros podem ser divididos em classes. Ha os de primeira classe, os privi- legiados, os “doutores”, que estao acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro € do prestigio social. Os “doutores” sao invariavelmente brancos, ricos, bem-vestidos, com formaco universitaria. Sao empresarios, banqueiros, grandes proprietérios rurais e urbanos, politicos, profissionais liberais, altos funcionarios, Frequentemente, mantém vinculos importantes nos negécios, ‘no governo, no préprio Judiciario. Esses vinculos permitem | que a lei s6 funcione em seu beneficio. Em um calculo apro- ximado, poderiam ser considerados “doutores” 0s 8% das familias que, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (Pnad) de 1996, recebiam mais de 20 salérios minimos. Para eles, as leis ou nao existem ou podem ser dobradas. ‘Ao lado dessa elite privilegiada, existe uma grande massa de “cidadaos simples”, de segunda classe, que esto sujeitos a0s rigores e beneficios da lei. Sao a classe média modesta, os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho assinada, 6 pequenos funcionarios, os pequenos proprietirios urbanos rurais, Podem ser brancos, pardos ou negros, tém educagao fundamental completa e o segundo grau, em parte ou todo. Essas pessoas nem sempre tém nogao exata de seus direitos, e quando a tém carecem dos meios necessarios para os fazer valer, como 0 acesso aos érgios ¢ autoridades competentes, € ‘0s recursos para custear demandas judiciais, Frequentemente, ficam a mereé da policia e de outros agentes da lei que definem. na pritica que direitos serao ou nao respeitados. Os “cidadaos a JOSE MURILO DE CARVALHO simples” poderiam ser localizados nos 63% das familias que recebem entre acima de dois a 20 saldrios minimos. Para eles, existem os cédigos civil e penal, mas aplicados de maneira parcial e incerta. Finalmente, ha os “elementos” do jargio policial, cida- dios de terceira classe. Sa0 a grande populagio marginal das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais sem carteira assinada, posseiros, empregadas domésticas, bisca- teiros, camelds, menores abandonados, mendigos. S40 quase invariavelmente pardos ou negros, analfabetos, ou com edu- cacio fundamental incompleta. Esses “elementos” sio parte da comunidade politica nacional apenas nominalmente. Na pratica, ignoram seus direitos civis ou os tém sistematicamente desrespeitados por outros cidadaos, pelo governo, pela policia. Nio se sentem protegidos pela sociedade e pelas leis. Receiam ‘© contato com agentes da lei, pois a experiencia Ihes ensinou que ele quase sempre resulta em prejuizo proprio. Alguns optam abertamente pelo desafio a lei e pela criminalidade, Para quantificé-los, os “elementos” estariam entre os 23% de familias que recebem até dois salérios minimos. Para eles vale apenas 0 Codigo Penal, Conclusao: A cidadania na encruzilhada ercorremos um longo caminho, 178 anos de hist6ria do es- 0 para construir 0 cidadio brasileiro. Chegamos ao final jornada com a sensagio desconfortavel de incompletude. }s progressos feitos sio inegaveis mas foram lentos e no escon- sm o longo caminho que ainda falta percorrer. O triunfalismo bido nas celebragdes oficiais dos 500 anos da conquista la terra pelos portugueses nao consegue ocultar o drama los milhdes de pobres, de desempregados, de analfabetos e emianalfabetos, de vitimas da violéncia particular e oficial. Ho ha indicios de saudosismo em relagao & ditadura militar, as perdeu-se a crenca de que a democracia politica resolveria ‘om rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade. ‘Uma das razes para nossas dificuldades pode ter a ver com ‘a natureza do percurso que descrevemos. A cronologia ¢ a Togica da sequéncia descrita por Marshall foram invertidas no rasil. Aqui, primero vieram os direitos sociais, implantados fem periodo de supressio dos direitos politicos e de redugao dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos politicos, de maneira também bi- arta. A maior expansio do direito do voto deu-se em outro pperioclo ditatorial, em que os 6rgios de representacao politica 219 JOSE MURILO DE CARVALHO foram transformados em peca decorativa do regime. Final- mente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequéncia de Marshall, continuam inacessiveis 4 maioria da populacio, A pirdmide dos direitos foi colocada de cabeca para baixo, Na sequéncia inglesa, havia uma légica que reforcava a convicgio democritica. As liberdades civis vieram primeiro, ga- rantidas por um Judiciario cada vez mais independente do Exe- cutivo. Com base no exercicio das liberdades, expandiram-se os direitos politicos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo, Finalmente, pela aco dos partidos e do Congresso, votaram-se 8 direitos sociais, postos em pratica pelo Executivo. A base de tudo eram as liberdades civis. A participagao politica era destinada em boa parte a garantir essas liberdades. Os direitos sociais eram os menos dbvios e até certo ponto considerados incompativeis com os direitos civis e politicos. A protecao do Estado a certas pessoas parecia uma quebra da igualdade de todos perante a lei, uma interferéncia na liberdade de trabalho ena livre competigao. Além disso, 0 auxilio do Estado era visto como restrigao a liberdade individual do beneficiado, e como tal Ihe retirava a condicdo de independéncia requerida de quem deveria ter o direito de voto. Por essa ra240, privaram-se, no inicio, os assistidos pelo Estado do direito do voto. Nos Estados Unidos, até mesmo sindicatos operarios se opuseram & legis- lacdo social, considerada humilhante para o cidadao. $6 mais tarde esses direitos passaram a ser considerados compativeis com 05 outros direitos, e 0 cidadao pleno passou a ser aquele que gozava de todos os direitos, civis, politicos e sociais. Seria tolo achar que 6 h um caminho para a cidadani A histéria mostra que nao € assim. Dentro da propria Europa houve percursos distintos, como demonstram os casos da Inglaterra, da Franca e da Alemanha, Mas é razoavel supot 20 CIDADANIA NO BRASIL que caminhos diferentes afetem o produto final, afetem o tipo de cidadao, e, portanto, de democracia, que se gera, Isto é particularmente verdadeiro quando a inversao da sequéncia 6 completa, quando os direitos sociais passam a ser a base da pirdmide. Quais podem ser as consequéncias, sobretudo para o problema da eficécia da democracia? Uma consequéncia importante é a excessiva valorizagio do Poder Executivo. Se os direitos sociais foram implantados em periodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ‘ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para 0 grosso da populagao, da centralidade do Executivo. O governo aparece como 0 ramo mais importante do poder, aquele do qual vale ‘a pena aproximar-se. A fascinagdo com um Executivo forte esta sempre presente, e foi ela sem diivida uma das razdes da vitoria do presidencialismo sobre o parlamentarismo, no plebiscito de 1993. Essa orientacao para o Executivo reforca longa tradigo portuguesa, ou ibérica, patrimonialismo. Estado € sempre visto como todo-poderoso, na pior hipotese como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um distribuidor paternalista de empregose favores. A agao politi- ca nessa visio é sobretudo orientada para a negociagao direta com o governo, sem passar pela mediagao da representacao. Como vimos, até mesmo uma parcela do movimento oper: rio na Primeira Repiiblica orientou-se nessa direcaos parcela ainda maior adaptou-se a ela na década de 30. Essa cultura orientada mais para o Estado do que para a representacao é 0 que chamamos de “estadania”, em contraste com a cidadania. Ligada a preferéncia pelo Executivo esta a busca por um messias politico, por um salvador da patria. Como a experi- éncia de governo democritico tem sido curta e os problemas a sociais tém persistido e mesmo se agravado, cresce também a 2a 10S MURILO DE CARVALHO impaciéncia popular com o funcionamento geralmente mais lento do mecanismo democrético de decisio. Dai a busca de solugdes mais rapidas por meio de liderangas carismaticas e messianicas. Pelo menos trés dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular apés 1945, Gerilio Vargas, Janio Quadros e Fernando Collor, possuiam tragos messianicos, Sintomatica- mente, nenhum deles terminou o mandato, em boa parte por no se conformarem com as regras do governo representativo, sobretudo com o papel do Congresso, A contrapartida da valorizagao.do Executivo é a desvalori- 2acdo do Legislativo e de seus titulares, deputados e senadores. As cleigdes legislativas sempre despertam menor interesse do que as do Executivo. A campanha pelas eleigdes diretas referia-se a escolha do presidente da Reptblica, o chefe do Executivo. Dificilmente haveria movimento semelhante para defender eleigdes legislativas. Nunca houve no Brasil reagio popular contra fechamento do Congreso, Hé uma convic¢ao abstrata da importancia dos partidos e do Congresso como mecanismos de representacio, convicgdo esta que no se reflete na avaliagdo concreta de sua atuagio. O desprestigio generalizaao dos politicos perante a populagao é mais acen- tuado quando se trata de vereadores, deputados e senadores. Além da cultura politica estatista, ou governista, a inversio favoreceu também uma visio corporativista dos interesses coletivos. Nao se pode dizer que a culpa foi toda do Estado Novo. O grande éxito de Vargas indica que sua politica atin- giu um ponto sensivel da cultura nacional. A distribuigdo dos beneficios sociais por cooptagao sucessiva de categorias de trabalhadores para dentro do sindicalismo corporativo achou terreno féstil em que se enraizar. Os beneficios sociais nao eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negoci~ 222 CIDADANIA NO BRASIL 1 de cada categoria com o governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuidos pelo Estado. A forca do corporativismo manifestou-se mesmo rante a Constituinte de 1988, Cada grupo procurou defen- ¢ aumentar seus privilégios. Apesar das criticas a CLT, as entrais sindicais dividiram-se quanto ao imposto sindical e & Innicidade sindical, dois esteios do sistema montado por Vargas. “Tanto o imposto como a unicidade foram mantidos. Os fun- jondrios pablicos conseguiram estabilidade no emprego. Os aposentados conseguiram o limite de um salirio minimo nas ‘pensGes, os professores conseguiram aposentadoria cinco anos mais cedo, e assim por diante. A pritica politica posterior & rredemocratizagio tem revelado a fora das grandes corporacées ide banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais operirias, dos empregados piiblicos, todos lutando pela preservacio de privilégios ou em busca de novos favores. Na drea que nos finteressa mais de perto, 0 corporativismo é particularmente forte na luta de juizes e promotores por melhores saldrios e {contra o controle externo, ¢ na resistencia das policias militares e civis a mudangas em sua organizacio. ‘A auséncia de ampla organizagao auténoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A Tepresentagio politica nio funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da populagdo. O papel dos legisla ores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao de intermedi- Tios de favores pessoais perante 0 Executivo, O eleitor vota fno deputado em troca de promessas de favores pessoaiss deputado apoia o governo em troca de cargos ¢ verbas para distribuir entre seus eleitores. Cria-se uma esquizofrenia Politica: os eleitores desprezam os politicos, mas continuam, Wotando neles na esperanga de beneficios pessoais. 223 JOSE MURILO DE CARVALHO Para muitos, o remédio estaria nas reformas politicas men cionadas, a eleitoral, a partidéria, ada forma de governo. Essag reformas € outros experimentos poderiam eventualmente redu- zir o problema central da ineficécia do sistema representativo, Mas para isso a fraigil democracia brasileira precisa de tempo, Quanto mais tempo ela sobreviver, maior sera a probabilidade de fazer as corregdes necessarias nos mecanismos politicos ¢ de se consolidar. Sua consolidagio nos paises que sio hoje considerados democraticos, incluindo a Inglaterra, exigiu um aprendizado de séculos. E possivel que, apesar da desvantagem da inversio da ordem dos direitos, o exercicio continuado da democracia politica, embora imperfeita, permita aos poucos ampliar 0 goz0 dos direitos civis, 0 que, por sua ve2, poderia reforgar os direitos politicos, criando um circulo virtuoso no qual a cultura politica também se modificaria, Na corrida contra 0 tempo, hé fatores positivos. Um deles é que a esquerda ea direita parecem hoje convictas do valor da democracia. Quase todos os militantes da esquerda armada dos anos 70 sao hoje politicos adaptados aos procedimentos democraticos. Quase todos aceitam a via eleitoral de acesso a0 poder. Por outro lado, a direita também, salvo poucas excegdes, parece conformada com a democracia. Os militares tém se conservado dentro das leis e ndo ha indicios de que estejam cogitando da quebra das regras do jogo. Os rumores de golpe, frequentes no periodo pés-45, ja ha algum tempo que no vém perturbar a vida politica nacional. Para isso tem contribufdo o ambiente internacional, hoje totalmente desfa- vordvel a golpes de Estado e governos autoritarios. Isso 30 €mérito brasileiro, mas pode ajudar a desencorajar possiveis golpistas e a ganhar tempo para a democracia, ‘Mas o cenério internacional traz também complicagdes 10 da cidadania, vindas sobretudo dos paises 4 CIDADANIA NO BRASIL que costumamos olhar como modelos. A queda do império soviético, 0 movimento de minorias nos Estados Unidos e, principalmente, a globalizagio da economia em ritmo acele- rado provocaram, ¢ continuam a provocar, mudangas impor- tantes nas relacdes entre Estado, sociedade e nacao, que eram ‘centro da nogio e da pratica da cidadania ocidental. O foco das mudancas esta localizado em dois pontos: a reducio do papel central do Estado como fonte de direitos e como arena de participacao, ¢ o deslocamento da nagao como principal fonte de identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-se de um desafio & instituigdo do Estado-nagio. A reducao do papel do Estado em beneficio de organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos politicos. Na Unio Europeia, os governos nacionais perdem poder e relevancia diante dos érgaos politicos e burocriticos supranacionais. Os cidadaos ficam cada vez mais distantes de seus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes decisdes politicas e econdmicas sio tomadas fora do ambito nacional s direitos sociais também sio afetados, A exigéncia de reduzir 0 déficie fiscal tem levado governos de todos os paises 2 reformas no sistema de seguridade social. Essa reducao tem resultado sistematicamente em cortes de beneficios e na des- caracterizacao do estado de bem-estar. A competigio feroz que se estabeleceu entre as empresas também contribuiu para a exigéncia de redugio de gastos via poupanga de mao de obra, gerando um desemprego estrutural dificil de eliminar. Isso por sua vez, no caso da Europa, leva a presses contra a presenga de imigrantes africanos e asiéticos e contra a exten- Slo a eles de direitos civis, politicos e sociais. O pensamento liberal renovado volta a insistir na importdncia do mercado como mecanismo autorregulador da vida econdmica e social fe, como consequéncia, na redugdo do papel do Estado. Para 225 JOSE MURILO DE CARVALHO. esse pensamento, o intervencionismo estatal foi um paréntese infeliz na hist6ria iniciado em 1929, em decorréncia da crise das bolsas, e terminado em 1989 aps a queda do Muro de Berlim, Nessa visdo, 0 cidadao se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupagdes com a politica e com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias nos Estados Unidos contribuiram, por sua vez, para minar a identidade nacional ao colocarem énfase em identidades culturais baseadas em género, etnia, opgées sexuais etc. Assim como ha enfraquecimento do poder do Estado, ha fragmentagao da identidade nacional. O Estado-nagio se vé desafiado dos dois lados. Diante dessas mudangas, paises como o Brasil se veem dian- te de uma ironia. Tendo corrido atrés de uma nogao e uma ritica de cidadania geradas no Ocidente, e tendo conseguido alguns éxitos em sua busca, veem-se diante de um cenrio internacional que desafia essa noco e essa pritica. Gera-se um sentimento de perplexidade e frustraco. A pergunta a se fazer, entdo, € como enfrentar 0 novo desafio, As mudangas ainda nao atingitam 0 pais com a forca verificada na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Nio seria sensato reduzir 0 tradicional papel do Estado da maneira radical proposta pelo liberalismo redivivo. Primeiro, por causa dda longa tradigao de estatismo, dificil de reverter de um dia para outro. Depois, pelo fato de que ha ainda entre nés muito espago para o aperfeigoamento dos mecanismos institucionais de representagao. Mas alguns aspectos das mudangas seriam benéficos. O principal € a énfase na organizacio da socieda- de. A inversio da sequéncia dos direitos reforgou entre nds a supremacia do Estado. Se ha algo importante a fazer em termos de consolidagdo democritica, é reforcat a organizagio da sociedade para dar embasamento social ao politico, isto & para democratizar 0 poder. A organizagio da sociedade ndo 226 CIDADANIA NO BRASIL precisa ¢ ndo deve ser feita contra o Estado em si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado. Experiéncias recentes sugerem otimismo ao apontarem na diregao da colaboracao entre sociedade e Estado que nao fogem totalmente & tradigdo, mas a reorientam na diregao sugerida. A primeira tem origem na sociedade. Trata-se do surgimento das organizagdes ndo governamentais que, sem serem par- te do governo, desenvolvem atividades de interesse piiblico. Essas organizagdes se multiplicaram a partir dos anos finais da ditadura, substituindo aos poucos os movimentos sociais urbanos. De inicio muito hostis ao governo e dependentes de apoio financeiro externo, dele se aproximaram apés a queda da ditadura e expandiram as fontes internas de recursos. Da colaboragio entre elas € os governos municipais, estaduais e federal, tém resultado experiéncias inovadoras no encaminha- mento e na solucZo de problemas sociais, sobretudo nas 4reas de educacio e direitos civis. Essa aproximacao nao contém 0 vicio da “estadania” e as limitagdes do corporativismo porque democratiza 0 Estado. A outra mudanga tem origem do lado do governo, sobretudo dos executivos municipais dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores. Muitas prefeituras experimentam formas alternativas de envolvimento da populagao na formu- lacdo e execugao de politicas piblicas, sobretudo no que tange ao orcamento e as obras piiblicas. A parceria aqui se dd com associages de moradores e com organizagdes no governa- mentais. Essa aproximagio nao tem os vicios do paternalismo € do clientelismo porque mobiliza 0 cidadio. E 0 faz no nivel local, onde a participacdo sempre foi mais fragil, apesar de ser ai que ela é mais relevante para a vida da maioria das pessoas. Mas ha também sintomas perturbadores oriundos das mudangas trazidas pelo renascimento liberal. Nao me refiro Pr 4 defesa da redugdo do papel do Estado, mas ao desenvolvi- mento da cultura do consumo entre a populagio, inclusive a mais excluida, Exemplo do fendmeno foi a invaso pacifica de um shopping center de classe média no Rio de Janeiro por um grupo de sem-teto. A invasio teve o mérito de denunciar de ‘maneira dramatica 0s dois brasis, o dos ricos e o dos pobres, Os. ricos se misturavam com os turistas estrangeiros mas estavam a léguas de distancia de seus patricios pobres. Mas ela também, revelou a perversidade do consumismo, Os sem-teto reivindi- cavam o diteito de consumir, Nao queriam ser cidados mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que reivindicavam era a do direito ao consumo, era a cidadania pregada pelos novos liberais. Se o direito de comprar um telefone celular, um ténis, tum rel6gio da moda consegue silenciar ou prevenir entre os excluidos a militancia politica, 0 tradicional direito politico, as perspectivas de avango democritico se veem diminuidas.. As duas experigncias favorecem, a cultura do consumo dificulta o desatamento do né que torna tio lenta a marcha da cidadania entre nés, qual seja, a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a re- duo da desigualdade e o fim da divisdo dos brasileiros em castas separadas pela educagio, pela renda, pela cor. José Bonifacio afirmou, em representacio enviada & Assembleia Constituinte de 1823, que a escravidao era um cancer que corroia nossa vida civica e impedia a construgao da nagao. A desigualdade é a escravidio de hoje, o novo cincer que impede a constitui¢ao de uma sociedade democrética. A escravidao foi abolida 65 anos apés a adverténcia de José Bonifacio. A precéria democracia de hoje nao sobreviveria a espera ta0 longa para extirpar o cancer da desigualdade. Posfacio Cidadania 12 anos depois: ainda fragil apesar dos avancos ‘A primeira edigdo deste liveo é de 2001, foi mais de uma década, No ritmo cada vez mais acelerado de mudanga que marca a historia recente do pais e do mundo, uma diizia de anos € o bastante para exigir atualizagio do texto. O per- curso da cidadania entre nés sofreu inflexdes importantes, que exigem registro e anilise. Por seu caréter inesperado, por sua dimensio e por ainda apresentarem dificuldades de interpretacdo, os eventos de junho de 2013 foram tratados ‘em seco A parte, no preficio. Colocando-se o observador no final de 2012, poderia ele dizer que 0 humor nacional era ento muito melhor do que © que predominava em 2001. As razdes para isso estavam, sobre- ‘tudo, no avango nos direitos sociais evidenciado pela redugo da pobreza e da desigualdade, mais daquela que desta, e pelo alto nivel de emprego. Da redugio resultou aumento da mobilidade ascendente que, por sua vez, gerou alteragoes importantes na estratificagdo social, cujas consequéncias ainda nao esto claras. Pelo lado politico, a sensagdo de melhoria veio da vit6ria da ‘oposi¢ao em 2002, seguida de transmissiio de poder tranquila e civilizada. A normalidade das duas eleigdes presidenciais se- 229

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