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Social-catolicismo e associativismo cristao: Alemanha e sul do Brasil ERNELDO SCHALLENBERGER* mmo: Formular uma doutrina social para afirmar um estatuto social foi a forma trada pela Igreja Catdlica para abrir didlogo com a modemidade e assegurar sua timidade social. Construido em contextos proprios e fundamentado nos principios Olidariedade e da cooperagao, o estudo do social-catolicismo, surgido na Alemanha plementado no sul do Brasil, pretende evidenciar diferengas e estabelecer relagdes € as construcoes sociais alema e sul-brasileira. ct: Conceiving a social doctrine to declare a social statute was the way found by Catholic Church to open dialogues with modernity and assure its social legitimacy. It on own contexts and fundamented on the principles of solidarity and cooperation, study of social Catholicism, emerged in Germany and implemented in South Brazil, nds to evidence differences and establish relations between the German and South Brazilian social constructions. ras-chave: Associativismo cristao. Social-catolicismo. Colonizagao. Key words: Christian associativism. Social Catholicism. Colonization. Introdugao O carater doutrinal dos ensinamentos sociais da Igreja encon- ina tradicaéo alema a base de uma sistematizagao que deu ori- ao social-catolicismo. A crise teérica e pratica das relagdes da ja com o mundo moderno, a necessidade de ler os “sinais dos pos” e o acelerado processo de diferenciag4o social evidencia- uma relatividade histérica do corpo doutrinal dos ensinamen- sociais da Igreja, o que fez com que os pensadores do social- licismo buscassem nas bases epistemoldgicas da ética social os mentos para a formulacao de um estatuto social e a afirma- de uma ideologia de formagao social, para fazer frente aos [mM outor em Histéria; Professor Adjunto do CCHS e do Programa de Pdés-Graduagao Desenvolvimento Regional e Agronegécio da Universidade Estadual do Oeste arand (UNIOESTE), idos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p. 117-134, dezembro 2003 118 Estudos tbero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p, 117-134, dezembro 2003 problemas da modernizagao social do século XIX (Kruip, 1991, p. 194). As caracteristicas histéricas do processo da formacao social na Alemanha do século XIX, as questdes sociais emergentes e a diversidade religiosa promoveram a conversao do discurso hege- ménico da Igreja Catdlica alema para as questdes sociais, apresen- tando-o como a mais auténtica possibilidade de escolha, e desper- tando, a partir dele, o movimento social catélico como elemento importante da reacao defensiva da Igreja frente As propostas do liberalismo e do socialismo. Na Alemanha, operarios e camponeses foram surpreendidos pelas mudangas sociais provocadas pela revolugdo industrial. Na sociedade industrial, o nivel de insergao no sistema produtivo e o padrao de consumo passaram a ser os referenciais de identificacao dos individuos. A acentuada desigualdade humana fez nascer na imagem dos excluides do processo de acumulagao capitalista um mundo liberto de todas as formas de opressdo. Uma certa indigna- ao ética comegou a apontar para novas utopias sociais. Tanto a utopia socialista quanto a crista recolheram a indignagao das ca- madas sociais excluidas do processo de acumulacio capitalista e promoveram, em seus discursos, os trabalhadores como sujeitos sociais. Ao novo sujeito social era associada a possibilidade da mudanca social, uma vez que era detentor de um elemento basilar do processo produtivo: a forga do trabalho. A canalizagao dessa forga do trabalho, no sentido da colaboracao ou no da cooperacao, simbolizava a capacidade de resisténcia as forcas de dominacio. Da resisténcia a luta, os sujeitos sociais passariam a ser identifica- dos como ator social coletivo, construtor da Histéria. As novas doutrinas foram produzindo ideologias de modelos alternativos de sociedade, sem que os sujeitos sociais pudessem recorrer & memoria para definir as suas escolhas. A organizagéo da sociedade a partir da relagio sujeito- sujeito, evocada em Marx, teve no horizonte da objetivagao de telagdes concretas de mudanca, em base as condigdes materiais de existéncia, a construgao da utopia social do Reino da Liberdade, fundamentada nas relagdes sociais igualitdrias. Neste sentido, 0 socialismo referenciou o seu estatuto social a partir da possibili- dade da mudanga histérica. O social-catolicismo afirmou o seu estatuto social reconhecendo as desigualdades sociais e buscando, nas diferengas, estabelecer uma relacéio de identidade, promotora da fraternidade. Reconheceu os trabalhadores como sujeitos so- ciais, porquanto buscou a sua recuperagao como seres humanos, Os fundamentos éticos e politicos do social-catolicismo derivam da relagao homem-Deus. Nessa relagao, o face a face dos sujeitos Social-catolicismo e associativismo cristéo: Alemanha e sul do Brasil 119 sociais ¢ mediado pela interface do elemento religioso. Assim, a utopia social é expressao da utopia religiosa. O modelo de socie- dade desejada passou a ser enunciado como pré-figuracao do Rei- no do Deus. A resisténcia as injustigas sociais e A desconstrucao da utopia crista, fez com que o social-catolicismo motivasse a partici- pagao dos catdlicos de grupos, movimentos sociais e/ou eclesiais, e de instituigdes, que promovessem a construgao identidaria a partir de regras institucionais assumidas e de papéis sociais idealizados. A par disso, a doutrina social alema sustentou politicas sociais orientadas para 0 bem comum da produgao social e da politica estatal, para a ajuda miutua dos trabalhadores, sob a forma de co- operativas e de associagGes, e para a necessidade de uma legisla- gao estatal, que protegesse os trabalhadores (Sachsse, 1992, p. 535- 552), O objetivo central do presente artigo é construir uma rela- gao entre as experiéncias de organizagdo social alema e sul- brasileira, fomentadas pelo social-catolicismo, para aferir os pro- cessos de aprendizagem social e politica que foram possiveis dentro dessas organizacées. 2 Aexperiéncia alema O social-catolicismo alemao formulou um estatuto social que, durante a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, mobilizou a sociedade alema e a Igreja Catélica em particular diante do acelerado processo de industrializagao, da urbanizagao desenfreada, da afirmacao do liberalismo e da emergéncia do socialismo. Sem referéncia igual, traduziu suas Propostas em movimentos sociais e em formas associativas que Marcaram profundamente o curso da Histéria. A Alemanha, que até a segunda metade do século XIX pode ser caracterizada como um conjunto de estados independentes entre si, representava uma nagao com certa identidade, mas com grande diversidade confessional, que buscava construir a sua unidade territorial. Até éntao, as instituicdes sociais ndo reuniam forga de coesdo sufi- ciente para referendar uma unidade politica. A construcdo da unidade nacional foi impulsionada pelos impactos das revolu- Ges liberais da Europa, que fascinaram as mais diferentes orga- nizag6es sociais e despertaram a reacdo mais conservadora de outra parte da sociedade. 120 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p. 117-134, dezembro 2003 A expansao napole6nica sobre a regiao do Reno teve grande repercussao entre os estados alemaes, uma vez que compensou as perdas politicas pela secularizagao dos bens eclesiasticos. Diante da onda liberal, a Prussia promoyeu uma série de reformas, que culminaram com a criagao da Unido Aduaneira, em 1834, e 0 esta- belecimento da liberdade de oficios, sempre na perspectiva de fortalecer a resisténcia nacional. Ja havia anexado alguns territé- rios, a partir de 1815, a exemplo do Hunsriick, regiao de concen- trada densidade demografica, onde se arquitetou uma organiza- gao social caracterizada pelas comunidades rurais, constituidas a partir de raizes culturais marcadas pelo conservadorismo agrario, e de onde provieram os maiores contingentes de imigrantes ale- maes para 0 Rio Grande do Sul. Povoada por uma populagio pre- dominantemente catélica, formada a partir de estratos sociais mais baixos e com menores niveis de educag&o, a auséncia de politicas publicas que assegurassem 0 avanco social e os impactos da mo- dernidade representaram a possibilidade da desconstrugdo da identidade, diante do que a liberdade de escolha se resumiu, fun- damentalmente, na possibilidade de reconstrucgado identidaria em nova territorialidade. Esse despreparo diante dos desafios da mo- dernidade e a condigao de inferioridade intelectual em relacdo aos protestantes foi percebida pelos atores da Igreja da Imigragao, entre os teuto-brasileiros do Rio Grande do Sul, quando da im- plementacao do associativismo cristao (Schallenberger, 2001). O problema da apropriagao dos novos espagos era complexo, uma vez que excluia, na maior parte das vezes, a possibilidade de escolha. Nos processos migratérios, a ocupagaéo dos novos espagos, urbanos ou rurais, esteve cercada de condicionamentos politicos, de deslocamentos sdcio-ambientais e de um conjunto de desregula- mentagdes que produziam inquietagSes. No caso da Alemanha, 0 crescimento populacional e o fendmeno da urbanizagao, aliados a perspectiva da competitividade social, comegaram a exercer pressao sobre 0 espaco e a situar os individuos frente a um processo de des- construcao e de reconstrugao dos seus papéis sociais e dos seus refe- renciais de identidade. No sul do Brasil, ao imigrante ja esteve re- servado, de certa forma, um papel social, e a partir dele teve que produzir 0 seu espaco social e reconstruir a sua identidade, buscan- do, assim, o seu lugar na sociedade. A convergéncia da projegao francesa e do reformismo prussia- no fez com que a Igreja Catolica alema sofresse um processo de re- clusao e de desprestigio, perdendo importantes instancias de poder (Kruip, 1991, p. 195). Ao mesmo tempo em que a Igreja Catdlica alema perdeu a sua autonomia econdmica e seu sistema de organi- 121 Social-catolicismo e associativismo cristéo: Alemanha e sul do Brasil zacao, viu esmorecer a sua influéncia cultural e politica. O enfraque- to da hierarquia eclesiastica, em vista da dificuldade de con- so do poder espiritual e do poder temporal, teve incidéncia bre a postura eclesidstica alema, que passou a depender, cada vez , de Roma para intervir nas negociagGes entre Igreja e Estado. A pendéncia da hierarquia da Igreja local 4 autoridade eclesidstica tral fez com que, em muitas circunstancias, os interesses das jas locais fossem desconsiderados em favor das conveniéncias e resultados das negociacOes entre os governos alemaes e a cuiria romana (Ritter, 1954, p. 15; Schallenberger, 2001, p. 103). Se, anteriormente, a Igreja hierarquica teve uma certa possibi- dade de exercitar a sua ascendéncia sobre os fiéis, em decorréncia simbiose entre poder espiritual e poder temporal, fendmeno que além da questao doutrindria e garantia uma significativa influén- politica e uma autonomia econdmica, agora, neste novo cenario, e de buscar estratégias de planejamento pastoral para manter sua influéncia. Tratava-se, sobretudo, de despertar uma nova ciéncia religiosa e uma identidade para os catdlicos alemaes. a tanto, a difusao do pensamento cristao catdlico foi uma estra- gia a que se recorreu com bastante énfase, para fazer frente 4 onda iteismo. Num ambiente caracterizado pelas revolu¢6es liberais e diante difusio do Manifesto Comunista, 0 nascente movimento catolico @o encontrou alento na revolucionaria assembléia de Mainz, do da fundagao da Associagdo Pio — Pius Verein —, em 1848. dyersa a todo extremismo revolucionaério popular que pudesse conduzir a um radicalismo anticlerical ou a um comunismo ateista, amaioria dos catdlicos, a exemplo do professor Franz Joseph Buss e y bispo Wilhelm Emmanuel von Ketteler, que orientavam os cato- nos temas sociais, se pronunciava a favor de reformas modes- as, vindas de cima, como o desejava a burguesia, que se manteve afastada da corte. Na primeira Assembléia da Associagéo dos Catdélicos da Alemanha, realizada em 1848, Ketteler expressou suas idéias so- iais em torno do tema “o espirito do trabalho cristo”, enfocando questao a partir da ética do amor ao préximo como postulado concreto para uma politica social. “Deus criou 0 universo por um ato de amor [...] e somente Cristo podera dar a verdadeira resposta aos problemas sociais”. “Dediquei a minha vida toda ao servi¢o do ovo pobre, foi ali que aprendi a conhecé-lo e tanto mais aprendi a 4-lo” (Ritter, 1954, p. 93), Entendeu que nao era o Estado, mas mente a Igreja Catélica que poderia formular as respostas as erdadeiras questées sociais (Schiirmann, 1958, p. 19-20). 122 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v, XXIX, n, 2, p. 117-134, dezembro 2003 Sem concordar com a democracia representativa como forma de governo, o movimento catélico posicionou-se a favor dos valores liberais da liberdade de culto, de expressao, de associacao e da uni- dade nacional. Na primeira Assembléia do Pius Verein, a reivindica- ¢a0 pelos direitos da Igreja e a liberdade religiosa dos catdlicos ficou claramente expressa (Kruip, 1991, p- 197; Ritter, 1954, p. 19). As Associagoes ‘Pio’ para a Defesa da Liberdade da Igreja foram se multiplicando por toda a Alemanha e uniram-se em torno dos Congressos Catélicos - Katholikentage —, que eram assembléias or- ganizadas em ambito nacional, que visavam a unidade de acao e a fixagao das diretrizes do social-catolicismo alem4o. A ordem soci- al, a busca de formas de auto-sustentagdo e a ajuda mutua dos catdlicos eram temas de primeira linha que pautavam as assem- bléias. A partir das discussdes internas, surgiram as associagSes Vinzens ou Elisabeth, a grande maioria delas organizadas e dirigi- das por nobres que se dispunham a ajudar aos camponeses e aos operarios pobres. Na organizacao dessas associagées caritativas, tevelou-se de forma mais explicita a face assistencial e paternalista das atividades sociais dos catélicos. A aproximacado das camadas menos favorecidas pode ser vista como vinculo intencional que a alta esfera eclesidstica buscava para a manutencdo de um certo controle sobre 0 culto dos valores morais e sobre a possibilidade da emergéncia de possiveis movimentos revoluciondrios (Kruip, 1991, p. 202). O perfodo da reacdo permitiu aos catdlicos uma maior orga- nizagao. A Igreja conseguiu, com isso, reforgar a sua posic&o e sua influéncia junto aos poderes estatais. Pouco a pouco surgiram sin- dicatos, cooperativas e caixas de ajuda miitua, a exemplo das ins- piradas por Raiffeisen, a partir de 1864. Organizagées politicas como a Associagaéo Geral dos Trabalhadores (1863), 0 Partido So- cial Democrata dos Trabalhadores (1869) e o Partido do Centro — Deutsche Zentrumspartei — (1870) dao-a dimensao do alcance do social-catolicismo alem&o. Num contexto de efervescéncia da ago catdlica, sob a lide- ranga Franz Hitze e de intelectuais, de politicos, de empresarios e do alto clero, foi fundada, em agosto de 1890, a Unido Popular para a Alemanha Catdlica — Volksverein -, que viria a ser a mais Tepresentativa organizacdo associativa catdlica da Alemanha e do mundo. Os discursos constituintes indicavam a defesa e a difusao do catolicismo como os objetivos basicos a serem perseguidos. O Volksverein deveria atingir a todos os catélicos e, por isso, na con- cepcao dos lideres, nao poderia ser uma associagdo com altas con- tribuigdes, para manter 0 carater e a simpatia populares. De fato, Social-catolicismo e associativismo cristao: Alemanha e sul do Brasil 123 no alvorecer do século, de 1901 a 1914, teve um crescimento de 184.000 para 805.000 sdcios (Sachsse, 1992, p. 546). A manutengao do movimento social catélico deveria advir das fontes das outras organizacées, que, inclusive, dariam parcela de contribuigdo para manter as atividades do préprio Volksverein. Deveria ser, sobretu- do “a asseciagao do povo catolico para promover e divulgar as idéias do catolicismo social mediante uma obra gigantesca de edu- cacao popular para lutar contra o socialismo e pela liberdade reli- giosa” (Ritter, 1954, p. 151). Na verdade, o seu crescimento permi- tiu com que outras iniciativas dos catdlicos fossem mantidas pela Unido Popular. O social-catolicismo alemao, fundamentou seu pensamento na premissa de que a valorizagéo de todo o esforgo e de toda a construgdo individual adquire sentido e expressio quando co- mungadas e articuladas coletivamente. A questao social alema e a emergéncia de corpos doutrindrios que veiculavam modelos so- ciais alternativos nado se apresentam como um problema de livre escolha. O social-catolicismo alemao buscou as mais diferentes formas de aproximagao das camadas trabalhadoras para apresen- tar a sua ética social como a verdadeira. Realizou congressos, criou associagOes, organizou um partido, promoveu grandes mobiliza- des, sempre fundamentados na ética do cristianismo. Da defesa das organizacgdes corporativas, da liberdade sindical até a organi- zacao de associagoes interconfessionais, estabeleceram-se constru- gées tedricas e desenvolveram-se praticas associativas que referen- ciaram a acdo catélica num mundo marcado pela influéncia da ideologia liberal, pelo Estado anticlerical, pelo avango tecnoldgico, pelo desenfreado individualismo e pela difusao da doutrina socia- lista. Apesar do seu exclusivismo, o social-catolicismo alemao con- seguiu aproximar, em torno das questées sociais, significativas tem- déncias do protestantismo. Buscou a afirmagaéo de um estatuto so- cial que propunha a organizagdo da sociedade em base aos princi- pios da solidariedade e da cooperagao, orientada para o projeto futuro da construgao do Reino de Deus. Os evangélicos luteranos, mantendo clara distincdo entre questées sociais, politicas e econd- micas e assuntos da fé, aproximaram-se do conteudo do social- catolicismo para evitar com que o seu capital religioso se enfraque- cesse e as propostas radicais da revolugao social do socialisme crias- sem raizes, Se a razio fundamental da Reforma Protestante residia na separacao da religiao das realidades temporais, isto é, distinguir os bens espirituais da ordem social, a mobilizagao dos fiéis em torno dos problemas sociais do seu tempo nao podia ser ignorada. 124 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p. 117-134, dezembro 2003 No universo evangélico, dois fatores entravavam o refor- mismo: os cargos oficiais e 0 postulado teoldgico do subjetivismo. Em virtude disso, crescia entre os pensadores evangélicos a ten- déncia de abrir a possibilidade para que se constituissem associa- des interconfessionais. Se, por um lado, se tolerava a convivéncia de protestantes e catdlicos nas associagdes, a exemplo das criadas nas fdbricas, por outro, indicava-se para a necessidade de que as associagdes fossem assumindo, progressivamente, um cardter nao confessional e de neutralidade politica (Hoffmann, 1993, p. 64). A tendéncia renovadora da Igreja Evangélica Luterana buscava estabelecer, portanto, uma relac&o estreita entre e a esfera espiri- tual e a mundana, promovendo, dessa forma, 0 renascimento so- cial cristao, Esse renascimento nao poderia ficar limitado ao servi- co da palavra e a preocupagao com a salvacéo da alma, mas teria de se orientar na direcao da partilha cotidiana do amor e na acdo cristé de conduzir as classes trabalhadoras ao cristianismo pratico, que encontraria no associativismo expressao concreta. Os pensadores do social-catolicismo, como Franz Hitze, e do cristianismo social evangélico, como Friedrich Naumann, entendiam que a organizacao da sociedade deveria dar-se em vista do trabalho e da cultura e que a religido teria de desempe- nhar a fungao de mediadora das relacSes humanas para 0 bem- estar espiritual. O social-catolicismo teve no Partido do Centro a coordenagao das suas agdes politicas e na Unido Popular — Volksverein — 0 ponto de convergéncia das agdes educativas, sociais e teligiosas. O Parti- do do Centro transformou-se na forga politica de vanguarda das reformas sociais e de combate ao socialismo na Alemanha. Chegou a concentrar 27,9% dos votos a seu favor, em 1874, e em média 20% nos trinta anos subseqiientes. Representou um marco na con- quista do espago politico dos catélicos, que, com as bandeiras da liberdade da Igreja, da manutengao e da defesa das escolas catdli- cas, da fundacao de uma federacao de estados catdlicos, da im- plantagao das politicas do social-catolicismo e do antimilitarismo, teve influéncia expressiva na sociedade (Schallenberger, 2001). A mobilizacao social teve ai a sua inspiragao maior. Embora a sua origem esteja vinculada 4 garantia de um es- paco de liberdade da Igreja, que na Alemanha vinha sofrendo forte reptessao do Estado, o sentido do conflito entre a Igrejaeo Estado foi se esvaziando na medida em que 0 Partido do Centro foi portador das principais causas sociais e a ideologia comunis- ta tornou-se ameacga comum. Social-catolicismo e associativismo cristao: Alemanha e sul do Brasil 125 3 Aexperiéncia sul-brasileira: o associativismo cristao _ Sena Alemanha a diversidade confessional e ideoldgica, a ad- versidade politica e a crescente diferenciagao social eram questées ‘oximas que afetaram a hegemonia do discurso catdlico, no Brasil i pluralidade étnica e¢ a hegemonia cultural portuguesa representa- ‘am para a Igreja da Imigracgao um risco na possibilidade de conver- io do seu capital religioso. Os imigrantes, em condigdes socioam- bientais diferenciadas, ao mesmo tempo em que sentiram a auséncia de politicas publicas, viram-se, de alguma forma, jogados diante de um certo vazio de referenciais norteadores da reinvencao da sua entidade. A organizacao e a producao social do espago da coloni- cao, caracterizado em torno da formacao de unidades familiares producéo e da constituigéo de pequenos nticleos para atender as mandas emergenciais do grupo, carecia de poder de articulagéo ra solidificar um referencial identidario e promover as mudangas sociais necessdrias que assegurassem 0 avanco social. As familias oladas e as comunidades locais dispersas, desprovidas de instru- mentos de mobilizacao social, facilmente se acomodavam diante das agdes-limite definidas pelas rotinas do cotidiano. A vivéncia da esmidade, o atraso cultural e tecnoldgico e a falta da oxigenagao uma ideologia social que tivesse como referéncia a utopia crista. jm movimento que despertasse a consciéncia dos imigrantes e seus descendentes, que reconhecesse e promovesse a sua dignidade hu- ana e fomentasse a recriacao da sua identidade afigurou-se como afio para os atores da Igreja da Imigracao, catdlica e evangelica terana. Os atores catélicos tiveram, por seu turno, os seus interes- s politicos agugados, uma vez que a postura anticlerical e laica de goes defensoras do regime republicano Thes cortavam privilégios etompiam com a homogeneidade catdlica. Na Alemanha, na Suiga e em outras partes, o social-catolicis- 0 tepresentou, sobretudo, uma reacao da Igreja Catélica 4 onda as modernas ideologias e a perda da sua influéncia social e politi- . No Brasil, a ruptura com o Estado e a laicizagao da sociedade Provocaram uma inquietagaéo da hierarquia eclesiastica, sem que so se traduzisse em mobilizacao politica de expressdo. No sul do Brasil, 0 social-catolicismo assumiu uma postura preventiva, diante da difusdo de possiveis ideologias indesejaveis, e propositiva, na medida em que buscou a homogeneizagaéo de um modelo de socie- le e a afirmacao hegemGnica da é¢tica crista. Encontrou expressao creta na realizagéo dos Congressos Catélicos — Katholikentage - idealizados pelo jesuita alemao padre Pedro Gasper, oriundo da 126 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p. 117-134, dezembro 2003 Renania, pelos também jesuitas José e Maximiliano von Lassberg e pelo padre secular Nicolau Knob, que tiveram seu ato constituinte na Assembléia de Harmonia, no Municipio de Montenegro, realiza- da em marco de 1898. Promovidos anualmente e a partir da quarta edicdo de dois em dois anos, sofrendo uma interrupcado de 1916 a 1926, em virtude da Primeira Guerra Mundial e dos conflitos que se projetaram sobre a sociedade gaticha, os Congressos Catdlicos cen- travam as suas pautas em torno de quatro eixos tematicos funda- mentais: a formagao espiritual e intelectual, a conduta moral, a or- ganizagao social e os problemas praticos do cotidiano dos teuto- brasileiros (Volksverein, 1928; Deutsches Volksblatt, Porto Alegre, 4 de abril de 1901). A dispersao e a convivéncia interétnica e confessional, anota- das por Theodor Amstad, dificultavam a promog¢ae. da solidarie- dade e da cooperagao para a organizac4o e para o desenvolvimen- to das comunidades locais. Na referéncia que fez ao campo mis- sional da regiao de Nova Petrépolis, o jesuita entendeu que: “so- fria ela do mal da promiscuidade étnica e confessional, que carac- terizava quase todos os lugares, sendo que os teutos protestantes superavam em muito, numericamente os catélicos. Também no concernente a sua colocacao social e quanto as posses. Diga-se 0 mesmo dos arredores mais proximos de Sao Sebastiao do Cai, onde os colonos alem@es e protestantes moravam de mistura com os luso-brasileiros...” (Amstad, 1981, p. 151). Hugo Metzler, recor- rendo ao social-catolicismo alemao, proclamou a necessidade da uniao de forgas e a elevacio do nivel cultural dos catélicos paraa afirmagao do social-catolicismo: “pessoas mais espertas que os catdlicos de la implantaram novas industrias e, em conseqiiéncia, assumiram a direcao da sociedade...” (Schallenberger, 2001, p. 73). O entendimento em torno da promocgdo do bem-estar social e da elevacio do nivel espiritual dos teuto-brasileiros nao era 0 mes- mo em todas as esferas da Igreja Catdélica. Apesar de reconhecer a necessidade de manter vivas a tradi¢ao, a lingua, a cultura e a reli- giosidade dos imigrantes e de seus descendentes, 0 arcebispo de Porto Alegre, D. Joao Becker, indicava que a integrac4o dos teuto- brasileiros com os luso-brasileiros reverteria numa influéncia positi- va em termos de cristianizacao da sociedade e da participacao cato- lica na ordem politica (Deutsches Volksblatt, Porto Alegre, 16 de mar- go de 1914). O posicionamento do arcebispo mereceu a indignacéo jesuitica e de liderangas leigas associadas, que assumiram posicdes frontais em favor da unidade étnica e confessional (Deutsches Volks- blatt, Porto Alegre, 2 de abril de 1924). Na ordem politica, vale refe- tir, a experiéncia catélica de se espelhar no Partido do Centro da Sogial-catolicismo ¢ associativismo cristéo: Alemanha e sul do Brasil 127 Alemanha, foi um tanto quanto frustrante. A organizacao e a mili- tancia politica nao refletem os resultados que 0 bloco catélico conse- guiu na reforma constitucional de 1926, quando apresentou pontos importantes, que foram, posteriormente, incorporados ao programa da Liga Eleitoral Catdlica e defendidos na Constituinte que elaborou a Constituigaéo de 1934 (Gertz, 1992, p. 553-579), As liderancas evangélico-luteranas entenderam, da mesma forma, que o caminho para constituir comunidades coesas poderia significar uma alavancagem para uma organizacgao social com solida referéncia nos valores ético-cristaos, na solidariedade étnica e nos principios da ordem e da operosidade. A preocupagao vem estampada nos dizeres do pastor Wilhelm Rotermund: “o que nos falta é a uniao; nao tanto a unido numa nova associacgdo, mas na perspectiva de buscar um sentido e 0 ideario de uma atmosfera que permita viver e indique o caminho da vida’. Entendia ele que 80 assim as obras e as instituig¢Ses mantidas pelos protestantes pederiam ser conduzidas adiante e produzir frutos. Muitas inicia- tivas nao compreenderam continuidade, “porque ao protestantis- mo sempre se lhe cortou a copa, por isso nao floresceu e carregou frutos” (Deutsche Evangelische Blatter fiir Brasilien, Sao Leopoldo, maio de 1919, Heft 1) Compreendendo a complexa realidade multicultural, a dis- — e os limites da acao pastoral, os agentes catélicos e evangé- lico-luteranos entenderam que era necessario envidar um esfor¢go conjugado no sentido de organizar os colonos teuto-brasileiros em torno de uma associagao interconfessional que, ao mesmo tempo, promovesse a vida associativa, a valorizagao e a promogao da cultura e a melhoria nas condigdes materiais da vida. Surgiu assim a Associagao Rio-grandense dos Agricultores — Bauernverein -, em 1899, que exerceu importante fungao mediadora na organizagao de nucleos, ou unides coloniais, de agricultores em todo o estado do Rio Grande do Sul e na representacao dos seus interesses dian- te do Estado e de outras organizacGes congéneres. Implementou a poupanca e 0 crédito através da fundagio de Caixas de Depdsito e de Empréstimo, caixas rurais, estimulou 0 cooperativismo e pro- moveu um modelo de coloniza¢ao que marcou © cendrio social do sul do Brasil. Com uma mobilidade social de baixa densidade, a Associa- ¢40 Rio-grandense comportou limites que vao das esferas publicas de relacionamento com o Estado 4s privadas em torno das ques- tées confessionais nao resolvidas e da desconfianga em relacdo aos seus lideres. A falta de lideranca e a pouca participagao dos teuto- brasileiros da vida associativa foi constantemente evocada e 0 128 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p. 117-134, dezembro 2003 padre Ambrosio Schupp atribuiu a decadéncia do Bauerverein A falta de competéncia e ao egoismo (Schallenberger, nota 722). 0 pastor Otto Arnold tributava a desconfianca mutua um dos prin- cipais fatores impeditivos do avanco social e da construcado da identidade teuto-brasileira (Sonntagsblatt, Porto Alegre, n. 4, 1907, p. 13). A interlocugao com os drgaos estatais, principalmente a respeito das questées relativas a sindicalizacdo e as politicas agri- colas, e as demandas da politica oficial foram, sem duvida, causa- dores da fragmentagaéo da homogeneidade e da exclusividade da proposta de modelagao social idealizada pelos atores do associati- vismo cristéo no Rio Grande do Sul. A pressio do governo para que a Associa¢ao dos Agricultores se transformasse em sindicato e sua vinculagaéo com entidades congéneres, a exemplo do Centro Econdémico, a deixou sempre mais préxima do Estado. Para 0 social-catolicismo nao competia ao Estado intervir na sociedade a favor de uns ou de outros. E sustentava que “nao é justo que o individuo ou a familia sejam absorvidos pelo Estado, mas é justo, pelo contrario, que aquele e esta tenham a faculdade de proceder com liberdade, contanto que nao atentem contra 0 bem geral e nao prejudiquem ninguém” (Rerum Novarium, p. 38). A forca e o pilar de sustentacao de toda a organizagio social consis- tia no vigor moral, que tinha na ética crista sua fonte verdadeira. © Bauerverein foi uma experiéncia pioneira do associativismo cristéo do sul do Brasil. Langou a planta do associativismo rural no Rio Grande do Sul. Diverse do social-catolicismo aleméo, que teve entre suas preocupagoées centrais evitar a proletarizacgao dos catélicos, seu modelo de organizagao assentou-se sobre a realida- de social construida a partir da imigrag4o e da colonizagao. Suas bases associativas e suas diretorias foram lancadas nas Picadas, nos Distritos e nos Municipios, que, interligados, visavam cons- truir um elo de cooperagéo sempre mais efetivo entre os teuto- brasileiros. A Associacgdéo manteve um estreito intercambio com 0 associativismo cristéo da Europa, especialmente da Alemanha e da Suiga (Mitteilungen aus der deutschen Provinz, n. 25, 1903-1905, p. 502-506). Da sua experiéncia originaram-se as Unides Coloniais, que cumpriram importante papel de autodefesa da Coldnia e de- ram origem a Liga das Unioes Coloniais (1929), as cooperativas vitivinicolas e de laticinios e 4 Unido Popular para os Catdlicos Teutos do Rio Grande do Sul (1912). A grande mobilizagao e a vitalidade do social-catolicismo alem&o fez com que a sua acao se voltasse para os alemaes caté- licos que viviam no exterior. Surgiu assim, em 1911, em Dresden, Social-catolicismo e associativismo cristéo: Alemanha e sul do Brasil 129 giao; fornecer subsidios para o desenvolvimento espiritual e Material dos alemdes que estiverem distantes de sua patria. Tra- fava-se de uma ampla mobilizacao no sentido de ocupar todos os ‘espacos na sociedade e de dar uma diregao segura ao secial- tatolicismo. Na Suiga, a Sociedade Uniao Popular para os Catoli- cos — Volksverein —, fundada em 1904, constituiu-se numa entida- de representativa dos catdlicos, congregando ao seu redor todas aS associacées, dando orientagao a todos os movimentos e garan- tindo aos cantdes uma unidade de agao na construgdo do espaco eclesial e comunitario (Deutsches Volksblatt, Porto Alegre, 10 de janeiro de 1912). A Associagao dos Agricultores — Bauerverein —, por seu cara- ter interconfessional e sua estratégia de acao centrada fortemente em torno da problematica das comunidades rurais, embora se ‘constituisse em fator de convergéncia das questées sociais, nun- ca chegou a representar uma entidade que desse uma direcdo uperior a todas as associagGes catdlicas criadas entre os teuto- brasileiros. A convicgdo de Amstad da necessidade de criar uma tinidade maior entre os alem4es catélicos ficou claramente ex- pressa no IX Congresso Catdlico, realizado em Venancio Aires, de 25 a 27 de fevereiro de 1912, Esta unidade deveria objetiva- Mente visar a religiao e ao trabalho, Lutar “pelo nosso bem-estar, lo nosso credo e pelo desenvolvimento de nossas colénias, ‘novas e velhas, para que estas mantenham os seus patriménios, 9s seus direitos e a sua vida" (Deutsches Volksblatt, Porto Alegre, 20 de marco de 1912). Providenciar escolas fundamentais e com- plementares, divulgar boas leituras, promover a colonizagio ¢tnica e confessional homogénea, fomentar e manter as associa- Ges catdlicas, em especial as congregacdes marianas, e desen- ‘volver a formagao religiosa eram os objetivos fundamentais pro- ‘postos. A atencao especial a educacéo revestiu-se, de certa forma, ‘de um carater de re-cidadanizacao dos teuto-catdlicos, sem que significasse um abandono dos valores fundamentais da cultura e da religido. Liderangas catélicas, a exemplo de Siegfried Kniest, eminente professor paroquial e posterior secretdrio da 130 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p. 117-134, dezembro 2003 Uniao Popular, vinham apontando que 0 caminho para a cons- trugdéo da cidadania dos teuto-catélicos era: “educar os filhos para a vida comunitaria consciente em Deus” e “preparar fiéis servidores de Deus, da Igreja, cidadaos corretos do Estado, membros integrados na comunidade e exemplares pais de fami- lias” (Mitteilungen des Katholischen Lehrer- und Erziehungsvereins Rio Grande do Sul, n. 1-4, 1902, p. 17). Embora entendessem que ascensao social dentro da comunidade dar-se-ia através da esco- la, a divulgagao de boas leituras e a criacdo de bibliotecas, a rea- lizagdo de reunides de informagao e de formagado, a organizacao de caixas de empréstimo e de depésito e de associagdes benefi- centes eram elementos essenciais para uma formacao continuada (Deutsches Volksbaltt, Porto Alegre, 20 de marco de 1912), A im- prensa fora destacada como instrumento basico para despertar a consciéncia social catélica. Defensora da autoridade, da lei e da ordem, a imprensa teve entre os teuto-brasileiros papel de des- taque, tornando-se “um advogado da verdadeira liberdade cris- ta”, e “campo de batalha para as decisdes sobre a fé, sentido cris- tao, fundamentos da cultura, economia e vida estadual” (Deuts- ches Volksblatt, Porto Alegre, 20 de julho de 1926). As questées praticas em torno da organizacdo das escolas, das associacdes beneficentes, da assisténcia técnica e educativa, no universo da produgao rural, e a perspectiva do crédito e da colo- nizagao, a partir de ages cooperadas, deram ao social-catolicismo capacidade de mobilizacao. Dois anos apés a sua constituigdo, a Sociedade Unido Popular ja contava com mais de 60 distritos e com um contigente que beirava os 9.000 associados. A Primeira Guerra fez com que suas ages definhassem e ela se voltasse para © seu interior. Em 1916, ocorreram dois feitos importantes para a vida da Sociedade Uniaéo Popular, que a aproximaram mais da experiéncia original alema e que tiveram significativa relevancia para a organizacao da sociedade sul-rio-grandense: a fundagao de um Sindicato de Empregos e de Trabalhadores do Comércio - Syndikat der Arbeiter- und Handelsgehiilfer von Porto Alegre — e a Cai- xa Central, uma espécie de Unido das Caixas (Deutsches Volksblatt, Porto Alegre, 28 de junho de 1916). A guerra e as disputas em torno da hegemonia politica no Rio Grande do Sul foram elementos que inibiram a dinamica asso- ciativa dos teuto-brasileiros. Tanto assim que em 1922 a Uniao Popular contava com, apenas, 3.000 associados, O esforgo de rees- truturacao da Sociedade Uniao Popular e a reordenac&o do social- catolicismo apontaram para trés direcdes: na ordem material, in- Social-catolicismo e associativismo cristéo: Alemanha e sul do Brasil 131 centivar o auxilio mutuo através do cooperativismo de crédito e descomprimir a pressdo sobre o espaco agricola, através da pro- mogdo de novas colonizagées; na ordem social e politica, tornar a entidade uma instancia de representacdo de todos os catdlicos; e ha ordem espiritual, promover a renovacao do catolicismo através da Acdo Catolica. A Agao Catélica foi um movimento de renova- Gao psicoldgica e espiritual, lancado no final da Primeira Guerra Mundial para fortalecer 0 espirito cristae diante dos avangos das doutrinas pagas e para desenvolver a idéia da solidariedade e do amor fraterno entre os povos, uma vez que a guerra havia disse- minado o édio. A Unido Popular atingiu o seu dpice entre os teu- to-brasileiros em torno dessa bandeira, alcangando um quadro de aproximadamente 10.000 associados (Schallenberger, cap. X). Os desgastes internos decorrentes da colonizagao de Porto Novo (Zilles, 1992) e a preocupacgao das liderangas do social- catolicismo em torno das questées de cunho religioso, de natureza sobrenatural, em detrimento das questées de natureza social do cotidiano, criaram tm certo vazio diante das demandas dos colo- nos. Nesse vazio, ocorreu a reativacio das Unides Coloniais, que ‘sobreviveram aos escombros das revolucdes”, a partir de 1923, e fize- tam emergir, com maior intensidade, 0 movimento associativo voltado para a organizacao e pata a defesa dos colonos e da pro- ducao colonial (Neue Deutsche Zeitung, Porto Alegre, 28 de maio de 1930), Obviamente que a legislacdo do Estado Brasileiro induziu a sindicalizagao de todas as categorias sociais, com 0 que no con- cordava a Uniao Popular. A Liga das Uniées Coloniais, a partir da sua constituigao em 1929, ocupou este lugar de representacdo dos colonos. Maior or- ganizacao sindical brasileira do seu tempo, a Liga tornou-se a principal entidade promotora do associativismo cristao, liderada basicamente pelos atores do protestantismo luterano, que, nao misturando os assuntos da fé com os da politica e da economia, nao visualizavam obstdculo para a interlocugdo com o Estado. Ao constituir a Liga, entendia-se que, para fomentar o desenvolvi- mento do moderno associativismo, era necessario estimular o sur- gimento de uma organizacao profissional livre, que com liberdade pudesse defender os interesses dos seus associados. Consonante com o social-catolicismo alemao, que entendia que a organizacao da sociedade deveria se dar em vista do traba- Tho e da cultura e que a religido cumpria a fungao de mediadora das relagdes humanas para o bem-estar espiritual, as liderancas da Liga sentiram um certo desconforto em relagao a postura confes- sional da Uniao Popular. 132 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, n. 2, p. 117-134, dezembro 2003 N&o queremos ser os primeiros a incomodar. J4 existem iniimeras organizacGes profissionais e nenhuma, por isso, se constituiu como confessional ou popular. Por que precisamente a agricultura é para ser dividida? Por que os agricultores nao podem constituir um sin- dicato livre? Por que devem eles se abrigar numa associagao agrico- la catélica, protestante, judia, sabatista, metodista, etc. e devem re- duzir a organizagao de alemaes, de italianos, de luso-brasileiros, de austriacos, de russos, de poloneses, etc. a diviso. Por que, por fim, esse egoismo, essa intriga, quando de outras organizagées similares nao nos foi dirigida nenhuma censura até hoje?, indagava Luiz Kling, secretario da Liga (Nachrichtenblatt der Liga das Unides Co- loniais, Porto Alegre, 31 de setembro de 1931, p. 2). A propria enciclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, promulga- da em 15 de maio de 1931, apregoava que as politicas sociais deve- riam empregar todos os esforcos em reconstituir os corpos profis- sionais. Toleradas as organizag6es interconfessionais e os sindica- tos livres, a enciclica referiu-se &s associac6es profissionais dizen- do: “é licito aos seus membros eleger a forma que lhes aprouver, contanto que atendam 4s exigéncias da justica e do bem comum” (Quadragesimo Anno, p. 82-86). Com a profissionalizacao do agricultor, a inovagao tecnolégica na produgao, a organizagao e a defesa da producao, através do coo- perativismo e da organizacgado do mercado, a Liga ocupou um lugar de destaque no associativismo brasileiro, nao sé pelos 20.000 associ- ados, mas, sobretudo, pelo papel politico de defesa do colono e da agricultura familiar. 4 Conclusdo O social-catolicismo alemao e 0 associativismo cristao do sul do Brasil revelam processos sociais dinamicos, onde cada um moti- vou postulagSes éticas e formas de organizacao social a partir da tealidade social em que esteve inserido. Na Alemanha, o social- catolicismo conseguiu formular politicas sociais, que, além de moti- varem a sociedace em torno da sua organizacao corporativa, garan- tiram avangoss iais e a presenca do espirito catdlico na formulagéo das politicas publicas. O estatuto do social-catolicismo teve consis- téncia e credibilidade porque, partindo das relacdes sociais concre- tas e posicionando-se diante da modernidade, conseguiu apreender as insatisfagdes sociais e canalizd-las em formas de mobilizacao e de organizacao social orientadas para a utopia crista. Mais do que um movimento filos6fico, cultural e politico, o social-catolicismo alemao converteu a doutrina cristé para as questGes sociais, referendou, Social-catolicismo ¢ associativismo cristo: Alemanha e sul do Brasil 133 esar das criticas ao individualismo e ao lucro extremados, princi- ios do liberalismo, como a proptiedade, reconhecendo-lhe a fungao cial, a liberdade e a democracia, fomentou a organizacao social rporativa, estimulando a sindicalizagéo e o cooperativismo, e tituiu-se referéncia basica para a Doutrina Social da Igreja Caté- No sul do Brasil, a realidade multicultural, o contato direto com os problemas do cotidiano e as condig6es de vida dos colonos, nao favoreceram a afirmagaéo homogénea do social-catolicismo co- ‘mo utopia social. O problema dos colonos teuto-brasileiros nao re- ‘sidia na escolha da utopia social, mas, sobretudo, na possibilidade ediata de produzir o seu espaco familiar e social. A proposta do social-catolicismo trazida pelos agentes da Igreja da Imigracao era muito mais uma questdo a ser posta do que a ser construfda, a e- plo do que ocorreu na Alemanha. Com isso, as motivagoes em 0 da sua implementagao restringiram-se, basicamente, as lide- cas religiosas e leigas a elas aliadas, mantendo um certo grau de sconfianca da populacao. A forma concreta de implementar o idedrio do social- catolicismo no sul do Brasil foi a de promover o associativismo. AssociagGes beneficentes, clubes recreativos e culturais, congrega- '¢Ges, cooperativas, entre outras formas, representaram 0 elo de coe- Ao social possivel, uma vez que buscaram na etnicidade, na religiao “ena cooperacio a construgao de um ideal coletivo. Os elementos da ‘cultura étnica aproximaram catdlicos e evangélico-luteranos em forno de um movimento associative para promover a cooperacgao ‘como forma de valorizagao do trabalho e a constru¢ao do espacgo familiar e comunitaério como base modelar de organizagao social. A ‘busca de formas auténomas de desenvolvimento representaria a conquista da liberdade e da cidadania dos teuto-brasileiros e a legi- timidade social das igrejas. Nessa perspectiva, o associativismo cris- tao teve desdobramentos significativos que marcaram a trajetéria da construcao social do Sul do Brasil. AssociagGes, sindicatos, coopera- tivas, organizacéo de colénias, educagao e assisténcia representam instancias que contribuiram com a organizacao social e o desenvol- vimento comunitario. O social-catolicismo tornou-se, de certa forma, uma referéncia ideal apresentada aos teuto-brasileiros para a sua modelacao social, enquanto o associativismo cristéo assumiu um cardter efetivo de otganizac4o social em vista da defesa dos interesses dos colonos e da valorizagdo do trabalho e da produgao. Na sua condugao estive- ram pessoas que tiveram certa relagdo com o mundo dos negocios e nem sempre figuravam na primeira linha dos utopistas. d

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