Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
O presente artigo aborda o retrato pintado, e tem como objetivo mostrar que a
imagem retratada surge na tela como um “outro”, como um “alguém” indeterminado,
que deixa de ter uma relação direta com o modelo do quadro. Para tal estudo, toma-se
como referência a noção de neutro em Maurice Blanchot, que se desdobra na noção
de fora ou exterior. Ambas contribuem para um entendimento da impessoalidade da
imagem retratada, que se desvincula de seu referente, tornando-se, dessa forma, um
retrato de ninguém.
Palavras-chave: retrato, impessoalidade, neutro, intimidade, outro
Alguém é o que ainda está presente quando não há ninguém. Aí onde estou
só, não estou aí, não existe ninguém, mas o impessoal está: o lado de fora,
como aquilo que antecipa e precede, dissolve toda a possibilidade de
relação pessoal. Alguém é o Ele sem fisionomia, o coletivo impessoal [on] de
que se faz parte, mas quem faz parte dele? Nunca tal ou tal indivíduo, nunca
tu e eu. Ninguém participa do coletivo impessoal [on], que é uma região
impossível de trazer para a luz, não porque oculte um segredo estranho à
toda revelação, nem mesmo porque seja radicalmente obscura, mas porque
transforma tudo o que lhe tem acesso, inclusive a luz no ser anônimo,
impessoal, o Não verdadeiro, o Não real e, entretanto, sempre presente. O
coletivo impessoal [on] é, sob essa perspectiva, o que aparece mais de perto
3
quando se morre.
3
BLANCHOT, 2011, p. 23
estudo. Para o autor, a literatura e a imagem caminham juntas. Desta forma, como ele
vincula o espaço literário ao imaginário, torna-se coerente trazer seu pensamento da
escrita para o campo das imagens, e nesse caso específico, dos retratos.
Para Blanchot, escrever “é passar do Eu ao Ele, de modo que o que acontece
não acontece a ninguém [...]” 4, ou seja, ainda que o escritor escreva na primeira
pessoa, aquele que vive os acontecimentos escritos é um outro, o “eu” do escritor se
transforma em um “ele”, em um “alguém” impessoal, como nos mostra Tatiana Salem-
Levy:
4
BLANCHOT, 2011, p. 25-26
5
LEVY, 2011, p. 40
6
BLANCHOT, 2010, p. 147-148
rosto neutro. Sim, podemos dizer que aquele representado na tela, o sujeito do
retrato, se torna “ninguém”.
No retrato o tempo também é desdobrado, é suspenso, e o momento fixado na
tela está sempre recomeçando, ou seja, o retratado não é ainda, ele está em sua
indeterminação original, sempre em devir, e é isso que o faz não coincidir com seu
modelo e se configurar como um “outro”.
Dessa forma, também podemos pensar o neutro no retrato: ao ver nosso
próprio retrato também sentimos essa passagem do “eu” ao “ele”, a imagem retratada
se torna um “outro” rosto, um ser anônimo. E assim é com todo retrato: aquele que
figura na tela deixa de ser uma pessoa determinada para se tornar um alguém
indeterminado – neutro.
Esse “outro” que o retrato apresenta não remete ao seu modelo: sua realização
só é possível em si mesmo, ou seja, no retrato, na imagem, da mesma forma como
Tatiana Salem Levy nos fala da Literatura: “A coisa nomeada pela literatura não é a
imitação de algo que existe no mundo, mas sua própria realização”. 8 Do mesmo modo
podemos pensar que uma imagem retratada não é a imitação de uma pessoa, ela
ganha autonomia: quem está ali retratado é “alguém”, que carrega consigo sua
impessoalidade.
Ao olhar meu autorretrato senti como se aquele ali retratado fosse um
estrangeiro, um intruso, um desconhecido que se escondia atrás de um véu de
identificação comigo, véu esse que, entretanto, não encobria sua autonomia em
7
BLANCHOT, 2010, p. 149
8
LEVY. 2011, p. 22
relação a mim. “[...] eu como outro que eu, aquilo que em mim não coincide comigo,
minha eterna ausência [...]”9.
Podemos pensar no sujeito retratado como um intruso em relação ao sujeito
do seu modelo, pois aquele apresenta aquilo que não coincide com este, sua eterna
ausência, e é isso que torna sua imagem um “outro”.
Segundo Blanchot, o neutro não é um terceiro gênero que se opõe aos dois
outros, ele não se distribui em nenhum gênero, e sim, ele é totalmente um outro
termo. Nesse sentido, torna-se impossível defini-lo: “[...] nomear o neutro é talvez, é
10
certamente, dissipá-lo” . Um de seus traços essenciais é o de não se deixar
apreender, e de “lançar-nos num tipo totalmente outro de relação”11.
A noção de neutro perpassa toda a obra de Blanchot, e adquire ao longo desta,
diversos nomes: é por ele chamada também de deserto, desastre, fora, exterior,
impossibilidade.
Vamos nos ater aqui à noção de fora, também designada por Blanchot de
exterior, que é, segundo ele, o desdobramento do mundo em uma outra versão, que
não nega nem elimina o mundo como o conhecemos, mas coexiste com ele – o mundo
imaginário.
Para o autor, o fora, na perspectiva da Literatura, é a sua própria realidade. Não
é apenas designativa e subordinada à nossa realidade cotidiana, e sim, se realiza na
própria linguagem. Para entrar em contato com a experiência do fora, é preciso que o
“eu” não exista mais, e sim o “outro”, o “ele”. Essa noção é também designada por
Blanchot de exterior.
Vemos então que a noção de fora está intrinsecamente ligada com a de neutro
em Blanchot. São indissociáveis, são diferentes nomes para se dizer o mesmo: o
apagamento do “eu” e seu trânsito ao “ele”:
Os retratos nos apresentam rostos neutros, anônimos, cuja imagem está
sempre além ou aquém do modelo que retrata, não se fixa nesse modelo, mas está
fora dele, e nos acena desse fora, como um estrangeiro, um intruso.
9
BLANCHOT, 1980, p. 42
10
BLANCHOT, 2010, p. 165
11
BLANCHOT, 2010, p. 165
Podemos pensar o retrato com relação a seu modelo como esse fora, como a
região em que nos é permitido o contato com a outra versão da pessoa retratada.
A imagem retratada sai de si própria, e é isso que a configura como um ‘outro’.
Ela pertence ao exterior, e por mais que pareça estar presente, perto, dentro do
quadro, está ausente, distante, radicalmente fora do nosso alcance, como nos mostra
Blanchot ao dizer que:
12
BLANCHOT, 2005, p. 19
13
AGAMBEN, 2013
14
AGAMBEN, 2013, p. 64
15
AGAMBEN, 2013, p. 64
16
NANCY, 2000a. Essa e as demais traduções da língua francesa do presente texto foram feitas pela
autora.
[...] pintar ou retratar em um sentido primeiro é justamente tirar. Ou
ordenhar [traire], fazer sair: tal é o primeiro valor do traço. O traço é, a
princípio, ex-traço. A pintura é a extração do traço. [...]. Retratar é tirar a
presença para fora – seja ela presença de uma ausência.17
Mas essa intimidade que o retrato extrai, quando lançada para fora se rompe,
passa a ser a intimidade de um “outro”, não está mais atrelada à pessoa retratada.
Talvez seja esse o motivo que nos provoca um estranhamento quando diante de um
retrato, como provocou em mim: vemos a imagem da pessoa, vemos algo de sua
intimidade, no entanto, tanto sua imagem quanto sua intimidade parecem não mais
coincidir com o modelo; parecem já pertencer a um “outro”.
Blanchot também aborda essa intimidade que vai de encontro ao exterior,
como algo próprio das imagens, da sua ambiguidade:
17
NANCY, 2000a, p. 50-51.
18
NANCY, 2003, p. 16.
A imagem fala-nos, e parece que nos fala intimamente de nós. Mas
intimamente é muito pouco; intimamente designa então esse nível em que
a intimidade da pessoa se rompe e, nesse movimento, indica a vizinhança
ameaçadora de um exterior vago e vazio que é o fundo sórdido sobre o qual
19
ela continua afirmando as coisas em seu desaparecimento.
19
BLANCHOT, 2011, p. 278
Referências
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.