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COLOQUIO | Letras HOME | PESQUISA | SUMARIOS | HISTORIA | ACTUALIDADE | INFORMAGAO E CONTACTOS N.° 108 (Mar. 1989) O LUGAR POEUSIA MODERNA José Guilherme Merquior 42 VASCO GRACA MOURA {4 JOAQUIN-FRANCISCO COELHO O que se segue sio apenas algumas observagdes quanto 2. posisio ‘ocupada por Fernando Pessoa no complexo mundo da poesia moderna. Agora que Ihe & amplamente reconhecido um luger de destaque entre os pottas modernistas, deveria haver us esforgo — ainda | que somente para justificar o florescimento alarmante da nossa indstria pessoana—no sentido de nfo perder de vista aquilo que constitui a sua_ ‘dentro da era_modemnista. Tazélo, se bem que esquematicamente, insistindo em deter- minados pontos do scu pensamento. Haveré uma ou outra referencia & lin- guagem ¢ 20 estilo, mas s6 enquanto indicios de uma visio do mundo. Todos os grandes poctas tém posigSes préptias sobre a natureza da reali dade € a fungio da poesia: o declinio hoje sensfvel da voga-do formalismo permite Iembrilo, com um grande suspiro de alivio. ‘HA j& muitos anos, 0 notdvel historiador das ideias que ¢ Joc] Serrio situou Pessoa,no quadro geral da histéria da poesia pés-cldssica portuguesa. Para isso, distinguiu trés grandes perlodos: a época das revolugdes liberais, das lutas de 1820-34 4 revolugio de Saldanha de 1851; 0 periodo da Rege- neragio, em que se consolidaram as instimuigées liberais, de meados do sécalo 20 Ultimato britinico de 1890; e 8 ascensio, triunfo e crise do repu- blicanismo, dos anos 90 20 infcio do regime de Salazar em 1926, A cada 27 tum destes trés periodos corresponde um tipo de poets. Assim, 9 poets scidadio, como Garrett ox Herculano, pertence & época da agitaglo liberal; 9 poeta rebelde, como Antero de Quental, Gomes Leal ou Guerra Junqueiro, corresponde a0 periodo da Regeneragio; por fim, © poeta como estes, de gue sio exemplos Antdnio Nobre ¢ Pessoa, afirma-se na época republicana'. Os poetas-estetas comecavam normalmente por tomar partido nas gue ‘ras dos estilos, ¢ de forma inuito mais consciente do que os seus precur- sores romfnticos & pés-rominticos: € precisamente este aspecto do brilhante esquema de Joel Serrio que o torna um excelente ponto de partida para Q retrato intelectual _de Pessoa. Oficialmente, todos 0 sabemos, Pessoa comegou por destacar-se enquanto futurista. As odes de Alvaro de Campos Publicadas nos dois nimeros de Orphen, em 1915, nem sequer eram de um futurismo a0 modo de um Apollinaire — um futurismo calmo ¢ contido € que tio importante viria a ser para Mério de Andrade nos anos 20*—, ¢ram de um foturismo estridente ¢ original 20 modo de um Marinetti. Ao modo de um Marinetti, mas nfo nos seus moldes, j4 que, como Octavio Paz penetrantemente observou, o estilo dessas odes deve mais a Whitman do que aos escritos futuristas, ¢, em todo 0 caso, exactamente nessa mesma época, © Pessoa ortSnimo (que doravante designaremos apenas por da cultura alemi © com © amodernismo inestéticor da América. Nem sequer Bergson ou mesm, Whitman séo poupados ‘! E note-se que a explosio atinge indiscriminad, mente decadentes progtessistas. Mas depois vem a utopia, Por um lado, uma estética «nsovatistotlicas, baseada no na beleza, mas na forra —como se vé, uma perspectiva bes, futurista (Jorge de Sena publicou o ensaio de Pessoa com este tfrul na colectinen péstuma Paginas de Doutrina Estética). Por outro lado, ty Segunda metade do «Ultimatum», a imodesta proposta de uma «intervensio cirdrgicay na civilizaso ocidental, destinada a suprimir os atrasos culturais da psique moderna ¢ a garantir a sua adaptago 20s novos estimulos propor- cionados em doses macicas pela ciéncia e pela tecnologia. Mas que atrasos so estes? «Preconceitos» favoriveis & personalidade, ao individualismo ¢ A democracia liberal, todos eles alimentados pelo cris- tianismo e pelo humanitarismo. Nao € dificil reconhecer aqui a sombra de Nietzsche, embora Pessoa deixe bem claro que © seu Obermenscb nio serd 0 mais forte, mas sim «0 mais complexo ¢ completo», uma vez que Ihe competiré exprimir a «média das subjectividades» — nogio que nao seria certamente muito do agrado de Nietzsche. Tanto quanto sei, Pessoa nao voltou a insistir nesta bizarra cirurgia cultural, Talvez devamos interpretéa como um mero indicio de algo bem ‘mais interessante, ou seja da distfncia radical do poeta em relagio a0s vdhhos ¢ novos paradigmas culturais do Portugal do tempo. Na tiltima das suas sempre perspicazes colectineas pessoanas, Fernando, Rei da Nossa Baviera (1986), Eduardo Lourengo contrapée © olhar francés da geragio de Eca ao olhar inglés de Pessoa, como duas estratégias para a Kalturkritik nacional. Tendo optado pela cultura portuguesa (cf. 0 seu femoso dito «a minha pétria € a lingua portuguesa»), Pessoa considera que o Portugal da Belle Epoque pode ser digno de tudo, menos do seu passado imperial. Os intrépidos conquistadores do mar imenso sio agora outros — precisa. mente os Ingleses. Dai a profunda necessidade de reinventar Portugal — de 0 reinventar € no simplesmente de 0 reanimar, como na ideologia saudosista dos seus antigos companheitos de A Agaia, entre os quais s¢ contava Teixeira de Pascoaes. E, todavia, «imperial» o ponto de vista do anglicizado Pessoa: assim se explica o desprezo que vota & afrancesada cultura dominante do Portugal decadente, desprezo que também atinge os francéfilos outrora moderni- zantes do tempo de Eca’. E nio deixa de ser significative que o primeiro «mandarim europeu»’ visado pela artilharia verbal do «Ultimatum» de Campos seja Anatole France, futura béte noire do surrealismo e epitome do humanismo liberal na Europa dé antes da Guerra; mais revelador ainda €0 facto de o préprio titulo, «Ultimatum», constituir uma auténtica blas- fémia, pois catalisador de toda a crise portuguesa fora o arrogante ult mato apresentado nos anos 90 pelo gabinete de Salisbury ao servil governo de Lisboa. ‘A mensagem de Pessoa veio posteriormente a ser ‘articulada com preo- cupagdes mais subtis. Quase todos (incluindo, talvez, o préprio poeta) acabaram por esquecer © toque de clarim antidecadente do «Uhimatum», Entretanto, mas de forma menos espalhafatosa, Pessoa viria de facto ¢ perturbar um determinado nimero de pressupostos, no s6 da cultura 79 estagnada que fizera sua, como também da da Europa dos «mandarins». Pode. encontrarse um eco longinguo do utopismo nieteschiano do «Ultimatum» de Campos no Livro do Desassossego do semicheterdnimo Bernardo Soares, Trata-se de um difrio intelectual, iniciado cerca de 1913, deixado em grande parte inédito pelo autor ¢ que s¢ encontra impregnade de um cepticismo absoluto: ou melhor, ¢ mais precisamente, dele emana uuma total auséncia de f€ no progresso, na igualdade ¢ até mesmo na beleza, ou, pelo menos, uma total auséncia de fé numa real capacidade metaifsica Houve quem Jhe chamasse a echt confissio decadente. Seja como for, © livro é de um extremo negativismo ¢, nessa medida, parece dar razio igueles que, como Adolfo Casais Monteiro, muito antes da sua publicacio, sublinharam 05 efeitos libertadores da atitude decididamente negetiva de Pessoa, como «varredor de mitos», «indisciplinando almas» *. + No entanto, apesar de todo 0 seu negativismo, Pessoa parece sugesir algumas saidas. Assim, a partir de 1920, comesa a meditar num conjunto de poemas (que, em 1934, atingirfo quarenta ¢ quatro) destinado a cele brar Portugal num sentido m{stico-nacionalista. Deste projecto resultard a Mensagem, 0 tinico livro de versos em portugués que publicard em vida Para além disso, s6 forgando um pouco a nota poder a nocio de «negati- vismo» ser aplicada as duas décadas de produgio heteronimica que vio de O Guardador de Rebanbos de Caciro a morte de Pessoa em finais de 1935. Embora 0 tom da maioria dos poemas (mas nio de todos, longe disso) assinados por Ricardo Reis e Alvaro de-Campos corresponda bem a essa designagio, tal no acontece com 0 pantefsmo de Alberto Caciro, nem, fem termos mais gerais, com certos temas ou motivos que parecem desafiar 2 ideia de que o humor caracter(stico da poesia da maturidade de Pesoa € uma acédia ou abulia absolute. / _ Jeaquim-Franciseo Coetho identificou um deles: € 6 tema da viagem. Para este estudioso, desde Camdes que nfo se encontra na lingua portu- guesa ume poesia tio rica eny sfmbolos de viagem — sobretudo, é claro, « sob_s forma de itinerfrios subjectivos’, E uma tese com a qual nfo POO senio concordar. © fragmento 400'do Livro do Desassossego descreve a ‘dein de viagem como a «ideia prépria para seduzir alguém que eu nfo fosies, ¢ em seguida compare a leitura com as viagens. O fragmento 389 dispena as viagens reais para exaltat os espantosos poderes da imaginacio. O ntmerc 384 define a vida como uma eviagem experimental», que oferece as alms: contemplativas uma excitasio mais intensa do que as activas podem alguna vez viver; © também 0 fragmento seguinte explora o tema do bomo vialor. somos, aneste mundo, visjantes, volentes ou involentes»... «Afinal, a melhor mancira de viajar é sentir», escreveu Campos; © mama carta a Cassis Monteiro Pessoa fez uma das svas mais famoye ] Ge shamentecoginadora) confides: sudo eveluo, viajo». Jacinto do Preicy 30! Coelho tem razio: a heteronfmia, sendo alteridade, coném estruturalmene: { uma licenga para o voo de reconhecimento, algo muito ligado 40 din do Angst de Pessoa. Pode parecer um tanto ou quanto banal dizélo, mas a verdade € que o simples jogo da heteronimia teria salvo Pessoa da escuridio total do negativismo sbsoluto, essa_doenga. comum.dé-espftito modernists a E, como eta inevitével, uma palavra sobre os omnipresentes heterd- nimos, esas «figuras minhamente alheias», como Pessoa diz numa nota introdutéria as «FicgGes do Interkidio». Mais néo posso fazer aqui do que ‘retomar a melhor caracterizasio que conhego —a que foi apresentada por Eduardo Lourengo em Pessoa-Revisitedo, livro notével publicado vai para quinze anos. Como decerto recordario, pode resumir-se no seguinte: Caciro € um «Whitman em pensamentop, um coragio inocente, inventado por um céptico absoluto. A propésito das suas bucélicas, Thomas Crosse, outro heterénimo, falava de «misticismo, da objectividade. E assim ¢, de facto, Mas no fundo, Gomo Lourengo faz notar, a objectividade do naturismo franco ¢ sem rebuigos de Caciro (naturismo, pois naturalismo seria jf uma intelectualizagio) € algo desprovido de vida. A natureca de Caeiro nao € uma mie-natureza scolhe- dora, mas tio-somente uma existéncia nua, cega, inconsciente. Por conse- guinte, este € um misticismo sem mifstica, ao qual falta, desde 0 comeso, ‘a exuberante empatia universal do seu modelo whitmaniano *. Segue-se-the Ricardo Reis, o’primeiro «discipulo», mas, de facto, o mais dos heterdnimos poéticos que escrevem em portugués. Tal como 0 misticismo da objectividade de Caeiro acaba por se revelar um panteismo sem alma, a atitude epicurista de Reis nfo passa, afinal, de uma méscara, que encobre um amargo pessimismo metafisico: 0 no molhe tio cedo. Em 1923, jf 0 paganismo deste heterénimo estd irremediavelmente minado pelo pungente sabor do nada; por isso Reis escreve téo suprema-_ mente bem sobre a morte, Uma vez mais, os comentirios de Lourengo so certeitos: Reis procura eprofundar o desejo de inconsciéncia de Caciro no jé cantando a opacidade do mundo, mas tentando enfrentar o poder des- truidor do tempo. B um epicutista est6ico, um humilde hedonista cada vez 3 32 mais ferido pelas dotes da mortalidade. Como diz a sua etérea Lidia, pre- fere «a vida mais vil» ao pats desconhecido. Mas 0 seu vigoroso desafio pagéo acaba por desvanecer-se, a ode converte-se numa breve elegia © um difuso memento mori mina as serenas intengoes herdadas de Caciro*, Neste classissista_melancélico, todas. as coisas, humanas_ou_nio, encontram-se impregnadas de ym sentido barroco da finitude | Neda fica de nade. Nada somos. Um pouco ao sol € ao ar nos atrasamos Da irrespirdvel treva que nos pese Da bumilde terra imposte, Cadboeres adiados que procrian. Leis feitas, estétwas vistas, odes jindas —~ Tudo tem cova sue. Se nés, cornes A que um intinwo sob dé sengue, temos Poente, porgue ndo elas? Somos contos contando contos, nada. Foi nesta mesma linha que Anténio Mora, um outro heterénimo, intérprete do Dr. Reis, historicizou paganismo. Para se compreender como, hi que recordar brevemente a sua enérgica defesa de um renasci- mento pagio. O paganismo, escreve Mora n’

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