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Virtudes

É fácil fazer juízos sobre os outros.


Parece que faz parte da nossa natureza humana esta tendência para
analisar, medir, avaliar aquele com que nos deparamos.

A visão dá-nos quase de imediato uma série de informações que se


relacionam com a estatura, o aspecto, a apresentação.
Instantaneamente processamos tudo isto estabelecendo comparações
com imagens padrão que guardamos no subconsciente. Segue-se,
quase sempre, a avaliação.

Tudo isto, porquê? Com que finalidade?

Bom, poder-se-ia dizer que é um “processo automático” e que, a


finalidade é a tomada de decisão do: gosto, não gosto, é-me
indiferente.
Os "processos automáticos" revelam uma vontade fraca que não
comanda o pensamento, a emoção ou as respostas aos estímulos
externos.

O sacerdote e o levita da parábola do samaritano deviam ter este


defeito.
O de Samaria, ao invés, é um homem sem preconceitos, reage ao
estímulo de solidariedade que lhe provoca o homem prostrado na
vera do caminho, ferido e maltratado por bandidos. É um ser solidário
que caminha na vida considerando os outros - todos - seus iguais,
dignos da sua atenção e do seu crédito.
Poderá ser tripudiado na sua boa-fé, terá desilusões, facilmente
convencido, levado a fazer o que não que deseja?
Nada mais falso; esta pessoa nunca é enganada porque o que faz
pelos outros é sem pensar num possível retorno.

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Virtudes
Jamais fará o que for contra a sua vontade porque sabe muito bem o
que lhe convém querer e, muito menos, arrastado por outros porque
sabe o seu caminho.

Os outros, não!
Passam pela vida sempre sozinhos porque gastam o tempo a avaliar,
a julgar e, enquanto o fazem, a oportunidade perde-se e, muito
provavelmente, não voltará a repetir-se.
Estes ficam sós o outro, terá, sempre, muitos amigos que nunca o
abandonarão.

Na nossa vida corrente, de todos os dias, encontramos, a cada passo,


estas duas figuras humanas. E, o interessante, é que não poucas
vezes, assumimos nós próprios ambas as características quase sem
darmos por isso.
Quando lemos, ou escutamos, uma notícia sobre alguém tentamos ler
nas entrelinhas de quem escreve ou detectar no acento do locutor,
algo mais do aquilo que está escrito ou que ouvimos. Esse algo mais
é o nosso julgamento, a apreciação que fazemos da pessoa visada na
notícia.

Se se trata de alguém que conduz uma obra meritória de


solidariedade social, ou praticou um acto de relevante auxílio a
outrem sentimo-nos como fazendo parte, também, desse mesmo
assunto e, aliás, consideramos como é que nós procederíamos em
iguais circunstâncias. Normalmente chegamos a uma conclusão
apressada que teríamos feito mais e muito melhor.

Se o enfoque da notícia cai sobre algo de reprovável, talvez, até, de


muito reprovável aceitamos muito rapidamente que o visado é de
facto uma má pessoa, pouco recomendável e, provavelmente, fez
muito pior do que o que se relata.

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Virtudes

Existe, de facto, em cada um de nós um crítico em serviço


permanente, comportamo-nos como se fossemos uma ilha isolada no
meio de um vastíssimo oceano, onde afloram todas as águas
trazendo com elas inúmeros detritos, objectos dos mais diversos,
coisas que não são identificáveis, até, por vezes, cadáveres de
afogados.
Dedicamos então, o nosso tempo livre, que é muito, a apreciar tudo
isto, a tentar identificar, descobrir a origem, a causa, o porquê
daquilo que nos veios às mãos.
Quer dizer, estamos de facto sozinhos nessa ilha, não temos ninguém
que nos controle a ânsia de “investigação”, não temos, em suma, que
dar contas a ninguém do que fazemos e, muito menos das conclusões
a que chegamos.

Vamos guardando para nós, dentro de nós, um acervo interminável


de opiniões, descobertas, conceitos. Conseguimos arranjar espaço
para “arquivar” um enormíssimo catálogo que, no fim e a cabo, não
vai servir, nunca, para nada.
Talvez cheguemos à conclusão que, pelo menos, estamos a perder
tempo na construção – e manutenção – de tal “armazém” no qual
ninguém entrará nunca para recolher o quer que seja.
Ou, é possível que pensemos que talvez um dia, possamos ir
retirando desse acervo coisas interessantes para comparar com
outras que se nos vão deparando na vida.

As ruas da cidade onde vivemos são a nossa “ilha” de onde


apreciamos os que passam: este è baixo, aquela é gorda, estoutro
parece tonto, aquele parece estar na companhia da filha mais nova
ou, talvez, uma neta, aquele casal discute, este, vê-se bem, tem
sérios problemas, reparamos no que sorri, ou que tem a tristeza ou a
preocupação estampadas no rosto, um que se veste como um

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Virtudes
palhaço, outra que se julga uma estrela de cinema, uma criança
malcriada, um miúdo muito acertadinho, uma pessoa já de idade que
coxeia bastante, aquele que corre com o suor a escorrer-lhe do
pescoço, aproxima-se alguém que parece falar consigo mesmo…
Registamos fotograficamente este interminável oceano que nos
envolve com todos os pormenores, características, cores, volumes e
dimensões. Com uma rapidez impressionante chegamos ao fim de
uns minutos com um registo enormíssimo repleto de apontamentos,
rasgos, traços, pinceladas, anotações mas… não temos um quadro,
uma visão de conjunto, um todo.
Coisas esparsas, vagas, difusas, misturadas sem critério – nem
preocupação de tê-lo – e, com tudo isto, que é muito, entramos
finalmente em casa e constatamos que chegamos como partimos:
vazios!

Às vezes, a nossa ilha, é o automóvel onde nos deslocamos, onde nos


sentimos reis e senhores com uma série de direitos e prerrogativas.
Quando na paragem do semáforo alguém se aproxima para nos pedir
algo nem reparamos no gesto maquinal que fazemos que, traduzido,
quererá, talvez dizer: tenha paciência…
Paciência? Claro que tem paciência se não a tivesse, não estava ali,
horas, batendo nos vidros dos automóveis que param. Se, de manhã,
com um pequeno sorriso expectante de esperança, se ao final da
tarde com um ar de cansaço desiludido.

Quando “abre” o sinal verde, talvez pensemos: “bolas, podia ter dado
uma moedita ao desgraçado, se calhar tinha fome…” mas, este
pensamento desvanece-se tão rapidamente como surgiu: “Não!
Chega! São os bombeiros, é para ajuda das crianças com não sei que
doença, é para o asilo não sei de onde, para a Liga dos Amigos de…
não!; o Estado, sim o Estado é que tem obrigação de olhar por estas
coisas, suprir estas necessidades. É para isso que pago impostos.”

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Virtudes
(E… pago mesmo os impostos, não tento fugir, dar um “jeitinho”,
afinal… todos fazem o mesmo!) E pronto! O brevíssimo incómodo
passou. Atrás de nós um qualquer carrega na buzina o que nos irrita
profundamente. Só não fazemos um gesto feio porque levamos os
miúdos no banco detrás. “Não querem lá ver o apressado! Se calhar o
carro nem é dele ou, o mais certo, é ter as prestações em atraso…”
(Nem nos lembramos que, esse, talvez seja o nosso caso!)

Voltemos ao Samaritano.
Sabe-se da animosidade que existia entre judeus e samaritanos,
principalmente por questões de ordem e prática religiosa. Havia, de
facto uma clivagem profunda entre eles. Parece lógico que dos três: o
sacerdote, levita e o samaritano, se esperasse que fosse este a
continuar a viagem sem prestar auxílio ao necessitado. Mas não foi, o
que traduz um significado profundo, a solidariedade, a compaixão, o
espírito de serviço aos outros vence essas barreiras, ultrapassa essa
dificuldade.

São os outros dois piores que ele, neste sentido de serviço e


solidariedade? Provavelmente sim mas o que, de certeza não têm é
atenção, ao que os rodeia, aos que encontram no caminho.
A sua mente está demasiado ocupada com as suas coisas, no coração
mal cabem as preocupações pessoais, não tem lugar para mais nada
nem ninguém. Estes, estão de facto, sozinhos na vida e não sentem
necessidade de estar de outro modo. Na medida em que os outros
possam constituir um problema, uma preocupação, até um simples
incómodo já não lhes interessa. Se a questão é dar de si alguma
coisa sem ter uma razoável certeza de um retorno, uma
compensação, um ganho qualquer, nem que seja uma satisfação
íntima, então, nem sequer consideram deter-se, ainda que
brevemente, a considerar o assunto.

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Virtudes
São tantos estes homens sós, amargos, cheios de si que passam
incólumes e indiferentes pelos caminhos da vida!
Olham sempre em frente, não aconteça que algo marginal interfira na
sua marcha privada e solitária.
No final de cada dia recolhem as coisas que julgam ser suas e nada
mais porque não deram e não receberam nada.

O outro ao deparar-se com o desgraçado em mísero estado não se


detém um segundo a avaliar a situação, do que e de quem se trata.
Vê, tão-somente, um ser humano que necessita urgentemente de
auxílio e, isso, é para motivo suficiente e bastante para que ponha
em prática o que lhe dita o seu coração generoso e solidário.

Felizmente há muitos, muitíssimos mesmo, destes seres humanos,


mulheres e homens, jovens e não tão jovens que não só estão
sempre prontos a assistir solidariamente quem precisa mas, até, vão
ao seu encontro nos locais onde possam estar, quer nas noites frias e
tempestuosas de Inverno quer em países distantes cujas carências
aterradoras não os detêm.
Estes estão sempre rodeados de outros seres humanos, são
lembrados, fala-se deles, admira-se a sua postura e comportamento.
Mais, são, quase sempre, pessoas muito alegres e bem-dispostas.
Lidando com a miséria, a doença, situações de vida estranhas e
difíceis nota-se perfeitamente que esse serviço desinteressado lhes
traz uma alegria visível.
Quando se recolhem para descansar as suas mãos estão cheias de
boas acções, sentem os seus corações repletos de consolação.
Naquele momento sabem que muitos se lembram deles e dos bons
serviços que lhes prestaram. Estão felizes.

Não se trata de dar muito ou dar pouco.


Não interessa se o que se dá, nos sobra, ou nos faz alguma falta.

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Virtudes
No primeiro caso, de facto dá-se, no segundo, reparte-se. Aqui reside
a grande diferença da solidariedade: dar e repartir são duas coisas
bastante diferentes. Ambas são, evidentemente, dádiva, só que uma
é um pouco mais que isso, traduz uma preocupação real, efectiva,
pelos outros e, sobretudo, um saudável conceito que, de facto, nada
é propriamente nosso.
No hospital, na cabana, no palácio, na paz e na guerra, todos
nascemos nus e, aquilo que nos põem em cima, ou nos vestem, não
depende absolutamente da nossa vontade ou querer. Durante muito
tempo, alguns anos pelo menos, ninguém nos perguntará o queremos
fazer, o que desejamos tomar como alimento. Não temos qualquer
capacidade de escolha ou eleição do quer que seja. Somos,
efectivamente, seres humanos, com direitos e garantias mas, esses
direitos e garantias, que são efectivamente nossos, tal como a nossa
identidade única e irrepetível, não dependem de nós, não os podemos
exigir. Somos seres inteiramente dependentes dos outros, da
sociedade em geral e de alguns em particular.
Esta dependência mantém-se pela vida fora até ao último dia da
nossa vida em que, alguém, terá de nos fechar os olhos e dar destino
ao nosso corpo.

Durante algum tempo – talvez muitos anos – teremos uma ilusão de


independência porque podemos escolher, optar fazer isto em vez
daquilo, gostar desta pessoa e não daquela, comandamos a nossa
própria vida diária.
Isto é uma ilusão. Todo o conhecimento que adquirirmos foi-nos
proporcionado por alguém que no-los transmitiu, ou partilhou
connosco.
O que ficamos a saber não nos valerá de coisa nenhuma se não
houver alguém que nos proporcione pô-lo em prática, desenvolvendo
e aumentando a panóplia de serviços que se podem colocar à
disposição da sociedade. Nem mesmo quando atingimos o topo de

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Virtudes
uma carreira profissional deixamos de depender de outros que irão
pondo em prática o que lhes vamos transmitindo.
Há, portanto, uma igualdade e interdependência intrínseca real e
consistente entre os seres humanos. Esta não é uma conclusão
apressada ou de mera retórica, é uma constatação.
A vida humana encerra em si mesma, muitos aspectos de contradição
que nos custa aceitar de bom grado.
Vejamos, para começar, o que se passa com a liberdade do homem.

Primeiro, talvez, a grande pergunta: O que é a liberdade?

A liberdade é o poder, dado por Deus ao homem, de agir e não agir,


de fazer isto ou aquilo, praticando assim por si mesmo acções
deliberadas. A liberdade caracteriza os actos propriamente humanos.
Quanto mais faz o bem, mais alguém se torna livre. A liberdade
atinge a perfeição quando é ordenada para Deus, sumo Bem e nossa
Bem-aventurança. A liberdade implica também a possibilidade de
escolher entre o bem e o mal. A escolha do mal é um abuso da
liberdade, que conduz à escravatura do pecado. (1)

Então, nesse caso, o homem tem direito à liberdade?

O direito ao exercício da liberdade é próprio de cada homem


enquanto é inseparável da sua dignidade de pessoa humana.
Portanto, tal direito deve ser sempre respeitado, principalmente em
matéria moral e religiosa, e deve ser reconhecido civilmente, e
tutelado nos termos do bem comum e da justa ordem pública. (2)

Estas afirmações levam-nos, inevitavelmente, a uma pergunta:

1
CCIC: 363, CIC: 1730-1733; 1743-1744
2
CCIC: 365 - CIC – 1738 – 1747

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Virtudes

O homem é de facto livre? Pode fazer o que entender e como


entender?

Em teoria é, pode de facto eleger o que faz ou deixa de fazer. Isto é


uma verdade que o próprio Criador aceita e respeita, não interferindo
nunca, o que é lógico uma vez que foi Ele quem decidiu que teríamos
uma liberdade pessoal.

Mas, de facto, a liberdade envolve responsabilidade pessoal, ou não?

A liberdade torna o homem responsável pelos seus actos, na medida


em que são voluntários, embora a imputabilidade e a
responsabilidade de um acto possam ser diminuídas, e até anuladas,
pela ignorância, a inadvertência, a violência suportada, o medo, as
afeições desordenadas e os hábitos. (3)

Pondo a questão de outra forma, podemos fazer o bem ou fazer o


mal com livre arbítrio pessoal?
É verdade, podemos.
Mas o conceito de bem e mal encerra em si mesmo uma questão
séria porque, basicamente, depende do conhecimento próprio do que
é bem e do que é mal. O que hoje em dia é considerado uma
monstruosidade reprovável em todos os sentidos, pode não o ter
sido, para alguns, que a praticaram em tempo. Não darei exemplos
porque me parece evidente que o comportamento humano difere na
sua, digamos, “justificação” conforme a época, a circunstância e o
motivo.

3
CCIC: 364 - CIC – 1734 – 1737; 1745-1746

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Virtudes
«Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34), Jesus diz
isto porque sabe que os Seus verdugos, não conhecem Quem
sujeitam à tortura e à crucifixão. São meros executores de ordens, na
época, comuns. Não é da sua competência julgar ou não da licitude
do que fazem.

Num outro plano podemos considerar que a prática do bem, isto é,


fazer coisas naturalmente boas, para o próprio e para os outros, é
uma atitude louvável e merecedora de recompensa.
O contrário, o mal praticado com plena consciência, merece
reprovação e, eventualmente, castigo.

Mas, quando é que um acto é moralmente bom?

O acto é moralmente bom quando supõe, ao mesmo tempo, a


bondade do objecto, do fim em vista e das circunstâncias. O objecto
escolhido pode, por si só, viciar toda a acção, mesmo se a sua
intenção for boa. Não é lícito fazer o mal para que dele derive um
bem. Um fim mau pode corromper a acção, mesmo que, em si, o seu
objecto seja bom. Pelo contrário, um fim bom não torna bom um
comportamento que for mau pelo seu objecto, uma vez que o fim
não justifica os meios. As circunstâncias podem atenuar ou aumentar
a responsabilidade de quem age, mas não podem modificar a
qualidade moral dos próprios actos, não tornam nunca boa uma
acção que, em si, é má. (4)

Logo, parece, a liberdade humana não é total mas sim condicionada:


posso fazer mal mas sujeito-me a uma pena; desejo fazer o bem
porque terei um benefício.
Este conhecimento condiciona ou não a liberdade?

4
CCIC: 368 – CIC: 755-1756; 1759-1760

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Virtudes
Acho que sim, porque entendo que uma liberdade total não distingue
o bem do mal, isto é, tanto faz fazer uma coisa ou outra porque não
haverá consequências.
Claro que, colocado desta forma, deixamos de estar a falar de seres
humanos, dotados de alma: vontade, querer, conhecimento, razão.
Um cão não tem esta capacidade e por isso o ensinamos a fazer isto
ou aquilo, conforme nos convém e, o cão, passará a fazê-lo porque
obedece a um estímulo de prémio.

No fundo da questão estará, talvez, um dito muito antigo: a minha


liberdade acaba onde começa a liberdade dos outros!
Isto resume um magnífico entendimento empírico do bem e do mal
na medida em que, o primeiro é sempre uma manifestação de
respeito pelo semelhante e, o segundo, a ausência dessa
preocupação.
Acrescentamos, assim, uma característica fundamental e única do ser
humano:

O respeito.

Começamos, preferencialmente, pelo respeito próprio.

(Andam uns anúncios na televisão que, em suma, terminam assim:


“Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Parece-me algo de muito
errado e indutor de narcisismo.

Os outros têm de gostar de nós, preocupar-se connosco?


Têm, respondo sem mais lucubrações.
Porquê?
Exactamente por princípio de solidariedade, porque eu também me
preocupo e gosto deles.

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Virtudes
O que o tal anúncio parece querer dizer é: deixe lá os outros e olhe
mas é para si!

Voltemos ao respeito próprio.


Olhamos para nós como um ser individual, irrepetível com uma
entidade própria e exclusiva. Somos, os seres humanos, autênticas
obras de arte complexa e bela ao mesmo tempo. Temos o dever de
cuidar de nós, tudo fazer para manter-nos sãos e competentes.
Temos, principalmente, de capacitar-nos que somos criados na
verdadeira acepção da palavra, isto é, pertencemos a quem nos criou
e, por isso mesmo tal como não podemos determinar quando
começamos a existir também nos deve ser vedado escolher quando
terminamos essa existência. Sendo assim, o respeito pessoal pelo
próprio corpo, pela entidade, pelo ser completo que somos, parece
lógico.
Este respeito impede-nos, por exemplo, de praticar seja o que for
que nos prejudique ou altere de forma profunda a nossa
“construção”. Não podemos “recriar” um corpo à nossa medida ou de
acordo com um gosto pessoal. Seria, no mínimo cometer uma
falsidade comparável a assumir-mos uma identidade que não é a
nossa.

Tem isto algo a ver com, por exemplo, as cirurgias plásticas tão em
voga nestes tempos em que vivemos?

Entendamo-nos! Corrigir defeitos do corpo com intervenção cirúrgica,


ou outro método qualquer (fazer exercício físico para manter ou
recuperar massa muscular, por exemplo) não tem mal nenhum,
desde que, naturalmente, aquilo que consideramos defeitos ou
anomalias o sejam de facto, isto é, que seja constatável pelo próprio
ou por outros.

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Virtudes
Diferente é a alteração do corpo, ou partes dele, com critérios de
ordem meramente pessoal: “acho que fico melhor com olhos azuis”,
“um peito mais volumoso favorecia-me”.
Uma coisa é o respeito pelo próprio corpo, outra, diferente e
reprovável, é o culto do corpo.
Porque, o erro, está quase sempre na apetência que sentimos que os
outros gostem de nós pelo que parecemos em vez querer que gostem
pelo que somos.

Igualmente nos é vedada a prática de actos que atentem seriamente


contra a saúde do nosso corpo como, por exemplo, os excessos na
comida ou na bebida, o uso de drogas não recomendadas por médico,
a prática de actividades perigosas, a condução de veículos com
velocidade excessiva.
Verificamos facilmente que tudo isto não nos é vedado fazer apenas
por respeito por nós próprios mas também, em grande medida, por
respeito pelos outros. O mal que posso provocar a mim mesmo
repercute-se num mal para a sociedade, como resulta evidente, por
exemplo, num acidente de trânsito que provoquei pela minha má
conduta.

Para ajudar na “competição” íntima entre as práticas boas e os actos


maus, os seres humanos têm de cultivar o que convencionamos
chamar: VIRTUDES.

E o que é a Virtude?
A Virtude (latim: virtus; em grego: ἀρετή) é uma
qualidade moral particular. É uma disposição estável em ordem a
praticar o bem; revela mais do que uma simples característica ou
uma aptidão para uma determinada acção boa: trata-se de uma
verdadeira inclinação.

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Virtudes
Pode também dizer-se que as virtudes são todos os hábitos
constantes que levam o homem para o bem, quer como indivíduo,
quer como espécie, quer pessoalmente, quer colectivamente, a
qualidade do que se conforma com o considerado correcto e
desejável, seja do ponto de vista da moral, da religião, do
comportamento social ou do dever.
Segundo a doutrina da Igreja Católica, e especialmente S. Gregório
de Nissa, a virtude é "uma disposição habitual e firme para fazer
o bem", sendo o fim de uma vida virtuosa tornar-se semelhante
a Deus
Existem numerosas virtudes que se relacionam entre si tornando
virtuosa a própria vida.

A Igreja Católica assinala duas categorias de virtudes: as virtudes


teologais e as virtudes humanas

1. AS VIRTUDES TEOLOGAIS:

cuja origem, motivo e objecto imediato são o


próprio Deus. São infundidas no homem com
a graça santificante, tornando os homens capazes
de viver em relação com a Santíssima Trindade.
Fundamentam e animam o agir moral do cristão,
vivificando as virtudes humanas.

 Fé: acreditar em Deus, nas suas verdades reveladas e


nos ensinamentos da Igreja, visto que Deus é a própria
Verdade.

 Esperança: com a ajuda da graça do Espírito Santo, esperar


a vida eterna e o Reino de Deus, colocando uma
confiança perseverante nas promessas de Cristo. Sem dúvida

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Virtudes
que a esperança é um estado da alma, não um simples
movimento interior de expectativa.
E o que é um estado de alma?
Trata-se de uma disposição permanente e duradoura que se
vive independentemente dos acontecimentos exteriores.
Por outras palavras, o que acontece é observado criticamente
tal como é e não o que, eventualmente possa parecer que é.
Por isso a esperança não assenta nem na concretização dalgo
que se deseja ou espera, nem no alheamento dessa realidade.
A esperança leva a encarar os acontecimentos como fases
num caminho para um fim desejado.
Também por isso, talvez, se costuma dizer que a esperança é
a última a morrer.

Esperar é viver com perspectiva de futuro com os olhos postos


no presente não ignorando ou tentando escamotear o que
possa pensar-se que vai contra essa disposição.
Quem possui a virtude da esperança tem muito mais
possibilidades de ser feliz que aquele que a não tenha.
Porquê? Porque o homem tende inevitavelmente para Deus
que lhe incutiu uma ânsia de eternidade que é, como se
compreende, a última felicidade.
Por isso a virtude da esperança é autêntico alimento já que se
pode viver, perfeitamente, dela e, ao contrário, a sua ausência
retira todo o sentido à vida.

 Caridade (ou Amor): "amar a Deus sobre todas as coisas e


ao próximo como a si mesmo. É o mandamento novo Jesus ,
a plenitude da lei".

A Fé não surge por simples vontade ou desejo do homem. A Fé


depende de Deus que a concederá gratuitamente mas, de facto, para

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Virtudes
se manter, depende da vontade e desejo humanos, isto porque, como
já vimos, Deus não impõe nada, antes respeita a liberdade pessoal do
homem. Compreende-se que das três, a Fé é fundamental para que
existam as outras duas que são como que o complemento natural
dela.

A Esperança fundamenta-se na Fé, que lhe dá as razões pelas quais


existe.

A Caridade emana da Fé porque, ao acreditar em Deus o homem é


conduzido naturalmente para a prática do Mandamento Novo.

Sendo assim, a Caridade é a mais importante e o fundamento das


virtudes.

2. AS VIRTUDES HUMANAS:

são perfeições habituais e estáveis da inteligência e


da vontade humanas. Regulam os actos, ordenam
as paixões guiando a conduta humana segundo
a razão e a fé. Adquiridas e reforçadas por
actos moralmente bons e repetidos, estas virtudes são
purificadas e elevadas pela graça divina. Entre as
virtudes humanas destacam-se as virtudes cardeais,
que são consideradas as principais por serem os apoios
à volta dos quais giram as demais virtudes humanas:

 Prudência, que dispõe


a razão para discernir em todas as circunstâncias o
verdadeiro bem e a escolher os justos meios para o atingir.
Ela conduz a outras virtudes, indicando-lhes a regra e a
medida.

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 Justiça, que é uma constante e
firme vontade de dar aos outros o que lhes é devido;
 Fortaleza que assegura a firmeza
nas dificuldades e a constância na procura do bem;
 Temperança que modera a
atracção dos prazeres, assegura o domínio da vontade sobre
os instintos e proporciona o equilíbrio no uso dos bens criados.

Podemos ainda considerar muitas outras virtudes que emanam das


anteriores, por exemplo:
Paciência; Fidelidade; Paz; Confiança, Constância; Generosidade;
Obediência; Simplicidade; Mansidão; Humildade; Serenidade; Bom
Humor; Amizade; Fraternidade; Optimismo; Flexibilidade.

Prudência

Na Grécia, no frontispício do Oráculo do deus da harmonia, lê-se:


“Conhece-te a ti mesmo!”
Então, pode ter-se como condição sine qua non para se ser prudente,
o conhecimento próprio.
Aliás, se não me conhecer não posso realmente fazer nada humana
mente aceitável, quer dizer, como um acto humano racional.
As nossas capacidades, virtudes, dons, características únicas, as
várias facetas do carácter têm de ser objecto do nosso conhecimento
pessoal quanto mais profundo e detalhado melhor. Só este
conhecimento nos permitirá agir com verdade e seriedade, de forma
justa e moderada, com fidelidade e paciência, merecer a confiança
dos outros e ser constantes nas nossas acções.

Esse entrar-mos em nós mesmos – introspecção – com serena


preocupação de nos conhecer-mos, é uma tarefa à qual nos

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Virtudes
dedicaremos toda a nossa vida, desde a idade da razão até ao último
momento. Porquê? Porque, naturalmente, evoluímos com o tempo e
vamos adquirindo novos contornos, esquinas, arestas que
constantemente formatam o nosso carácter. Isto pode fazer-se
sozinho, sem dúvida, e se se o fizer de forma séria obtêm-se
resultados; mas, em princípio, ninguém é bom juiz em causa própria,
daí que recorrer ao auxílio de alguém em quem possamos confiar,
dotado de experiência e são critério, é uma excelente medida para
levar a cabo essa necessidade.
A nossa formação pessoal – repito, contínua e permanente – tem
muito a ganhar com esta opção na medida em que sendo
absolutamente sinceros com quem nos escuta podemos chegar a
conclusões que talvez nos escapassem se o fizéssemos sozinhos.

O nosso – chamemos-lhe assim – director espiritual, está numa


posição privilegiada para avaliar o nosso comportamento e sugerir a
forma, se for caso disso, de corrigir o que não estiver bem e,
também, incentivar evoluções positivas no nosso carácter que nos
conduzam a um melhor aproveitamento das nossas qualidades e
outras características para nosso próprio bem e dos outros. Ao
contrário do que alguém possa pensar, o director espiritual não está
tão empenhado em apontar-nos o que está mal como ajudar-nos a
descobrir o que e como devemos fazer para melhorar na prática do
bem. Ou seja, não tem um papel crítico mas uma acção construtiva e
benéfica.

Há, evidentemente, algo a considerar muito seriamente e que é a


sinceridade e honestidade com que nos relacionamos com esse
mentor. Isto talvez afaste muitas pessoas desta prática, porque se
trata de abrir a alma e o coração, sem guardar ou mascarar seja o
que for que, por respeito humano, possamos considerar menos
abonatório da nossa personalidade. Se não estivermos dispostos a

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Virtudes
proceder desta forma, então, a direcção espiritual é perfeitamente
inútil e traduzir-se-á numa mistificação e pura perda de tempo.

Justiça

No Antigo Testamento os homens bons são chamados de “Justos”.


Isto quer dizer que a justiça é uma virtude importante na
consideração que se possa fazer acerca de alguém. Parece que a
pessoa justa só pratica actos bons e, quando por deslize pessoal ou
qualquer outro motivo o não faz, é capaz e reconhecer e pedir
perdão.

A justiça começa por si próprio, quer dizer, ninguém poderá ser justo
com os outros, a sociedade, se, consigo mesmo, não for justo. Para
tal é, como também já vimos a propósito de outro tema, um
conhecimento próprio profundo e apurado. A consciência do que se é
e do que se faz, do que se pensa e do que se diz, na medida em que
os efeitos da acção possam ser aceitáveis e correctos.

Quem, por exemplo, não é pontual no seu horário de trabalho não


está a ser justo nem para com o empregador nem para com os
outros. Mas também está a ser injusto para consigo porque assumiu
um compromisso de um horário de trabalho que não cumpre. Um
estudante que não estuda, ou o faz mal, ou sem dedicação está a ser
injusto, pelo menos, para com os seus pais que esperam dele que
estude, para com os professores que se esforçam porque aprenda,
para com os seus colegas porque lhes dá um mau exemplo e, claro
está, para consigo porque está a desperdiçar uma oportunidade que
lhe compete aproveitar.

Um cristão que não reza como deve, com amor e assiduidade, falta à
justiça para com Deus que merece e espera que ele o faça, e consigo
também porque foge a um dever que lhe vem do facto de ser cristão.

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Virtudes
A justiça, portanto, vai bastante além do estrito cumprimento das leis
humanas. Não há justiça, só, em cumprir os nossos deveres. Não
roubar, por exemplo, não é um acto de justiça mas um dever, mas
devolver o que se tirou e não nos pertence é um acto justo. A
administração dos bens que nos são confiados é algo particularmente
sensível à justiça porque envolve, entre outras, o respeito, a
fidelidade, e a confiança de quem entregou os seus bens à nossa
guarda ou administração. Se reparamos no termos empregue –
confiados – vemos imediatamente implícita a confiança que em nós o
outro deposita.

Fortaleza

Pode pensar-se que a fortaleza e a coragem são a mesma coisa mas


não são. A coragem é uma qualidade e simultaneamente uma
virtude.
A fortaleza é uma virtude e um dom.
A coragem tem a ver com a atitude que se tem relativamente ao
exterior.
A fortaleza é antes uma emanação do íntimo.
É claro que, normalmente quem tem fortaleza tem necessidade da
coragem para levar a cabo os actos que a fortaleza lhe sugere ou
solicita. Vejamos um exemplo simples: a fortaleza sugere que a
frequência de determinado ambiente é prejudicial mas necessita da
coragem para levar a cabo as acções necessárias para, de facto, o
fazer. Como sugeria São Josemaria Escrivá: «Não tenhas a cobardia
de ser “valente”; foge!» (5) ou seja: és forte porque sabes que tens
de fugir dessa situação e corajoso porque o fazes.

5
S. JOSEMARIA, Caminho, 132

20
Virtudes
Talvez que uma das melhores ilustrações do que atrás se descreve
seja a cena que o evangelho de S. Marcos (6) nos descreve a respeito
das negações de Pedro no átrio da casa de Caifás onde Jesus está a
ser interrogado logo a seguir à Sua prisão.
A fortaleza do carácter de Pedro leva-o a constatar a enorme falta
que acaba de cometer: Por três vezes negar conhecer Jesus e, uma
delas, com juramento e que na situação em que se encontra corre o
risco de voltar a fazê-lo. A seguir tem a coragem necessária para sair
dali, sem se deter a avaliar as consequências que tal atitude lhe
poderia acarretar.
Teve coragem de corrigir algo que a fortaleza lhe sugeria ser mau e
perigoso: continuar no mesmo local estaria sujeito a novas traições.
Experimentar o que não se conhece bem talvez envolva correr ricos
desnecessários, ou, por outras palavras, pôr à prova a nossa
fortaleza não parece ser uma boa prática.
Não se trata de ter medo ou receio, mas, simplesmente, evitar
situações, ambientes ou acções que podem conduzir a um fim
inconveniente.

Não sei se morro ao atirar-me da janela de um sétimo andar para a


rua, mas não estou disposto a experimentar. Isto não é medo mas
bom senso.

Dissemos que a fortaleza se pode classificar como uma virtude mas


que, realmente, é um dom. Porquê? Porque precisa de uma decisiva
acção do Espírito Santo para que possa ser adquirida. É que se trata
de uma disposição íntima da própria vontade, que actua
principalmente no foro íntimo das escolhas, decisões e atitudes. Claro
que a fortaleza se apoia na fidelidade, na justiça e no respeito.

6
Mc 14, 66-72

21
Virtudes
Temperança

Disse-se que, entre outras características, a temperança assegura o


domínio da vontade. Por isso mesmo é uma virtude cardeal, isto é, de
primeira importância.
O domínio da vontade não é nem fácil nem rápido. É algo que
depende exclusivamente do próprio e que, por norma, leva muito
tempo a adquirir, às vezes, uma vida inteira não chega para se
conseguir esta virtude. Porque é tão importante para o homem ter
controlo sobre a sua vontade? Parece óbvio que fazendo o que se
quer, como se quer e quando se quer se chega a um distúrbio grave
do comportamento e a um péssimo hábito de agir sob estímulos ou
impulsos sem considerar se os mesmos são bons, maus, valem ou
não a pena levar cabo.
Se se considerar que a vontade é “cega” chegamos à consideração
que o que temos a fazer é dar-lhe “olhos” para ver em cada momento
o que convém ao próprio e aos outros e, muitas vezes estas duas
formas de ver podem estar em conflito: O que quero para mim pode
não ser conveniente para o outro e, se assim for, então, não me
convém.

Quero, por exemplo, afirmar-me como crítico de determinada acção


praticada por alguém. Mas porquê, devemos questionar. O que é que
eu vejo nesse acto que me mereça crítica – não interessa se
favorável ou não – e que capacidade tenho para a fazer. Além disso,
tenho o direito de a fazer? Estou a ver bem, a apreciar devidamente?
A temperança aconselha-me moderação, isto é, um rigoroso exame
da matéria em causa, para que a minha vontade seja esclarecida,
informada quanto à bondade do que me sugere fazer.

É muito provavelmente a principal característica do ser humano


completo, nenhum outro ser possui esta virtude ou tem acesso a ela.

22
Virtudes
Quando muito, um cão tem um instinto que o conduz a fazer algo e,
esse instinto é suficiente e bastante para que o faça a menos que o
treino a que tenha sido submetido o impeça de o fazer. Não tem,
portanto, capacidade de escolha nem possibilidade de eleição.
Logo, parece lógico que agindo sem controlo da sua vontade, o
homem se coloca ao mesmo nível do cão e as consequências deste
comportamento serão sempre graves porque se demite de uma
prerrogativa excelente que lhe foi dada por Deus.

Como a vontade se vai desenvolvendo com o crescimento do


indivíduo, esse desenvolvimento tem de ser acompanhado pela
temperança que vai, por assim dizer, formatando a vontade para
aquilo que convém. Aqui exercem um papel predominantemente
crucial, os formadores, em primeiro lugar os pais, o ambiente
familiar, os educadores e o meio em que se desenvolve a formação
da pessoa. As consequências desta formação do carácter do
indivíduo, e, consequentemente, do controlo sobre a sua vontade
revelam-se determinantes.
A formação rabínica recebida por São Paulo, uma vez convertido ao
cristianismo estava bem patente quando declarava: «Não faço o bem
que quero, mas o mal que não quero.» (7)

Paciência:

O que é a paciência? Quem pode responder melhor a esta pergunta


que o impaciente?
Sim, há várias coisas que sabe.
Por exemplo:
• A sua falta traz-lhe sofrimento porque, habitualmente faz
sofrer outros;

7
Rm 7, 15-25 Romanos 7:15-25

23
Virtudes
• Quer, agora, o que só estará disponível mais tarde;
• Esgota num ápice o que deveria durar algum tempo;
• Responde mesmo antes da pergunta estar completamente
elaborada;
• Adianta-se quando deveria esperar;
• Começa sem ter acabado o que começou;
• Agita o que estava tranquilo;
• Desconfia do evidente;
• Pretende o que não lhe compete;
• Julga sem analisar;
• Precipita a conclusão;
• Não espera pelo resultado.

E, sofre ainda mais porque se dá conta que:

É desagradável no trato;
Cai com frequência no destempero de atitudes e linguagem;
Dá-se conta do afastamento dos outros.

Continua a sofrer porque:

• Perde oportunidades;
• Não presta a atenção que os outros merecem;
• Não tem uma trajectória recta;
• Ziguezagueia de emoções em emoções;
• Troca coisas importantes por ninharias;
• Muda de verdades essenciais para hipóteses efémeras.

Na verdade, o impaciente, sofre muitíssimo porque não dando


felicidade aos outros não a consegue para si próprio.

24
Virtudes
Assim temos, exactamente, o que a paciência não é.

Fidelidade

A virtude da Fidelidade é, uma das mais belas. Bem entendido, todas


as virtudes têm beleza e um fulgor característico que as distingue,
mas, a Fidelidade tem um brilho tão intenso e envolvente que acaba
por transmitir, ao que a possui, como que uma aura pessoal que o
torna nalguém notável.
Ser fiel é também uma disposição interior porque não depende nem
das circunstâncias nem das pessoas mas sim de uma estabilidade
própria nos sentimentos e emoções.
Não pode ser fiel quem não tenha vida interior, segura, esclarecida,
exactamente porque, a Fidelidade, nasce no mais profundo de nós.
Não é, de modo nenhum, algo externo, influenciável, mutável.
A pessoa fiel torna-se, automaticamente nalguém digno de confiança
em quem se pode depositar e entregar tudo o que se queira com a
certeza que é guardado e mantido tal como o entregamos.

Há uns anos surgiu um filme que causou um grande impacto a nível


mundial e, se não me engano obteve vários prémios. (8)

O nome do filme é: “FILADÉLFIA”.

O tema principal da película parecia ser a doença chamada SIDA –


(AIDS, em inglês). Disse “parecia ser” porque, pelo menos para mim,
o tema de fundo era a fidelidade.
O protagonista contraiu a terrível doença de que viria a falecer por
causa de um acto de infidelidade.

8
Pelo menos 1 Óscar para a melhor música de Bruce Springsteen

25
Virtudes
Bom… de facto era um homem homossexual que vivia com um
companheiro masculino mas que traiu, embora uma única vez, num
encontro fortuito.
A fidelidade não tem, portanto, a ver com a situação, a forma, o
critério, o ambiente em que se vive.
Quer dizer, não há situações em que a fidelidade seja mais ou menos
importante que outras.
Ser fiel significa honrar um vínculo livremente assumido.

Fidelidade (do latim fidelitas pelo latim vulgar fidelitate) é o atributo


ou a qualidade de quem ou do que é fiel (do latim fidelis), para
significar quem ou o que conserva, mantém ou preserva as suas
características originais, ou quem ou o que se mantém fiel à
referência.
Fidelidade implica confiança e vice-versa, e essa relação de
implicação mútua aplica-se quer entre dois indivíduos, quer entre
determinado sujeito e o objecto sob sua consideração, que, por sua
vez, também pode ser abstracto ou concreto. Essa co-significação
originária mostra-se plena quando se trata de dois sujeitos, ambos
com capacidade activa, pois, nesse caso pode invocar-se a
correlação confiança (do latim cum, e fides).

Poder-se-á dizer também que fidelidade significa lealdade,


constância, firmeza, nas afeições, nos sentimentos; perseverança,
observância rigorosa da verdade; exactidão.
Temos assim, que há alguma complexidade nesta virtude, porque de
virtude se trata, que não pode ser ignorada.
Aparecem várias vezes nos discursos de Jesus Cristo referências à
fidelidade como algo imprescindível para que possa existir uma
relação estável de confiança entre os homens e entre os homens e
Deus.

26
Virtudes
(O inverso não se coloca porque Deus, por definição, é fiel.)

«In pauca fidelis»(9) refere-se Cristo no Evangelho, fiel no pouco, nas


pequenas coisas, mesmo naquilo que, aparentemente, tem pouco
relevo ou importância.
Não há, portanto “níveis” de fidelidade; ou se é fiel em tudo e em
qualquer circunstância e de forma constante, diria, sem intervalos
conforme as situações, ou não existe fidelidade.

A fidelidade é um acto bom, uma actividade voluntária e permanente,


uma força que inclina a cumprir com sinceridade e valentia os
compromissos adquiridos, as promessas feitas e a palavra dada. (10)

Por isso mesmo, a Fidelidade, é uma virtude já que só é possível ser


fiel a quem tiver estabilidade de vida e comportamento. Seja porque
tem ideais elevados que levam a pessoa a manter-se numa linha de
conduta que é comum chamar-se unidade de vida, ou porque tem
aspirações pessoais que transcendem as possíveis conveniências de
momento. Não se trata de uma inspiração ocasional mas de um acto
permanente da vontade.

A fidelidade requer um fundamento profundo e forte de paciente


indagação, o anelo de encontrar um motivo para viver. Não é
possível falar de fidelidade a quem carece de ideais ou a quem não
sabe de valores que transcendem a própria vida. (11)

Quem anda pela vida como um espectador, por mais atenção que
possa ter ao que se passa à sua volta, se não tiver uma vida interior
sólida, com uma hierarquia de valores bem definida, não pode ser fiel

9
Mt 25, 21
10
JAVIER ABAD GÓMEZ, Fidelidade, Quadrante, 1991 nr. 10
11
JAVIER ABAD GÓMEZ, Fidelidade, Quadrante, 1991 nr. pg. 34

27
Virtudes
a nada, porque, como já se viu, não há “fidelidades momentâneas”,
mas constantes. A introspecção necessária a cada pessoa que se
preocupe com o seu papel neste mundo – para que nasceu -, que faz
não unicamente o que lhe convém, mas e com o que deve fazer como
pessoa única e irrepetível, é fundamental para chegar a um
conhecimento próprio sério e concreto.

Deve haver uma finalidade superior em todos os actos que se


praticam, mesmo os mais banais. A finalidade superior de, por
exemplo, comer é alimentar-se e não degustar algo que dá prazer ou
contentamento. Se esse prazer e contentamento existem tanto
melhor, mas ninguém, de bom senso, deixará de comer porque o
único alimento disponível não lhe agrada. Nisto se diferencia o ser
humano do animal. Aquele come para se alimentar, este come para
se saciar. Daí que devamos comer o que de facto necessitamos, e
não mais o que implica um acto da nossa vontade, um controlo sobre
o apetite ou o desejo. De tal forma assim é – deve ser – que quando
verificamos que o nosso corpo mostra as consequências de uma
alimentação desregrada ou exagerada, começamos uma dieta que,
mais não é, que uma contenção forçada pela vontade.

Esta constatação do que somos seres superiores deve levar-nos


exactamente ao que atrás se dizia: ter ideais e a noção dos valores
que ultrapassam a própria vida porque se colocam numa esfera que
raia o divino. Não exageramos porque se fomos criados à imagem e
semelhança do Criador, que é Deus, porque dele viemos e para Ele
tendemos, há algo de divino no homem que é exactamente o que o
distingue do resto da criação. Que espanto pode haver se, assim, os
nossos ideais se aproximem e procurem cada vez mais aproximar-se
do próprio Deus?

28
Virtudes

Paz

Houve-se por vezes dizer de alguém que é uma pessoa


imperturbável.

Com esta qualificação pretende-se atribuir ao outro uma indiferença


perante o que o rodeia, às notícias que lhe trazem ou os
acontecimentos que forem.

Também poderá querer inferir-se uma apatia ou, pior, uma ausência
total de emoções. Isto pode não querer significar a antítese do
emotivo, que vibra, deixa transparecer os sentimentos às vezes, até,
com a “lágrima fácil”.

Na verdade, a observação pode referir-se tão-somente a um controlo


pessoal muito apertado. Ficamos então com duas possibilidades de
qualificação, uma boa e outra má.

Põe-se de lado uma hipótese e que é uma pessoa emotiva capaz de


se controlar?

Mas, a ser assim, essa pessoa funcionaria como um actor, ou seja,


alguém capaz de aparentar uma personalidade diferente da que
realmente tem.

O fim pode, igualmente ser bom ou mau na medida em que seja o


bom resultado de uma luta interior, ou um disfarce usado por
conveniência pessoal.

A paz de espírito, absolutamente necessária no primeiro caso, não é


possível no segundo e é fácil perceber porquê. A luta interior por
domínio de alguma faceta mais marcante do carácter, em lugar de

29
Virtudes
provocar um distúrbio traz consigo a tranquilidade que é sempre o
resultado de se praticar um acto bom. E, o esforço por exercer
controlo sobre si mesmo, não deixando 'à solta' ímpetos, arrobos,
atrevimentos, desvarios ou excessos de qualquer natureza, é, sem
dúvida muitíssimo bom.

Mas atenção: Tranquilidade e paz são duas coisas diferentes. A Paz,


como se verá mais adiante, é fruto da entrega.

A luta interior que o ser humano trava durante toda a sua vida
consciente é a consequência necessária de uma atracção para a
perfeição.

Conduzir a vida como se esta fosse constituída por uma série de


actos inevitáveis, aguardando sem expectativa o que se sucede no
tempo, não é próprio de um ser inteligente. Alguns chamam-lhe
''destino'' e fazem-no deixando transparecer uma inevitabilidade.

Estão absolutamente errados.

De facto, no próprio momento da concepção, Deus cria e atribui a


esse novo ser uma alma. Sendo espiritual e directamente criada por
Deus, a alma tem essa marca divina que a torna imortal.

O humano tem características próprias - o ADN - que lhe vêm dos


seus pais biológicos. Estas têm a ver apenas e somente com questões
de ordem física e, evidentemente, podem ser cultivadas, rejeitadas,
até manipuladas.

A alma, que é a chama da vida que só se manterá enquanto habitar


no corpo, tem o ''ADN" divino, que não sofre mutação em nenhum
caso ou circunstâncias.

30
Virtudes
A luta interior é exactamente o confronto entre estas duas
"estruturas" do ser humano. A primeira evolui à medida que a vida
vai avançando no tempo, trazendo à tona as suas características
dominantes, criando, quase sempre, à segunda, uma necessidade de
domínio, de controlo. As potências espirituais da alma, tendem,
naturalmente, a controlar as potências físicas.

Entre as potências espirituais da alma contam-se a inteligência que


permite a aquisição de conhecimento, as qualidades, as tendências
boas, as emoções, a capacidade de distinção do bom do mau.

Diria que há, contudo, uma necessidade comum às duas "estruturas"


e que é a sua "alimentação".

Na primeira parece óbvia a necessidade de crescimento, a


manutenção em boas condições da sua existência o que o homem
faz, normalmente há medida do tempo que vai decorrendo.

Pois, de modo similar a "estrutura" espiritual, a alma e as suas


potências, também carecem de "alimento" de "manutenção". Mas,
neste caso, o homem não pode consegui-lo sem a participação activa
de Deus. Deus não tem porque o fazer e o que é certo é que só o fará
a instâncias do homem. (Senhor aumenta a minha fé, dá-me um
coração puro, ajuda-me nas minhas fraquezas, etc.) Isto é o que
normalmente se conhece por oração.

A oração é pois, a comunicação do homem com Deus. È uma


comunicação simples, natural, despida de artificialismos porque se
trata (deve tratar-se) de um processo íntimo entre a criatura e o seu
Criador. Há uma necessidade intrínseca nesta comunicação. O
homem não deve alhear-se da presença de Deus na sua vida,
independente da sua vontade. Pode sim, numa má opção, escolher
ignorar a presença de Deus e proceder como se Ele não existisse ou

31
Virtudes
não lhe importasse para nada. Diz-se que é uma má opção porque
vai contra a ordem natural que é, sempre, a tendência do criado para
o criador. Há, de facto, uma pertença, um vínculo, que não pode ser
destruído pela vontade humana e, a vontade divina também nunca
não vai nesse sentido. A razão é simples se considerarmos que o
homem é imortal, ou seja, teve um começo, a sua criação, mas de
facto não morrerá uma vez que a sua alma não está sujeita às
mesmas leis que o corpo.

Em mim mando eu!

Houve-se esta insensatez com alguma frequência. E não pode ser


verdade porque ninguém é efectivamente dono de si mesmo, aliás,
não é dono de coisa nenhuma, apenas portador temporal de uns
bens, qualidades, defeitos ou características que lhe vêm não de
aquisição própria mas por indução alheia a si mesmo, seja dos Pais,
do conhecimento transmitido ou de Deus.

Leva-nos esta consideração, de volta à liberdade pessoal. De modo


similar, a liberdade e a posse pessoais podem considerar-se relativas
e, nunca, absolutas. A consequência do uso, mau ou bom, dessa
relatividade, marca a conduta do ser humano. O egoísmo que é uma
excessiva concentração em si mesmo, leva, quase sempre ao
isolamento o que parece ser óbvio já que, o egoísta, se afasta dos
actos de solidariedade que caracterizam a vivência em sociedade.

Porquê, isto, agora? Porque a excessiva preocupação com o que se


tem ou o que se é leva, quase sempre, ao egoísmo, à consideração
do próprio eu como a peça à volta da qual se move toda a maquinaria
e, a verdade, é que isto não existe como tal, é apenas fruto da
imaginação do homem.

32
Virtudes
É ou não verdade que a vida, a sociedade, a comunidade dos seres
humanos, prossegue o seu caminho mesmo quando desaparece do
seu convívio – morre – alguém muito importante que ocupou um
espaço notável entre os seus semelhantes? E esta pessoa
excepcional, não ficará reduzida à memória dos que se sucedem? Ou
seja, de facto ninguém, absolutamente é fundamental, embora possa
e deva, ser muito necessário em determinados momentos e
circunstâncias.

Ora bem, o egoísmo incapacita a pessoa para detectar essa


“fundamentalidade” que é, de uma forma ou outra, chamada a
exercer perdendo-se assim, oportunidades de serviço que, talvez,
não voltem a apresentar-se. O facto é que aquilo que alguém deixa
de fazer nunca será feito. Poderá alguém fazer o que o outro não fez
mas nunca o fará da mesma forma porque cada um só faz o que, ele
próprio, sabe e pode fazer, com as capacidades, aptidões, defeitos e
limitações que lhe são próprias e não com as do outro. Podem, de
facto, imitar-se os gestos, as atitudes e, até, em certa medida, os
sentimentos, mas, no cerne da questão, permanecerá, sempre, essa
dúvida sobre a fiabilidade da imitação.

Confiança.

Poderíamos dizer que a confiança é a previsibilidade do


comportamento do outro. Assim esta virtude tem uma raiz
eminentemente moral porque assenta num julgamento ou apreciação
do carácter do próximo o que é sempre uma dificuldade porque pode
colidir com o respeito e com a justiça.

Quem confia tem uma responsabilidade própria, quer dizer, foi por
sua iniciativa, decisão ou discernimento que decidiu confiar, logo, os

33
Virtudes
efeitos bons ou maus dessa confiança que depositou em alguém só
afectam a si mesmo.
Mas aquele em quem se confia tem, de facto, uma responsabilidade
alargada, tem de ser justo consigo mesmo e também para com quem
confiou nele não defraudando a sua expectativa de ter agido
acertadamente.
Para prever o comportamento do outro é necessário que esse outro
dê sinais, mostre por obras e factos concretos de quem é, como
pensa e age no assunto em causa.

Um dito popular consigna: “quando a esmola é grande o santo


desconfia”, o que quer dizer que confiar em alguém não é uma mera
decisão pessoal avulsa mas alicerçada numa observação de vários
sinais que o outro dá sobre si próprio.

Por outras palavras, terá de dizer-se que a confiança não pode ser
“cega”, automática mas uma disposição pensada de acordo com o
que o bom senso e a justiça nos dizem respeito do outro e do seu
comportamento e, de novo, aqui avulta o que já classificámos como
muito importante para a definição do carácter que é e unidade de
vida.
Não é possível, a ninguém, dar o que não tem e se se propõe fazê-lo
estará a enganar, deliberadamente, o outro talvez com o objectivo de
conquistar a sua confiança.
Continua a haver fariseus no nosso tempo, daqueles mesmos fariseus
dos Evangelhos que ensinavam o que não faziam e exigiam o que não
praticavam. Talvez onde esta faceta humana tão lamentável se torne
mais evidente é na vida política. Parece, realmente, ser uso e
costume prometer tudo e mais alguma coisa de modo a conseguir os
votos no sufrágio e, depois, ou porque o que prometeu não se pode
de modo nenhum cumprir ou, até, porque se esqueceu o prometido,
as coisas tomam um caminho diferente e, em princípio, inesperado.

34
Virtudes
Daí que, a credibilidade dos políticos, esteja num nível muito baixo e,
naturalmente, a confiança das pessoas ressente-se muito e, em
grande parte dos casos, como muita razão.

Nesta situação funciona o princípio da “bola de neve”, a falta de


confiança nos políticos leva à desconfiança do sistema no seu
conjunto, nas suas instituições e nas suas práticas. Como se acredita
que nada funciona como deve, seja em que sector do Estado for, na
justiça, por exemplo, geram-se fenómenos de corrupção
extremamente nocivos para a sociedade porque apostando na
impunidade corrompem de facto verticalmente a sociedade inteira.
O que se faz tem sempre consequências que se revelam de forma
transversal e vertical.
Suponhamos um médico que tem uma má prática clínica, ofende quer
o paciente, vertical, como a classe a que pertence, transversal.
Assim, dizemos que a corrupção afecta a sociedade de forma vertical
porque de facto tem de haver, pelo menos, dois actores: o
corrompido e o corruptor. As suas acções têm consequências para os
dois, para o objecto da corrupção, para a sociedade no seu todo
porque é prejudicada em alguma coisa em benefício de apenas
alguns.

Tudo isto leva a uma sociedade de “desconfiados” e, como num


choque em cadeia, multiplicam-se os efeitos da desconfiança: o
banqueiro desconfia do cliente a quem empresta dinheiro e tenta
precaver-se, em primeiro lugar levantando dificuldades de toda a
ordem e depois impondo condições gravosas e difíceis de suportar; o
professor quer assegurar-se seja como for, que o seu aluno não
copiou o seu trabalho; proliferam os sistemas de vigilância cada vez
mais sofisticados, atentando não poucas vezes contra o direito das
pessoas à privacidade…

35
Virtudes
Parece que, na sociedade, o derradeiro refúgio da confiança está na
família em que cada um é amado pelo que é e não pelo que tem.

Constância

A constância não é a mesma coisa que a perseverança, embora


tenham muito em comum.
A constância é um estado de alma permanente, a perseverança é um
acto da vontade. De facto pareceria preferível ter a primeira como
uma qualidade e a segunda, uma virtude.
A estabilidade emocional ou comportamental definem o homem
constante. Permanece fiel a princípios, compromissos,
responsabilidades e opções não mudando ou variando em função de
circunstâncias ou estímulos. Mantém uma uniformidade no
comportamento e na relação com os outros.
A pessoa que possui esta qualidade - optamos por esta qualificação -
é uma pessoa que merece confiança, pratica a justiça naturalmente,
é fiel e segura de si própria.
Revela uma sólida formação e uma panóplia de princípios muito bem
estruturada.
Por isso mesmo não sente necessidade de mudar apressada ou,
sobretudo, sem cuidada reflexão prévia. Tem uma estabilidade
própria que revela, também, fortaleza de carácter.

O não estar satisfeito com o emprego que se tem ou com o que se


faz pode levar a duas atitudes:
A primeira é procurar outra actividade, ou outro ambiente onde
desenvolvê-la; a segunda é procurar valorizar o que se tem, tirando
partido do facto de ter uma actividade remunerada o que, cada vez
mais, está ao alcance de menos.

36
Virtudes
A atitude é muito importante para o êxito na actividade que se tem.
Quem, ao principiar o dia, se arrasta penosamente como que para
um trabalho forçado, está a dispor-se para que o seu trabalho, nesse
dia, seja amargo, pouco compensador e, muito provavelmente
deficientemente feito.
O contrário, isto é, encarar o dia que começa como uma oportunidade
de fazer algo construtivo que contribua para o bem pessoal e alheio,
leva a que o “peso” do trabalho seja vivamente atenuado pela atitude
de disponibilidade e desejo de servir.

O que tem isto a ver com a constância?


Tem tudo, porque só pode trabalhar bem – única forma admissível de
trabalhar – quem for constante naquilo que faz, sem andar a
movimentar-se de uma coisa para outra, deixando para mais tarde
algo que não apetece fazer agora, que se dispõe todos os dias, a
fazer, se necessário, as mesmas coisas da mesma forma.
Aliás, não há outra forma de ganhar a confiança de quem é
responsável pelo seu salário.

Generosidade

Desde Descartes – que tentou definir a generosidade de modo


científico – até aos pensadores mais comuns têm tentado dar uma
imagem concreta da generosidade. De facto, parece-me, uma virtude
bastante complexa que tem a ver com a maneira de ser, o carácter,
de cada indivíduo. Quero dizer que não há uma formula que se
aplique para ser generoso já que, cada ser humano reage de forma
diferente perante circunstâncias semelhantes.
Aliás, também não é quantitativa porque não se é muito ou pouco
generoso, ou se é ou não se é de todo.
Parece-me que a generosidade se avalia melhor considerando a
entrega que de si mesmo se faz a um apelo, convite, chamamento.

37
Virtudes
A resposta à vocação pessoal envolve, seguramente, generosidade,
porque significará sempre uma escolha, uma eleição entre algo que
significa desprendimento de alguma coisa com a finalidade de
conseguir alcançar outra.

Tem, portanto, a ver com a entrega consciente e desejada a um ideal


de vida para atingir um determinado fim, bom, para si mesmo e para
os outros. A entrega só o é se for total, completa, incondicional,
aceitando e cumprindo os quesitos necessários para atingir o fim
proposto. A generosidade é desapego, livre e intencional. Se for
assim, dar, pode ser um acto de generosidade, se não, será algo feito
com espírito de obter retorno ou apenas cumprir aquilo que se julga
ser uma obrigação naquela circunstância particular.

Vemos que, a ser assim, a generosidade envolve algum sacrifício, tal


como a entrega, já que ao seleccionar algo se descarta alguma outra
coisa. A vocação é também uma eleição, uma escolha de algo que
convém em detrimento de algo que não interessa. O homem só pode
ser inteiramente feliz se seguir a vocação que lhe foi sugerida pelo
Espírito Santo no seu íntimo.

Por isso a felicidade é interior e não exterior, porquanto não depende


do que fazemos, mas do que pensamos.

Ao considerarmos que a felicidade é uma gama


de emoções ou sentimentos que vai desde o contentamento ou
satisfação até à alegria intensa ou júbilo e, ainda, significando bem-
estar ou paz interna, percebemos que, a suprema aspiração do
homem, é, sem dúvida, ser feliz.

Será lícito, portanto, concluir que na base da felicidade pessoal está a


virtude da generosidade.

38
Virtudes

Obediência

A obediência define-se como um comportamento pelo qual um ser


aceita ordens dadas por outrem.
O termo obediência, tal como a acção de obedecer, conduz da escuta
atenta à acção, que pode ser puramente passiva ou exterior ou, pelo
contrário, provocar uma profunda atitude interna de resposta.
Obedecer implica, em diverso grau, a subordinação da vontade a
uma autoridade, o acatamento de uma instrução, o cumprimento de
um pedido ou a abstenção de algo que é proibido.
A figura da autoridade que merece obediência pode ser, antes de
mais, uma pessoa, mas também, uma doutrina ou uma ideologia e,
em grau superior, a própria consciência e Deus.
Está intimamente ligada à liberdade já que, a obediência só é
verdadeira quando é uma opção livremente tomada e aceite.

A liberdade dos Filhos de Deus, que somos todos os homens, sugere


essa obediência natural ao Pai, ao Criador, ao Senhor que dispôs de
forma coerente e possível onde, como e quando a obediência deve
existir. Com os Mandamentos, Deus entregou ao homem um código
de conduta que é a lei natural que deve reger a sua vida. Não é
necessário acreditar em Deus para, não matar alguém num acto de
vingança, por exemplo, uma vez que se vai contra a lei natural que
deve reger o comportamento humano em sociedade. Mas, o facto de
ser cristão reveste o acto de um valor superior, ou acrescenta-lhe
responsabilidade.

Sendo um acto interior da vontade, a obediência forma-se na


consciência do que é útil ou conveniente fazer em cada circunstância
para viver – conviver – na sociedade humana dentro dos parâmetros

39
Virtudes
comummente aceites como necessários. A obediência passiva
caracteriza-se pela aceitação pura e simples do que é sugerido ou
mandado quer interiorizando quer demonstrando-a por acções
concretas ao passo que, a activa, se traduz numa atitude profunda e
concreta de execução do que é sugerido ou mandado, como será, por
exemplo, a entrega sugerida como sendo a vocação própria.

Como se disse, a obediência só o é, verdadeiramente, como


emanação livre da vontade própria e, portanto, não pode nunca ser
confundida com sujeição ou submissão.
Por isso mesmo, o acto de obedecer, implica, sempre, uma escolha,
uma opção.

Simplicidade

Se procurarmos uma definição de simplicidade podemos correr o risco


de contrariar o que pretendemos. Quer dizer que as explicações ou
definições tendem a ser minuciosas, detalhadas ou seja, tudo menos
simples. Ausência de extravagâncias, eufemismos, preconceitos,
dúvidas mais ou menos sérias, obsessão pelo detalhe, por exemplo,
tudo isso é a antítese da simplicidade.

Diria que, a simplicidade, é um estado interior de clareza de


sentimentos e emoções.

Não tem a ver com passividade nem com alheamento das realidades
da vida, própria ou alheia, mas com uma atitude séria de estabilidade
quer do comportamento quer emocional. Possivelmente será uma
virtude muito difícil de conquistar e, mais ainda, de manter, porque,
de certo modo, vai contra a tendência natural do homem de
interrogar, de apreciar, avaliar algo que se lhe depara ou é proposto.

40
Virtudes
A simplicidade é conduzida, informada, pela consciência, por isso a
pessoa simples tem uma atitude de aceitação naturalmente pacífica.

A partir do momento em que a consciência toma valores como


definidos e propostas vindas de determinadas pessoas como
aceitáveis a simplicidade tende a dar o “caso” como arrumado, isto é,
não se envolve em lucubrações de nenhuma espécie questionando
esses valores ou propostas consoante as circunstâncias em que
ocorrem.

A Fé em Deus é – deve ser - sempre simples, isto é, não questiona,


não duvida, não sugere alternativas. Só nesta medida é que pode ser
inteiramente vivida. Aliás, não se justifica a Fé sem seja vivida plena
e conscientemente.

Se o não for, para que serve?

A simplicidade envolve virtudes como: entre outras, a constância, a


fidelidade, a obediência, e a mansidão.

Mansidão

Uma virtude e um Fruto do Espírito Santo, a mansidão, encontra em


Jesus Cristo a sua personificação completa: «Tomai sobre vós o Meu
jugo e aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração; e
achareis descanso para as vossas almas» (Mt 11:29).

A chave parece estar aqui: descanso para as vossas almas!

Dotado desta virtude o homem está apto a gozar de uma


tranquilidade e serenidade que lhe dão uma visão completa,
detalhada e muito concreta de tudo o que lhe importa. Assim, fica
dotado de uma capacidade ímpar para praticar os actos de maior

41
Virtudes
relevo e aceitar pacificamente os desafios mais exigentes com que
possa deparar-se.

No Sermão da Montanha Jesus Cristo afirma que os mansos


possuíram a terra (Mt 5, 3-12) o que pode parecer um contraste com o
que diz a propósito da conquista do Reino de Deus (Mt 11, 12): possuir a
terra com mansidão conquistar o Céu com violência!

Como compreender isto?

A nossa visão humana dir-nos-ia que deveria ser precisamente o


contrário.
Encontramos que para alcançar o Céu é, de facto, necessária a
violência, entendida como o vencimento do próprio eu, dos
obstáculos que se levantam à passagem dos que desejam progredir
nesse caminho, na luta exigente, contínua, sem descanso que é
preciso travar para se conseguir o objectivo, ao passo que, para
entrar na posse de algo terreno a violência não conduz a nenhum
resultado estável, duradouro, como atestam as constantes querelas,
amiúde violentíssimas, entre homens, países, raças e religiões.

Uma vitória só é completa e satisfatória quando alcançada com a


razão e, nunca, com a imposição pela força de algo que se pretende
conseguir.

O ser humano, como já se viu, tende para o seu Criador, para Deus e
só será feliz, completamente feliz, quando alcançar este objectivo e,
este, sendo atingível não está ao alcance daqueles que não se
empenharem a sério, na sua conquista.

Um dos principais quesitos para o sucesso desta luta é a humildade


de reconhecer as próprias limitações e defeitos que são obstáculos
nesse percurso.

42
Virtudes
Humildade

O que se tem escrito e dito sobre esta virtude encheria muitos livros.
A razão é simples: é tão difícil de conseguir que costuma dizer-se
que, até ao último sopro de vida o homem tem de lutar por
conquistá-la.

A ser inata na natureza humana, esta virtude e o mundo, como o


conhecemos, seria absolutamente diferente. Mas não! O ser humano
tem uma personalidade própria que, tendencialmente, o leva a
julgar-se superior ou mais capaz que o seu semelhante.

Não se alargarão, pois estes, comentários já que noutros locais se


podem encontrar muito boas definições, conselhos, instruções e
valiosas considerações, que pessoas de grande estatura moral e
intelectual tê, ao longo dos tempos, feito sobre esta virtude
Voltamos ao que atrás dissemos: a tendência para avaliar os outros e
o seu comportamento em função daquilo que somos e do que
fazemos. Somos o nosso próprio exemplo, vemo-nos como que num
espelho, reflectidos no aspecto exterior deixando escondido o que
realmente somos.

Há uma relação muito grande entre a humildade e a consciência do


próprio eu, das limitações e barreiras que se levantam dentro de nós
e, também, da correcta avaliação das nossas capacidades e potências
porque, ser humilde, não significa considerar-se nem incapaz nem
miserável mas, sim, ter a consciência daquilo que nos falta para
sermos perfeitos.

A perfeição, pedida por Cristo: «sede perfeitos como o vosso Pai


celestial é perfeito» (12) é, obviamente inatingível – é impossível

12
Mt 5, 48

43
Virtudes
igualar Deus – e, não obstante Cristo exigiu-o e não a um grupo
restrito e escolhido de seguidores, mas a todos os seres humanos.

Evidentemente que Jesus não poderia nunca exigir, aos homens, algo
impossível; tão só quer que façamos tudo quanto que está ao nosso
alcance para o conseguir.
Ou seja, Cristo não exige, como condição para nos salvarmos, a
conquista do objectivo mas a luta empenhada por consegui-lo.
Esta luta que a humildade pessoal deve orientar, ir-nos-á levando por
caminhos cada vez mais elevados, naturalmente mais difíceis e
exigentes, que nos conduzirão a um estado de alma crescente em
alegria, satisfação e serenidade.

Serenidade

A serenidade é uma virtude do carácter estável que enfrenta os


factos e circunstâncias da vida corrente com uma atitude positiva
evitando as reacções repentinas ditadas pela emoção, antes
analisando com objectividade a verdadeira natureza da coisa na
busca da solução ideal.

Às vezes pode ser confundida com os defeitos que se lhe opõem


como a preguiça ou o desleixo e, por isso mesmo, S. Josemaria
Escrivá avisa:

«Não confundas a serenidade com a preguiça, com o desleixo, com o


atraso nas decisões ou no estudo dos assuntos.
A serenidade complementa-se sempre com a diligência, virtude
necessária para considerar e resolver, sem demora, as questões
pendentes.» (13)

13
S. JOSEMARIA, Forja, 467

44
Virtudes
Talvez que uma das situações da vida humana onde a serenidade se
mostre mais necessária seja no matrimónio.
Os cônjuges têm, quase sempre, maneiras de ser diferentes e,
consequentemente, as formas de encarar os factos e incidentes da
vida comum podem não coincidir. Daqui que seja frequente a
discussão mais ou menos acesa, sobre o assunto em causa.
A ausência de serenidade em pelo menos um dos cônjuges pode levar
a algum extremismo de posições, transformando o que começara por
ser uma discussão normal entre dois adultos que se amam, numa
altercação viva e ruidosa em que se vai perdendo o controlo das
palavras e das emoções, continuando na sublimação dos defeitos de
cada um como se estivessem a discutir duas pessoas que se odeiam.

O final é sempre um mal-estar entre o casal em que nenhum dos dois


quer ceder nos seus pontos de vista, surgindo um mau humor mais
ou menos perdurável.
Por isso, esta virtude é importante para, pelo menos, «Aquele que
estiver mais sereno diga uma palavra que contenha o mau humor até
mais tarde» (14)

A vida no mundo de hoje constitui um desafio permanente a esta


virtude.
São tantas e tão variadas as dificuldades que cada dia se levantam,
as dúvidas quanto a um futuro cada vez mais incerto, as pressões de
toda a ordem a que se é sujeito, a rapidez com que ocorrem
mudanças, muitas vezes radicais, no mundo que nos rodeia que,
diria, manter a serenidade é um complexo e difícil exercício da
vontade e de um carácter que requer equilíbrio, estabilidade
emocional e, naturalmente, bom humor.

14
S. JOSEMARIA, Cristo que Passa, 26

45
Virtudes

Bom Humor

Alfred Montapert (15) escreveu: «O bom humor espalha mais


felicidade que todas as riquezas do mundo. Vem do hábito de olhar
para as coisas com esperança e de esperar o melhor e não o pior.»

Realmente o bom humor é uma virtude excelente que torna o


convívio ou as relações com aquele que a possui, muito agradável.
Em qualquer tempo, mas sobretudo no que decorre, é bastante difícil
não ser constantemente assediado com assuntos, factos ou
incidências que nos provocam apreensão, dúvida, sentimentos
contraditórios, e, se em sociedade, discussões e confrontos que por
vezes desgastam desnecessariamente a pessoa e podem de alguma
forma corromper essas mesmas relações.

Normalmente, o bom humor está associado à serenidade porque


também é uma virtude estável do indivíduo não sujeita a influências
alheias, do meio ambiente, etc.

Mas não tem nada a ver com a inconsciência ou a ligeireza de


carácter que levam a encarar o que se lhe depara com a displicência
própria dos néscios.
Pelo contrário, é uma virtude que dá ao que a possui, um enfoque
optimista das coisas, procurando sempre o “lado bom”, tirando
partido das situações que se apresentam como menos boas para lhes
descobrir um bem que não parece evidente.

15
ALFRED ARMAND MONTAPERT, The Supreme Philosophy of Man: The Laws of Life,
1970.

46
Virtudes
Sim, tem também muito a ver com a esperança já que, esta, é
fundamental para evitar o derrotismo, a consideração da
inevitabilidade do que se apresenta.

Na luta interior, então, esta virtude é fundamental para que,


associando-a à consciência, se possa ter um optimismo razoável
quanto aos resultados do esforço por melhoria.

A pessoa bem-humorada faz amizades com mais facilidade já que,


tem um espírito mais aberto e construtivo que, naturalmente, atrai e
arrasta.

Amizade

«Para que haja verdadeira amizade é necessário que exista


correspondência, é preciso que o afecto e a benevolência sejam
mútuos.» (16) Esta afirmação feita por S. Tomás define por
excelência os quesitos fundamentais para que exista amizade
verdadeira.

Temos muitas vezes a tendência para chamar amigos a simples


conhecidos que, por uma razão ou outra, podemos achar
simpáticos e em cuja companhia nos agrada. Isto é banalizar o
significado de amizade que, como já vimos, é bastante mais que
simpatia.

Envolvendo sentimentos profundos, a amizade não se forjará em


qualquer ocasião ou contacto, é algo que se constrói com o tempo
e à medida que a relação vai adquirindo uma forma estável e o
conhecimento do outro se vai aprofundando.

16
Cfr. S. Tomás DE AQUINO, Suma Teológica, 2-2, q. 23, a. 1.

47
Virtudes
Há sempre – tem de haver – reciprocidade de sentimentos,
interesses, afectos, quando não a relação é unilateral o que a
amizade não é.
Por outro lado só se entende amizade por uma relação construída
para o bem, próprio e alheio, porque se trata de dar e receber.
Assim, pode afirmar-se que «Só são verdadeiros amigos aqueles
que têm algo para dar, e ao mesmo tempo, a humildade suficiente
para receber. Por isso é mais própria dos homens virtuosos. O
vício partilhado não produz amizade mas sim cumplicidade, que
não é o mesmo. Nunca poderá ser legitimado o mal com uma
pretensa amizade.» (17)

Repare-se bem que se diz que a amizade é mais própria dos


homens virtuosos, o que baliza imediatamente o campo em que
amizade pode existir.

Há um ditado muito antigo e conhecido que diz, mais ou menos,


“se queres perder um amigo pede-lhe dinheiro emprestado”.

Isto é absolutamente contrário à amizade. Mesmo que o amigo


não empreste o que se lhe pede – e as razões podem ser muitas –
porque razão haveria de deixar de ser amigo do que lhe pediu?

Se considerar que lhe pediu exactamente por ser seu amigo, deve,
ao contrário, aferir que foi uma prova de confiança, de humildade,
que a petição sempre infere, de esperança, de optimismo. Não é
lógico pedir a um desconhecido tendo um amigo que pode
socorrer-nos, porque, enquanto o primeiro não tem qualquer razão
para aceder ao que pedimos, o segundo tem-na e em grau elevado

17
J. ABAD, Fidelidad, Palabra, Madrid 1963, nr. 110, trad AMA

48
Virtudes
porque nos conhece bem, sabe das nossas dificuldades e conhece
as circunstâncias que nos levaram ao pedido.
É verdade que, quem pede a um amigo, fá-lo porque espera
receber e, o amigo que dá, também recebe não só a gratidão do
outro mas a própria satisfação interior de lhe ter assistido no que
precisava.

A generosidade retribui sempre muito bem àquele que a pratica e


deve ser algo natural entre amigos verdadeiros.
Receber é uma constante na vida de qualquer ser humano desde
os primeiros momentos até ao último. É claro que, quando alguém
recebe alguma coisa, outro alguém dá essa mesma coisa e esta é
uma verdade sem discussão porque não é próprio receber sem
dar, nem dar sem receber.

A amizade implica amor, é sempre um acto de amor pelo outro,


expresso numa atitude fraterna.

Fraternidade

A fraternidade é expressa no primeiro artigo da Declaração universal


dos direitos do homem quando ela afirma que todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão
e de consciência e devem agir uns para com os outros em espírito
de fraternidade.
A ideia de afecto, união, carinho ou parentesco entre irmãos estava
presente na palavra correspondente no grego comum do primeiro
século - adelfótes. Segundo o apóstolo Pedro era o tipo de união que
identifica os verdadeiros cristãos. (18)

De facto a palavra parece indicar um grau de parentesco bastante


grande, ou de relação entre irmãos. O vínculo de intimidade e
18
1Ped 2:17

49
Virtudes
vivência entre irmãos é um dos mais fortes nas relações entre os
seres humanos. Na antiguidade, com alguma excepção, não havia
outra palavra para definir o grau de parentesco. Por exemplo primos,
cunhados e outros membros próximos na família eram todos
designados por irmãos. Talvez alguma inflexão na voz pudesse fazer
a distinção, o que, obviamente não sabemos.
Quando os contemporâneos de Jesus Cristo falam dos ''seus irmãos e
irmãs”, (19) é evidente que se referem a familiares de outro grau de
parentesco já que todos os seus conterrâneos sabiam que Jesus era
filho único de Maria. (20)

Temos pois, que a fraternidade é uma virtude que estabelece um


vínculo talvez mais abrangente que a amizade, porque infere
tendências, gostos, preferências iguais ou muito semelhantes com
vista a um mesmo fim. A algumas comunidades é frequente dar-se o
nome de ''fraternidade'' exactamente porque perseguem o mesmo
fim ou objectivo através das mesmas práticas e convicções.

A fraternidade é uma virtude indispensável para na vida em


sociedade tornar as relações mais fáceis entre todos, porque, como
diz São Josemaria Escrivá, «Que difícil parece por vezes o trabalho de
superar as barreiras, que impedem o convívio entre os homens! E
contudo nós, os cristãos somos chamados a realizar esse grande
milagre da fraternidade: conseguir, com a graça de Deus, que os
homens se tratem cristãmente, levando uns as cargas dos outros,
vivendo o mandamento do Amor, que é o vínculo da perfeição e o
resumo da lei.» (21)

19
por exemplo Mt 12, 47
20
Nota: Aliás as especulações à volta deste assunto só revelam a profunda e lamentável
ignorância de quem as faz.
21
S. JOSEMARIA, Cristo que Passa, 157

50
Virtudes
Uma das práticas mais interessantes e benéficas desta virtude é a
chamada correcção fraterna.
Sobretudo entre pessoas próximas seja por parentesco, amizade,
partilha de objectivos, etc., esta prática é altamente recomendável na
medida em que constitui uma ajuda fundamental e que a pessoa tem
direito a esperar.
Quem está “de fora” aprecia melhor os pormenores que passam
despercebidos ao próprio e não só pode, como deve, fazer essa
correcção que é, sempre, no sentido construtivo de ajudar e, nunca,
com a intenção de supor algum julgamento ou reprovação do que se
aponta.

Normalmente, esta correcção fraterna será feita a propósito de coisas


pequenas que mal se percebem e podemos fazê-la depois de, em
consciência, avaliarmos bem da justiça e da bondade do que
pretendemos fazer.
Algo mais complexo, grave ou sério, deverá previamente, ser
prudentemente visto com a alguém com capacidade e qualidade para
aconselhar. Só depois, e se for julgado útil, se deve fazer.
Quando acima se diz que a correcção fraterna é algo a que a pessoa
tem o direito de esperar quer-se dizer que se tem a mesma correcção
fraterna como um verdadeiro bem porque ajuda singularmente a
corrigir algo que não nos dávamos conta.

Para quem a faz, como para quem a recebe, a correcção fraterna


produz sempre um verdadeiro benefício ao primeiro porque pratica
um acto de justiça, ao que a recebe porque pode assegurar-se que, o
que lha fez se preocupa consigo e está disponível para lhe prestar a
ajuda que necessita.

Optimismo

51
Virtudes
Não poucas vezes se considera que a pessoa optimista tem uma visão
desfocada da realidade, que espera sempre algo que resolva o
problema ou a situação, algo que não sabe bem o que é ou vindo de
quem, nem quando mas que, seguramente, acontecerá.
Bem, a pessoa com estas características não pode considere-se
optimista, pelo menos à luz do conceito que fazemos do optimismo e
que é: a tendência para pensar de forma positiva.

A recomendação de S. Josemaria Escrivá é muito esclarecedora: «Fé,


alegria, optimismo, - mas não a estupidez de fechar os olhos à
realidade.» (22)

Na verdade tudo quanto se nos depara na vida corrente tem várias


formas de ser avaliado ou considerado mas, destas, duas avultam:
com atitude negativa que leva a considerar a inevitabilidade do que
sucede ou se presume vai acontecer ou, a atitude positiva que
considera as possibilidades de influir, alterar ou modificar, se for caso
disso, a ver o lado bom, a retirar sempre um bem mesmo de algo,
aparentemente, mau.

É muito conhecida a citação que refere a forma de duas pessoas


sedentas avaliarem a água contida num jarro, um considera que está
meio cheio enquanto, outro dirá que está meio vazio. Ambas
apreciações são verdadeiras e referem-se a uma mesma coisa,
dependendo a sua expressão do enfoque de cada um. Liminarmente,
poder-se-ia dizer que o primeiro é optimista – “que bom, ainda tenho
água para matar a sede” - e o segundo exactamente o contrário –
“provavelmente esta quantidade de água não será suficiente para a
sede que tenho”.

22
S. JOSEMARIA, Caminho, 40

52
Virtudes
O optimismo cristão baseia-se na certeza de que Deus não nos envia
nada superior às nossas forças e, se dá a carga, também dá a força
para a suportar.
Sendo assim, o optimismo não deixa lugar ao derrotismo nem à
excessiva preocupação.
Naturalmente que – e falamos do optimismo saudável, isto é,
consciente – esta convicção nasce de um estado de alma onde a
confiança em Deus ocupa um lugar predominante. Bem visto, esta
atitude de confiança, não deve iludir o que cada um tem de se pôr ou
fazer para que as situações se clarifiquem ou resolvam.
Mesmo observada pelo lado estritamente material esta atitude atrás
referida deve ser sempre tida em conta.
Não se pode querer ganhar a lotaria sem, pelo menos, previamente
comprar uma cautela.

O que São Josemaria Escrivá chamava a «mística do oxalá - oxalá


não me tivesse casado; oxalá não tivesse esta profissão; oxalá
tivesse mais saúde; oxalá fosse mais novo; oxalá fosse velho!...» (23)
não conduz, obviamente a coisa nenhuma, servindo apenas para
distrair a mente da realidade e impedir a vontade de influir nessa
mesma realidade.

Há pessoas que andam pela vida como que carregando um peso


insuportável, de semblante carregado, com ar de derrota e
inevitabilidade confrangedores.
Não é exagero, olhemos bem à nossa volta quem se cruza connosco
na rua ou se senta no mesmo transporte público que nós e
comprovaremos o que se diz. Arrancar um sorriso a estas pessoas, é
um desafio fenomenal, de tal forma estão dominadas pelo seu

23
S. JOSEMARIA, Temas Actuais do Cristianismo, 116

53
Virtudes
sentimento de desgraçados, de vítimas de todas as misérias e coisas
más da vida.
Há, parece, uma espécie de “tristeza nacional” que quase se apalpa
no dia-a-dia.

Isto tem de ser contrariado, há que dizer às pessoas que nem tudo é
mau, que o futuro não tem que ser pior que o dia de hoje, que há
esperança de evolução positiva da sociedade, que o bem acabará por
triunfar sobre o mal, que, em suma, há motivos e razões suficientes
para o optimismo.

Flexibilidade

Esta virtude, que se cita em último, não é, por isso, menos


importante; aliás, a ordem porque foram citadas não obedece a
nenhum critério de importância ou interesse.

Pode dizer-se que a Flexibilidade é a capacidade de mudar de atitude


ou forma de pensar adaptando-se a determinadas circunstâncias,
sem necessariamente, e de uma forma geral, implicar uma mudança
de opinião ou convicções mais profundas. Claro que é necessário ter
uma atenção especial para não se cair na contradição da constância,
por exemplo, mas, ao contrário, apoiar-se mais noutras virtudes
como, por exemplo: a Humildade, a Confiança, a Obediência a
Simplicidade a Mansidão; a Amizade e a Fraternidade.

A irredutibilidade de opinião, conceito ou critério são, quase sempre


sinal de falta de humildade e, bastantes vezes de orgulho e auto-
convencimento. Fechar-se num hermetismo impassível ao que se
passa à sua volta, completamente alheio das opiniões ou conceitos
dos outros, sejam quem forem, conduz a um anquilosamento da
personalidade que torna a pessoa antipática e pouco ou nada

54
Virtudes
participativa na vida social. Numa espécie de ilha – com o já falámos
– sente-se dono e senhor de umas razões e certezas que não está
disponível para avaliar e, muito menos, discutir. Não evolui, não
cresce, não melhora.

A atitude contrária manifesta-se na abertura às opiniões dos outros,


contrastando-as com as próprias e elegendo as que, em consciência,
parecem mais adequadas à circunstância. Não se trata de “ceder”
mas de aceitar, de submissão mas de cooperação.

É a virtude da flexibilidade que nos permite ir pela vida colhendo a


beneficiando das experiências e conhecimentos dos outros,
adaptando-nos, usando a Humildade, a Confiança, a Amizade e a
Fraternidade para, com Simplicidade e Mansidão, progredir nas
demais virtudes que devem estar sempre presentes.

Sem elas, seria muito difícil, ou mesmo impossível, ao homem


progredir no caminho do bem, da melhoria pessoal e alheia, dando à
sociedade o contributo que tem obrigação de dar.

Porto, 2010-08-31

55

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