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REVISTA DE DIREITO ADMINISTRA CONTEMPORANEO Ano 1 © vol. 2 @ set.-out. / 2013 Coordenagéo Geral Maagat Justen Fivo E A RESERVA DO POSSIVEL UM LIMITE A INTERVENCAO JURISDICIONAL NAS POLITICAS PUBLICAS SOCIAIS? DOES THE VORBEHALT DES MOGLICHEN (THE PROVISO OF THE POSSIBLE) LIMIT JUDICIAL INTER- VENTION IN SOCIAL PUBLIC POLICIES? Ricaroo PERLINGEIRO Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, ¢ da Associagao Internacional de Direito Processual. Juiz Federal Convocado junto ao TRF-2.* Regido. ‘Area 0 Dire: Processual; Internacional Resumo: Em face da escassez de recursos para su- portar os direitos sociais, o texto analisa os princi- pais precedentes do Tribunal Constitucional Federal ‘alemao sobre a reserva do possivel (Vorbehalt des MBsglichen), ¢ conclui que ela nao se aplica 20 mi- nimo existencial (Existenzminimum) ¢ que, natural- mente, quanto 2 exigibilidade de quaisquer direitos sociais com fundamento em lei, no resta discri- cionariedade politica 20 legislador orgamentario. Em outro giro, 0 texto demonstra que a reserva do Possivel, ao contrério do que se imagina, nenhuma relagdo mantém com as politicas publicas sociais, que, contextualizadas no Ambito dos direitos fun- damentais procedimentais, justificam-se tao so- mente enquanto meio de realizagso de prestagbes sociais exigiveis (justicidveis). Pavavras-cHavE: Reserva do possivel - Minimo cexistencial ~ Direitos sociais ~ Direitos fundamen- tais - Politicas pablicas - Orgamento piilico — Ju- dicializagao de politicas piblicas. ‘Aastract: In light of the shortage of funding to support social rights, the text analyses the main precedents of the Federal Constitutional Court con- cerning the Vorbehalt des Méglichen (Proviso of the Possible), and concludes that is not applicable to the Existenzminimum (existential minimum) and that, in terms of the enforceability (potential for judicial review) of any other social rights quaranteed by law, the margin of discretion granted to law-makers in budgetary policymaking should be reduced to zero. In addition, the text demonstrates that the Vor- behalt des Méglichen, contrary to what might be imagined, has nothing to do with social public poli- cies which, in the context of fundamental proce- dural rights, are justified only asa means of realiza~ tion of the social benefits that may be claimed, Keyworos: Vorbehalt des Méglichen (Proviso of the possible) - Existenzminimur (Existential Minimurn) ~ Social Rights - Fundamental Rights ~ Public poli- cies - Public budget ~ Potential for judicial review of public policies. ‘Suwinio: 1. Introdugao - 2. A reserva do possivel no Brasil ~ 3. Precedentes do Tribunal Constitu- cional Federal alemao sobre a reserva do possivel - 4. A reserva do possivel como manifestacao de uma restrigao ou limitagao de direitos fundamentais sociais origindrios um minimo existen- cial 5. 0 que compreende um minimo existencial? — 6. Reserva do possivel, orcamento puiblico € fiuxo de caixa - 7. As politicas piiblicas como garantias (direitos adjetivos) ¢ sua relagao com 2 reserva do possivel - 8, Consideragdes finais. 164 Revista bé Dineito Apminisrrativo ContemPoRANeo 2013 ¢ ReDAC 2 1. IntRopugAo Bruce Ackerman! alerta que a previsdo constitucional dos direitos sociais corre 0 tisco de converter-se em um exercicio de futilidade. A uma, porque os mais ca- rentes, portanto os principais destinatarios dos direitos sociais, nao estao em con- dices de expressar suas intencées politicas com efeito. A duas, porque, em con- sequéncia, o Legislativo e o Governo, mesmo eleitos, far-se-Ao surdos ao chamado constitucional e acomodar-se-do no Judiciario para que ele implemente os direitos sociais. A tres, porque os juizes carecerao de capacidade técnica para ordenar apro- priagdes orcamentarias, de modo a transformar os direitos sociais em realidade. O pior: o fracasso dos juizes nesse campo, para cumprir os direitos fundamentais sociais, pode desmoralizar seus esforcos para proteger direitos fundamentais mais tradicionais (liberdades negativas).* Esse cenério, que poderia estar presente em qualquer sistema, inclusive de pa- ises desenvolvidos,* agrava-se naqueles em que sabidamente sao parcos os recur- 0s ptiblicos financeiros. Virgilio Afonso lembra que, apesar de o Brasil deter uma economia forte, € ao mesmo tempo um pais que, na area social, padece de todos os problemas caracteristicos dos paises nao desenvolvidos.* Para Alvaro Ricardo de Souza Cruz: “(...) essa crise de efetividade dos direitos sociais est4 no incremento da prosti- tuicdo, da criminalidade, no aparecimento de ordens normativas paralelas (como em favelas) (...) O problema mais candente tem sido o abandono chocante da- 1. Adaptacdo da palestra A reserva do possivel: limite a intervencao do Judicidrio em politicas piblicas?, no painel Controle jurisdicional de politicas publicas, das IX Jornadas Brasileiras de Direito Processual, organizadas pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual, no Rio de Janeiro, entre os dias 29 ¢ 31.08.2012; e da palestra A judicializacao da satide, a reserva do possivel e a Lei 12.401/2011, na 18.* Sexta Juridica Os litigios relacionados a saide ¢ a garantia dos direitos fundamentais, organizada pela Seco Judiciéria do Piaut, em Teresina, no dia, 26.04.2013 2. Acuerwan, Bruce. La nueva division de Poderes. México: Fondo de Cultura Econémica, 2007. p. 121-122. 3. Ver Sommermann, Karl-Peter. Soziale Rechte in Stufen: Uberwindung einer alten Debate? In: Cauuiess, Christian; Kant, Wolfgang; Scamatenbacu, Kirsten (orgs.). Rechtsstaatlichkeit, Freiheit und soziale Rechte in der Europdischen Union, 2013. Ver também Pérez, Jordi Bonet. Dret internacional dels drets humans en perfodes de crisi: criteris daplicaci6 de les obliga- cions juridiques internacionals en materia de drets econdmics, socials i culturals. Revista catalana de dret public, n. 46, p. 14-46, 2013. Disponivel em: [http://revistes.eape.gencat. cat/index. php/redp/article/view/10.2436-20,8030.01.2. Acesso em: 26.08.2013. 4. Sttva, Virgilio Afonso da. O Judiciério e as politicas puiblicas: entre transformacio social ¢ obstaculo a realizacao dos direitos sociais. In: Souza Neto, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentos, judicializacao e direitos sociais em espécie. Rio de Ja- neiro: Lumen Juris, 2008. p. 587. Process & ADMINISTRACAO queles que mais necessitam da solidariedade: as criangas, os idosos eas pessoas portadoras de necessidades especiais. O desespero no atendimento de emergéncia nos hospitais ptiblicos e as longas filas para a obtencao de algum beneficio social.” A propésito, a ideia de que direitos sociais devem ser implantados apenas na medida do possivel leva, no Brasil, a’ doutrina ¢ jurispradéncia, inclusive do STEa divergirem sobre os reflexos dessa reserva do possivel (Vorbehalt des Maglichen) no fendmeno que se denominou “judicializagao das politicas publicas” sociais.° Seria a reserva do possivel realmente um limite a intervencao jurisdicional nas politicas publicas? Opontvel a politicas puiblicas ou a direitos fundamentais? Te- tia a reserva do possivel relacao com prestagdes sociais originadas diretamente da Constituicdo? Seria ela admissivel tratando-se de implantacdo judicial de direitos sociais por omissao legislativa e também por omissao administrativa? Qual a rela- cao da reserva do possivel com o orcamento publico € os recursos financeiros da Administracao? Aplicavel aos direitos fundamentais denominados procedimentais ou apenas aos direitos fundamentais substantivos? Seria possivel suscitar a reserva do possivel tanto na fase cognitiva quanto na fase executiva de um processo judi- cial? Afinal, qual 0 alcance da expressao reserva do possivel? Inumeras sdo as questées, e todas merecem um exame sob perspectivas interdis- ciplinares, a luz dos direitos fundamentais, do direito financeiro e do direito admi- nistrativo, assim como da jurisdicao administrativa e da jurisdicdo constitucional. 2. A RESERVA DO POSSIVEL NO BRASIL A “clausula do possivel” vem sendo reiteradamente afirmada pela doutrina e jurisprudeéncia brasileira.’ Introduzida por constitucionalistas e mesmo sob con- 5. Cruz, Alvaro Ricardo de Souza. Um olhar critico-deliberativo sobre os direitos sociais no Estado Democratico de Direito, In: Souza Neto, Claudio Pereira de; Sarmento, Daniel. Di- reitos sociais: fundamentos, judicializacao e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 87. 6. Ver Costa, Suzana Henriques da. O Poder Judiciério no controle de politicas publicas: um breve andlise de alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal, In: Griwover, Ada Pellegrini; Watawane, Kazuo (coords.). O controle jurisdicional de politicas publicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 466. 7. Torres, Ricardo Lobo. O direito ao minimo existencial. Rio de Janeira: Renovar, 2009. p. 106-110; Grivover, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional das politicas publicas. In: Watanase, Kazuo’(coords.). 0 controle jurisdicional de politicas publicas, Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 125; Caneta Jr., Oswaldo. O orcamento ¢ a reserva do possivel: dimensionamento no controle judicial de politicas publicas. In: Grinover, Ada Pellegrini; ‘Watanase, Kazuo (coords.). O controle jurisdicional de politicas publicas. Rio de Janeiro: Fo- rense, 2011. p. 225; Mepavar, Odete. Controle da Administracao Publica. 2. ed. Sao Paulo: Ed, RT, 2012. p. 221; Cunsa Je., Dirley da. Controle judicial das omissdes do Poder Piblico. 165 166 Revista pe Dinero ApMinistrativo CoNTEMPORANEO 2013 © ReDAC 2 fessada influéncia do direito alemao, a reserva do possivel no Brasil acabou atre- lada a ideia de que os recursos orcamentarios e também os recursos financeiros sao condig6es para a Administracao satisfazer direitos subjetivos de indole social, indistintamente.* Essa vinculagao, em grande parte das vezes, tem levado a afirma- do generalizada de que o exercicio de um direito social depende da edicao ou da adequacao de uma norma orcamentaria, ainda que para isso se valha da jurisdi¢ao constitucional.? Como consequéncia, é também frequente as partes litigantes postularem um contraditério sobre provas da existéncia tanto dos recursos financeiros quanto dos orgamentarios (nao raro confundindo-os), para lastrear o direito sub judice.'° Veja- -Se, a propésito, a seguinte afirmacao: ‘Sao Paulo: Saraiva, 2004. p. 307; Santer, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; Mi- miro, Daniel. Curso de direito constitucional. Sao Paulo: Ed. RT, 2012. p. 558; e Santer, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais, orcamento e reserva do posstvel. Porto Alegre: Editora do Advogado, 2010. 8. Ver Tonnes, Ricardo Lobo, op. cit., p. 110; ARennart, Sérgio Cruz. As ages coletivas € © controle das politicas publicas pelo Poder Judiciario. Jus Navigandi. n. 777. ano 10. Teresina, 19.08.2005. Dispontvel em: [http://jus.com.br/revista/texto/7177]. Acesso em: 26.08.2013; ArPio, Eduardo. Controle judicial das politicas publicas no Brasil. Curitiba: Ju- ud, 2008. p. 174-178 e 184; SarLeT, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; Mmpico, Daniel, op. cit., p. 561-562; Saver, Ingo Wolfgang; Ficuemevo, Mariana Filchtiner. Reser va do posstvel, minimo existencial e direito a satide: algumas aproximacoes. (org.). Direitos fundamentais, orcamento e reserva do posstvel. Porto Alegre: Editora do Advogado, 2010. p. 7 € 29; Souza Neto, Claudio Pereira de; Sarmento, Daniel, op. cit., p. 553-586. Dirley Cunha Jr., apesar de criticar, dizendo-se contra condicionar a eficdcia dos direitos fundamentais a limites f4ticos, parece, por outro lado, seguir a mesma premissa de que a reserva do possivel, em si, confunde-se com os recursos financeiros (op. cit., p. 290, 307-309). Ver Grinover, Ada Pellegrini; Waranase, Kazuo (coords.), op. cit., p. 148-149. Mencionando a necessidade de prova da insuficiéncia orgamentiria e financeira: Ver In: Grivover, Ada Pellegrini; Watanane, Kazuo (coords.), op. cit., p. 138; Zaneni Jr., Hermes. A teoria da separacao dos Poderes ¢ o Estado Democrdtico Constitucional: funcdes de governo ¢ funcdes de garantia. In: Grover, Ada Pellegrini; Waranase, Kazuo (coords.). O controle jurisdicional de politicas publicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 59; Camat, Eduardo, Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, politicas pitblicas ¢ protagonismo judiciario. Sao Paulo: Ed. RT, 2009. p. 409; AumeiDa, Marcelo Pereira de. Notas sobre o principio da reserva do posstvel orcamentario. {S.L.: s.n.], linédito}; Mancuso, Rodolfo de Camargo. A cao civil publica como instrumento de controle judicial das chamadas politicas publicas. In: Mare, Edis (coord.). Ado civil publica. S40 Paulo: Ed. RT, 2001. p. 706-751; Watanase, Kazuo. Controle jurisdicional das politicas piblicas: m{nimo existencial| e demais direitos fundamentais imediatamente judicializaveis. In: Grover, Ada Pellegrini; ‘Watanase, Kazuo (coords.). O controle jurisdicional de politicas publicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 223; Souza Neto, Claudio Pereira de; Sarmento, Daniel, op. cit. 2 1 Ss Processo £ ADMINISTRACAO “(..) todavia, antes de reconhecer singelamente a falta de escassez de recursos, € preciso investigar, no caso concreto, essa escassez ¢ os motivos que levaram a ela. (...) Ser que é possfvel falar em falta de recursos para a satide quando existem, no mesmo or¢amento, recursos com propaganda do Governo? Antes de os finitos re- cursos do Estado se esgotarem para os direitos fundamentais, precisam estar esgo- tados em areas nao prioritdrias do ponto de vista constitucional e nao do detentor do poder.” Associar reserva do possivel a necessidade de recursos financeiros nao é uma peculiaridade do direito brasileiro. Jestis Maria Casal, citando o direito a saude, entende que o direito social, para ser atendido, depende de recursos econdmicos disponiveis e que, somente dentro do possivel, pode ser judicialmente invocado diretamente da Constituicdo.!* Gomes Canotilho diz que: “a construgao dogmatica da reserva do possivel foi rapidamente aderida para traduzir a ideia de que os di- reitos sociais $6 existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres publicos”.!* A excecao fica por conta do minimo existencial,!* porém, mesmo assim, confor- me alguns, apenas para autorizar o juiz a implantar indiretamente 0 direito social, isto é, mediante prévia intervencdo jurisdicional na gest4o orcamentaria e financei- ra do Poder Publico (Legislativo e Administra¢ao).'* 11. Freire Jr., Américo Bede. O controle judicial de politicas piblicas. Sao Paulo: Ed. RT, 2005. p. 73. 12. Casat HERNANDEZ, Jestis Marfa. Los derechos fundamentales y sus restricciones. Caracas: Le- gis, 2010. p. 24. 13. Canormno, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ¢ teoria da Constituigao. Coimbra: Almedina, 1998. p. 439, 14. Torres, Ricardo Lobo, op. cit. Ver BrasiL. Supremo Tribunal Federal. ARE 639.337/SP. Educagao Infantil. Direito fundamental. Protecao jurisdicional. Poder Public. Munici- pio. A questao da reserva do posstvel. Relator Min. Celso Mello. Brasflia/DF, 23.08.2011. Disponivel em: [www.stl,jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaSt/anexo/ARE639337emen- ta.pdf]. Acesso em: 26.08.2013; Grinover, Ada Pellegrini; Watanase, Kazuo (coords.), op. cit., p 217-218. Sobre o minimo existencial, ver também Santer, Ingo Wolfgang; Fi- ustepo, Mariana Filchtiner, op. cit., p. 18-27. Ana Paula de Barcellos busca um concei- to de minimo existencial em matéria de satide (A construcdo de um minimo existencial em matéria de prestacdes de saiide. In: Souza Nero, Claudio Pereira; Sarmento, Daniel. Direitos sociais: fundamentos, judicializagao e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008). 15. Ver Lopes, José Reinaldo de Lima. Em torno da reserva do possfvel. In: Sartet, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais, orcamento ¢ reserva do possivel. Porto Alegre: Editora do Advogado, 2010. p. 191-192. Ver também Farire Jr., Américo Bede, op. cit., p. 78; e Cansta Jn., Oswaldo, op. cit. p. 234. Ingo Wolfgang Salert, sem adentrar na coeréncia e uniformidade do STF, noticia que aquela Suprema Corte tem precedentes assegurando o direito a satide como dever origindrio, nao necessitando de politicas publicas prévias ou previséo em lei (Santer, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; 167 168 Revista DE Dinero ApMinistrativo ContemPorANeo 2013 ® REDAC 2 Segundo Ada Pellegrini: “O Judiciario, em face da insuficiéncia de recursos ¢ de falta de previsao or camentaria, devidamente comprovadas, determinaré ao Poder Puiblico que faca constar da préxima proposta orcamentéria a verba necesséria’a implementacao da politica publica (...). Deste modo, frequentemente a reserva do possivel pode levar o Judiciario a condenacao da Administracao a uma obriga¢ao de fazer em duas etapas: primeiro, a inclusdo no orcamento da verba necesséria ao adimplemento da obrigagdo; e a obrigacdo de aplicar a verba para o adimplemento da obrigacdo.”"® No mesmo sentido, Marcelo Pereira de Almeida: “(...) Porém, o remanejamento dos gastos publicos, bem como a abertura de cré- ditos suplementares € papel do Executivo e Legislativo e ndo do Poder Judiciério, que apenas reconhece a protecdo do minimo existencial e determina que os demais poderes pratiquem os atos orcamentarios cabiveis (...).”"7 3. PRECEDENTES DO TRIBUNAL CoNSTITUCIONAL FEDERAL ALEMAO SOBRE A RESERVA DO POSSIVEL A reserva do possivel é uma construcao jurisprudencial do Tribunal Constitucio- nal Federal alemao, a qual foi invocada, principalmente, em seis oportunidades,'* sendo uma posicao predominante até o dias atuais.'? Pela primeira vez, em 1972, na deciséo denominada numerus clausus, que ver- sava sobre o direito a vagas em universidades publicas, aquela Corte entendeu que Mimo1ero, Daniel, op. cit., p. 575). Ver ainda Sar.er, Ingo Wolfgang; Ficueiepo, Mariana Filchtiner, op. cit., p. 37 16. Ver Grivover, Ada Pellegrini; Waranane, Kazuo (coords.), op. cit., p. 138. 17. Aumeipa, Marcelo Pereira de, op. cit. 18. Ver Gaier, Reinhard. Prestacdes positivas contra o Estado e a cldusula da reserva do possivel. If Seminario Internacional Brasil-Alemanha, 2011. Florianopolis. Disponi- vel. em: [wwwyoutube.com/watch?v=E3zeSegl83c>} ¢ [wwwyoutube.com/watch?v=_ Dm5xNsvinl&feature=relmfu]. Acessos em: 26.08.2013. Organizado pelo Centro de Estu- dos Judiciarios (CEJ) do Conselho da Justica Federal (CJF). Versao impressa: I Seminario Internacional Brasil-Alemanha: Thompson Flores (portugués/alemao): 16 e 17.06.2011, Florianépolis, Brasil/Conselho da Justica Federal, Centro de Estudos Judiciarios; coorde- nacao cientifica Marcio Flavio Mafra Leal - Brasilia: CJF, 2011. 129 p.: il. — (Serie Gadernos CEJ; 27. Dispontvel em: [wwwejl.jus.bt/cjl/CEJ-Coedi/gd/documentos/seriecadernoscej- 27brasil-alemanha.pdf]. Acesso em: 26.08.2013. 19. Ver Diernicn, Murswiek. Grundrechte als Teilhaberechte. In: Isenser; Kircunor orgs.) Handbuch des Staatsrechts 1X: Allgemeine Grundrechtslehren. Heidelberg: C.E Muller, 2011. p. 570 e ss. Em sentido contrério, com criticas a teoria da reserva do possivel, consideran- do-a demasiadamente vaga, ver PLaNver, Harro. “Anmerkung” zum Urteil des BVerfG vom 18.07.1972 (numerus clausus). Neue Juristische Wochenschrift (NJW), p. 1941 ess., 1972. Processo & ADMINISTRACAO. os direitos fundamentais a prestacdes positivas que resultam diretamente da Cons- tituigéo devem ser limitados aos casos em que 0 individuo possa racionalmente exigi-los da sociedade.® O argumento principal foi o de que o legislador, no exerci- cio de suas atribuigdes, também deve observar outros interesses da comunidade. E, de acordo com a propria Constituicao, seria imprescindfvel preservar 0 equilfbrio econdmico global, ou seja, nao se deveria instituir despesas ¢ onerar exagerada- mente a sociedade. Em outra passagem da decisdo, ficou assentado que seria “uma incompreensao do significado de liberdade, se houvesse continua precedéncia da liberdade pessoal em detrimento da capacidade funcional e do equilibrio da socie- dade como um todo”.”! O acérdao foi concluido com a tese de que “uma pretensao subjetiva e ilimitada as custas da comunidade é incompativel com os principios do Estado Social”? Ademais, é na decisdo numerus clausus que tem raizes a distin¢do entre os direi- tos sociais derivados (na lei) e os direitos fundamentais sociais originados direta- mente da Constituicdo, Ao comentar esse ponto, Reinhard Gaier indica que: “Os direitos derivados nao apresentariam problemas, pois conferem direito a acesso a bens e servicos que sao oferecidos pelo Estado. Mas, em certos casos, reco- nhecem-se também direitos a prestag6es origindrias e diretamente da Constituigdo, pelas quais o Estado deve necessariamente mobilizar os recursos necessarios para implementa-los. Por isso, a ideia de que, nestes casos, os direitos fundamentais a uma prestacao devem limitar-se aqueles que o individuo pode razoavelmente exigir da sociedade. As razes seriam evidentes. Exatamente em um Estado cujo ordenamento juridico se baseia nas liberdades, as disponibilidades financeiras sdo limitadas, tanto que na alocacao desses recursos surgem sempre conflitos sobre sua destinagao, a serem dirimidos em relagdo a outras prioridades. A solucdo desses conflitos, ou seja, a decisao sobre a alocagao dos recursos financeiros destinados a determinadas prioridades, ¢, em um Estado Democratico e sob o principio da sepa- raao de Poderes, tarefa precipua e de competéncia do legislador.”? 20. Avemanua. Tribunal Constitucional Federal (BVer{G). 1 BvL 32/70 e 25/71. j. 18.07.1972. BVerfGE 33, 303. NJW 1972, 1561 21. Ver Carrrant, David. Les effets juridiques des droits fondamentaux en Allemagne. Paris: LGDJ, 2001. p. 308. . Ver Gate, Reinhard, op. cit. Idem. Sobre os direitos de prestacao originarios e derivados: Carrtant, David, op. cit., p. 306-312; Atexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, Sto Paulo: Malheiros, 2008. Trad. Virgilio Afonso, p. 436-439; Wour, Hans J.; BACHoF, Otto; Stoner, Rolf. Direito adminis- trativo. Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian, 2006. vol. 1. Trad. Antonio F de Souza, p. 488-489. Bodo Pieroth e Bernhard Schlink assinalam ser materialmente decisivo, nos direitos fundamentais a prestagao, saber se eles se referem a medidas ja existentes ou a criagao dessas medidas (Direitos fundamentais. Sao Paulo: Saraiva, 2012. p. 63 e 74. Trad. BR 169 170 Revista dé Dineito Apministrativo ConteMPORANEO 2013 ® REDAC 2 Em 1990, 0 Tribunal Constitucional alemao novamente invocou a reserva do possivel, para justificar a constitucionalidade da reducdo do auxilio-crianga para pais com nivel de renda elevado. Foi com esta decisao que se introduziu o critério da “clara inadequacdo de uma prestacao devida constitucionalmente” ou da “linha do toleravel” como condicio para incidir a reserva do possfvel, em outras palavras, se a limitacao pelo legislador ocorresse de tal forma que inviabilizasse 0 exercicio do proprio direito social em questao.* Em 1992, o Tribunal decidiu a respeito da possibilidade do tempo gasto na edu- cacao dos filhos ser considerado para o efeito de calculo da aposentadoria, levando, consequentemente, a um beneficio previdencidrio de maior valor, apesar de nao ter havido contribuicdo para a seguridade social por falta de atividade profissional durante aquele mesmo periodo. Nesta deciséo, apontou-se a reserva do possivel como um limitador de prestacdes que acarretem custos financeiros no ambito dos incentivos publicos a familia, exceto se a regra constitucional de incentivo, na pra; tica, estivesse sendo violada por prestagdes “evidentemente inadequadas” e fora do limite do toleravel, 0 que ndo era 0 caso Na decisao de 1998, a discussao era se o reembolso das despesas pelos cuidados de criangas em jardins de infancia poderiam ser escalonadas de acordo com a renda familiar, Em ultima analise, o que estava em jogo era saber se o Estado podia se recusar a subvencionar despesas de jardins de infancia a pais abastados, que so ga- rantidas as familias mais pobres.* A decisdo, inicialmente, destacou o principio da igualdade de tratamento, porém também examinou se foi cumprido o dever consti- tucional de incentivo em favor das familias. Em sintese, indicou que esse dever de prote¢ao nao impede que o Estado diferencie o valor da subvengao as familias con- forme a capacidade financeira delas ¢ sem considerar outros interesses publicos.”” Antonio Francisco de Souza e Antonio Franco). © STF brasileiro destacou que a maioria dos conflitos sobre a judicializacao das politicas de satide dizem respeito a implementacao de politicas ja existentes (Brasit. Supremo Tribunal Federal. STA 175. Saude publica. Di- reitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituicao. Audiéncia publica. Sistema Unico de Saiide — SUS. Politicas piblicas. Judicializagao do direito a satide. Relator Min. Gilmar Mendes. Publicado em: 29.04.2010. Dispontvel em: [www.stf jus. br/arquivo/cms/noticia- noticiastf/anexo/stal75.pdf]. Acesso em: 26.08.2013). Ver também Santer, Ingo Wolfgang; Maniont, Luiz Guilherme; Mrrprexo, Daniel, op. cit., p. 564. 24. Atemanna. Tribunal Constitucional Federal (BVerfG). 1 BvL 20/84. j. 29.05.1990. BVerfGE 82, 60. NJW 1990, 2869. 25. AtemanuA. Tribunal Constitucional Federal (BVerfG). 1 BvL 51/86 e 50/87; 1 BR 873/90, 761/91. j. 07.07.1992. BVerfGE 87, 1. NJW 1992, 2213. 26. Auemanua. Tribunal Constitucional Federal (BVerfG). 1 BvR 178-97. j. 10.03.1998, BVerfGE 97, 332. NJW 1998, 2128. Disponivel em: [www.bverfg.de/entscheidungen/ 1519980310_1bvr017897.html]. Acesso em: 26.08.2013). 27. Ver GAIER, Prestacbes positivas contra o Estado ¢ a cldusula da reserva do posstvel, op. cit.. Processo £ ADMINISTRACAO mm A decisao de 2001 tratou de uma contribuicdo obrigatoria para a assisténcia social decorrente de prestacdes que financiam idosos necessitados de cuidados especiais.* Os demandantes alegaram que ja contribuiam suficientemente para a assisténcia de idosos, por meio de cuidados ¢ educacdo de seus filhos, pois essas criangas, no futuro, teriam condi¢des de prover os recursos para as geracdes mais idosas. A isencdo total da contribuicdo pretendida pelos demandantes também foi negada pelo Tribunal com base na reserva do possivel. Novamente, surgiu o argu- mento de que o legislador teria que considerar, no interesse do bem comum, além do incentivo a familia, outros interesses da comunidade.”” Finalmente, a reserva do posstvel foi mencionada em uma deciséo do ano de 2004, a qual se refere a Lei de Indenizacao de Vitimas que regulamenta o apoio do Estado a vitimas de crimes violentos.” Segundo essa lei, também as vitivas e vidvos desses crimes aufeririam beneficios estatais caso fossem responsaveis pelos cuida- dos de um filho em comum. Nenhum beneficio recebiam, entretanto, 0 pai ou a mae de filhos ilegitimos. Considerou-se a lei inconstitucional somente por violacao ao principio da igualdade de tratamento, remanescendo ao Legislativo diferentes possibilidades para uma nova disciplina do beneficio, pois, na verdade, o legislador poderia corrigir o tratamento desigual, como, por exemplo, nao conferindo aos pais de filhos ilegitimos ¢ a mais nenhum outro beneficio, isto €, extinguindo-o. Entao, mais uma vez, afirmou-se a reserva do possfvel. Naquela oportunidade, a ideia do Judicial Self-restraint,* vinculada reserva do possivel, foi assim descrita pelo Tribunal Constitucional Federal: “Nao se trata da reducdo ou enfraquecimen- 28, Avemanua. Tribunal Constitucional Federal (BVerfG). 1 BvR 1629/94. j. 3 abr. 2001. BVerfGE 103, 242. NJW 2001, 1712. Disponivel em: [wwwbverfg.de/entscheidungen/ 1520010403_Ibvr162994.html]. Acesso em: 26.08.2013). 29. Ver Gaier, Reinhard, op. cit. 30, AuemAnHa. Tribunal Constitucional Federal (BVerfG). 1 BvR 684/98. j. 09.11.2004. BVeriGE 112, 50. NJW 2005, 1413. Disponivel em: [wwwbverfg.de/entscheidungen/ 1520041109_1bvr068498.html]. Acesso em: 26.08.2013). 31. Bundesgesetz zur Entschadigung far Opfer der nationalsozialistischen Verfolgung (Bundes- entschadigungsgesetz — BEG). Gesetz 18.09.1953. BGBI. 1 S. 1387; zuletzt geandert durch Artikel 15 Abs. 63 G. v. 5 fev. 2009 BGBI. I S. 160; aplicavel desde o dia 01.01.1964 (ALe- Mawita. Lei de Indenizacao Federal (Bundesentschadigungsgesetz — BEG). Dispée sobre a compensacao para as vitimas da perseguigto nazista, Gesetz 18.09.1953. BGBI. I S. 1387; zuletzt geandert durch Artikel 15 Abs. 63 G. v. 05.02.2009. BGBI. 1 S. 160. Aplicavel desde 01.01.1964). 32. Ver Ashwander v. Tennessee Valley Authority (Estanos Untnos pa Amenica. Supreme Court of the United States. Ashwander v. Tennessee Valley Authority, N. 403. j. 17.02.1936. Washign- ton D.C., U.S. Government Printing Office, United States Reports, vol. 297, p. 288 ¢ 346- 349. Dispontvel em: [www.law.cornell.edu/supet/htmV/histories/USSC_CR_0297_0288_ ZS.hunll. Acesso em: 26.08.2013). 172 Revista pe Dinero ApMunistrarivo ConremPorANeo 2013 © ReDAC 2 to de sua propria competéncia como corte constitucional.'O que esta em jogo, isto sim, é abster-se de fazer politica’.” 4, A RESERVA DO POSSIVEL COMO MANIFESTACAO DE UMA RESTRICAO OU LIMITACAO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS ORIGINARIOS A UM MINIMO EXISTENCIAL Os direitos fundamentais tem um Ambito de protecdo amplo, apesar de sujei- tarem-se a restricdes proporcionais e constitucionalmente justificaveis.™ As Yestri- ¢Oes aos direitos fundamentais sociais ocorrem ante uma omiss4o ou uma atuacao timida do Poder Publico que, ao mesmo tempo, devem ser proporcionais ¢ estar lastreadas em fundamentos constitucionais.* O contetido essencial de um direito fundamental social, atrelado ao principio da dignidade da pessoa humana, confunde-se com 0 mfnimo existencial,* cujo ambito de protecdo € corolario logico da aplicagao da regra da proporcionalidade no caso concreto (este ndo se limitando necessariamente a situagdes individuais, mas coletivas também).” Segundo Alexy, “restrigdes que respeitem a maxima da proporcionalidade nao violam a garantia do contetdo essencial ainda que, no caso concreto, nada restar do direito fundamental”, e, no caso especifico do direito ao minimo existencial, em 33. Gater, Reinhard, op. cit. 34. Sutva, Virgilio Afonso da, op. cit., p. 74-75 € 154. 35. Idem, p..77-78. 36. Segundo Celine Fercot, o direito ao minimo pode ter fundamentos diferenciados: na digni- dade da pessoa humana, de forma autOnoma, como em Israel, e vinculada ao Estado Social, a exemplo da Alemanha e da Colombia. Menciona, ainda, o diteito ao minimo decorrendo diretamente do direito a vida, como na India, ou decorrendo do direito a vida e da dignidade associados, como no direito sul-africano (Le juge et le droit au minimum. Les ambiguites du droit a des conditions minimales d’existence en droit comparé. In: RowaN, Diane (org.). Droits des pauvres, pauvres droits? Paris: Centre de Recherches sur les droits fondamentaux [Credof], Université Paris Quest Nanterre la Défense, 2010. p. 239-243. Dispontvel em: [hps//revdh files. wordpress.com/2012/04/le-juge-et-le-droit-au-minimum. pdf] . Acesso em: 26.08.2013). 37. Na reserva do possivel se manifesta o princfpio da proporcionalidade no ambito do Estado orcamentario (Kincitior, Ferdinand. Umfassende Staatsgewalt mit begrenzten Mitteln. In: Isexsse, J.; Kincitior, Paul. Handbuch des Staatsrecht, §'99 vol. V. Heidelberg: C.E Mal- ler, 2007. Disponivel em: [www.cfmueller-campus.de/data/resources/e6d3c440447 pdf. ‘Acesso em: 26.08.2013). Sobre o principio da proporcionalidade, ver BLANke, Herm.J. El principio de proporcionalidad en el derecho alemén, europeo y latinoamericano. In: BocpANby; Plovesan; MORALES AwTontazz1 (orgs.). Direitos humanos, democracia e integracao Juridica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 35 e ss. Ver também Suva, Virgilio Afonso da, op. cit., p. 197 e 204; e Auexy, Robert, op. cit., p. 297298. Processo & ADMINISTRACAO diteitos sociais, “os sopesamentos podem conduzir, em circunstancias distintas, a direitos definitivos distintos”** Partindo de uma premissa diversa, a de que’os direitos fundamentas contém um Suporte fatico reduzido, e, com isso, o minimo teria um cardter absoluto,” anota Reinhard Gaier que,'em face da dignidade humana, pouca ou nenhuma discricio- nariedade pode ser conferida ao legislador, nao se aplicando a reserva do posstvel ‘ou, como ele prefere denominar, a autolimitacao judicial:” a Constituicao alema declara, no art. 1.°, inc. 1.°, a dignidade humana como prinefpio invioldvel, conferindo, portanto, 4 dignidade humana uma impor- tancia absoluta, e probe qualquer dano a essa dignidade. Desde que a garantia da dignidade humana seja diretamente atingida, nao pode haver qualquer discricio- nariedade do legislador. A dignidade humana deve ser observada sem qualquer felativizacao. Uma ponderacao, com outros bens constitucionais, ainda que impor- tantes, ndo seria imaginavel. E tarefa do legislador adequar as prestacdes positivas a serem implementadas ao Tespectivo nivel de desenvolvimento da sociedade e das condicdes de vida (digni- dade humana) em vigor. Essa‘é uma discricionariedade limitada do legislador e nao tem relacao com o poder de conformacao politica que seria assegurado por meio da teserva do possivel. Nao se trata de decidir conflitos de acordo com critérios politicos. Desse modo, nao se poderia, por exemplo, para desonerar 0 cidadao do pagamento de tributos, retirar 0 apoio dos sem renda aos meios que lhes asseguras- sem a simples sobrevivéncia.” Segundo Gaier, essa abordagem permite os seguintes desdobramentos:*! “As discricionariedades do legislador tampouco podem ser asseguradas nos ca- sos onde resultam deveres estatais decorrentes de direitos infraconstitucionais por ele mesmo instituidos. Os direitos subjetivos previstos em lei ou créditos oriundos da responsabilidade civil do Estado devem ser cumpridos sem maiores questionamentos e nao podem ser rejeitados em favor da precedéncia do legislador orgamentério. 38. Atexy, Robert, op. cit., p. 297 € 513. 39. Anota Alexy (op. cit., p. 298-301) que o Tribunal Constitucional Federal alemao tem pre- cedentes no sentido da natureza absoluta do nucleo essencial. 40. Ver Gatex, Reinhard, op. cit. Ante 0 minimo existencial, direito social € um dever do Po- der Pablico vinculado originariamente a Constituigao ¢ desde logo judicialmente exigivel (Auexy, Robert, op. cit., p. 502.¢ 512-513). No mesmo sentido: Menoes, Gilmar Ferreira; Cosixo, Inocéncio Mértires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. ‘Sao Paulo: Saraiva, 2007. p. 253. Para a jurisprudéncia da Corte Constitucional italiana 0 nuicleo minimo ¢ “inelimindvel” do direito & prestacdo (Cuione, Giampiero. Diritto sanita- rio. Santarcangelo di Romagna: Maggioli Ed., 2005. p. 21). 41. Gater, Reinhard, op. cit. 173 174 Revista ve Dinero Aoministrativo ContemporAneo 2013-¢ ReDAC 2 principio do Estado de Direito também exige um dever geral de responsabi- lidade civil do Estado por atos ilicitos. O conflito entre os princfpios da responsa- bilidade civil fundados na Constituicdo, de um lado, ¢ a prerrogativa orcamentaria do Legislativo, de outro lado, nao deve ser resolvido de tal forma que se permita ao legislador, por conta de sua prerrogativa orcamentaria, salvaguardar o Estado através da retengao de recursos financeiros para prestacoes indenizatorias ou com- pensatérias em relacao aos cidadaos. Nesse contexto, a prerrogativa orcamentaria do Legislativo deve, assim, passar para segundo plano, desde que isso permita impedir ao cidadao o gozo de seus direitos a prestacdes contra o Estado fundados na Constituicao.” Finalmente, conclui Gaier que: “A reserva do possivel ¢, portanto, na jurisprudéncia do Tribunal Constitucional Alemio, o meio efetivo em que o legislador mantém uma margem de manobra de conformacao politica, apesar da existéncia de deveres de prestacdo positiva consti- tucionalmente originarios. Isto em decorréncia da autolimitagao judicial (Judicial Self-restraint) fundamentada no principio da triparticao de Poderes. A sua aplica- Ao nao deve ocorrer, entretanto, onde ndo se exige a protecdo da margem de dis- cricionariedadeinerente a outros Poderes de Estado. A reserva do possivel nao deve ser instrumento para contornar pretensdes dos cidadaos contra o Estado institufdas pelo direito infraconstitucional ou mesmo que decorram, direta ¢ inexoravelmente da propria Constituicao.” * Em outras palavras, a reserva do possfvel pode ser compreendida como restri- des ou limitagdes a um minimo existencial (até um minimo) de direitos funda- mentais sociais origindrios. Portanto, ¢ apenas fora do ambito de protecdo desse minimo — “inegociavel” no debate politico —° que os limites ou restrigdes se justi- ficam constitucionalmente quando e enquanto nao houver orgamento, ou politicas 42. Idem. Ver Carrrant, David, op. cit., p. 312. Por isso mesmo, rechaga-se a tese de que 0 orgamento, e, portanto, a cliusula da reserva do possivel, seja um Sbice ao cumprimento de ordens judiciais. Seria um raciocinio tao absurdo quanto negar escancaradamente, a um sé tempo, o principio da tutela judicial efetiva e o principio do Estado de Direito (Ver Penuinceiro, Ricardo. Execucdo contra a Fazenda Publica. Sao Paulo: Malheiros, 1999. p. 208-217). 43. Na verdade, o controle da discricionariedade politica do legislador, pela regra da propor- cionalidade, ocorre t4o somente diante de questdes que ultrapassam o minimo existencial porque, ante o minimo, sequer cogita-se um jutzo politico distanciado (Ver Boucosza, Isa- belle; Rosrratute, David. Standards jurisprudentiels et controle de l'obligation étatique en droit comparé : une géométrie variable. La Revue des Droits de ! Homme. juin 2012, p. 319. Disponivel em: [http:/revdh: files.wordpress.com/2012/06/standards-jurisprudentiels-et- contre3b4le-de-L obligation-c3a9tatique-en-droit-comparc3a9-une-ge3a9omc3adtrie-va- riable.pdf]. Acesso em: 26.08.2013, p. 319). Proceso € ADMINISTRACAO publicas que o compreenda, indicando democraticamente quais prestacdes sociais devem ser suportadas pela sociedade.* Neste particular, os comportamentos omis- sivo, restritivo ou limitativo do legislador devem ser considerados previamente a qualquer pretensdo judicial de um direito social,** sendo reprovaveis e judicializa- yeis somente se implicarem uma ponderagao desproporcional quanto aos direitos fundamentais ou principios constitucionais em colisao.* 5. O QUE COMPREENDE UM MINIMO EXISTENCIAL? Tarefa nem sempre facil é a propria compreensao do minimo, ante uma concep- ao absoluta e mesmo relativa que a ele se pretenda atribuir. A propésito, Pieroth e Schlink observam que: “a questao de saber até onde vai a responsabilidade do Estado social, sob 0 aspecto da dignidade da pessoa humana, esta especialmente vinculada aos padrdes e também a riqueza de uma sociedade; se a jurisprudéncia fala da manutengdo do minimo existencial, este critério esta dependente do tempo e da situacgao”.” De acordo com um recente precedente do Tribunal Constitucional alemao, de 2010, os cidadaos tém direito aos pressupostos materiais indispensaveis a sua exis- téncia fisica (alimentacdo, vestudrio, artigos domésticos, habitac4o, aquecimento, saneamento ¢ satide) ¢ a um minimo de participacao na vida social, cultural ¢ politica, porque o ser humano, como pessoa, est4 necessariamente inserido nas telacdes sociais. Porém, segundo aquela mesma decisdo, o minimo deve corresponder ao nivel de desenvolvimento da comunidade e das condigoes de vida existentes, sujeitos a atualizagdo continua e aqui residindo a unica margem de manobra da lei, o que, ainda assim, nao afasta do Poder Piiblico o dever de indicar de modo transparente € compreensivel as demais despesas publicas, e também destas se encontrarem fun- dadas em um método de calculo confiavel e consistente. Essas consideracées sao pertinentes sobretudo a pretensdes judiciais a presta- 6es sociais minimas que nao possam ser claramente deduzidas de normas constitu- 44. Avexy, Robert, op. cit., p. 508; Menpes, Gilmar Ferreira; CortHo, Inocéncio Martires; Bran- co, Paulo Gustavo Gonet, op. cit., p. 251. 45. Atexy, Robert, op. cit., p. 508; Wotr; BACHOF; Stoner, op. cit., p. 488-489. 46. Conforme nota anterior (Auexy, Robert, op. cit., p. 508; WoLF; BACHOF; SroseR, op. cit., Pp. 488-489). Em sentido contrario, anota Mark Tushnet uma tendéncia 2 nao considerar justiciaveis os direitos sociais e econdmicos [welfare rigths] afastados do nticleo das ne- cessidades basicas, dos interesses fundamentais ou dos direitos substantivos fortes (Social Welfare Rights and the Forms of Judicial Review. Texas Law Review, Austin, vol. 82, n. 7, p. 1985-1919, 2004 apud Torres, Ricardo Lobo, op. cit., p. 133). 47. Prexorn; ScuuINK, op. cit., p. 172. 175, 176 Revista de Dinero Apministrativo CONTEMPORANEO 2013 © REDAC 2 cionais e legais, e, na pratica, dependem de uma jurisdicao constitucional prévia,® além de uma complexa prova técnica.” 6. RESERVA DO POSSIVEL, ORCAMENTO PUBLICO E FLUXO DE CAIXA Como se depreende, a reserva do posstvel est4 intimamente relacionada com orcamento publico, abarcando-o sem que com ele se confunda. Entre os recursos financeiros ¢ a reserva do possivel, no ha, contudo, nenhuma vinculacao. Em face de direitos sociais cujas prestacdes se extraem automaticamente da Constituicao, e enquanto nao houver lei as criando, o orgamento publico é de- terminante como garantia de um sistema juridico democratico na distribuicao dé beneficios sociais; a proposito, papel que uma lei (nao orcamentaria) exerceria ple- namente e por si s6. Com efeito, a natureza politica do orgamento conduz ao planejamento de des- pesas publicas que estejam na esfera de disponibilidade do administrador; diante de um dever constitucional ou legal, porém, nada mais lhe restaria senao pagar, passando a ocupar o or¢amento um papel interna corporis e secundario em face de um credor do Poder Publico.* Portanto, o legislador orcamentario nao tem mar- 48. Refiro-me a uma jurisdicao constitucional prévia ¢ concreta (nao abstrata), que, no sis: tema constitucional brasileiro, pode ser exercida incidentalmente por qualquer juiz ou tribunal, ainda que se trate de inconstitucionalidade por omissao (Ver Santer, Ingo Wol- fgang; Marinoni, Luiz Guilherme; Mripiexo, Daniel, op. cit., p/ 787, 796-801 e 890-892): Para Sommermann, o controle concreto de constitucionalidade por omissdo, no Tribunal Constitucional alemao, ¢ uma solugao que vem ao encontro de uma maior acessibilidade da jurisdigao constitucional por omissao, antes dependente de procedimentos especiais nem sempre efetivos (idem). Sobre o controle de constitucionalidade por omissao, ver (CasaL HERNANDEZ, Jestis Maria. Constituicion y justicia constitucional. 2 ed. Caracas: Uni- versidad Cat6lica Andrés Bello, 2006. p. 227 e ss. Sobre os procedimentos. processuais do controle de constitucionalidade por omissao na Europa e no direito comunitario, ver Rota, Giancarlos. Elementi di diritto costituzionale comparato. Milano: Giuffre, 2010. vol. 4, p. 185-186, 49. Segundo Sommermann, “um maior rigor na instrucdo probatéria pode ser considerado um eficaz controle de admissibilidade, especialmente em sistemas em que a jurisdicao constitucional é sempre concentrada no tribunal constitucional, seja abstrato ou concreto © controle de constitucionalidade” (idem). 50. Ver Perlingeiro (Redefinicao de papéis da execucao de quantia certa contra a Fazenda Publica. Revista CE] 31/68-74. Brasflia/DE, 2005. Disponivel em: {http-//ssrn.com/abs- tract=2250524]. Acesso em: 26.08.2013). Segundo o art. 334 da Constituicao da Colom- bia, com a redacdo do art. 1.° do Ato Legislativo 3, a sostenibilidad fiscal, como instrumento para alcangar de forma progressiva os objetivos do Estado Social de Direito, em nenhum caso afetara o nticleo essencial dos direitos fundamentais, e tampouco poder ser invo- cada por autoridades administrativas, legislativas ou judicidrias para esvaziar os direitos Processo & ADMINISTRACAO. gem de discricionariedade em face de direitos existentes e exigfveis decorrentes de lei ou de um minimo existencial atrelado a dignidade humana.*! Aausencia de orcamento é um indicativo de que a “clausula do possivel” deixou, indevidamente, de ser considerada na implantacao de beneficios sociais periféricos a.um minimo existencial — as prestag6es sociais cuja exigibilidade (justiciabilidade) nao se extrai diretamente do texto constitucional. Contudo, ainda assim, para que estivesse evidenciada a ofensa a reserva do possivel, além da falta de orcamento, seria necessario que tampouco houvesse lei lastreando o beneficio social desejado. Isto porque, € através da lei instituindo direitos — e nao do orcamento — que a so- ciedade democraticamente organizada melhor debate suas opcées.* Ademais, o orcamento em si jamais € uma condicao para o exercicio de direitos constituidos no passado, o que significaria violagdo a seguranca juridica, bastando que a lei, no momento de criacao do beneficio, indique a fonte de receita. Dessa forma, nao é usual ou mesmo necessério que o Judicidrio interfira no contetido de uma lei orcamentaria, definindo prioridades de gastos publicos.* Por outro lado, ndo esté o orcamento diante de uma imunidade judicidria; sujeita-se a um controle jurisdicional de igual calibre do que incide sobre 0 contetido politico da discricionariedade legislativa e administrativa sempre que houver desvio, abuso fundamentais, restringir o sew alcance ou negar sua protegdo efetiva (Couomnia. Acto Le- gislativo 3, de 10.07.2011. Diario Oficial n. 48.117, de 01.07.2011. Disponivel em: [www. secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/cp/acto_legislativo_03_2011.html]. Acesso em: 26.08.2013). Para Marcos Abraham, “hoje em dia se configurou um cendrio juridico no Brasil, desenvolvido a partir da promulgagdo da Constituigao de 1988, que nos permite dizer que cada vez mais as despesas publicas sao priorizadas e determinadas por coman- dos juridicos e cada vez menos por deliberacdes de natureza politica, Ou seja, as despesas publicas nao se originam, exclusivamente, a partir de deliberagdes politicas pautadas nas convicgdes € aspiragdes do governante, mas sim, decorrem, em grande parte das vezes, das imposigdes existentes nos diversos comandos normativos do nosso ordenamento juridico, especialmente aqueles de ordem constitucional” (Curso de direito financeiro brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 167). 51. Ver Gaier, Reinhard, op. cit. (cf. as transcric¢des constantes das notas 39, 40 ¢ 41). Ver também Torres, Ricardo Lobo, op. cit., p. 27 ¢ 54. 52. “(...) 0 legislador nao pode, pela via do orcamento, produzir resultados que a ordem juri- dica nao Ihe permite produzir pela legislagao em geral” (Menpowca, Eduardo. Q sentido da vinculacao orcamentéria e seus limites. In: Souza Neto, Claudio Pereira; Sarmento, Daniel. Direitos sociais: fundamentos, judicializacao ¢ direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lu- men Juris, 2008. p, 231-278). 53. Brasi. Constituicdo (1988). Art. 195, § 5.°: Nenhum beneficio ou servico da seguridade social podera ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total, 54, Lopes, José Reinaldo de Lima, op. cit., p. 184. 77

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