Primeiras páginas do livro «O Inútil da Família», do escritor chileno Jorge Edwards (tradução para português de Helder Moura Pereira, edição Assírio & Alvim — 2008).
Primeiras páginas do livro «O Inútil da Família», do escritor chileno Jorge Edwards (tradução para português de Helder Moura Pereira, edição Assírio & Alvim — 2008).
Direitos autorais:
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Primeiras páginas do livro «O Inútil da Família», do escritor chileno Jorge Edwards (tradução para português de Helder Moura Pereira, edição Assírio & Alvim — 2008).
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ISBN 978-972-37-1346-6 Joaquín Edwards Bello, a personagem principal deste livro, não é uma invenção minha. Como é sabido por toda a gente no Chile, Joaquín Edwards Bello teve existência real. Nasceu em Valparaíso em 1887 e morreu em Santiago no início de 1968. Era filho de Joaquín Edwards Garriga, o irmão mais velho do meu avô paterno, e, por conseguinte, primo-irmão do meu pai e meu tio em segundo grau. Pelo lado materno era bisneto de An- drés Bello, o bisavô de pedra, como ele ousara baptizá-lo, mem- bro destacado dos nossos panteões de homens ilustres, das nos- sas estátuas, dos nossos monumentos republicanos de pedra, mármore e bronze. Joaquín, o meu tio, foi romancista, contista, ensaísta e autor durante várias décadas de uma crónica semanal na edição de quinta-feira do jornal La Nación. Os seus roman- ces, e cito, entre outros, Criollos en Paris, El chileno en Madrid, El Roto, La chica del Crillón, Valparaíso, fantasmas, tiveram edi- ções sucessivas e às quintas-feiras La Nación era avidamente pro- curado pelos leitores. Os jovens de hoje continuam a ler Ed- wards Bello com evidente gosto e admiração, pois intuíram que ele se situa para lá do tempo e será sempre um deles. Era um es- critor politicamente incorrecto, desdenhoso da Academia, mas de pena incisiva, com um ritmo ágil e nervoso, de visões fulgu- rantes e amiúde contraditórias. As suas leituras, as suas grandes paixões literárias, eram tão variadas, desconcertantes e contradi- tórias como a sua própria escrita. No tempo da sua infância, nos 8 J o r g e E d wa r d s
últimos anos do século XIX em Valparaíso, devorou Emilio Sal-
gari e Ponson du Terrail. Sentiu sempre um enorme fascínio pe- las façanhas de Rocambole e não é por acaso que, em certa me- dida, ele pode ser considerado um autor rocambolesco. As grandes paixões da sua juventude foram Guy de Maupassant, o Émile Zola de Nana, romance cujas cenas finais, as da morte de Nana no Grande Hotel de Paris, recordou sempre ao longo da vida, e Paul Bourget. Depois descobriu Stendhal e nunca mais o abandonou. E chegou a identificar-se de modo exaltado e caloroso com algu- mas personagens de Eça de Queirós, sobretudo com Fradique Mendes e o Primo Basílio, circunstância que o levou a escrever uma curiosa Fantasía Portuguesa, com o título bem expressivo de Don Juan Lusitano. Joaquín, diga-se, nunca foi indiferente ao mito de Don Juan, como demonstra esse seu opúsculo e muitas outras páginas que lhe dedicou. Acrescentarei que foi Prémio Nacional de Literatura e Prémio Nacional de Jornalismo, o único caso na história das letras chilenas em que ambos os galardões recaíram so- bre a mesma pessoa. Em resumo, Joaquín Edwards Bello, o meu tio Joaquín, tio em segundo grau, como já disse, para ser o mais exacto possível, e figura real, histórica, foi um rebelde, um franco- -atirador, de certo modo um maldito que, apesar disso e com o tempo, acabou por obter reconhecimento oficial desse Chile que amava tanto como odiava. Além disso, e acima de tudo, desde o seu primeiro romance, El inútil, publicado em 1910 e causador de tanto escândalo, conquistou o reconhecimento e a adesão entu- siasmada, incondicional, de inúmeros leitores, que também exis- tem, como já afirmei, no Chile actual. Joaquín desafiou a família Edwards, a sua e a minha, num tempo em que não era nada fácil desafiá-la. Mas, para além disso, foi irreverente em relação a todos os poderes estabelecidos, o que O I n ú t i l d a Fa m í l i a 9
o levou a ter de viver como um ser à parte, um marginal, um ex-
cêntrico. Pouco antes de completar 81 anos, e apesar de ter en- contrado uma forma de estabilidade e mesmo de felicidade na vida doméstica, decidiu preparar com o máximo cuidado o seu suicídio. No princípio, quando eu próprio comecei a escrever, nesses meus anos de escritor ainda inédito e meio clandestino, às escondidas da autoridade paterna, o fantasma de Joaquín, que es- tava vivo e residia em Santiago, mas que a família não frequen- tava e nem sequer mencionava, pairava de certa forma entre nós. Ocupava um espaço mental em segundo plano, de contornos pouco definidos. Costumava entrevê-lo, à personagem de carne e osso, quero eu dizer, na penumbra dos fundos de uma livraria ou a andar pelas ruas do centro da cidade, pela Huérfanos, pela Ahumada, pela rua de San Antonio, e agora compreendo porque nunca me atrevi a acercar-me dele. Andava sempre ou quase sem- pre sozinho, vestido de tweed, com um chapéu inglês de que des- pontava uma pena esverdeada. Caminhava com o olhar cravado num ponto indefinido, fixo, como se estivesse ausente, e era coisa sabida por qualquer leitor seu que não gostava de ser olhado e que, se alguém o fizesse, era capaz de ouvir algo desagradável. Desde esse tempo, penso que a sua vocação de escritor, que se manifestou nos primeiros anos do século XX, num contexto so- cial ultra-reaccionário e no interior de uma família poderosa, na qual, embora pertencesse a um dos seus ramos mais bem instala- dos, fazia figura de segundo plano e parente pobre, se tornou um destino, e um destino bem trágico. A história que narro neste li- vro, por conseguinte, é a de um herói trágico, alguém que sempre fui seguindo com os olhos abertos, com uma atenção apaixonada e não raras vezes abismada. É, em certa medida, a minha própria história, mas senti por mais de uma vez, embora só agora me 10 J o r g e E d wa r d s
atreva a reconhecer isso, que o sacrifício de Joaquín contribuiu de
algum modo, de forma indirecta e em certo sentido misteriosa, para tornar mais fácil o meu próprio caminho. E isto apesar de quase nunca nos termos cruzado. Estamos no território de um mito pessoal, mas a verdade é que também sabemos que o mito, como escreveu um poeta do século passado, é o nada que é tudo. Os romances de Joaquín contêm fortes elementos autobio- gráficos, ancorados em zonas profundas da memória, profundas e por vezes algo escorregadias. Tratei, por isso, as suas persona- gens de ficção como auto-retratos parciais, confissões entrevistas na invenção romanesca. Por outro lado, a biografia, a autobio- grafia, a memória pessoal, foram alteradas na minha escrita por intromissões ficcionais. No entanto, a verdade biográfica triun- fou quase sempre sobre a chamada mentira romanesca. Mentira que, diga-se, na sua luz e nas suas sombras, é uma forma única, insubstituível, de transmitir parcelas de verdade nos seus matizes mais diversos. Existiu, portanto, o primo Joaquín do meu pai, ou, se se preferir, o meu tio Joaquín, e também existiram, em- bora de outro modo, Eduardo Briset Lacerda, Pedro Plaza, Pedro Wallace, el Azafrán, el Curriquiqui, Teresa Iturrigorriaga e o te- mível Esmeraldo. Não faço nem pretendo fazer crítica literária formal, mas transmito anotações de leitura e, por vezes, finalizo episódios romanescos, como se os romances de Joaquín, em vez de surgirem terminados em si mesmos, criassem espaços abertos e transitáveis. São liberdades que me permito sem demasiado res- peito pelos limites de um género ou de outro e apenas pelo sen- tido do jogo. Ao fim e ao cabo, a arte é jogo, e o que aqui trago, como podereis ver logo a partir do primeiro capítulo, é o retrato de um jogador. Porque o texto funciona como um vasto parênte- sis: abre com uma manhã desgraçada no Hipódromo do Chile, O I n ú t i l d a Fa m í l i a 11
que funciona como prenúncio do fim, fecha com o final suicida
seguido de uma breve coda ou cauda, e no meio, isto é, no inte- rior do enorme parêntesis, conta-se toda a história, desde a in- fância no Valparaíso do século XIX, com uma ou outra persona- gem secundária que conheci de perto e certos pormenores da minha própria história, integrados à maneira de vinheta, entre- mez ou conto intercalado. Devo informar o leitor, para sua compreensão do primeiro capítulo, aquele que abre o parêntesis, que o Hipódromo do Chile é uma pista de terra batida onde se realizam corridas de ca- valos na parte da manhã. Agora os horários são outros, mas na época do primeiro capítulo, o mesmo é dizer, na época dos últi- mos anos de vida de Joaquín, havia corridas de cavalos todos os domingos de manhã. Assisti por vezes com o meu pai, Sergio Edwards Yrarrázaval, entusiasta incondicional ao longo de toda a sua vida, a essas corridas, mas tenho a sensação de que o seu primo Joaquín, marginal, auto-excluído, vivendo na sombra, não frequentava então a tribuna dos sócios. O Hipódromo do Chile está situado no bairro popular da Independencia, não muito longe do Cemitério Central, relativamente perto do fim da rua de Santo Domingo, onde vivia Joaquín, nesse tempo em que vi- ver era muito mal visto, precisamente por pessoas como o meu pai. A toda a volta, mas sobretudo a partir da tribuna dos sócios, o Hipódromo, que se situa acima dos bairros pobres das cerca- nias, abre-se sobre uma paisagem magnífica da cordilheira dos Andes, muito mais nítida no tempo do meu pai e de Joaquín, quando a contaminação não envenenara ainda o ar da cidade. O episódio narrado por mim, de que tive conhecimento de fonte segura, mas cujos pormenores fui eu a imaginar, deve ter ocorrido provavelmente dez anos antes do suicídio de Joaquín, em 1958 12 J o r g e E d wa r d s
ou 1959, na fase final do mandato do general Carlos Ibañez del
Campo ou no início da presidência de Jorge Alessandri. Eram tempos sombrios, de mediocridade galopante, tempos que pare- ciam tranquilos e eram, no fundo, terríveis. E continham já, em- bora nem todos o percebessem, características bem visíveis de premonição: estavam cheios de sinais que não era ainda possível interpretar em toda a sua extensão, movimentos e deslocamentos subterrâneos, alterações dramáticas, repentinas. Isto apesar de se dizer insistentemente em toda a parte, e das maneiras mais diver- sas, que no Chile nunca se passava nada, que o Chile estava fora do mundo. Nunca se passava nada e, no entanto, muita coisa se passava, e iria passar-se. Havia processos obscuros, ajustes geoló- gicos, ruídos e tremores de toda a espécie, e não se estava longe da época dos grandes cataclismos.