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Jorge Edwards

O INÚTIL
DA FAMÍLIA

tradução e notas de
Helder Moura Pereira

A S S Í R I O & A LV I M
www.assirio.pt

TÍTULO ORIGINAL: EL INÚTIL DE LA FAMILIA

© JORGE EDWARDS, 2004


PUBLICADO POR ACORDO COM
A AGÊNCIA LITERÁRIA MICHAEL GAEB / BERLIM
© ASSÍRIO & ALVIM
RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA

EDIÇÃO 1237, JUNHO 2008


ISBN 978-972-37-1346-6
Joaquín Edwards Bello, a personagem principal deste livro,
não é uma invenção minha. Como é sabido por toda a gente no
Chile, Joaquín Edwards Bello teve existência real. Nasceu em
Valparaíso em 1887 e morreu em Santiago no início de 1968.
Era filho de Joaquín Edwards Garriga, o irmão mais velho do
meu avô paterno, e, por conseguinte, primo-irmão do meu pai e
meu tio em segundo grau. Pelo lado materno era bisneto de An-
drés Bello, o bisavô de pedra, como ele ousara baptizá-lo, mem-
bro destacado dos nossos panteões de homens ilustres, das nos-
sas estátuas, dos nossos monumentos republicanos de pedra,
mármore e bronze. Joaquín, o meu tio, foi romancista, contista,
ensaísta e autor durante várias décadas de uma crónica semanal
na edição de quinta-feira do jornal La Nación. Os seus roman-
ces, e cito, entre outros, Criollos en Paris, El chileno en Madrid,
El Roto, La chica del Crillón, Valparaíso, fantasmas, tiveram edi-
ções sucessivas e às quintas-feiras La Nación era avidamente pro-
curado pelos leitores. Os jovens de hoje continuam a ler Ed-
wards Bello com evidente gosto e admiração, pois intuíram que
ele se situa para lá do tempo e será sempre um deles. Era um es-
critor politicamente incorrecto, desdenhoso da Academia, mas
de pena incisiva, com um ritmo ágil e nervoso, de visões fulgu-
rantes e amiúde contraditórias. As suas leituras, as suas grandes
paixões literárias, eram tão variadas, desconcertantes e contradi-
tórias como a sua própria escrita. No tempo da sua infância, nos
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últimos anos do século XIX em Valparaíso, devorou Emilio Sal-


gari e Ponson du Terrail. Sentiu sempre um enorme fascínio pe-
las façanhas de Rocambole e não é por acaso que, em certa me-
dida, ele pode ser considerado um autor rocambolesco. As grandes
paixões da sua juventude foram Guy de Maupassant, o Émile
Zola de Nana, romance cujas cenas finais, as da morte de Nana no
Grande Hotel de Paris, recordou sempre ao longo da vida, e Paul
Bourget. Depois descobriu Stendhal e nunca mais o abandonou.
E chegou a identificar-se de modo exaltado e caloroso com algu-
mas personagens de Eça de Queirós, sobretudo com Fradique
Mendes e o Primo Basílio, circunstância que o levou a escrever
uma curiosa Fantasía Portuguesa, com o título bem expressivo de
Don Juan Lusitano. Joaquín, diga-se, nunca foi indiferente ao mito
de Don Juan, como demonstra esse seu opúsculo e muitas outras
páginas que lhe dedicou. Acrescentarei que foi Prémio Nacional
de Literatura e Prémio Nacional de Jornalismo, o único caso na
história das letras chilenas em que ambos os galardões recaíram so-
bre a mesma pessoa. Em resumo, Joaquín Edwards Bello, o meu
tio Joaquín, tio em segundo grau, como já disse, para ser o mais
exacto possível, e figura real, histórica, foi um rebelde, um franco-
-atirador, de certo modo um maldito que, apesar disso e com o
tempo, acabou por obter reconhecimento oficial desse Chile que
amava tanto como odiava. Além disso, e acima de tudo, desde o
seu primeiro romance, El inútil, publicado em 1910 e causador de
tanto escândalo, conquistou o reconhecimento e a adesão entu-
siasmada, incondicional, de inúmeros leitores, que também exis-
tem, como já afirmei, no Chile actual.
Joaquín desafiou a família Edwards, a sua e a minha, num
tempo em que não era nada fácil desafiá-la. Mas, para além disso,
foi irreverente em relação a todos os poderes estabelecidos, o que
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o levou a ter de viver como um ser à parte, um marginal, um ex-


cêntrico. Pouco antes de completar 81 anos, e apesar de ter en-
contrado uma forma de estabilidade e mesmo de felicidade na
vida doméstica, decidiu preparar com o máximo cuidado o seu
suicídio. No princípio, quando eu próprio comecei a escrever,
nesses meus anos de escritor ainda inédito e meio clandestino, às
escondidas da autoridade paterna, o fantasma de Joaquín, que es-
tava vivo e residia em Santiago, mas que a família não frequen-
tava e nem sequer mencionava, pairava de certa forma entre nós.
Ocupava um espaço mental em segundo plano, de contornos
pouco definidos. Costumava entrevê-lo, à personagem de carne e
osso, quero eu dizer, na penumbra dos fundos de uma livraria ou
a andar pelas ruas do centro da cidade, pela Huérfanos, pela
Ahumada, pela rua de San Antonio, e agora compreendo porque
nunca me atrevi a acercar-me dele. Andava sempre ou quase sem-
pre sozinho, vestido de tweed, com um chapéu inglês de que des-
pontava uma pena esverdeada. Caminhava com o olhar cravado
num ponto indefinido, fixo, como se estivesse ausente, e era coisa
sabida por qualquer leitor seu que não gostava de ser olhado e
que, se alguém o fizesse, era capaz de ouvir algo desagradável.
Desde esse tempo, penso que a sua vocação de escritor, que se
manifestou nos primeiros anos do século XX, num contexto so-
cial ultra-reaccionário e no interior de uma família poderosa, na
qual, embora pertencesse a um dos seus ramos mais bem instala-
dos, fazia figura de segundo plano e parente pobre, se tornou um
destino, e um destino bem trágico. A história que narro neste li-
vro, por conseguinte, é a de um herói trágico, alguém que sempre
fui seguindo com os olhos abertos, com uma atenção apaixonada
e não raras vezes abismada. É, em certa medida, a minha própria
história, mas senti por mais de uma vez, embora só agora me
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atreva a reconhecer isso, que o sacrifício de Joaquín contribuiu de


algum modo, de forma indirecta e em certo sentido misteriosa,
para tornar mais fácil o meu próprio caminho. E isto apesar de
quase nunca nos termos cruzado. Estamos no território de um
mito pessoal, mas a verdade é que também sabemos que o mito,
como escreveu um poeta do século passado, é o nada que é tudo.
Os romances de Joaquín contêm fortes elementos autobio-
gráficos, ancorados em zonas profundas da memória, profundas
e por vezes algo escorregadias. Tratei, por isso, as suas persona-
gens de ficção como auto-retratos parciais, confissões entrevistas
na invenção romanesca. Por outro lado, a biografia, a autobio-
grafia, a memória pessoal, foram alteradas na minha escrita por
intromissões ficcionais. No entanto, a verdade biográfica triun-
fou quase sempre sobre a chamada mentira romanesca. Mentira
que, diga-se, na sua luz e nas suas sombras, é uma forma única,
insubstituível, de transmitir parcelas de verdade nos seus matizes
mais diversos. Existiu, portanto, o primo Joaquín do meu pai,
ou, se se preferir, o meu tio Joaquín, e também existiram, em-
bora de outro modo, Eduardo Briset Lacerda, Pedro Plaza, Pedro
Wallace, el Azafrán, el Curriquiqui, Teresa Iturrigorriaga e o te-
mível Esmeraldo. Não faço nem pretendo fazer crítica literária
formal, mas transmito anotações de leitura e, por vezes, finalizo
episódios romanescos, como se os romances de Joaquín, em vez
de surgirem terminados em si mesmos, criassem espaços abertos
e transitáveis. São liberdades que me permito sem demasiado res-
peito pelos limites de um género ou de outro e apenas pelo sen-
tido do jogo. Ao fim e ao cabo, a arte é jogo, e o que aqui trago,
como podereis ver logo a partir do primeiro capítulo, é o retrato
de um jogador. Porque o texto funciona como um vasto parênte-
sis: abre com uma manhã desgraçada no Hipódromo do Chile,
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que funciona como prenúncio do fim, fecha com o final suicida


seguido de uma breve coda ou cauda, e no meio, isto é, no inte-
rior do enorme parêntesis, conta-se toda a história, desde a in-
fância no Valparaíso do século XIX, com uma ou outra persona-
gem secundária que conheci de perto e certos pormenores da
minha própria história, integrados à maneira de vinheta, entre-
mez ou conto intercalado.
Devo informar o leitor, para sua compreensão do primeiro
capítulo, aquele que abre o parêntesis, que o Hipódromo do
Chile é uma pista de terra batida onde se realizam corridas de ca-
valos na parte da manhã. Agora os horários são outros, mas na
época do primeiro capítulo, o mesmo é dizer, na época dos últi-
mos anos de vida de Joaquín, havia corridas de cavalos todos os
domingos de manhã. Assisti por vezes com o meu pai, Sergio
Edwards Yrarrázaval, entusiasta incondicional ao longo de toda a
sua vida, a essas corridas, mas tenho a sensação de que o seu
primo Joaquín, marginal, auto-excluído, vivendo na sombra, não
frequentava então a tribuna dos sócios. O Hipódromo do Chile
está situado no bairro popular da Independencia, não muito
longe do Cemitério Central, relativamente perto do fim da rua
de Santo Domingo, onde vivia Joaquín, nesse tempo em que vi-
ver era muito mal visto, precisamente por pessoas como o meu
pai. A toda a volta, mas sobretudo a partir da tribuna dos sócios,
o Hipódromo, que se situa acima dos bairros pobres das cerca-
nias, abre-se sobre uma paisagem magnífica da cordilheira dos
Andes, muito mais nítida no tempo do meu pai e de Joaquín,
quando a contaminação não envenenara ainda o ar da cidade.
O episódio narrado por mim, de que tive conhecimento de fonte
segura, mas cujos pormenores fui eu a imaginar, deve ter ocorrido
provavelmente dez anos antes do suicídio de Joaquín, em 1958
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ou 1959, na fase final do mandato do general Carlos Ibañez del


Campo ou no início da presidência de Jorge Alessandri. Eram
tempos sombrios, de mediocridade galopante, tempos que pare-
ciam tranquilos e eram, no fundo, terríveis. E continham já, em-
bora nem todos o percebessem, características bem visíveis de
premonição: estavam cheios de sinais que não era ainda possível
interpretar em toda a sua extensão, movimentos e deslocamentos
subterrâneos, alterações dramáticas, repentinas. Isto apesar de se
dizer insistentemente em toda a parte, e das maneiras mais diver-
sas, que no Chile nunca se passava nada, que o Chile estava fora
do mundo. Nunca se passava nada e, no entanto, muita coisa se
passava, e iria passar-se. Havia processos obscuros, ajustes geoló-
gicos, ruídos e tremores de toda a espécie, e não se estava longe da
época dos grandes cataclismos.

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