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1. Os conceitos de planejamento urbano e gest&o urbana 1.1. Planejamento @ gestio: conceitos rivais ‘ou complementares? 0 conceito de gestZo, hé bastante tempo estabelecido no ambiente profissional ligado A administragio de empresas (gestdo ‘empresarial), ver adquirindo erescente popularidade em conexto ‘com outros campos. No Brasil, desde a segunda metade da década de 80 se vem intensificando 0 uso de expresses como gestdo urbana, gestdo territorial, gesttio ambiental, gestdio educacional, gest dle ciéncia e tecnologia € outrastantas. [Na interpretagio de alguns, a palavra gestio veio bem a calhar como um sucedineo do termo planejamento. Largamente desseredi- na esteira da tado e associado a priticas maléficas e autoritér “crise do planejamento (urbano e regional)” que, inicialmente em um plano ideol6gico, chegou ao Brasil nos anos 80 (sob influéncia das erfticas de corte marxista inieiadas na Europa e nos EUA nos anos 70), prépria palavra planejamento deveria, para vérios nalists, ser banida e, na melhor das hip6teses, substituida por outra. (Se bem que alguns intelectuais, conforme jé foi exposto na Introducao, passaram ‘a acalentar uma curiosa ojeriza pela idéia de intervengao em si.) No ‘que concerne aos fundamentos materiais do exercicio do planeja ‘mento em uma sociedade capitalista ~ um Estado bem orgenizado ¢ com capacidade de intervengfo € realizagio de investimentos -, a crise fiscal do Estado, o colapso do modelo de substituigdo de impor tages e do estilo desenvolvimentista pautado na state-centred matrix an (CAVAROZZI, 1992), tudo isso sob a égide ideolégica do neoliberae listo, concorreram decisivamente, “pela drcita”, no Brasil da déca- dda de 90, para enfraquecer o sistema de planejamento e a propria legitimidade do exereicio de planejar. Contra esse pano de fundo, o termo gestdo traz, para alguns observadores, a conolagio de um con- trole mais democritico, operando com base em acordos ¢ consenso, ‘em contraposigdo 20 planejamento, que seria mais tecnocrético (MACHADO, 1995). [Nao obstante, a pretendida (no por todos, felizmente) substitui- ‘sdo de planejamento por gestdo baseia-se em uma incompreensao da natureza dos termos envolvidos. Planejamento © gestio nio sio ter- ‘mos intercambisvcis, por possuitem referencias temporais distintos 6, por tabela, por se refericem a diferentes tipas de atividades. Até mesmo intuitivamente, planejar sempre remete 20 futuro: plangjar signifiea tentar prever a evolugio de um fendmeno ou, para dizé-1o «de modo menos comprometido com 0 pensamento convencionsl, ten« tar simular os desdobramentos de um processo, com 0 objetivo de niclhor precaver-se contra provaveis problemas ou, inversamente, com o fito de melhor tirar partido de provaveis beneficios. De sua parte, gestio remete ao presente: gerir significa administrar wma situagio dentro dos marcos das recursos presentemente dispontveis ce tendo em vista as necessidades imediatas. O planejamento é a pre paragdo para a gestdo futura, buscando-se evitar ou minimizar pro blemas ¢ ampliar margens de manobra; € a gestio é a efetivagio, a0 ‘menos em parte (pois o imprevisivel ¢ 0 indeterminado estio sempre présentes, o que torna a capacidade de improvisagZo e a flexibilidade sempre imprescindiveis), das condigbes que o planejamento feito no passado ajudou a construir. Longe de serem concorrentes ou inter- cambiaveis, planejamento ¢ gestio sto distntos e complementares. "No menos que a prépria gestio, ou seja, a administragdo dos recursos ¢ das relagbes de poder aqui € agora, o planejamento ~ algun tipo de planejamento ~ € algo de que no se pole abdicar. Abrir mao disso equivalera a saudar um caminhar erético, incomps- tivel com a vida socal organizada,independentemente do modelo & do grau de complexidade material da sociedade (pois até mesmo sociedades tribais e grupos de cagadores ¢ coletores “planejam" sua vvidae suas atividades). Como bem exprimiu Carlos Matus, [sle planejar ¢ sindnimo de conduzir conscientemente, no existicd entdo alternativa ao planejamento, Ou planejamos ov somos escravos da circunstincia. Negaro planejamento & negar possibilidade de escolher o futuro, 6 aceité-lo sje ele quel for (MATUS, 1996, tomo I, p. 14) ‘Um desafio que se coloca de imediato, a0 se debrugar sobre a tarefa de planejar, 60 de realizar um esforgo de imaginagio do futu- +0, Nio deve haver sombra de diivida quanto a0 fato de que 0 plane- jamento necessita ser referenciado por uma reflexdo prévia sobre os desdobramentos do quadro atual ~ 01 seja, por um esforgo de prose néstico. Néo hi ago, muito menos agio coletva coordensda, que possa prescindir disso. Descurar indiferenciadamente a importancia do planejamento, alegando, dentre outras coisas, que no se pode predizero futuro, tai uma irresponsabiidade tipia da attude livres- cae diletante, em que 0 comprometimento com a agio transformado- quando muito, puramente retrico. Eatretanto, lisearismo ou caresianismo que se aninha na definigdo de previsio como uma ante- cipagio da evolugdo de um fendmeno precisa ser evitado, por sugerir ‘a possibilidade de prever confiavelmente o curso até mesma de pro- cessos complexos, como o so, em ger, os processos sociais. Na base das abordagens simplistas ainda hoje largamente empregads sti um vies organicista ou mecanicista, em que 0 anaista presume ser possivel anspor para a investigago de fendmenos sico-histi- cos esquemas e métodos oriundos das cigncins naturais? A bem da Thesim € qu, por excmplo, 0 explo 6 do Curso de planejamento municipal ie~ ‘vada de Clzon Fear ql eacer uma breve patorma das tcc eotvem> ‘Shona de prognote, contd sepulteobservogio "é)impvtant nots que 3s ed um sistema dinimico que tabalha como uma msguia. Assim como 2 Engenharia Meciniaelabora ‘models’ de suas miquiss, os planjadores, datos deve corecito dismnico de cidade, passatam a conta “woos! wranos pars “Ey Siman swags hiotéease,prinepaient, para, 2 pars dos “models fazer brevisdes a espeto de seu utero desenvolvimento" (FERRARI, 197117), verdade, a critica das abordagens téenicas de predigdo baseadas em projegdes de curvas evolutivas e extrapolagio de tendéncias vem senido operat jf hé vérios anos, com maior ou menor sofisticagio, niio apenas fora, mas também dentro do campo do planejamento, devido ao seu simplismo; por exemplo, por parte dagueles que se ‘ocupam da construgio e do aperfeigoamento da técnica de cendrios De fato, a construgio de cendrios no deve ser entendida como um ‘mero aperfeigoamento das téenicas tradicionais de previsio, mas sim como uma ruptura qualitativa, epistemol6gica, em relagio a elas: construir cendrios ndo significa (ou, pelo menos, nfo deveria signifi- car), na verdade, tentar “prever”o futuro, em sentido forte, como se a historia fosse passfvel de completa determinaglo on, pelo menos, como se fosse razodvel, em nome de um pretenso pragmatismo, jgno- rar a dimensio de contingéncia que sempre existe nos processos his- t6ricos. Construir eendrios significa (ou deveria significar) apenas simular desdobramentos, sem a preocupagio de quantificar probabili- dades e sem se restringir a identificar um Gnico desdobramento espe- rado, tido como a tendéncia mais plausivel. Na verdade, a todo ‘momento, mesmo no quotidiano, as pessoas planejam as suas ativida- des com a ajuda de simulagdes: “Se 0 trnsito de estiver bom, vou che- gar no trabalho e fazer primeiro isso, depois aquilo, depois aquilo outro, antes de entrar em sala para dar minha aula; e 0 transto estiver ruim e eu perder tempo, iei direto para aula, e fare, depois, isso.e aquilo, deixando aquilo outro, provavelmente, para amanhi..”. Trata- se, portanto, de uma abordagem realista do desafio de reulizasto de progndsticos, com a condicio de ndo se cede & tentagio racionalista de formalizar excessivamente a simulagao, dando-se a impressio de que ts ou cinco ou seis cendrios esgotam as possibilidades quanto 20 futuro, Fazer isso equivaleria a esvaziar a abordagem de sua flexi dade radical, de sua abertura para o imprevisivel, transformando-a A literatura sobre censiosdspontvel em portuguts € muita esassa, SCHWARTZ. (1995) pode serve de introdusto, mas seu afvel&,essencialmente, de dvulgaglo cienifica a prose €agraddvel, mas evr nio encontrark mtosdetlhs. Pocono Jado, tanto em inglés quanto em alemao hd uma grande guantdsde de wabalhs de lo nivel sobre 0 assunto (por exemplo, STRATER [1988], STIENS (1998), ‘numa mera extensio da dia convencional de projesio. Para umcom- plemento dessa discuss remete-se 0 leitor a0 box I. Box! Prognéstico e eendrios (O epistemélogo Mario BUNGE (1989:625-6) esabeleceu clarasdife- rengas entre expectariva (uma atitude automtiea de antecipacto, presen te em todos os animals superioes), caajectara (um intento consciente, erbora despido de fundamenta;o racional, de representaro que é, foi ot ser), profecia (uma conjectura em larga escala com relag0 20 futuro), _prognese (uma conjectura informada, mas prisionera de dados empiricos mediatos ¢ do senso comum) e predipdo (uma previsio baseada em teo- rias € dados cienificos), Claro esté, por conseguinte, que, para Bunge apenas a predigio €cientifica. No entanto, Bunge, com sua formagio de fisio, incorpora, como tantes outros fil6sofos da ciéncia, a propésito desse como também de outtosassuntos, um preconceito de teorpositivs- 1a, 90 generalizar para toda a atividade cientfica os clones préprios © aceitveis para as eincias natu ( tipo de prego preconizado por Bunge &, na verdade, excessivar ‘mente formal, funcionando como uma camisa-de-forga no caso das cifa- cas sociais. Em contraste, Carlos MATUS (1996:28 e segs.), mesmo sendo desnecessariamente condescendente com a predigdo, ou seja, com ‘© enfoque formalista em matéria de reflexZo sstemitica sobre o futuro, est suficientemente atento para as peculiaridades da sociedade como ‘objeto. Malus consegue, com a sua abordagem das “quatro trincheiras™ (pare fundamental de sua concepgao do planejamento estratgico situs- ional), em que ele incorpora a tSenica dos censrios e vai mesmo um pPouco alm, ultrepassar linearismo. ‘As quatro “trincheiras” de Matus sfo, a bem da verdade, quatro stig + Primeiratrincheira: capacidade de predigo. Embora concedendo- Ihe alguma importincia, Matus reconhece que esta trncheira ~na qual 0 ‘que € feito &estabelecer una tnica imagem ou um Gnico fie evolutivo parao futuro, extrapolando uma tendéncia~6 a mais wulnerdvel de todas. * Segunda trincheira:capacidade de previo. Matus associa o termo previsio a uma simulagio flextvel, que basicamente correspond 3 cons- trugio de cendros alterativos « Tercira trincheira: capacidade de reago veloz ante a surpresa. Uma vez que nem mesmo atécrica flexive! dos cendros pode dar conta plena mente do inesperado, faz-se mister desenvolver mecanisinos que permi- tam um minimo de agilidade por parte do agente tomador de decisoes envolvido diane de surpesas, especialmente do tipo negativo (catéstro- fs, acdentes et.) ' Quarta trincheita: aprender com 0s erros. Como mesmo a terceira trincheia, por mais bem construfda que seja, nao infalivel, ainda resta (ao menos como consolo... uma quarta possbilidade, diante de proble- ‘mgs que nfo conseguitos debelar ou de ersos comets: extra ligdes “tes para @ futuro e tentar aprender com os préprios eros. Como se v8, Malus uilza o termo previsdo em umm sentido positive, assoviando-o 3 aplicagHo da técnica dos cennios. Neste live diversa+ ene, com o leit notou, otro previsio (assim como predigto) pos- sui uma conotagdo negatva, de vez que, em muitos trabalhos, esse r6tulo empregado para recobrirprojegdes formalisas, no estilo extrapolagio detendéncias,O termo mais abrangente ¢, no presente livro, prognéstica, ‘qual. portanto, nfo possul necessariamente o carSter pré-ientticoatri- buldo por Bunge. Tanto previsdes (ou predigdes) quanto censrios sto tipos de prognéstico: © primeiro, segundo a terminologia aqui adotada, cofrespondendo a um tipo muito formal ée progndstico, inadequado para Tidae com fendmenos socials, segundo correspondendo a um prognés- tico flenivel, adequado para as necessidades de cientistas sociais. De resto, com aexcegio da “primelratrincheira” de Matus (que deve ser, por cconseguinte recusada como imprépria), as ouras tts “trineheiras” equi valem a uma imaginativa concepsio do esforgo de se lidar com 0 futuro ro planejamento, dil vida para 0 dominio das eitneias socisis apica- das. Tendo em mente as ressalvas e pondcragGes anteriores, asucessio de “inches” poderia ser reescrita como se segue, mais de acordo com 0 espito do presente livre + Primeiratrincheira: eapaciaade de prognéstico, correspondendo & habilidade de construirdversos cendrlosattematives de forma elegante, consistnte¢ realista Isso exige tanto una prande capacidade de selecio- nr eanalisar dads e informapies empirieos adequados quanto slides cconhecimentes te6ricos. Juntos, esses dois predicados representa a cchave para interprtagbes inteligentes da dindmica s6cio-espacial, condi- ‘Glo sine qua non para refleticconsstentemente sobre a evoluZo do quar ro atual, G evidente que, als disso tudo, uma forte dose de imaginagio ‘ requerida. Vale registrar que os cenérios mio devem ser nem muito ‘umerosos, 0 que toma o conjunto pesado e pouco manusedvel, nem tfo poueos, resvalando para o simplismo (por exemplo, deve-seevitar deli- near apenas dois cendrios, un “otimista" e outo “realists”, que deina de Tado justamente as situagdes intermedifsias que frequentemente sf0 as, mais provavels). * Segunda trinchelra: capacidade de reagdo veloz ante a surpreso, preparando-ce para se organicar eficazmente para dar respostas mesmo diante de eventos trawndticosimprovavels ou imprevisivels. Esse 60 ipo de preparago que contribuindo para antecipar o futuro, mas para evtar aque se instale 0 pinico ou a total descoordenagio dos agentes pegos de surpresa por um evento inesperado, de grandee répido impacto (especial= mente negative). , ‘ Teresratrincheirw:capactdade de exirair lies do passado. O desafio, entio, é0 de planejar de modo nao-racionalista ¢fle- xivel, entendendo-se que a his6ria € uma mistura complena de deter- 1minaglo e indeterminagdo, de regras ¢ de contingéneia, de ntvels de condicionamento estrutural e de graus de liberdade para a ago in vidual, em que o esperavel é frequentemente, sabotado pelo inesps rado~o que torna qualquer planejamento algo, a0 mesmo tempo, ne- cesstrio e ariscado. A flstéria €, para usar os termos do filésofo Cornelius CASTORIADIS (1975), um processo de autocriagao da sociedade, ou seja, onde uma verdadciracriagdo ex nihilo de signft- cacées inagindrias sociais® tem constantemente lugar, indo além de uma siniples “auto-ofgani2dg0” no sentido das ci Or cect de imagine “ignieagbsimagnsrins soci” semper us ppl cesta na ia oe Casas. AS sigifeayes naps si ou initio) to adem nem e vedi an conceto marnisa de ideo (0 ‘endo sual de “as conseaa”) nem proramente ser empregad com inks 1 dspace strep de eater (Quiet, cana ak {ura mater ate, fabiagies ele): ampouco podem clas se vss como tepeentano ramet “inogisp0" (bo senico desea), ignicogaes Jinspinrs soci so mito ress em sh efeviade. Els coespondem 208 al- "es Socetas nuleres rena, mils, vises de mund..) ue freee wn sen 46" par mundo de ad side parca e odsam a piu ds indus. Ess expen regreced ons ees oo decor dest io Esse proceso de autocriagio do Social na e pela histéria inclui, decerto, também a dimensto espacial, isto €, 08 vinculos mbltiplos € complexos entre as relagbes sociais(produtoras de espage) e a espa- cialidade (que condiciona, de maneiras variadas, as relagdes sociais) — vide SOUZA (1997b). A luz disso, cidade, produto dos processos sScio-espaciats que refletem a interagio entre vérias escalas geogré- ficas, deve aparecer no como uma massa passivamente modelével ‘ou como uma maquina perfeitamente controlével pelo Estado (teeni~ camente insiruido por planejadores racionalistas ¢ teenocrdticos), ‘mas como um fendmeno gerado pela interagio complena, jamais ple- namente previsivel ou manipulivel, de uma mirfade de agentes odeladores do espago, interesses, significagies e fatores estrutt- ras, sendo o Estado apenas um dos condicionantes em jogo (ainda {que seja um condicionante erucial nas modernas sociedades capita- Tistas). A autocriago da realidade social (s6cio-espacial), evidente- mente, nia é sindnimo de “pura espontaneidade”; o poder da vonta- de ea ago premediteda (nfo s6 por parte do Estado, mas também de grupos especificos diretamente, ou mesmo, em tum outro contexto politico-social hipotético, dos cidadios autogeridos) nunca esto usentes. Uma visio mais abrangente¢ flexivel do papel do planeja- mento , que fag justiga & complexidade dos quadros de ago s6cio- cspacials coneretos, deve desembocar em uma perspectiva que rela tivize o prdprio duslismo, to usual quanto simplista entre 0 “espon- tineo" e 0 “planejad' nos processos de prodlugo do espago social: esponttineo e planejado inter’agem o tempo todo de maneira nada simples; aquilo que parece, primeira vista, totalmente espontineo, se revela, olhando mais detidamente, fruto de uma pletora de ages dispersas, muiissimas delas deliberadas e no poucas formalmente programari, que criam uma sinesgia. Poslr-se ainda dizer que nfo basta uma concepgio de planeja- mento ser politizada e rejada, como a de Carlos Matus, qual, ede- ‘mais disso, como filha do Tuminisma, se mostra comprometida com ‘um ideal de emancipagio humana ~ compromisso esse encarnado pela frase “o planejamento &(...) uma ferramenta das lutas permanen- tes que @ homem trava desde 0 infeio da humanidade para conquistar 4 graus crescentes de liberdade” (MATUS, 1996, tomo I, p. 15). ‘Afinal, mesmo uma tal concepgio apresenta problemas, sob o angu= Jo da neéessidade de desmistificar e democratizarredicalmente o pla- rnejamento, se no se percebem as limitagbes das vérias instituigbes as quais normalmente se atribui um papel especial no contexto do planejamento em sociedades capitalists, a comegar pelo Estado e a democracia representativa. A autoctiagio da sociedade e,nesse con- texto, a produgio do espago urbano, deve, o mais posstvel (esse 0 coragio do assumido backeround polticofilosétieo deste livro), se pecans” substantive etgradrss, mas sin como grandes mazes de referén- cia gun, alo rro, sto verdadcroshibrios epstemoogicos polio filosticos {como o matali tistrico ov o pense auewomistaeastoriadiano), Quanto Secombe proriancnte dias, pole ir desde tas substntvas pateues bern dettada empiscamente asuendas al programas ou esboos tesco ¢ "stro tears” proceduais {w}hat these thinkers [Ebenezer Howard, F.L. Wright e Le Cotbister] worked towards was a once-and-for-all solution. The Jong-term goa! of planning and planners was to reach the end state defined in their texts ~ whether it be Garden City, Radiant City or Beautiful City. It could be argued that the belief that planning could create (..) ‘urban utopias’ has informed the actions of planners for most of this century. Frangoise Choay, que em seu importante Urbanisino (CHOAY, 1979) jécontestara o esttuto de cientificidade do Urbanism, reto- nou essa erftca em livro posterior (A regra ¢ 0 modelo), denuncian- doque,enquanto abrigo de visbes normativas, odiscurs0 urbanistico, a despeito de tenta emular 0 discurso cientfico, nfo se constituiria ‘em cine ‘A despeito de suas pretensdes, 0 discurso do Urbanismo continua normativo e s6 em carder mediato compete a uma pré- tica cientifica qualquer: seu recurso licito ¢ justifieado As eién- ‘cias da natureza e do “homem’ se subordina a escolhas éticas € polities, a finalidades que no pertencem somente & ordem Go saber. (CHOAY, 1985:2) B,bemao final do liv, entre outras passagens igualmente fortes: ‘Todos os autores de teorins urbantstieas, com excesto de Sitte, se valem, como Cerda, de um discurso clentifico. Mas, na ‘quase totatidade dos casos, limitam-se a afirmar de maneira cencantatéria e sem prova a cientificidade do Urbanismo em ‘eral, e de suas proprias propostas em particular, © a produzir somente os indfcios lingUisticos do que seria um discurso cient fico, Nio ¢, pois, de surpreender que esses textos miméticos no contenham qualquer autoeritica, nfo sejam objeto de qualquer {questionamento epistemol6gico. (CHOAY, 1985:291) Vale a pena reproduzir também o ponto de vista de Klaus Bren dle (1997) ~ ele proprio sendo, como Choay, um urbanista ~ sobre a difesenga entre os “olhares” cientfico e arquitetGnico-urbanistico: 0 devir sociale as formas espaciaiscondicionam-se re procamente; no entanto, a pesquisa e 0 ensino do Urbanismo © do usolvivéncia da cidade [Stadibenuteung] desenvolveram-se separadamente. De uma pare, as citncias do homem descobri- ram relativamente tarde o ‘ambiente construfdo’ enquanto um componente importante dos processos sociis?® De outa parte, a Arquitetura ¢ o planejamento urbano? acreditaram poder, ancorando-se em uma determinada imagem (comumente ideali- zada) do que sea 0 ser humano, superar eom seus préprios rmcios a maioria dos problemas da cidade No apenas @ unidade ‘cidade’ se acha dividida entre 0s aspectos soiais ¢ o ambiente construfdo, mas a préprias pers- pectivase méiodos das eifncias scias ¢ das disiplias arqite- ‘nicas se diferenciam: os das primeiras vincularam-se a teorias cientiiease métodos emphricos, desenvolvendo, com a ajuda de palavras precisas, uma competéncia descrtiva e de anslise cau- sal sobre os problemas urbanos existences. Os das imas atieu- lame & wadisfo dos procedimentos dos oficios manuais, das ‘engenharias e das artes plisticas dos mais variados tipos, desen- volvendo um conhecimento, expresso sob a forma de desenhos, acerca da transformagio e do progndstico voltado para as modi ficagSes futuras da cidade; ou seja, referem-se a uma estreita ‘melhoria arquiteténico-urbanistica. (BRENDLE, 19975120-1) (0 autor deste livo sene-seaeavalviro, portant, para reafirmar seu comentiti, feito em trabalho anterior (SOUZA, 1998), segundo 3 Quanto a to, deer de jastiga admit que a iadigao peogrfin consi uma ‘exoe,30,snda que a Geograla Urtoma, como amo expeiaizado, tea alana domi expression segunda cade do século XX 2 Drendle comete, ai um apo a9 eserve planejamento utano(Stadplanang), quando o que tnka em mente ea, na verdad, especficamente, a modalidade dO Urbanism (Sadtebaw, como faiimene Se depteeade do restate de eu fx. 0 qual o Urbanism, enquanto ta, no legou propriamente “teorias”, termo que 56 faz pleno sentido no domfaio propriamente cientifico. Afinal,ninguém menos que a prépria Choay, cuja obra é intermacio- nalmente respeitada pelos arquitetos-urbanistas, enfatiza a mesina coisa 2 e as palavras de Brendle nfo so menos dignas de nota. & importante deixar claro, contudo, que nio faz sentido eritiear 0 Urbanismo pelo fato, em si mesmo, de nfo se ele uma ciéneia. Trata- se, meramente, de estabelecer as diferengas entre uma abordagem cientifica e uma nio-cientifica (\écnico-artistico-normativa), con- quanto se possa e se deva, seguindo 0 exemplo de Choay, denunciar 45 tenfativas em que uma abordagem do segundo tipo insiste em se fazer passar por uma do primeiro. A erfica quest pode ¢ deve fazer as abordagens urbanisticas é, por conseguinte, a de que, com muita frequénci, tentaram ¢ tentam se passar por aquilo que no slo. Sob um angulo cientifico, € Kbgico que um enfoque aprioristico ou semi: Aapriorstico que tenha a pretensio de ser a Gnica orientagao global para uma intervengio sobre o urbano merece sofrer objesio, No entanto ~ grife-se sso com vigor -, nem todo conhecimento no pla- nejamento urbano & ou poderia ser exclusivamente cienffico,€tat- pouco deve-se considerar.o conhecimento ciestifico como sendo supérior a todos os outros, por exemplo, o saber artistico. A dimen- So estéica e varios tipos de conhecimento téenico, que si buigdes imprescindiveis e proprias dos arquitetos-urbanistas ao pla- ‘ejamento urbano, no véem sua relevaneia 40 serem idemtificados eom os dominios das artes eda écnica/tecno- contsi- nur um mifmetro ~ No que di rexpcito x0 exsist eiteroico das Yeoras"urbanisias, Choy. "elerado-seespesiicamente 20 tall pionciro do engebeiro cata Igefoms9 Cent rears general dela urbanizct),fanador do Urbosro como um eampo ‘prio em meacos do sécula passa (polar Ustalsmn parece id into ida mais te, no eomego do sécwo XX, pelo arguitofancts Alte Agiche (cf STUCKENDRUCK, 1996:93), faz reprs cxj leaee 6, no funda, bastante ger: A Teoat nso satisfar um stl de engines ausknente craters de lea cienuica: a capaidadsexpiaiva a espacidade de pevisio. wansiividale ZS sobreido& refubilidade” (CHOAY, 1979276). Mesos levando ecm conta que SF aeorias nas eidnias seis so mais exivelse mes frmaizadas que ci a _ 8 mura, 0 nfo tpt Kgados plo Utonsmo deni peo i secassfcados como tons ietieas, conforme poder;20 fia pelo ator $e. tat aneror SOUZA, 19878) logia! E nunca é demais encarecer o fato de que objegées ao aprioris- ‘mo, validas quando se trata de julgar avaliages passiveis e merece- doras de um tratamento ciemtifico, nfo se aplicam a dominios como da estétca. Isso para no dizer a coisa mais essencial de todas, que é a de que o planejamento e a gestdo das cidades sio.¢ devem ser reco- nhceidos como questBes acima de tudo potiticas,em sentido amplo © robre, € nfo como questdes sobretuco “téenicas” ou “eientificas”. A presente objesdo, portant, mio ver acompanhada de uma proposta para se desmerecer in forum 0 Iegado intelectual do Urbanismo & tampouco para se purgar 0 campo intelectual do planejamento urba- no de seus componentes extracientificos ~ muito longe disso! O tra- tamento técnico-estético oferecido pelo arquiteto-urbanista, eviden- temente, nio hi de se submeter a uma Kgice “cientifica” ~ postular {sso seria uma aberragio, um contrascnso. Apenas deseja-se salientar a debilidade de visbes nocmativas que, sem que seus autores tenham tido conscigneia de seus limites e de sues insuficiéneias de base, se pretenderam rigorosas e mesmo cientificas quando, na verdade, no se fundamentam em muito mais do que as impressbes e os valores dos que as conceberam, revelando uma leitura superficial da realida- ée ou mesmo um div6rcio para com esta, malgrado 0 apuro técnicoe cstético com que foram apresentadas. A necessidade de cooperagloe arelagio de complementariedade entre cientists sociais e arquitetos- urbanistas, no que concerne ao planejamento € & gestio urbanos, dofendidas no Subeapitulo 1.2, ficam, pois, reafirmadas. Quanto & segunda premissa formulaca alguns pardgrafos tras (nito.subordinagdo vulgar da pesquisa aplicada adiretrizes polticas cestabelecidas previamente, em detrimento da autenticidade da busca ‘pela verdade), 0 autor admite que a dimensfo poltics (os interesses ‘em jogo, as lias de tensio )nlo deve, sem dlavida, ser escamotea- da. Contudo, se0 planejamento for reduzido a um mero instrumento politico para impressionar contendores em um debate ¢ for privado de sua potencial consisténcia como derivagdo de uma andliseerftica da reatidade, cle serd simples pesquisa aplicada grosseiramente manipulada (um exemplo elogiente & fornecido em GRANT, 1994:60), assim como também 0 pode ser a prépria pesquisa bisica. AGE ON Le st Rejeitar a presungiio de neutralidade axiolégica sobre a qual insistem os posi te é uma coisa; outra, bom diferente, 6 confundir a pratice cientifi- ‘ca, mesmo a aplicada, com um discurso ideolégico vulgar, em que solugdes preconcebidas sto impostas & realidade, ou degradé-la a uum baledo de idéias compradas, em que a busca pela verdade sim- plesmente desaparece, pois a exposigio de idsias passa ase subor~ dinar inteira ¢ aeriticamente As demandas dos “elientes”. Nao iré sais se tratar, neste segundo caso, nem mesmo de raz3o comunica tiva, pois 2 reflexdo eritica sobre os confrontos de subjetividades s6cio-hist6rico-geograficamente situadas estar ela propria ausen- te; tratar-se-4, meramente, de encomendas de discursos Jegitimats- rios aprioristicos, usados como adorno durante contendas, normal- mente como fito de impressionar os cidadiZos comuns, mais fracos, No caso de um discurso ideolégico, como exemplifica oracionalis- ‘mo to tipico do Urbanismo modernista, 0 qual, como 0 Urbanismo ‘em geral, esté Jonge de ser uma ciéncia, muito menos aqui se trata de razio comunicativa; o que se tem € uma razio instrumental de forte vocagio tecnoeritica. Desgragadamente, na prética, grande parte do trabalho dos planejadores urbanos se assemelha mais 20 trabalho de respaldadores de posig6es @ priori (sejam elas as da ini- ciativa privada ou de governos), enfeitando com um discurso téeni- co-“cientifico™ decisbes politicas previamente tomadas, que a um esforgo para traduzir conhecimentos cientificos em propostas de imervencio, Ooficio do pesquisador aplicado que se dediea a0 fornecimento de subsidios para o planejamento e & gestio e ao desenho de estate Bias de desenvolvimento nio 6, sob 0 dngulo das exigéncias élicas, diferente do trabalho daquele outro que se dediea & pesquisa funda mental: também ele deverS observar, analisar, julgar € escolher sem poder despir-se inteiramente do filtro dos proprios valores, Admit se: se todo conhecimento ¢ expressio, de algum modo, das préticas sociais que o condicionam, mesmo um conhecimento que se preten- a cientifieo carregard uma dimensio ideol6gica. Tomando 0 cuida- do de evitar 0 simplismo tradicional de reduzir a ideologia & “falsa istase .gar © apoliticismo ingénuo.e arrogan- cconseincia” para esgrimir esse termo contra a produgio intelectual dos adversitios, como se a verdade pudesse, em se tratando de algo tio complexo quanto a sociedade, ser monopolizada por alguém em cardterabsoluto, entio unia dimensio ideol6xica, como expresso de prétcas ¢interesss varisves, hi de estar presente em todo conheci- mento. (No que conceme ao saber sobre a sociedade, no hé “verda- de univoca” no sentido das ciéncias naturas, tio-somente uma exi- _géncia de rigor ¢ desprendimento que permite ver como “busca pela vordade” a tentativa iddnea de elucidagao dos fenémenos, em con- ‘raste com simples esforgo de convencimento acerca da vatidade de cektas idgias preconcebidas, que é tipico da propaganda ideotégica.) A oposigio entre ciéncia social e deologia refere-se a duas situagdcs cextremas, sendo que, na prtica, a cigncia se esforga por distinglir-se ‘em processo do mero discurso idealgico ¢ do senso comum, em meio a uma lta perene para manter 0 senso (auto)ertieo, a vigitin- cia perante preconceitos ¢ o rigor analitico. © cientista deveré, por- tanto, para ser intelectualmente honesto ¢ para afirmar-se enquanto em face de seus valores, evitando tomar impressdes por resultados consolidados, davidando das pré- prias certezas provisérias, insistindo em examinar um problema a partir de diferentes angulos (0 que significa, normalmente, levar em conta as perspectivas conflitantes dos diferentes grupos de atores sociais envolvidos), expondo-se de muito bom grado ao teste do ‘exame empirico pormenorizado e extraindo humildemente as ligGes ante e ex tal, manter-se vi o teste supremo, o da histéria ~ em suma, recusando-se a ser delibe- zradlamente tendencioso,0 que.6a suproma virtude do cientista social, a qual o distingue do intelectual pantletério, Assuma-se, destarte, que ‘o crtério basitar de distingio entre um diseurso cientfico sério e um iscurso ideotbgico vulgar nio 6 0 de “neutralidade axiol6gies" siin um eritério ético e, portanto, em si mesmo extracientifico: a ‘honestidade intelectual. Nao “imparcialidade” ou “isengao", mas, simplesmente, isso: honestidade. A honestidade que, se no impede vieses, mantém-se vigilante com relagao a vieses ¢ a preconceitos; a hhonestidade que, em vez de clamar pela escamoteasio dos valores subjacentes & andlise, como se fosse possivel e desejével isolé-los ¢ exorcizé-los, cobra a explicitagio ea reflexdo critica constante sobre cesses mesmos valores. bem verdade que, para o autor deste livro, como jd deve ter ficado inieiramente claro para. letor,a"cientficidade” no €, por si 36, garantia de legitimidade étiea de uma propasta de intervengio. Por mais embasadas noma andlise rigorosa de realidade que sejam as propostas de intervengo (0 que inelui levar em conta as aspiragdes © opiniges dos atores sociais por meiode enquetes, ovapartirda obser vaglo de suas livres manifestagdes em instincias paticipativas de gestio urbana), qualquer proposta, para ser inteiramente legitima, necessita ser submetida a eserutinio deliberacto por parte daqueles que softerao 0s efeitos de sua implementago. No entanto, sc 08 pr6- prios rigor e honestidade cientficas nao sao fceis de serem compa- tbilizados com os processos devissrios no dia-a-dia das adminisira- 46es piblicas em sociedades heterSaomas, arentes de wansparéncia ce accountability emocratica, muito menos 0 € aquilo que representa ium passo além: a cigncia nao somente a servigo do planejamento da gestlo urbanos, mas a servigo de um planejamento ¢ uma gestio ut- bbanos radicalmente democréticos. Pode-se aqui, aig, ariscar uma hipetese: se a prtica'pottica em um contexto heterénomo costuma converter os planejadores, sejam funcionérios do Estado ou aservigo do capital privado, em sofistas dedicados a impressionar o pablico com seus planos, suas maquetes € suas projesées, um contexto admi- nistrativo um pouco mais autGnomo, que garanta um minimo de transparéncia e accountabitity, pode justamente assegurar que os pla- ao se deinarem Acjadores feria mais liberdade, também cles, para Adegradar ao papel de técnicos dispostos a defender acriticamente 0 interesses clas poderosos. 10 5. Planejamento e gestao urbanos e interdisciplinaridade ‘Muito se clama por interdisciplinaridade na pesquisa cientfica ccontempordnes, mas o que mais se vé, na melhor das hipoteses, & plu- ridisciplinaridade (justaposigao de conhecimentos diseiplinares

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