O Vaticano impôs uma "penitência perpétua" ao teólogo jesuíta Jon Sobrino, proibindo-o de ensinar. Isso faz parte de uma longa história de resistência da Igreja Católica à revisão de dogmas à luz de novos conhecimentos. A condenação de Sobrino pode precipitar o declínio da Igreja, pois ele defende um cristianismo renovado, ao contrário do que sugere a decisão do Vaticano.
O Vaticano impôs uma "penitência perpétua" ao teólogo jesuíta Jon Sobrino, proibindo-o de ensinar. Isso faz parte de uma longa história de resistência da Igreja Católica à revisão de dogmas à luz de novos conhecimentos. A condenação de Sobrino pode precipitar o declínio da Igreja, pois ele defende um cristianismo renovado, ao contrário do que sugere a decisão do Vaticano.
O Vaticano impôs uma "penitência perpétua" ao teólogo jesuíta Jon Sobrino, proibindo-o de ensinar. Isso faz parte de uma longa história de resistência da Igreja Católica à revisão de dogmas à luz de novos conhecimentos. A condenação de Sobrino pode precipitar o declínio da Igreja, pois ele defende um cristianismo renovado, ao contrário do que sugere a decisão do Vaticano.
Sobrino Eduardo Hoonaert Mais um captulo numa dolorosa histria que j vai longe: a "penitncia perptua" imposta a Jon Sobrino. No dia 15 de maro, a Congregao Vaticana para a Defesa da F procede promulgao de uma penitncia infligida ao padre jesuta Jon Sobrino, nascido em 1938 em Bilbao, Espanha, e residente desde 1958 em El Salvador, onde foi telogo de Dom Oscar Romero. A penitncia consistir no silncio mais absoluto do telogo, no naquele silncio de um ano imposto a Leonardo Boff, mas num silncio perptuo, no apagar per saecula saeculorum de uma voz que incomoda. Qual a razo de to severo procedimento? Onde foi que Sobrino pisou feio? O texto do Vaticano explicita: O telogo no afirma abertamente a conscincia divina de Jesus histrico, ele oculta a divindade de Jesus. Eis a mais um captulo de uma histria que j cobre diversos sculos e no est prestes a ter um desfecho prximo. Ela comea exatamente num quarto simples da cidade de Haia, na Holanda, em 1670, quando Spinoza contesta pela primeira vez a autoria dos primeiros cinco livros da bblia (Pentateuco) por Moiss, supostamente inspirado por Deus. Para Spinoza, o Pentateuco uma coletnea de narrativas populares antigas e prescries sacerdotais reunidas por Esdras e outros intelectuais aps o retorno das elites judaicas do exlio babilnico no sculo V AC, portanto sete sculos aps a morte de Moiss. As palavras de Spinoza caram como uma bomba, no s sobre a cultura do Ocidente (cristos e judeus), mas igualmente sobre o mundo islamita. Desde ento, os tremores causados por Spinoza (e colegas) se alargaram e no mais deixaram as autoridades religiosas crists, judaicas e islamitas em paz. Pois Spinoza foi ganhando adeptos sempre mais numerosos no decorrer dos ltimos trs sculos. Os exegetas passaram a estudar as lnguas bblicas (hebraico, aramaico e grego), ensaiaram uma leitura da bblia em consonncia com os ditames da cincia moderna e enfrentaram corajosamente obstculos eclesisticos. Graas progressiva introduo da idia de tolerncia no decorrer do sculo XVIII, tanto na Frana como na Alemanha, ningum mais foi queimado vivo por emitir opinies contrrias s autoridades, como ainda aconteceu com Giordano Bruno, em 1600. As idias humanitrias triunfaram com a Revoluo Francesa de 1789. O instituto eclesistico sempre reagiu de forma muito nervosa diante de qualquer tentativa de se mexer com os antigos dogmas e nunca permitiu que se discutisse a maneira com que a extraordinria riqueza de metforas, smbolos, parbolas e vises da bblia ficou sendo engarrafada em frmulas dogmticas. Ningum podia nem de longe mexer com o smbolo da f crist, promulgado pela assemblia episcopal de Nicia (325). Foi a que as sugestivas imagens religiosas do evangelho de Joo (a Palavra de Deus desce do cu terra, divulga a mensagem de um Deus Pai e volta ao cu, depois de ter deixado na terra o Esprito Santo) foram traduzidas em dogmas. Mesmo assim, muitos continuaram mexendo com o que era intocvel e da surgiu um labirinto to intricado de explicaes, controvrsias, hipteses e condenaes, que praticamente impossvel seguir tudo. S quero lembrar que os papas catlicos sempre quiseram colocar um dique contra a invaso do esprito cientfico em rea que lhes parecia privativa, mas em vo. O embate fez muitas vtimas, entre as quais se destaca o sacerdote francs Alfred Loisy (1857-1940) cujo livro O Evangelho e a Igreja (Lvangile et lglise), publicado em 1902, defendia a tese (j sustentada por intelectuais do imprio romano, como Porfrio) de que os evangelhos no correspondem fielmente histria de Jesus. Mas no s no mundo catlico os estudos modernos causaram problemas, o mundo protestante tambm foi afetado. Adolfo von Harnack, grande estudioso protestante alemo, encontrou tambm forte oposio por parte da igreja luterana. Mas tudo isso no parou o movimento. No sculo XIX nascem a egiptologia, a assiriologia, a epigrafia semita etc. No sculo XX entram a filologia e a arqueologia bblica, provocando sucessivos sustos nos que acreditam nas eternas verdades da bblia. Ao mesmo tempo, avana-se no mapeamento de um universo religioso imaginrio comum a todos os povos que mantiveram contato com o povo hebreu, no s a Mesopotmia, mas tambm o Egito. Percebe-se que as grandes imagens bblicas so comuns ao imaginrio religioso do Oriente mdio: o cu (Deus Criador), a terra (expulso do paraso terrestre), o ar (ascenso), o sopro animador (Esprito Santo). Mesmo os utenslios agrcolas de cada dia como a enxada, o arado, a p, o torno (Deus torneiro), a fornalha (inferno) servem como smbolos religiosos. No inferno vivem demnios, monstros e outras ameaas, no cu atuam os anjos, protetores da vida. Fala-se em filhos de Deus (ttulo dado aos faras do Egito) e em virgens que geram deuses. Estudiosos como Sir James George Frazer abrem campo para um estudo dos imaginrios religiosos em escala planetria. Vai se diluindo sempre mais a idia de que a bblia tinha razo, assim como a referncia absoluta formulao do Conclio de Nicia (325). J no sculo XIX, estudiosos alemes lanam dvidas sobre o valor histrico do evangelho de Joo, base do dogma de Nicia. Em torno de 1900 j consenso que os evangelhos de Mateus e Lucas assimilam muita coisa do imaginrio popular, enquanto se recompe um evangelho Q (dos anos 50), que no diviniza Jesus. O evangelho de Tom, grande estrela da descoberta de Nag Hamadi (1945), faz sua entrada no rol dos evangelhos cujo estudo se impe a quem quiser pesquisar as origens crists. Na virada do sculo vinte e um, a lingstica (Ricoeur, Bakhtin, Wittgenstein, Frege, Habermas, Gadamer) entra por sua vez nos estudos bblicos e demonstra a necessidade de se estudar a mediao literria para se chegar ao Jesus da histria. Assim a perspectiva de Bultmann (1926) (que dizia que no se pode dizer praticamente nada sobre Jesus a partir dos evangelhos) revertida e os especialistas esto de acordo que podemos conhecer Jesus, mas no da forma com que ele est sendo apresentado pela tradio das igrejas. O problema Nicia, no so os evangelhos. Jon Sobrino A questo de fundo, que aparece na condenao de Jon Sobrino, est na teimosia que caracteriza grandes instituies. Resistindo a qualquer tentativa de reformulao de suas frmulas (sempre passageiras), elas se precipitam para a morte. A histria j comprovou suficientemente que grandes imprios se destroem a si mesmos, por um processo que o historiador ingls Toynbee chamou de hbris (autoconfiana exagerada, falta de percepo da realidade, prepotncia). Foi o que aconteceu sucessivamente com o imprio babilnico, o imprio persa, o imprio romano e recentemente o imprio sovitico. A prepotncia do Vaticano fica patente nas palavras usadas para afastar Jon Sobrino do ensino eclesistico. Temos de reconhecer que imprios de forte impregnao no imaginrio popular podem demorar sculos antes de entrar num colapso definitivo. Desse modo, possvel que muitas pessoas no cheguem a perceber o problema, nem enxerguem que tudo est desmoronando em seu redor. Os lderes, de sua parte, perdem contacto com a realidade vivida e vo se fechando em sua concha. Eles se agarram a volteis aclamaes populares e mediticas (o papa em Aparecida), sem conseguir investigar a fundo o que est acontecendo. Enquanto isso, ningum entende mais o smbolo de Nicia nem presta ateno ao que est dizendo quando recita formalmente o smbolo da f na liturgia da missa. Essas palavras viram relquias mortas, mas, mesmo assim, muitos crentes preferem morrer com elas a colaborar na elaborao de um cristianismo renovado. Uma instituio que condena estudiosos como Jon Sobrino precipita a sua prpria queda. Pois ele luta pela vida do cristianismo, contrariamente ao que sua condenao pelo Vaticano faz crer. Os que mais parecem defender a igreja so os que a condenam morte, enquanto os que a criticam querem sua vida. Neste momento, temos de felicitar o telogo Sobrino por seu compromisso com a vida.