otogratia
Tradução
de
Joaquim Paiva
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iE T 3TADUAL D£ CAMPINA»
Na Caverna de Platão 3
Objetos Melancólicos 51
O Heroísmo da Visão 83
O Mundo-lmagem 4^.147,
Duas atitudes marcaram a suposição de que qualquer tal, pareçam produzir sentimentos contradí>orios e ate
* "lím P SITUfí-
coisa no mundo é motivo para a fotografia. Descobrimos mesmo incompatíveis com respeito a pesst^ t
que há beleza ou pelo menos interesse em tudo, se ob- coes, é essa a contradição nitidamente caracter
servarmos com olhos realmente abertos. (E o próprio es- atitude que membros de uma sociedade que1 dlx
teticismo da realidade, que põe todas as coisas, quais- público do privado devem compartilhar e cor"
quer que sejam, ao alcance da câmara, é que permite vem conviver. E talvez não haja atívidade Alguma qu€
nos prepare tão bem para conviver com t a 'j
*A preocupação dos chineses com a função reiterativa das imagens (e das
palavras) inspira a distribuição de imagens adicionais, fotografias que pín- . contraditórias quanto a fotografia, que se cd™
tam cenas em que, obviamente, fotógrafo algum poderia ter estado presen- brilhantemente a ambas. De um lado, a câm^r|
te; e o uso contínuo de tais fotografias dá-nos uma ideia de como é pobre o visão a serviço do poder -- do Estado, da inddstria' da
entendimento que a maioria das pessoas tem do que significam as imagens
fotográficas e o ato de fotografar. Em seu livro Chinese Shadows, Simon
ència. De outro, a câmara torna expressiva a1 visão den-
Levs dá um exemplo do "Movimento para Emular a Lei Feng", campanha tro do espaço mítico conhecido como vida Flva(
de massa levada a cabo em meados da década de 1960 com o objelivo de China, onde política e moralismo não deixan" espaço
inculcar nas pessoas os ideais da cidadania maoísta, construídos em torno
da apoteose de um Cidadão Desconhecido, um recruta chamado Lei Feng
gum para as expressões da sensibil idade estét:ica- S(
que morreu aos 20 anos num acidente banal. A exposição dedicada a Lei te algumas coisas podem ser fotografadas, e <apenas d
Feng e organizada nas grandes cidades incluía "documentos fotográficos, tro de certos limites. Para nós, à medida que? r
tais como 'Lei Feng auxiliando uma senhora idosa a atravessar a rua', 'Lei
Feng secretamente Is/c] lavando a roupa de seu companheiro', 'Lei Feng mós cada vez mais desligados da política, ten™ ™
dando seu almoço para o companheiro que se esquecera de levar a marmi- simpedido será o espaço que poderemos pre#n
ta', e assim por diante", e aparentemente ninguém questionou a "presença os exercícios de sensibilidade que se podem realiza
providencial de um fotógrafo durante os vários incidentes na vida daquele
soldado humilde, e até então desconhecido". Na China, o que torna verda-
a câmara. Um dos efeitos da tecnologia foto$rat|Ca r
deira uma imagem é o fato de as pessoas gostarem de vê-la. recente (vídeo, filmes instantâneos) tem sido1 °de orierv
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tar para utilizações narcisísticas uma parte maior das ati- Uma sociedade capitalista exige uma cultura baseada
170 vidades que executamos privadamente com a câmara — em imagens. Necessita fornecer quantidades muito gran- 171
ou seja, para a autovigilância. Mas modalidades de rege- des de divertimentos a fim de estimular o consumo e
neração da imagem, tão populares em nossos dias, como anestesiar os danos causados pelo fato de pertencermos
as que se desenrolam no quarto de dormir, na sessão de a determinada classe, raça 01 sexo. E necessita igualmen-
terapia e no seminário de fim de semana parecem muito te reunir quantidades ilimitédas de informação, e>plorar
menos significativas que o potencial do vídeo como ins- os recursos naturais de modo eficiente, aumentara pro-
trumento de vigilância em lugares públicos. É de presu- dutividade, manter a ordem, fazer a guerra eoroporcio-
mir que os chineses acabarão utilizando a fotografia dos nar empregos aos burocratas. A dupla capacidade da câ-
mesmos modos instrumentais como a utilizamos nós, mara de tornar subjetiva e objetiva a realidade satisfaz
com a exceçao, talvez, desse último. A tendência a con- essas necessidades de forma ideal, e reforça-as A câmara
siderar o caráter equivalente ao comportamento torna define a realidade de dois modos indispensáveis ao funci-
mais aceitável a imposição pública e ampla do olhar me- onamento de uma sociedade industrial avançada: como
canizado que a câmara possibilita e o qual se origina fora seus óculos (para as massas) e como objeto de vigilância
de nós mesmos. Os modelos de ordem na China, de lon- (para os dirigentes). A produção de imagens fornece
ge muito mais repressivos, exigem não apenas uma ob- também uma ideologia dominante. A transformação so-
servação cuidadosa do comportamento, mas também cial é substituída por uma transformação das imagens. A
uma mudança de atitude; naquele país, a vigilância é in- liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e
ternalizada num grau sem precedentes, o que sugere um bens equivale à própria liberdade. A contração da liber-
futuro limitado para a câmara como instrumento de vigi- dade de opção política em liberdade de consumo econó-
lância na sociedade chinesa. mico exige a produção ilimitada e o consumo de ima-
A China é o modelo de determinado tipo de ditadura gens.
cuja ideia básica é "o bom", no qual se impõem os mais
rigorosos limites possíveis em todas as formas de expres-
são, inclusive nas imagens. O futuro poderá revelar outro A razão final que justifica a necessidade de fotografar
tipo de ditadura, cuja ideia diretriz seja "o interessante", todas as coisas encontra-se na própria lógica do consu-
no qual imagens de toda espécie, estereotipadas e excên- mo. Consumir é sinónimo de queimar, gastar — e, por-
tricas, proliferem. Algo parecido sugere Invitation to a tanto, da necessidade de reabastecer-se. À proporção
Beheading, de Nabokov. O retrato ali construído de um que fabricamos imagens e as consumimos, passamos a
Estado totalitário modelo contém apenas uma arte, oni- necessitar de mais imagens ainda, e assim por diante. As
presente: a fotografia — e o fotógrafo amigo que ronda imagens, porém, nâb constituem um tesouro em busca
a cela de morte do herói vem a ser, no final da novela, o do qual o mundo deva ser esquadrinhado; são precisa-
carrasco. E aparentemente não há como (a menos que mente o que está à mão onde quer que o olho bata. A
ocorra uma vasta amnésia histórica, como na China} li- posse da câmara pode inspirar em nós algo parecido com
mitar a proliferação da imagem fotográfica. O único pro- a luxúria. E, como toda expressão da luxúria digna de
blema é saber se a função do mundo das imagens criado crédito, essa também não pode ser satisfeita: em primei-
pela câmara poderia ser diferente. A presente função é ro lugar porque as possibilidades da fotografia são infini-
suficientemente clara, se considerarmos em que contex- tas; e em segundo porque tal projeto é, afinal de contas,
tos vemos as imagens fotográficas, que dependências autodestrutível. As tentativas empreendidas por fotógra-
acarretam, que antagonismos pacificam — isto é, que ins- fos no sentido de apoiar certa percepção da realidade já
tituições sustentam, a que necessidades efetívamente ser- exaurida contribuem para essa mesma exaustão. A sensa-
vem.
:
cão sufocante que experimentamos quanto à transitorie
172 dade de todas as coisas torna-se mais intensa desde o
momento em que a câmara nos permitiu "fixar" o ins-
tante fugaz. Consumimos imagens a um ritmo cada vez
mais acelerado, e assím como Balzac suspeitava que a
câmara consumia partes do corpo, as imagens consomem
a realidade. A câmara é o antídoto e a doença, um meio
de apoderar-se da realidade e de torná-la obsoleta.
Os poderes da fotografia, na verdade, desplatonizaram
nossa percepção da realidade, tornando cada vez menos
aceitável seu reflexo sobre nossa experiência nos termos
da distinção entre imagens e coisas, cópias e originais.
Comparar imagens com sombras convinha perfeitamente
à atitude depreciativa de Platão com respeito às imagens
— transitórias, quase totalmente desprovidas de conteú-
do informativo, imateriais, co presenças impotentes das
coisas reais que as projetam. Mas a força da imagem fo-
tográfica origina-se no fato de serem elas realidades ma-
Breve Antologia
teriais por direito próprio, depósitos ricos em informa-
ção deixados no rastro da coisa que as emitiu, meio vigo- de Citações
roso de virar o feitiço contra o feiticeiro, no caso a reali-
dade — de transformá-la em sombras. As imagens são
muito mais reais do que se poderia supor. E exatamente
porque significam um recurso ilimitado, que não pode
(Em
ser esgotado pelo desperdício consumista, há muito mais
razão para aplicar-se a elas o recurso conservacionista. Se homenagem a W.B.)
o mundo real quiser dispor de um meio mais adequado
de incluir o das imagens, necessitará de uma ecologia
não somente das coisas reais, mas das imagens também.
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