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Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2): 111-120,1991 DE FRANKFURT A BUDAPESTE: OS PARADOXOS DE UMA PSICOLOGIA DE BASE MARXISTA Tray Carone * CARONE, I. De Frankfurt & Budapest: os paradoxos de uma psicologia de base Marxista, Psicologla-USP, Sao Paulo, 2(1/2): 111-120, 1991, RESUMO: A teoria do individuo esté entre parénteses, dentro de uma perspectiva marxista, Objetivo principal a ser alcangado pela praxis social, o individuo nio é ainda, rigorosamente falando, na medida ‘em que perduram as condigSes impeditivas ao desenvolvimento de sua plistica potencislidade hist6rica. Daf que a Psicologia Social de ‘Th. Adorno pode ser considerada uma Psicologia negativa porquanto denuncia a reificagio da subjetividade humana sob o impacto das relagdes sociais capitalistas. Na obra filoséfica de Agnes Heller, 0 individuo é tematizado como um tipo ideal cujo fundamento empirico se fencontra nas novas inclinagdes © necessidades que estio despontando no homem da modemidade capitalista. De qualquer mancira, o estatuto cientifico da Psicologia esti em questio na medida em que © ‘seu objeto principal ~o individuo — nao estiver ainda objetivado historicamente. DESCRITORES: Psicologia social. Psicologia negativa, Individuo. Necessidades. Tipo ideal A busca de uma Psicologia marxista, se levada as dltimas conseqliéneias, 6 um malogro, A rigor, 0 tema do individuo ¢ de sua subjetividade pertence ao futuro socialista ¢ niio, ao presente capitalista. Buscar © qué, sc 0 objeto ainda incxiste? Se é verdade que o individuo "rico em necessidades" ou a individualidade plena s6 emergiré através de pré-condigdes matcriais geradas pela revoluco no reino do trabalho, entio vi- vemos com certeza na pré-hist6ria da individualidade. Para liberar as potencialidades hist6ricas da esséncia humana ¢ provocar 0 devir bloqueado ¢ preciso atender as prioridades objetivas ¢ materiais, sem meios- termos. A tinica alternativa que resta a Psicologia cnquanto tal ¢ a critica da reificagao da subjetividade hu- mana apontando para a transcendéncia possivel. Critica drastica ¢ paralisante cla conduz, paradoxalmente, a uma reflexdo sobre o fundo da propria critica. E preciso voltar a Marx em busca dos fundamentos da critica que denuncia heteronomia ¢ falta de individuagao na espécie humana sob a égide do capital. Serd cla uma eritica verdadeira? Afinal de contas, 0 “individuo" como categoria nio é fruto "espontineo" clas relagdes sociais e humanas préprias da sociedade burguesa? Nao ¢ 0 "individualismo" um predicado tanto social quanto individual do ser humano colocado no scio das contradigdes capitalistas? Entio, nao hé diferencas individuais? Além disso, se nfo hd individuos nas condig6es hist6ricas presentes, entdo as Psicologias individuais © até mesmo a Psicandlise se convertem em belos discursos sobre coisas incxistentes tomadas como exis- tentes ¢ realizadas. Levada a sério, a dialética de Marx destr6i as bases de qualquer Psicologia que nao seja critica da Psicologia ou Psicologia negativa: critica da subjetividade reificada, critica das idcologias psico- logistas ¢ sobretudo, critica dos otimismos terapéuticos. E preciso entender, entrctanto, que © alcance da Critica nao sc limita aos positivismos varios da Psicologia constituida como saber. Ela se refere a qualquer Psicologia, tanto como a qualquer pritica terapeutica, ‘Vejamos, portanto, 0 fundamento da critica. "Que a hist6ria possa ser pensada como um proceso de constituigao do homem-sujeito significa que enquanto nao se chegou ao comunismo, 0 homem nio é, ou antes, cle 6, mas como significagio muda, niio posta. Como 0 espirito na Fenomenologia, 0 homem no pode ser dito no nivel de sua pré-hist6ria. Com efcito, se para Marx 0 homem s6 se constituira com 0 socia- lismo, que 6 0 homem antes do socialismo? (A pergunta "que é 0 homem?" é assim num certo sentido — diferente daquele que Ihe conferem os humanistas - uma pergunta valida para 0 marxismo). Seria preciso responder: o homem ¢... 0 operirio, o homem ¢... 0 capitalista, ou ainda pensando em outros momentos da * Professora ~ Doutora do Instituto de Psicologia da USP. i Catone, 1 Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2),1991 histéria, o homem 6 ... 0 cidadio grego ou romano, o homem é.,. 0 servo, 0 homem 6... 0 senhor feudal, ctc.Como se vé, num certo sentido se pode dizer 0 que é 0 homem, antes do fim da "pré-histéria", mas toda "definigdo" do homem s6 6 possivel entio se se disser outra coisa do que o homem. $6 os predicados do homem — operdrio, capitalista, cidadao romano, etc. sdo efetivamente, O homem esté "IA", mas s6 cxiste nos scus predicados, ¢ estes predicados, em vez de serem determinagdes do sujeito "homem" (ou espécies do género "homem"’) so de fato negacdes do homem enquanto homem, O operirio, o capitalista, o senhor feudal, 0 cidadio romano etc. existem enquanto (€ porque) 0 homem nio existe: ces ndio existirdo mais quando 0 sujeito "deles” vier 3 existénci Se o homem nio ¢ cfetivamente, cntilo porque niio 6? A resposta esti em O Capital:! 0 capital & 0 su- Jeito. Nesse sentido, as suas determinagdes essenciais esto postas no seu movimento, por ser cle um movi- ‘mento auténomo, um objeto-movimento2 Dai que "o discurso te6rico marxista em sentido estrito tem como objeto central no os predicados do sujcito pressuposto "homem", mas o sujeito real "capital", cujos predi- cados so negagdes do sujeito pressuposto "homem'". que é valido para a espécic humana, é valido para cada membro: a meta hist6rica ¢ alcangar a reali- zacio plena das individualidadcs. Marx (1 ed.) diz no primciro volume de O Capital ("Maquindria ¢ Indistria Moderna") que para alcangar a liberdade pessoal ¢ preciso transcender a divisdo de trabalho capi- tal «0 individuo parcialmente desenvolvido, meramente portador de uma fungio social especializada, deve ser substituido pelo individuo plenamente descnvolvido, adaptével a vérias atividades, pronto para accitar qual- quer mudanga de produgio, o individuo para quem as diferentes fungGes sociais que desempenha sio apenas formas variadas de livre manifestagao dos seus préprios poderes, naturais ¢ adquiridos” (1980, p. 559) Contas resumidas, a condigo para que 0 individuo seja 6 a de que o capital deixe de ser sujeito de scu proprio movimento. O que ha, no momento, so fragmentos de individualidades ou individuagdes me- ramente parciais, possibilidades humanas negadas por condigécs de ndo-liberdade. De qualquer mancira, a temética do individuo foi jogada para o futuro. A pergunta 6: como fazer Psicologia marxista, nessas circunstincias? Vou partir da hipstese de que ha uma Psicologia em ADORNO, ou melhor, uma Psicologia Social que nio circunscreveu o trabalho da razio critica a critica das Psicologias mas que visou a constituiga0 de um saber que poderfamos chamar de Psicologia Critica ou Negativa, consubstanciada em A Personalidade Autoritdria, Ha muito o que dizer sobre A Personalidade Autoritéria porque muito foi dito sobre cla. Na década de $0, quando foi publicada, muitas pesquisas surgiram nos Estados Unidos como reaplicagdes do scu modelo teérico de andlise psicossocial ou entdo, como testes metodolégicos visando a critica dos scus re- sultados, Durante pelo menos uma década, as pesquisas versaram sobre cla, de uma forma ou de outra. Além disso, é preciso esclarecer os scus antecedentes nas obras de Reich ¢ Fromm na Alemanha, du- rante a ascengiio do Nazismo ao poder. Parodiando Wittgenstein, nasccu a problematica do individuo ¢ do seu psiquismo no interior do cha- mado Marxismo Ocidental quando 0 prolctariado tirou férias de sua missi6o histérica, A perplexidade, mais do que qualquer outra preocupagao de ordem cientifica, é que trouxe a subjetividade A tona, como tema de reflexio politica © pesquisa cientifica, A Psicologia de Massas do Fascismo de Reich e na seqiiéncia, A Personalidade Autoritdria de Adorno ¢ outros, responderam & constemagio politica dos marxistas diante da adesio ou semi-adesao do protetariado ao fascismo. ‘A grande pergunta de Reich, naqucle momento histérico, era: porque as massas reduzidas A miséria, apés a 1* Grande Gucrra, contribuiram para a ascengio do fascismo? Sc as condigdcs objetivas de um processo de transformagio social estavam dadas, porque & que o pro- Ictariado nao assumiu o papel de agente da negagdlo, segundo as previsdes do Manifesto Comunista de 1848? Se cle era 0 portador e suporte de necessidailes radicais em fungiio de sua posigdo na divistio social do trabalho, porque foi atraido ¢ deu suporte & uma idcologia totalitéria de dircita, contraria aos seus inte- resses de classe social? No entanto, diz REICH, "o que se protende explicar nao é porque motivo o esfomeado rouba ou 0 ex- 1. Ruy Fausto. Marx: l6gica e politica. p29 2. Td. Ibid. p.30 3. Td.lbid, loc. et, 112 Carone, 1 Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2),1991 plorado faz greve, mas porque motivo a maioria dos esfomcados nio rouba ¢ a maioria dos explorados niio faz greve" (1988, p. 18-9) A proposta reichiana de uma Psicoogia Politica das massas pretendeu, em titima andlise, reativar 0 poder de negagzio do marxismo, agugando os seus instrumentos de andlise da realidade politica, através de categorias tiradas da Psicandlise. Ou seja, corrigir 0 “objetivismo” do marxismo cléssico que foi, por isso mesmo, atropelado pelo processo hist6rico com a ascengiio do Nazismo. Nesse sentido, a Psicologia Politica partiu da premissa segundo a qual subjetividade e sociedade, en- quanto polaridades histéricas, se remetem reciprocamente. Abstrair uma polaridade de outra, portanto, 6 no atingir a compreenstio do processo politico na sua totalidade, porquanto sujeito e objeto sfio mediados reciprocamente. Na medida em que a tensiio dialética for mantida na andilise dos fatos ¢ processos politicos, no haverd riscos ou de psicologiz4-los ou de “objetivizd-los" pelas categorias econdmicas. A Psicologia de Massas do Fascismo ¢, sem divida, uma obra critica que, a despeito do seu carter militante, vai introduzir, em definitivo, a questio da subjetividade no Marxismo Ocidental. Seus pontos de partida so: a critica da teoria econémica e politica de Marx face s transformagdes do capitalismo europeu, de 1928 a 1933; a critica do economicismo dos partidos de esquerda, sobretudo aqueles orientados pela II* Internacional na compreensio do fascismo e a critica do Comunismo Soviético enquanto capitalismo de Es- tado ¢ ndo democracia socialista, ‘A anilise reichiana do proletariado industrial ¢ das classes médias urbana ¢ rural no perfodo mencio- nado, tanto do ponto de vista de sua organizagio politica ao nfvel internacional, como de sua composi¢Zo numérica e conscitncia ideolégica na Repiblica de Weimar, o conduz a uma conclusio incvitével: nuo se trata do "proletdrio” de Marx. Temos ai uma nova “espécic" antropol6gica: operdrio altamente especializa- do ¢ politicamente organizado, bem como numericamente forte. E preciso no esquecer as duas Internacio- nais sediadas na Europa ¢ a adesio expressiva dos partidos de esquerda ¢ sindicatos a elas bem como a par- ticipagiio do prolctariado na esfera parlamentar, sem contar a influéncia do marxismo como idcologia dominante nos partidos federados nas Internacionais ¢ a presenga de grandes te6ricos do marxismo no perfodo (Trotsky, Rosa de Luxemburgo). Se o proletariado alemio se distingue do "trabalhador manual” de Marx, entdo poder-se-ia esperar, com bases objetivas, um outro comportamento politico diante das milicias fascistas e das ligas anti- democraticas, militaristas ¢ nacionalistas, O Gxito da retGrica de Hitler se deveu a outros fatores que no aqueles meramente objetivos, diz Reich, Nao foi por eng6do mas por identificagio que as massas pro- letdrias ¢ pequena burguesia se afinaram com o apelo 3 irracionalidade. Isso nos remete ao nervo critico da tcoria da ideologia de Reich; sem negar a determinagdo externa ou socictdria da ideologia, jé sublinhada em A deologia Alemd, Reich aponta para uma outra determinagzio me- nos visivel, mas to material quanto a primeira — a estrutura psiquica formada pela repressiio da libido. Ou seja, a forma de consciéncia ideolégica esti duplamente determinada: pelo fator objetivo (produgio materi- al) ¢ pelo fator subjetivo (estrutura psfquica). Eis af uma mediagdio subjetiva do processo hist6rico ¢ politico, Isso no quer dizer que a estrutura psiquica seja independente dos processos socictdrios ela ¢ forma- da pela ago negadora da vida das agéncias sociais (familia, igreja, escola) que, pelo menos na classe média em estudo, assume o papel de regular a vida instintual de seus membros, Apoiada no modelo pulsional de Freud, a andlise reichiana vai interpretar a formagdo da estrutuca psicol6gica do aderente ao Nazismo em termos de sua economia sexual: a fixagio ¢ dominagsio dos impul- sos pré-genitais ¢ agressivos na vida sexual se expressa na hostilidade sado-masoquista ¢ perversdo na con- vivéncia social. Nesse sentido, a idcologia politica no cumpre apenas uma funcao social na reprodugdo das relagdes de dominagaio, como Marx alirmou, Ela tem, também e sobretudo, uma funcao na economia psiquica do sujeito, Constelada enquanto representagZo na estrutura psiquica, cla mantém um sistema precario ¢ pato- l6gico em equilfbrio, porque permite ¢ legitima descargas parciais da energia libidinal represada ¢ fixada nas fases pré-genitais. Nada melhor do que a busca de um bode expiat6rio em condigdes de pouca satide psicolégica... Daf se pode entender que a contradigdo entre massas ¢ Nazismo era contradic aparente, Harmonia ¢ conciliagiio presidiram a integragdo do particular no universal totalitario. ‘AS hipéteses reichianas sobre a dupla determinagaio do idcoldgico na interpretagzlo do comportamento politico das massas influenciaram, dircta ou indirctamente, os estudos empiricos sobre “Autoridade & Familia" publicados em 1936 pelo Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, Na seauinda parte do "Autoridade ¢ Familia" foi apresentado 0 maior estudo empirico do Instituto so- bre os operirios alcmics, através de um questiondrio de 270 itens que versavam sobre a situago social do 113 Carone, 1 Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2),1991 trabalhador bem como sobre a sua "mentalidade" (representagdes), de modo a permitir inferéncias sobre a sua estrutura psiquica. E preciso frizar que muitos itens cram projetivos ¢ atitudinais, com a finalidade de clidir os mecanismos de defesa do ego do sujeito estudado. s resultados da pesquisa foram apresentados na forma de respostas de 15 sujeitos separados cm tes tipos: o cardter revoluciondrio, o carter autoritrio eo ambivalente, cada um diagnosticado através de uma interpretagio intuitiva das respostas. ‘A questo psicopolitica levantada por Reich ganhava agora uma conotagio mais “cientifica", de acor- do com as propostas do Instituto de Pesquisa Social em janciro de1931: 0 problema te6rico da relagiio entre condigdes econdmicas, produtos culturais ¢ mudangas na estrutura psiquica dos individuos, deveria ser ob- jeto de um estudo empirico com auxilio de técnicas analiticas (como os métodos projetivos). A questiio ou hipétese basica de A Personalidade Autoritdria 6 praticamente a mesma, No entanto, Adomo a justifica de um modo um pouco diferente, Tomemos, de novo, a teoria da ideologia na sua versio freudo-marxista da dupla determinagaio. cle, em 1956, a respcito do tema "ideologi Por isso, a critica ideolégica como confronto da ideologia com a sua verdade intima, 86 6 possivel na medida em que a ideotogia contiver um elemento de racionalidade, com a qual a ertica se esgote. Assim acontece com idéias tais como liberali lentidade entre 0 espirito ¢ a realidade. Entre- tanto, quem se dispusesse a criticar desta maneira a chamada ideologia do nacional-socialismo acabaria sendo vitima de sua desapontadora ingenuidade, Nao 36 0 nivel literirio de escritores como Hitler ¢ Ro- senberg est abaixo de toda a critica mas a sua trivialidade sobre a qual & muito fécil triunfar, 6 sin- tomitica de uma situago que j4 no aduz validamente da definigio da ideologia como falsa consciéncia que a si propria se basta, No chamado "patrimSnio intelectual” do nazismo nao se reflotem as formas do espirito objetivo, dado que foi constitufdo em resultado de manipulagdes ¢ como instrumento de poder, do qual ninguém, nem mesmo os seus porta-vozes, pensavam seriamente que merecesse crédito ou f6sse le- vado a sério.* Em outras palavras, 0 discurso nazista niio mascarava a sua propria realidade: irracionalidade pura. O que colocava em cheque os instrumentos habituais do marxismo c a cficdcia da critica da representagao, A catitica ideotdgica &, no sentido hegeliano, negagio determinada, confronto de entidades espirituais com a sua realizagio e pressupde a distingio do verdadeiro e do falso no juizo de valores, assim como a pre- tensio de verdade no objeto da critica... A critica da idcologia totalitiria no se reduz a refutar teses que nio pretendem, absolutamente, ou que s6 pretendem como fiegdes do pensamento, possuir uma autonomia uma consisténcia intemas.$ A indistria cultural ¢ a propaganda fascista, disse Adorno no artigo sobre o padrio da propaganda fascista, em 1951, so “psicandlise as avessas". E 0 inconscicnte falando ao inconsciente reprimido das massas, convidando-as para uma espécic de festim diabélico. Nesse sentido, € um discurso transparente que insinua 0 recurso A forga bruta c a promessa de uma parte do saque. Vejamos bem: nfo hi aqui o suposto de uma “irracionalidade inerente" das massas. Por isso, 6 preciso in- vestigar “a que configuragdes psicoldgicas (as tescs) querem se referir para se servirem delas; que dispo- sigdes desejam incutir nos homens com as suas especulagoes"... Existe pois a questio de apurar porque ¢ como a sociedade modema produ. homens capazes de reagir a esses estimulos dos quais, inclusive, sen- tem necessidade ¢ cujos intérpretes si, depois, os Kideres ¢ demagogos da massa. E necessirio 0 desen- volvimento que conduzin a tais transformagées histéricas da ideologia, niio 0 contetido ¢ o contexto em que 0 resultado se expressa. As modificagdes antropoldgicas a que a ideologia totalitéria quer correspon der so consqléncias de transformagdes na estrutura da sociedade ¢ nisso ~ nfio em seus enunciados — en- contramos a realidade substancial dessas ideologias.® Em suma, historicamente falando, a idcologia passou de mascaramento do real para transparéncia nos 4. T.W. Adomo & M, Horkheimer, org. Temas Bdsicas de Sociologia. p. 191-2. S. Idk Ibid. p. 192, 6 ‘T.W. Adomo & M. Horkheimer, org. op. cit. p. 192-3. 114 Carone, Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2),1991 objetivos ¢ a critica da ideologia se converteu, por isso mesmo, em Psicologia Social do fascismo, ‘Adorno nio postulon, portanto, a irracionalidade "natural" ou inerente das massas, mas a irracionali- dade do marxismo que nao segue as transformagoes hist6ricas do fenémeno ideol6gico; nijo postulou tam- pouco uma determinada estrutura psfquica neurética das massas através do modelo reichiano, mas convi dou o investigador a investigar. Por fim, no deixou nenhum rastro de “ideal de homem", ou de "satide mental” como como vir-a-scr humano tomado como destino, finalidade ou necessidade hist6rica, Estudar, entretanto, as configuragdes psicoldgicas historicamente engendradas é retomar 0 processo hist6rico onde ele se congelou. Essa é a esséncia emancipadora do Esclarecimento. Essa 6 a meu ver, a esséncia de A Per- sonalidade Autoritaria. ‘Vejamos, entretanto, como Adorno definiu ideologia em A Personalidade Autoritéria (1956) Empregamos aqui 0 termo idcologia na acepgiio que Ihe dé a literatura atual, ou seja, como uma organi- zagio de opinides, atitudes, valores, em suma, uma mancira de pensar sobre 0 homem c a socicdade. Po- demos falar da ideologia total de um individuo ou de sua ideologia com respeito a diferentes aspectos da vida social; politica, economia, religito, grupos minoritérios, etc, As ideologias t&m uma existéncia inde- pendente de qualquer individuo isolado ¢ as que se dio em determinados perfodos resultam tanto de Processos hist6ricos como de acontecimentos sociais do momento. Tais idcologias exercem sobre cada in- divi diferente gra de sragto, o quel dspnde da suns necessianceo da media em que eis 880 30- tisfeitas. Trata-se pois de descobrir quais silo estas necessidades que buscam sua satisfago nas ideologias so- ciais, por exemplo, no anti-semitismo como sistema ideolégico. Adomo remete, pois, a questilo da idcologia para o domir logizar o fendmeno ideolégico enquanto tal. io do psicol6gico ¢ do privado, sem psico- Diz mais adiante: A presente investigagao se propde descobrir as correlagées existentes entre a ideologia de um individuo ¢ 9s fatores sociais que atuaram na sua vida passada, continuem ou no exercendo a sua influéncia no pre- sente, Quando se busca uma explicagio destas correlagdes, entram no quadro as relagdes entre personali- dade ¢ ideologia, considerando-se a personalidade como agente mediador cntre as influéncias socio- Iogicas © a ideologii © que se formou uma estrutura dentro do sujeito, algo capaz. de atuar por iniciativa prépria sobre o meio social ¢ de sclecionar os diversos estimulos que recebe; algo que apesar de sempre modificdvel opie freqlentemente grande resisténcia as mudangas fundamentais.* Ou soja, as opinides, atitudes, crengas ¢ valores de um sujcito dependem de sua organizagiio de neces- sidades (tendéncia, desejos, impulsos emocionais). Ou seja, a personallidade 6 um fator determinante das preferéncias ideoldgicas do sujeito, embora nao soja 0 determinante tiltimo. Em resumo, as ideologias sto determinadas socictariamente mas os sistemas ideol6gicos do sujeito (opinises, atitudes ¢ valores) sto organizados por motivacdes irracionais, cuja organizago, por sua vez, S10 esiruturas psfquicas, mais ou menos estveis, Uma coisa ¢ a ideologia cnquanto fenémeno social ¢ outra, a sua internalizagio ¢ fixagdo na estrutura de personalidade do sujcito. As ditas “opgdes ideolégicas” do su- jeito tm razdes que a propria razdo desconhece.. Daf que a integragdo do particular no universal nio se dif pela mediagio do ideoldgico, mas pela me- dingo da estrutura psfquica, Se houve, pois, integragsio das massas A ideologia fascista foi porque a estrutu- ra psiquica das massas tinha completa ressonfincia 2 vociferagao racista, oud ideologia anti-somita, uma "idcologia involuntariamente sincera’ A andlise psicossocial nao esti, pois, a desprezar as anilises politica, sociol6gica ¢ econdmica do fas- cismo cnquanto tal. Ela focaliza a estrutura psiquica respondente ¢ ativa, o fascismo na sua face psico- logica, Sc hd inversio ideol6gica no facismo, cla ocorre como racionalizacio, Vejamos 0 mecanismo de de- fesa do ego denominado "racionalizago", de um ponto de vista da Psicologia Negativa de Adorno. Nao tem sido incomum a aproximagiio dos conceitos "idcologia” c racionalizago”, objetos da critica 7. TW. Adomo. La personalidad autoritéria, p. 128. 8. Id. Ibid. p.31. is Carono, I Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2),1991 ideolégica no marxismo ¢ da critica psicanalitica, A racionalizagdo foi introduzida na Psicandlise através de Emest Jones para designar a assergzio que preenche certas fungdes na economia psiquica do sujeito de modo a camuflar interesses inconscientes sob censura. A andilise tem por fungaio nao sé estabelecer a sua falsidade e sua necessidade bem como trazcr 3 luz o que estava sendo escondido. No entanto, diz Adomo, a mesma assergiio pode ser julgada como verdadeira ou falsa, dependendo se € criticada do ponto de vista do contexto social ou psicodinamico. ‘A tese de Mandeville de que os vicios privados sto virtudes pablicas significa aqui que se a ra- cionalizago pode ser julgada no contexto psicanalitico como "falsidade” que encobre o irracional censu- ado, cla exprime outra coisa no contexto social, ou seja, a verdade objetiva do todo. "As racionalizagdes silo as cicatrizes da raziio num estado de desrazio"? que nfio denunciam meramente a neurose mas uma sociedade falsa. ‘Vejamos 0 caso da ideologia anti-semita do fascismo, O individuo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vitima 0 perseguidor que o forgava a uma desesperada ¢ legitima defesa... quem é escolhido para inimigo ¢ perccbido como inimigo".! A compulsio para matar a vitima s6 pode ser satisfcita através da racionalizagio que converte o irracional em racional, & a figura da vitima em agressor. Do ponto de vista do contexto social, a compulsiio se tora um exercicio de liberdade civil. O que & 0 comportamento racista numa sociedade racista seniio comportamento ajustado adlequao as normas vigentes? Nao hi contradigio af, mas compatibilidadc, Isso quer dizer que a racionalizagio deve ser analisada de um ponto de vista psicossocial, tanto na sua base subjetiva (pulsdes negadas) como na sua base objetiva (legitimidade numa sociedade da desraziio). Ela aponta tanto para a estrutura psiquica como para a esséneia da socicdade. “Em suas racionalizagSes, que cnvolvem tanto a racionalidade como a irracionalidade, 0 sujeito psico- Vgico deixa de ser meramente psicolégico. O unalista que se envaidece de seu realismo assim se torna um dogmitico no momento em que despreza os aspectos reais ¢ objetivos da racionalizagio em favor de seu contexto psicolégico fechado e imanente”." Se a estrutura psiquica € mediagaio entre a ideologia c a sociedade, isso quer dizer que 0 dominio do psicolégico no pode ser concedido como um dominio auténomo ¢ fechado em si mesmo. Quanto mais estritamente © dominio psicol6gico é concebido como um jogo de forgas auténomo ¢ fecha- do em si mesmo, mais completamente 0 sujeito ¢ esvaziado de sua subjetividade. O sujeito sem objetivo, que & langado sobre si mesmo, congela num objeto. Ele nio pode sair de sua imanéncia ¢ no equivale senio a equagdes da energia libidin: A cstrutura psfquica mediadora porque 6 mediatizada pelas forgas sociais prevalescentes. Nesse sentido, a andlise psicossocial ¢ reveladora do todo. ‘Vejamos agora como o instrumental metodolégico de A Personalidade Autoritéria operacionalizou 0 conceito de ideologia, com vistas a descobrir as configuragdes psicolégicas que a susicntam, Na verdade, foram utilizadas escalas de medigdo de atitudes j existentes (¢ criadas sobretudo por Sanford) para opera- cionalizar as ideologias do Anti-semitismo (AS), Etnocentrismo (E) ¢ Conservadorismo Politico Econdmico (CPE), A hipdtese bisica era a de que esses sistemas ideoldgicos estavam corrclacionados entre sie vinculados a uma estrutura de personalidade denominada de Personalidade Autoritéria, DIGRESSAO TEORICA Enquanto fendmenos psiquicos (opinides, atitudes, valores) as ideologias nao so entidades observdveis ¢ mensuriveis, porque nilo so entidades que possam ser vistas ou tocadas. Mas po- dem sofrer uma espécie de "tradugiio empitica" como acontece com os termos tedricos na Fisica ‘e mesmo na Psicologia, como os termos mentais mediante uma ckiusula de redugaio do tipo 9. T.W. Adomo, Sociology and Psychology I, p. 82. 10. T.W. Adomo & M, llorkhcimer, Dialética do esclarecimento, p. 174-5. I. T.W. Adomo, op. cit. p. 82. 12, 1d. Ibid. p81. 116 Catone, 1 Psicotogia-USP, S, Paulo, 2(1/2),1991 (Vx) (Px—> OQ Nesta fSrmula, P, ¢ P, representam termos obscrvacionais ¢ Q 0 termo teérico a ser definido operacionalmente. A cliusula de redugdo est formalmente presente nas chamadas definigoes operacionais. Deli- nigdcs opcracionais ndo sdo definigdes cxplicitas mas contextuais, vale dizer que nelas 0 termo a ser definido Q esté contido na formula mas nZio como membro de uma cquago na qual aparega como “definiendum", Dessa maneira, o termo te6rico Q no caso, a ideologia do sujeito, serd traduzido empiricamente pelas respostas P, as assergdes postas Py. As assergdes P, tinham um contetido que ndo era claramente idcoldgico de modo que © sujeito pu- desse respondé-las sem usar os habituais controles defensivos do ego (niio se mostrar preconceituoso). As Tespostas as assergdes mediriam, assim, 0 conteiido idcolégico das representagbes dos sujeitos, As assergdes de A $ cram negativas mas sutilmente antisemiticas através de uma modalizagiio cuida- dosa do sentido. As outras escalas seguiram mesmo caminho. ‘Algumas previsdes foram feitas: Os sujeitos de escore alto em AS serdo altos em Ec altos em CPE, Os baixos em A S serdio baixos em E ¢ baixos em C PE, No entanto, 50% dos sujeitos com escore allo em C P E eram médios ou baixos nas duas outras esca- Jas, embora os baixos em C P E nunca fossem altos nas suas outras escalas. Adorno interpretou: nem todos os conservadores em matGria de economia e politica so preconeeituo- ‘sos ou anti-democriticos. Mas aqueles que stio conservadores em matéria de economia e politica e apresen- tam alto grau de cinocentrismo so, provavelmente, os fascistas em potencial. Chamou-os de pscudo- conservadores. Em tiltima andlise, as us escalas iniciais permitiram que Adomo discemisse entre conservadores. Os pscudo-conservadores genuinos ¢ pscudo-convervadores conservadores nio gostam da democracia mas silo convencionais nas suas opinides politicas; no entanto, se a caga &s bruxas for aberta ¢ julgada legitima, eles Jogam fora a casca democratica, ¢ exercem 0 arbitrio como liberdade civil. 2 mente respondente a0 apelo A irracionalidade institucio- Para confirmar os resultados das trés escalas, foi criada a escala de Fascismo. J4 com dados de entre- vistas clinicas-piloto, foi claborada uma escala projetiva que ndo mencionava minorias étnicas e suficiente- mente ambégua para descontrolar os controles do ego e permitir a projegio de "tendéncias anti- democraticas implicitas.” A corroboragdo dos resultados das quatro escalas atitudinais foi buscada em entrevistas clinicas ¢ testes projetivos, com vistas a estudar mediante a interpretagiio analitica, a psicodindmica de alguns sujeitos altos ¢ baixos (de acordo com as escalas anteriores) ‘Nao pretendo analisar aqui a complexa trama das 1,000 paginas de A Personalidade Autoritéria no sentido de criar ¢ testar instrumentos de coleta ¢ andlise quantitaliva qualitativa dos dados, bem como a corroboragio de suas hipéteses pela investigacao clinica, Nem tampouco me reportar ds inéimeras pesquisas subseqlientes para confirmar ou refutar os scus resultados. A discussao metodolégica desse extenso ¢ ousado trabalho que indignou a muitos americanos que jul- garam que Adorno estava atacando 0 alvo errado ao atribuir um "fascismo potencial" para bons cidadios norte-americanos (e nio, para os comunistas, “verdadciros autoritérios"), pode ser concentrada num ponto: a tipologia psicolégica das tendéncias ideol6gicas dos sujcitos estudados. No capitulo 19, Adorno descreveu 11 tipos ¢ sindromes psicoldgicas, divididos entre os sujeitos de alta pontuagJo (6) ¢ baixa pontuagdo (5). Afirmou, entdo: Poucos conceitos da psicologia norte-americana contemporinea tém sido tio criticados como o de tipolo- gia.!3 Refere-se aos psicGlogos que acham que a tipologia nunca capta 0 que 6 tinico © porque as suas gen- cralizagdes nio possuem validade estatistica ¢ nem sequer proporcionam instrumentos heurfsticos produti- vos. Ou seja, tipologias 86 servem para descaracterizar ¢ homogencizar as individualidades. humanas, Adomo justificou, entio, a tipologia de A Personilidade Auoritéria, (1956) de mancira melaneélica: Em outras palavras, aqueles que criticam a tipologia nio devem esquecer que grande ntimero de pessoas 13, T.W. Adomo, La personalidad autortéria. . 679. 117 Carone, 1 Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2),1991 nijo sio j6, seria melhor dizer que nunea foram individuos no sentido que thes dew a filosofia tradicional do século dezenove. Se exisiom aqueles que pensam segundo rétulos, isso se deve unicamente porque os processos sociais subjugadores, obscuros, estandartizadores ¢ rotulantes que praticamente nio dio ao in- dividuo liberdade de ago nem oportunidade de verdadeira individuagao, determinam este modo de pen- sar. . . Temos razdes para buscar tipos psicoldgicos porque o mundo em que vivemos esti tipificado “produz” diferentes “tipos” de pessoas. Apenas mediante a identificagio dos tracos estercotipados do ho- mem modemo e no negando a sua existéncia pode se contrariar a tendéncia pemiciosa para a classifi- cagiio ¢ agrupagio gerais.¢ Ou soja, a tipologia 6 deseritiva no que se refere & homogeneizagao das estruturas psiquicas humanas mas 6 também ¢ sobretudo, uma denincia da sociedade existente. Na verdade, é preciso conhecer os mecanismos sociais ¢ psicoldgicos que produzem esta forma sofisti- cadac ttima da alienagao que é o ndio-individuo ou a ndo-individuatidade que a tipologia denuncia, Subjeti dades reificadas, puros "ids" gravitando no todo totalitario, os individuos da socicdade burguesa so os exem- plos mais refinados de uma brutal hetcronomia a que nenhuma Psicologia Negativa deve se manter insensivel. Vide a descrig20 do processo de des-individuagio em marcha que Adorno Assinala na Dialética do Esclareci- ‘mento, aexpropriagdo psicolégica ca destruigio do individuo enquanto obsticulo A produgiio. 13 ‘O que me faz concluir 0 seguinte: ds criticas & A Personalidade Autoritdria que the atribuem um carter positivista no uso de instrumentos como as escalas de medigao de atituces ea propria escala F, s6 tem deixado deladooessencial: oscucariter eritico mesmo quando descreve, explica ou interpreta os dados de pesquisa. O aparato metodolégico de A Personalidade Autoritdria 6 serve como ponto de partida para scr transcendido pela mediago teérica, que supera os limites impostos pela positividade imediata. A critica ideol6gica do inidividuo 6, nesse sentido, a recupergio do movimento hist6rico através da andlise cortante de suas varias coagulagdes subjetivas. ‘Numa outra vertente do Marxismo, a Escola de Budapest, sobretudo através da obra de Agnes Heller consogue ir mais fundo na questJo do individuo como sujeito moral. Individuo, em Heller, niio € definido como categoria descritiva do real, herdada do liberalismo burgués, mas como idéia reguladora de uma ética socialista, Vale dizer que colocar a nogo de individuo como idéia reguladora ou norma equivale a realizar a critica do individuo existente, quer nas sociedades capitalistas modernas quer nos "socialismos" bu- rocriticos. (1978/79, p. 153-59) Diz Ruy Fausto em "Os limites do Marxismo", 6 por motivos diferentes, as sociedades burocriticas nos obrigam a repensar 0 individuo. Lé nio ¢ a libe- Tago repressiva mas a repressio e a violéncia que colocam 0 problema. Mas mesmo fazendo a abstragio dessas mudangas, & evidente que & impossivel se limitar “a critica do Estado e da sociedade civil. . . Um individuo, te6rico ou homem de agio, se apresenta como anti-autoritério, inimigo da competigao capitalis ta, etc, mas no nivel microssocial (universidade ou trabalho em geral, familia, circulo de amigos, etc.) se mostra como 0 contrério do que parece afirmar ou ser (porque, aprofundando as coisas, 0 seu pensamento ou agio politica revela também 0 que de inicio esta oculto), Uma tal distingao era considerada como um problema menor do ponto de vista clissico que era 0 nosso (digo, o de quase todos nés no Brasil, 1é pelo comego dos anos 60.¢ mesmo depois); coisa de tragos psicolégicos € nao mals, Ora, raciocinar assim 6, se pode dizer, estar atrazado mais de com anos em filosofia. Porque ¢ dai que data a redescoberta de que essa psicologia é na realidade muito mais do que Isto, se se quiser, é ontol6gico, (grifos meus). “A eritica das macrovioléncias ¢ de fato muito pouca coisa, sem critica das microvioléncias. E como se pode falar em hipocrisia moral (propor uma moral que oculta uma politica que 6 0 seu contrério), hoje se pode falar em hipocrisia politica (propSe-se uma politica ocultando uma moral que 6 0 scu contrdrio). Com efeito, que sentido tem fazer a critica da fetichizagao da relagdes no plano macrossocial, se a0 mesmo tempo ~ e 0 que digo pode ser mostrado rigorosamente ~ se fetichizam no plano microsso- cial essas mesmas relagdes?....Critica-se 0 autoritarismo, a competig%o, etc., enquanto sc trata do Estado ou da sociedade civil, mas se admite sem critica ingenuamente, se se pudesse dizer ~ como um dado natu- ral no apenas que hi e sempre haverd certa cmulagio entre os individuos mas que & preciso competir € competir sem maiores “escripulos de consciéneia” — em nome da eficdcia (argumento positive) ¢ da critica do moralismo (argumento negativo). 14, T.W, Adomo, La personalidad auoritéria. p. 678. 15, TW. Adomo & M, Horkhcrmeir Dialética do esclarecimento. p. 189-90. 16. Ruy Fausto, Os limites do marxismo. Folha de Sdo Paulo 10 de abr. 1983, Fothetim, p. 4-5. 118 Carone, I Psicologia-USP, S. Paulo, 2(1/2),1991 Se HELLER (1985) nilo toma “individuo" como categoria psicol6gica ou psicossocial 6 porque no psicologiza a questio ética. esse sentido, 6 preciso pensar com uréncia nos fundamentos teéricos da propria ética, para além das tendéncias reducionistas que equivalem os jufzos éticos aos juizos descritivos dos usos ¢ costumes ou entio, dos niilismos contemporncos que desmoralizam a propria moral, quer no plano social quer no individual. Poder-sc-ia imaginar que ao falar do "individuo" como idéia reguladora de nossas ages no plano macro ou microssocial, estaremos de novo nos referindo ao individuo-do-futuro de Marx ou & humanidade como deveria ser ("homo noumenon” de Kant). Ou soja, que ao tomar “individuo" como idéia reguladora de nossas agdes ¢ ndlo como um conceit empirico, estaremos a falar de uma idéia sem fundamento na sociedade existente, quer capitalista quer socialista, (HELLER, 1984) Heller buscou 0 fundamento empirico dessa idsia reguladora em algo potencial no homem contem- porfinco: as suas inclinagdes ¢ necessidades. Historicamente engendradas (¢ niio naturais), as nossas neces sidades sfio suportes ¢ portadoras da humanidade como deveria ser. Necessidade, nesse sentido, quer dizer "manque et projet": carccemos de formas de sociabilidade melhores que as existentes e buscamos manciras de aluagao politica que satisfagam estas necessidades na sua radicalidade. (HELLER, 1984, p. 21) Os valores morais nilo estilo, pois, dissociados da realidade potencial de nossas aspiragdes, desejos ¢ vontades que buscam a sua plena realizagiio. E mais: essas aspiragdes nao buscam a sua satisfagzio apenas como demanda social e colctiva, dissociadas do arbitrio inidividual. "Individuo" 6, portanto a pessoa que na sua particularidade encarna em si ¢ para si mesma o projeto coletivo de uma sociedade melhor que a exis- tente como realizagao de suas proprias necessidades. Da Escola de Frankfurt A Escola de Budapest, 0 que se busca 6 0 verdadeiro significado do individuo ¢ da critica do individuo para 0 Marxismo, Se em Adomo, 0 individuo nio pode ainda ser pensado como ideal humano ou como destino hist6rico, em Heller o individuo existe potencialmente como agente de ne- cessidades radicais que buscam a sua satisfagZo através da transcendéncia das sociedades existentes. E a dialética da prOpria dialética marxista que allera os scus temas, formas de anilise ¢ perspectivas politicas, colada dinamicamente as transformagdes de nossa modernidade, Como diz FAUSTO, no artigo menciona- do: " Isto basta para que a critica do individuo ganhe siso.” (1983, p.4) CARONE, I. From Frankfurt to Budapest: the paradoxes of a Marxist psychology. Psicologla-USP, Sio Paulo, 2 (1/2): 111-120, 1991. Abstract: The individual's theory is between parentheses, from a marxist point of view. Ultimate goal to be reached by the social praxis, the individual is not yet, rigorously speaking, while arc remaining the impeding conditions to the development of this moulding historical potentiality. For this reason, the Th. Adomo's Social Psychology may be considered as a Negative Psychology because it denounces the human subjectivity reification under the impact of the social capitalist relations. In Agnes Heller's philosophical work, the individual is viewed as an ideal type whose empirical support is found in the new tendencies and needs that are rising up from the man of capitalist modemity. Anyway, the scientifical statute of Psychology is under discussion as its ultimate goal the individual — is not yet historically objectivized. INDEX TERMS: Social psychology. Negative psychology. Individual. Needs. Ideal type. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ADORNO, T. W. Alguns aspectos de la ideologia religiosa relevados por las entrevistas. In: ADORNO, T. W. et alii. La personalidad autoritaria, Trad. Dora Aida Cymbler, Bucnos Aires, Proyeccién, 1965. cap. 18, p. 679-693. ADORNO, T. W. Froudian theory and the pattern of fascist propaganda. In: ARATO, A. & GEBHARDT, E., eds. The ‘essential Frankfurt School reade:. New York, The Continuum P, Company, 1982, p. 118-37. ADORNO, T. W. et alii (1956). La personalidad autoritaria, Trad. Dora © Aida Cymbler. 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