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‘Mas também, em nossos relacionamentos pessoais cotidianos, vive- remos as inplicagies de nossa visto de mundo. A ciéncia tradicional nos ensi- ‘ele éautoritiri now a diagnosticar, rotular 0 outro: “ela ¢ problemiti la é doentiamente ciumenta” ¢, portanto, a nfo s6 culpi-lo pelas difi- culdades do relacionamento, como responsabilizé-lo pela mudanga: “voc “vocé precisa deixar de..”. Acontece precisa se conscientizar de que i que uma das regras fundamentais para pensarmos sistemicamente é nao usar o verbo set. Assim diriamos: “cle esfé autoritirio”, la esfd ciumenta’ ete, Mudando nossa forma de falas, muda a realidade que se constitui, que fazemos emergir. Se ele estd ciumento, pode vir a ni estar. Se esti, deve es- n? Se esta ciumento comigo, tar ciumento na relago com alguém. Com quem sou parte desse “problema”: como estou participando, contribuindo para isso? Que posso fazer, em que en posso mudar, para facilitar nosso relacio- namento? Quem pensa assim, esté pensando sistemicamente, admitindo que 0 problema esti nas relagdes € no apenas em possiveis caracteristicas pessoais de um individuo. ‘Outra implicagio da nossa mudanga de paradigma seri um genuino respeito pela verdade do outro. A ciéncia evidencia hoje que nao existe realidade independente de um observador, Devido & forma como somos biologicamente constituidos, no existe nenhum eritério objetivo para va- lidarmos nossas experiéncias subjetivas do mundo. Portanto, por mais que eu soja considerada especialista ou autoridade em determinado assunto, nio ha critétio objetivo para validar qualquer afitmacio minha sobre o mundo, pata consideri-la superior 4 verdade do outro. A implicacao desse reconhe- cimento seri, pois, a de legitimar “genuinamente” a verdade do outro e, conversando, fazermos emergit uma “realidade” pela qual seremos ambos responsaveis, “Reconhecer 0 outro como legitimo outro nos meus espacos de convivéncia”: uma utopia? Sim, uma utopia cientificamente fundamen- tadal 96 Pensamento Sistémico Novo-Paradigmatico: Novo-Paradigmatico, Por Qué?" Maria José Esteves de Vasconcellos Adjetivar 0 pensamento sistémico com a expresso “novo paradig- mitico” pode parecer estranho ou redundante, quando jé venho, hé algum tempo, propondo pensarmos o pensamento sistémico como 0 novo para- digma da ciéncia (Esteves de Vasconcellos, 1995, 2002). De fato, pode-se argumentar: 0 pensamento sistémico jé é justamente um pensamento novo em relagao ao paradigma tradicional, ao pensamento ico, lincar, simplificador das complexidades, denominado cartesiano ou newtoniano, Quando adjetivamos um elemento de uma categoria, sugerimos ou ta a existéncia de outros elementos na mesma categoria, nos quais nfo distinguimos 2 caracteristica indicada pelo adjetivo. Para falar hoje de pensamento sistémico ¢ pata consideri-lo 0 novo paradigma da ciéncia, ew no precisaria adjetivé-lo e, a meu ver, constitui, de fato, uma redundancia essa adjetivacio, uma vez que peasamento sistémico novo paradigma da ciéncia sio, hoje, para mim, uma coisa s6, Entretanto estamos vivendo um momento de transi¢io ¢, conforme nos diz von Glasersfeld (1991/1995), ainda sio muito poucos os que jé tomaram contato com as revolugdes cientificas ocorridas no decorrer do século XX ¢ que tém plena consciéncia de toda a extensio dos possiveis efeitos dessas revolugdes sobre nossa visio de mundo, Por isso, podem surgir dtividas, especialmente entre os que esto ini- ciando seu contato com o pensamento sistémico, ¢ parece-me util explicitar algumas distingdes, antes de destacar as importantes implicages de se as- sumnir um pensamento sistémico novo-paradigmitico, ‘Tem sido frequente as pessoas darem pouca atengio a distingio — que considero fundamental — entre teoria sistémica e epistemologia sistémica, Atgo origisimente publicado em Famiis ¢ Comuside, S80 Paulo, NUFAC - Niece de Fans © Comunidade da PUC-SP, wo, 8. 1 mato de 2008, p 91-104, on E assim dizerem, por exemplo, que escrevi um livro sobre teoria sistémica — com 0 que no posso concordat. De fato, delineci, no iltimo capitulo do livro Pensamento Siténice, O novo paradigma da ciénca, os desenvolvimentos de sistémicas, 2 Teoria Geral dos Sistemas ¢ 2 Teoria Cibernética. dluas te Isso, aliés, foi necessirio para destacar de que maneira desenvolvimentos recentes nas teorias sistémicas — sobre 0s sistemas vivos € sobre os sistemas miquinas — contribuiram para um avango radical na epistemologia sisté- mica, Entretanto 0 que focalizei basicamente no livro foi o pensamento, a epistemologia ou o paradigma sistémico. ‘Meu trabalho consistiu, particularmente, em elaborar um quadro de referéncia para se compreender como os desenvolvimentos da propria ¢t- éncia—na microfisica, na termodindmica, na fisica quéntica, na cibernética, na biologia esto conduzindo os cientistas a uma revisio de seus pressu- postos epistemolégicos e & adocio de um novo paradigma que, 2 meu ver, é sistémico. (Os questionamentos a respeito do paradigma tradicional da ciéncia comecaram 2 sutgit, no proprio dominio linguistico da ciéncia, no inicio do século XX, com contribuicdes dos fisicos Max Plank, Finstein, Niels Bohr, Boltzinan, Heisenberg, Mais recentemente, sobretudo nas trés ultimas dé- cadas do século XX, acrescentaram-se as contribuigdes de diversos outros intistas, dentre os quais distingui o quimico russo Ilya Prigogine, 0 fisico € ciberneticista austriaco Heinz von Foerster, o biofisico francés Henri Atlan, 08 bidlogos chilenos Humberto Maturana ¢ Francisco Varela, Realizando estudos € pesquisas que se conformavam rigorosamente com o paradigma tradicional da ciéncia, os cientistas viram resultados que hes mosttavam 0s limites desse paradigma No comportamento das particulas clementares, viram complexidade, 20 invés de simplicidade, viram causalidade complexa, recursiva, ¢ reco- sisténcia em tentar simplificar, analisar ¢ de relagdes causais lineares. mais continuar pensan- ynamento, expressos cm fragmentat 0s todos complexos, em bus Reconheceram também que no pode: mando estvel, cujos prinefpios de fu 's prevet ¢ controlar todos 40 ¢ imprevisibilidade em os. Viram irreversibili- tas € reve ‘0s fendmenos do universo. Viram indetermi muitos processos de devir e comegaram a falar de 98 dade e incontrolabilidade em alguns processos fisicos, como os fendmenos do calor. Viram reagbes de sistemas fisico-quimicos que operam longe do equilibrio, quando as futuacdes podem ser amplificadas ¢ o sistema evoluir para formas de operacio qualitativamente novas. Viram determinagio his- tdrica ~ que até entio ficava reservada aos fendmenos bioldgicos, sociais ¢ culturais ~ no fancionamento de estcuturas dissipativas quimicas. Viram fendmenos de complexidade organizada em sistemas natu vivos, nos diversos niveis da natureza, o que aproximou profissionais/cien- tistas — quimicos, fisicos, imunologistas, terapeutas de familia, ecologistas, administradores, meteorologistas — que até ento trabalhavam em compar- timentos estanques nas instituigSes cientificas E reconheceram ainda a impossibilidade da objetividade e a inutili- dade de continuarem tentando contornar ou controlar a subjetividade do cientista —impossibilidade que se deve & forma como somos biologicamen- te constituidos. Refletiram sobre as implicagdes epistemologicas da Teoria da Autopoiese dos bidlogos Maturana ¢ Varela (1983/1987), uma teoria biolégica para os seres vivos. Viram como cla nos mostra a forma pela qual, como seres vivos, fechados estruturalmente, nds nos relacionamos com o mundo, ¢ compreenderam biologicamente o nosso conhecet. Assim, , vivos € no reconheceram que a dificuldade da objetividade no se deve & natureza do abjefo do conhecimento ~ como pensavam as ciéncias do homem ~ ¢ sim A natureza do syjeto do conhecimento, como ser vivo. Reviram sua eren- g2 no realismo do universo e reconheceram que a “realidade” emerge das distingGes feitas pelo observador. Os cientistas reconheceram, portanto, a inevitivel inclusio do sujeito em suas afirmagées sobre o mundo, ou seja, a inevitivel refeténcia ao observador. A realidade passou a ser, ent, para esses cientistas, uma construc de um grupo de observadores, quando esses compartilham suas experiéncias individuais e definem, por consenso, © que vio tomar como “realidade” pata si, qualquer que seja a “res a que estejam se referindo: fisica, biolégica ou social. Assim, nesses espagos consensuais de intersubjetividade, a ciéncia pode se desenvolver sem cair no solispsismot, sem que 0 sujeito, com sua experién seja a tinica referéncia, individual ¢ privada, =a eu meme. 9 © que distingo hoje como pensamento sistémico ou como paradig ma da ciéncia contemporinea emergente, é esse conjunto de trés novos pressupostos, assumidos pelo cientista quando cle faz a ultrapassagem de tés pressupostos epistemolégicos constituintes do paradigma da ciéncia tradicional. Ultrapassando os pressupostos da ciéncia tradicional — as crengas na simplicidade do microscépio, na estabilidade do mundo ¢ na objetividade e no realismo do universo — 0 cientista assume trés novos pressupost - a.crenca na complexidade em todos os niveis da navurez, - acrenga na instabilidade do mundo em processo de tornar-se, ~ a crenga na intersubjetividade como condigio de construgio do co- ahecimento do mundo. Hoje, distingo uma relacio recursiva entre essas trés dimensdes do novo paradigma, a qual torna impossivel a um cientista/profissional adotar ‘um desses pressupostos, sem assumir também os outros. Tenho distinguido entre as trés dimensdes do novo paradigma o mesmo tipo de relagio que ‘von Foerster (1974/1991) identificou entre o observador, a linguagem ea sociedade. Ou scja, uma conexio nao trivial, uma relacio triddica fechada, ‘em que se necesita das trés dimensdes para se ter cada uma das trés. Daf a dificuldade de scr abordar isoladamente qualquer uma dela. Considerando que a nogio de pressuposto epistemolégico tem sido usada como equivalente 4 nogio de paradigma, parece natural que cada um desses novos pressupostos seja tomado como um novo paradigma. De fato, isso tem ocortido frequentemente, € os diversos paradigmas tém sido asso- ciados a diferentes cientistas: por exemplo, fala-se do paradigma da comple- xidade de Morin, do paradigma da ordem a partir da flutuagio de Prigogine, do paradigma do construtivismo de von Foerster. Entretanto, como Morin (1982), tenho me preocupado em conceber ¢ trabalhar por uma integracfo que, superando nossa tendéncia 4 disjuagio © 4 fragmentacdo, possa se realizar preservando as diferengas. Por isso, n30 falo de novos paradigmas ~ 0 que poderia privilegiar a disjuncdo € a frag- mentagio ~ ¢ prefiro falar do novo paradigma da ciéncia, no qual, tal como o.concebo, esto contemplados ¢ integrados esses trés “novos paradigmas”, Ou seja, quando falo de pensamento sistémico, estio incluidos 0 paradigma da complexidade do universo, em todos os seus niveis; 0 paradigma da ins- 100 tabilidade dos sistemas; 0 paradigma do construtivismo ou da construgio intexsubjetiva da realidade. por isso também que questiono 0 uso das expresses construtivista”” ou “sistémico-constracionista”: porque 0 pressuposto da construgio intersubjetiva da “realidade”, ou pressuposto construdivista (@ niio estou me referindo a teorias construtivistas ¢/ou construcionistas) esti contido na minha nogio de pensamento sistémico, como o terceiro pressuposto do novo paradigma da ciéncia, Quando falo em pensamento sistémico, jé estou pensando num pensamento construtivista, De novo, aqui, estou ressaltando, ao falar da terceira dimensio do novo paradigma, uma distingo entre epistemologia sistémica e teorias sis- témicas, quando distingo o pressuposto consteutivista (pressuposto epis- temoldgico da intersubjetividade) — ou seja, 2 crenga em que a realidade é construida por nés, no entrecruzamento de nossas subjetividades — das teotias construtivistas e construcionistas ~ ou seja, das teorias (psicol6gicas) sobre a construgao individual ou coletiva da realidade. Parece importante ressaltar que as duas outras dimensoes do novo paradigma—a complexidade e a instabilidade — também costumam ser pen- sadas como teorias ¢ que tanto as “teorias da complexidade” como as “te- orias da auto-organizacio” (nstabilidade dos sistemas) tém sido abordadas por diversos cientistas/profissionais em diversas disciplinas cientificas. Entretanto, creio que, a0 ultrapassar efetivamente seu pressuposto da objetividade e assumir 0 “caminho da objetividade entre parénteses” (Ma- turana ¢ Varela, 1983/1987), 0 cientista/profissional passari a ter, como pressupostos epistemolégicos, a complexidade e a instabilidade — até entio pensadas como caracteristicas do mundo. Ou seja, ao admitir que tanto a complexidade quanto a instabilidade dos sistemas sio aspectos que cle, como observador, distingue no mundo que observa, o cientista/profissio- nal passard a té-las como dimensdes de sua prépria epistemologia. Por isso, enfatizo que no éa ciéncia que é novo-patadigmética, mas € 0 cientista que, 20 fazer uma revisio radical de seus pressupostos episte- molgicos, se torna novo-paradigmatico. F, o cientista novo-paradigmatico que assume uma nova epistemologia, com todas as implicagées de té-la istémi assumido. Portanto, nio faz o menor sentido alguém dizer, por exemplo, que trabalha com a epistemologia da complexidade de Edgar Morin ou com a epistemologia construtivista de von Foerster. A epistemologia que pode- mos distinguir, em nossa forma de estar ¢ agir no mundo, ser sempre a nossa propria epistemologia, e jamais a cpistemologia de outra pessoa. O que poderfamos dizer é que passamos a pensar a complexidade a partir das firmagdes de Morin, ou que passamos a pensar a construgio social da rea- lidade a partir das afirmacdes de von Foerster ou de Maturana, No caso do cientista/profissional novo-paradigmitico, ele adotou ou assumiu uma epistemologia que implica sempre suas préprias distingdes, distingdes que fazem cmerpir a “sealidade” com que trabalha: é ele quem distingue a complexidade, a0 colocat sempre 0 foco nas conexbes e fazer emer- git o sistema; é ele quem distingue a instabilidade em todos os sistemas da na- tureza, assumindo ser impossivel prever ou controlar o seu funcionamento; cle quem distingue sua pripria relaso com todo € qualquer sistema com que estiver trabalhando, o qual emergiré na relagio com ele, com base em sua distingao. ‘Trata-se de uma epistemologia que traz definitivamente para o im- bito da ciéncia o observador, 0 sujeito do conhecimento. Isso acontece a qualquer um de nds a partir do momento em que, tendo acatado a pergunta sobre 0 “como conhecemos © mundo” —a pergunta pelo observador ou pergunta epistemolégica — ¢ de té-la respondido, no dominio linguistco da ei énca, de acordo com uma heeria centifica do observedor, decidimos optat pelo “caminho da objetividade entre parénteses”, opeio que tera implicagdes fundamentais, Adotar esse caminho — 0 que, segundo Maturana (1997) & simplesmente uma questio de preferéncia, uma escolha na emogiio de acei- -ordo com essa nova visio tagio — implica viver, estar ¢ agit no mundo d de mundo, sistémica novo-paradigmitica, Diferentemente das teorias, as quais p ica-nos de tal forma que, se agiemos de modo que smos sentir-nos inconsistentes, incoerentes, des- mos aplicar, nossa epistemto- gia nos implica. Tom contrarie nossas crencas, confor nda os que tiveram oportunidade de ages ou perguntas que de sencadeicm reflexdes ¢ possibilitem repensar seus pressupostos, toznando até possivel escolher esse novo caminho explicativo. ‘Assim, devemos reconhecer que a ciéncia hoje ainda funciona con- forme seu paradigma tradicional. Mas que, também, esti crescendo o nti- mero dos que, revendo seus pressupostos tradicionais, esto assumindo uma postura sistémica e desenvolvendo priticas sistémicas, sem renunciar ‘0 dominio linguistico da ciéncia como forma de explicacio do mundo ¢ de si mesmo, como parte desse mundo. ‘Acontece que algumas propostas apresentadas como sistémicas no contemplam ainda a incluso do observador na formulagao das explicagdes cientificas do mundo, com todas as implicagSes dessa incluso. Parece ser possivel que alguns cientistas/profissionais, ao reverem seu pressuposto simplificador ¢ fragmentador da realidade ¢ a0 ampliar © foco € coloci-lo nas relacdes intra ¢ intersistémicas, passem a ver siste- ‘mas, sistemas de sistemas ¢ passem a pensar a recursividade nos processos sistémicos. Mas cles continuam pensando que essa complexidade esta li, independentemente de cles a distinguirern. Sio “sistémicos” que pensam teabalham com 0 ecossistema, a empresa, a familia, como se esses sistemas fossem preexistentes As suas distingdes. ‘Também é possivel que cientistas /profissionais, a0 reverem seu pres- suposto do determinismo, passem a falar de sistemas instiveis — fisieos, bio- égicos, sociais — e de seus saltos qualitativos, da instabilidade dos sistemas, porém abordando esses processos sistémicos ainda com base em sua postu- ra objetivista: so “sistémicos” para quem a instabilidade esta lé, no sistema, como se fosse uma “realidade finalmente descoberta” pela ciéncia, fi ainda possivel que, mesmo depois de rever seu pressuposto da E objetividade e de passar a falar de construgio da “realidade” pelos mem- bros do sistema, profissionais/cientistas continuem atuando como se fos- sem experts que — tendo um acesso privilegiado a determinados aspectos da realidade, 0 qual Ihes conferizia um saber e uma responsabilidade especiais, detivessem recutsos para conduzir A meta os sistemas com que trabalham, in fazendo “projetos sistémicos a serem implantados Bassit em diversos contextos. Mesmo entre os cientistas que escrevem sobre 0 pen: es que ainda falam de um pensamento sistémi- nento sisté- mico, encontramos 103 co que no tem a intersubjetividade como uma de suas dimensGes. Capra (1996/1997), por exemplo, no livro 4 teia da sida, Uma nova conpreensto cien iifea dos sistemas vivos, fala de “dois grandes fios” ou “duas caractetisticas chave” do pensamento sistémico, apresentando-o como um pensamento contextual” € como um pensamento “processual”. Entretanto, em diver- sas outras afirmagées, preserva a ideia da existéncia da realidad objetiva ¢ de que s6 podemos ter um conhecimento aproximado da realidade. Nao inclui a intersubjetividade como um terceiro “grande fio” do pensamento sistémico. Se o fizesse, diria que 0 pensamento sistémico, além de “contex- tual” e “processual”, é também “relacional”, no sentido de estar necessaria- mente selacionado 2 sujeitos observadores — de eujos olhares e conversa- Bes emergem as relacdes constituintes dos sistemas. ‘Da forma como concebo 0 novo paradigma da ciéncia — constituido de trés pressupostos sistémicos, intesligados e articulados entre si — consi- lero como novo paradigmético o cientista/profissional que tenha assumido a complexidade, a instabilidade e a intersubjetividade como pressupostos epistemolégicos, como integeantes de sua nova vistio de mundo. Como vimos, isso s6 se torna possivel quando ele ultrapassa defi- ivamente sua crenca na objetividade ¢ no realismo do univers € passa a se reconhecer como parte de todo conhecimento de cuja coconstrucio participa (dimensio epistemolégica) ¢ de toda “realidade” que emerge em seus espacos de intersubjetividade (dimensio ontolégica). ‘A propésito dessa inevitével ¢ radical participagio/inelusio do cien- tista/profissional no sistema com que trabalha, Sluzki (1997) nos lembra que a familia nfo existe, que vemos ¢ tratamos 2 farnilia porque somos cespecialistas em vé-la. Assim também, podemos dizer que veremos ¢ traba- Iharemos com sistemas mais amplos que 2 familia, com a rede social, com a comunidade, se formos especialistas em vé-las, € que continuaremos vendo € atendendo o cliente individualmente, se continuarmos especialistas em véelo. O sistema, com suas caracteristicas, nao existe a priori, mas s6 emerge a partir das distingdes de um observador sistémico, ¢ este 56 se reconhe- ceri fazendo emergir o sistema quando se tornar um pensador sistémico novo-paradigmitico. Ou seja, s6 quando as trés dimensées do novo para- digma se tornam dimensées epistemolégicas, a partir do reconhecimento 108 ‘caminho explicativo da objetividade aradigmatico, tera da intersubjetividade ou da escotha de cencre parénteses”, o pensamento sistémico, entio nov inplicagies, © 080 aplicagoes, Allis, € essa compreensio sobre como participa — epistemoldgica ontologicamente — dos sistemas com que trabalha que faz esse cientista/ profissional sentir-se implicado sempre. © pensamento, ou a epistemologia sistémica, como epistemologia decorrente de desenvolvimento da prdpria ciéncia, no é um ramo da filo- sofia, subjacente 20 dominio da ciéncia, mas esti duplamente presente na propria ciéncia. De um lado, porque a ciéncia agora responde, cicatifica- mente, com base em pesquisas desenvolvidas nos laboratérios de ciéncia experimental, 4 pergunta cpistcmolégica sobre o sujcito do conhecimento: sobre © como conhecemos o mundo, sendo seres biolégicos humanos. De outto lado, porque o cientista/profissional, dispondo agora de uma feoria dontfica do observador e tendo assumido as suas implicacées epistemol6gicas, viveri ¢ agiri no mundo — nio apenas ao fazer ciéncia, mas também a0 fazer ciéncia — com sua nova epistemologia: seus novos pressupostos, suas novas crengas, seu novo entendimento sobre © que significa conhecer mundo, Fissa nova epistemologia ex sionais ¢ implica a pessoa que a adotou efetivamente numa nova forma de viver. Assim, quem adotou o pensamento sistémico novo-paradigmatico ter uma nova epistemolog uu viver, para seu estar ¢ agir no mundo, baseado em sua tinica conviegio possivel — a da inexisténcia da realidade ¢ da verdade (Esteves de Vasconcelos, 2000). ‘Tendo tomado conhecimento dos recentes desenvolvimentos da ci- éncia ¢ assumido as consequéncias epistemolégicas desses desenvolvimen- tos, diversos cientistas/profissionais esto desenvolvendo novas priticas cientificas, porém nio mais porque a ciéncia pede ou exige que estas se ajustem a critérios de cientificidade ja previamente estabelecidos e vigentes, mas sim por serem implicagdes de suas novas crencas, de modo que suas ptiticas sejam consistentes com os novos pressupostos cientificos por eles ;pola o contexto das atividades profis- assumidos. Nas iniimeras formas que podem assumir essas priticas, podemos distinguir algumas caracteristicas importantes 105, Ao focalizar as relagdes entre os elementos do sistema que distin- gue, 0 profissional novo-paradigmatico procuraré abordar esse sistema € propiciaré redefinicio do “problema”, passando-se de um “problema’ que esté num dos elementos do sistema para uma questo relacional, uma dificuldade que o grupo esti vivendo. O foco muda de um rotulo diagnés- tico, préprio dos modelos interpretativos, patologizantes, para um contexto conversacional, onde o sistema esta conversando ¢ coconstruindo a dificul- dade ou o ineémodo que esti vivendo. Nesse contexto, 0 que se pretende € passar do consenso de que existe uma “situagio-problema" para um con- senso sobre suas possiveis solugées, Hi para esse encontro conversacional sio convidados todos os que estejam envolvidos, preocupados, falando da “situagio-problema”, que, portanto, possam contribuir para a sua solucao. Assim, em vez de se fazerem logo encaminhamentos, constitui-se em torno tema, cujos critérios de constituigio da “situagao-problema” um amplo ilo sio preestabelecidos, mas sim coconstruidlos pelo profissional e os por- ituacio-problema” ou da demanda. Esses farto os conwvites, is entre cles préprios ¢ os que serio tadores considerando os vinculos afetivo-socia por eles convidados a participar desse contexto de conversagdes, visando A solucio da “situagio-problema” e & dissolugo do problema relacional, Além disso, acteditando genuinamente que o sistema social é aut6no- mo ¢ que dispée de poderosos recursos derivados dos vincuilos afetivo-so- ciais entre seus membros, o profissional novo-paradigmitico trabalha para jorat as condigdes de autonomia do sistema, € na consequente impossibi mobilizar esses recursos ¢ m Acreditando no “determinismo estrutural dade de ter com o sistema uma interagio instrutiva, interage com ele, sem querer conduzi-lo a uma meta predeterminada por suas conviecdes pesso- ais, tedtieas ou téenieas. Ao contritio, lida tranquilamente com a imprevi bilidade das direcdes que sistema pode assumir. Atua a fim de possibilitar que as pessoas se tornem agentes ativos d nida como a mudanga desejada para a solugo de suas dificuldades. Assim, mudanca por specialista cm solugGes pata os problemas dos (1996), € um “expert na criagio esse profissional nfo é um 0s”, mas, de contextos de autonomia”. Reconhecendo-se como parte do sistema com que trabalha— uma vez 1a expresso eri we este emerge de suas distingSes — 0 profissional novo-paradigmnatico ob- serva-se patticipando, constituindo o que von Foerster (1974/1991) chamou de um “sistema observante”. Observa sua propria participacio e, de acordo com 0 “imperativo ético construtivista” de von Foerster (1973/1990) pro- cura atuar sempre de modo 2 sumentar 0 ntimeso total de altetnativas entre as quais o sistema fard sua escolha. Procura criar 0 contexto propicio para a participagio auténoma de todos os presentes. Convencido de que, devido 4 forma como somos biologicamente constituidos, no existe nenhum cri- tério objetivo para validar experiéncias do mundo (sempre subjetivas), atua para que surjam as vitias verdades sobre 0 que esta acontecendo, dando vor 2 todos os presentes ¢ estimulando a expressio das opinides pessoais ¢ divergentes, numa atitude de respeito pelo outro, por suas diferencas. Cria- se entio um contexto em que, nas palavras de Macurana (1990/1998), cada um poder passat a “teconhecer 0 outro como legitimo outro no seu espa- go de convivéncia”. Criam-se as condi¢Ges para a coconstrugao de planos ¢ solugdes vidveis para as dificuldades, propicia-se a cada um a experiéncia de autoria € 0 cnvolvimento com as mudancas planejadas em conjunto e pelas qusis serio todos corresponsiveis Enfim, esse profissional atua eticamente, assume sua responsabilida de social, no porque isso esteja prescrito em cédigos ou estatutos, € sim como uma implicagio de ser um profissional que adotou o “pensamento sistémico novo-paradigmatico”. Nota: Espero que a necessidade dessa adjetivacio do pensamento sistémico como “novo paradigmitico” seja apenas transitéria e que, em breve, tome-se dispensivel, em fungZo de um reconhecimento amplo do pensamento sistémico como o novo paradigma da ciéncia. Referéncias AUN, Juliana Gontijo. O pprocesso de co-construgio como um contexto de autononsia ordagem as politicas de assisténcia as pessoas portadoras de defici- MG, Belo Horizonte, 199%, um éncia. Dissertagio do mestrado. FAFICH, UI CAPRA, Fi mas vivos, fof. 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