Você está na página 1de 90
CTT IT e- Se tC ag A OMA) VM aT OS lp rir oR A FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA LNFORMAGAO Orlandi, Eni Puccinelli, 1942- Orsf As formas do siléncio: no movimento dos sentidos / Eni Puccinelli Orlandi, - 6 ed, - Campinas, st: Editorada Unicamp, 2007. 1. Linguagem ~ Filosofia. 2, Silencio. 3. Sentidos ¢ sensagoes. L Titulo. CDD 401 001.56 ISBN 978-85-268-075 5-6 T5260 fndices para catdlogo sistematico: 1. Linguagem—Filosofia 4or 2. Siléncio 001.56 3. Sentidos e sensagées 152.1 Copyright © by Eni Puccinelli Orlandi Copyright © 2007 by Editora da Unicamp 2 reimpresséo, 2011 Nenhuma parte desta publicagio pode ser gravada, armazenada em sistema elettdnico, fotocopiada, reproduzida por meios mecAnicos om outros quaisquer sem autorizagio prévia do editor, Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 - Campus Unicamp CEP 13083-892 — Campinas - sp — Brasil ‘Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 wwweditoraunicamp-br - vendas@editoraunicamp.br Nao hd, 6 gente, 6 nao, luar como este do sertéo... CaTUuLo DA PalxA0 CEARENSE, “Luar do Serta SuMARIO InTRoDUGAO SILENCIO E SENTIDO Os Limites po Métopo & DA OBSERVAGAO. SILENCIO, SUJEITO, HISTORIA SIGNIFICANDO NAS MARGENS .......sssssssssscscsesesstsenseseseeeessensee SILencios E REsisTENCIA Un ESTUDO DA CENSURA..csesssssessssssseesssssscesecassnserectseeeeon SILENCIO, COPIA E REFLEXAO .asssesssssssssssssssstensessseseeess BIBLIOGRAFIA ssvessccassrerovsrevnpssoravsisnvnsrexuvcnescenveies InTRODUGAO I'screver um livro sobre o siléncio apresenta suas di- liculdades. Porque toma-lo como objeto de reflex4o, ¢ colocarmo-nos na relagao do dizivel com o indizi- vel, nos faz correr o risco mesmo de seus efeitos: o de iio saber caminhar entre o dizer e o nao-dizer. De todo moda, ¢ interessante lembrar aqui que, se meu primeiro livro publicado tinha como sub- titulo “As formas do discurso” (Brasiliense, 1983), nao é por acaso que, feito um percurso de reflexdo ¢ escrita, eu tenha chegado a este que, de direito, tem como titulo.As formas do siléncio. O fio condutor deste livro ¢ a apresentagio dos sentidos do siléncio e¢ isso que o estudioso da lingua- gem encontrard aqui desenvolvido com a cautela de quem cuida de explorar os entremeios tanto das disci- plinas como das diferentes teorias da linguagem, procurando no entanto uma especificidade. Acredito que o mais importante ¢ compreender que: 1. hé um modo de estar em siléncio que corres- ponde a um modo de estar no sentido e, de certa ma- neira, as proprias palavras transpiram siléncio. Hd siléncio nas palavras; 2. 0 estudo do silenciamento (que ja nao é siléncio mas “pdr em siléncio”) nos mostra que hé um processo de produgio de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensio do nio-dito absolutamente distinta da que se tem ¢s- tudado sob a rubrica do “implicito”. Vale lembrar que a significagio implicita, segundo O. Ducrot (1972), “aparece — e algumas vezes se da — como sobreposta a uma outra significacao”. Essa distingao que fazemos entre implicito e siléncio estard dita de muitos modos neste nosso trabalho, j4 que, para nds, o sentido do siléncio nao é algo juntado, sobre- posto pela intengao do locutor: hé um sentido no siléncio, O siléncio foi relegado a uma posigio se- cundaria como excrescéncia, como o “resto” da lin- guagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial como condicio do significar, como veremos. Se uma dessas caracteristicas (a 1) livra o siléncio do sentido “passive” e“negativo” que lhe foi atribuido nas formas sociais da nossa cultura, a outra (a2) liga o nao-dizer a histéria ¢ a ideologia. Por outro lado, h4 uma dimensao do siléncio que remete ao cardter de incompletude da linguagera: todo dizer é uma relagio fundamental com 0 nao- dizer. Essa dimensfo nos leva a apreciar a errancia dos sentidos (a sua migragio), a vontade do “um” (da unidade, do sentido fixo), o lugar do non sense, o equivoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do nao-apreensfyel), nado como meros acidentes da linguagem, mas como © cerne mesmo de seu funcionamento. 12. | As FORMAS 00 SLENCIO Movimento, mas também relagao incerta entre inudangae permanénciase cruzam indistintamente iio silencio. Nem um sujeito tao visivel, nem um wentido tao certo, eis o que nos fica 4 m&o quando \profundamos a compreensao do modo de signi- ficar do siléncio. E que chega a nos fazer com- Ee ees preender de modo interessante o que € plo, a censura, vista aqui por ndés nao como um ilaclo que tem sua sede na consciéncia que um i= dividuo tem de um sentido (proibido), ‘mas como um fato produzido pela historia. Pensada através ila nogao de siléncio, como veremos, a propria no- yao de censura se alarga para compreender qual- (uer processo de silenciamento que limite o su- jeito no percurso de sentidos. Mas mostra ao mesmo tempo a forga corrosiva do siléncio que faz significar em outros lugares 0 que nao “vinga” em um lugar determinado. O sentido nao para; ele muda de caminho. O siléncio é assim a “tespiragao” (0 fdlego) da sig- nificagao; um lugar de recuo necessdrio para que se possa significar, para que o sentido faca sentido. Re- duto do posstvel, do multiplo, 0 siléncio abre espago para o que nao é “um”, para o que permite 0 movi- mento do sujeito. O real da linguagem — o discreto, o um — en- contra sua contraparte no siléncio. - O siléncio como horizonte, como iminéncia do sentido, tal como expressamos no corpo de nosso trabalho, aponta-nos que o fora da linguagem nao é o nada mas ainda sentido. ntroougao | 13 Siléncio que atravessa as palavras, que existe en- tre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que ¢ mais impor- tante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e do siléncio nos levam a colocar que o siléncio é “fundante”. Desse modo, nesta nossa reflexio, procuramos indicar as varias pistas pelas quais alcangamos esse principio da significagao: o siléncio como fundador. Paralelamente, aprofunda- mos a andlise dos modos de apagar sentidos, de si- lenciar e de produzir o nao-sentido onde ele mostra algo que ¢ ameaga. Assim, quando dizemos que ha siléncio nas pa- lavras, estamos dizendo que elas sao atravessadas de siléncio; elas produzem siléncio; o siléncio “fala” por clas; elas silenciam. As palavras sao cheias de sentidos a nao dizer e, além disso, colocamos no siléncio muitas delas. Mas hd também um outro aspecto da reflexao so- bre o siléncio que consideramos bastante relevante. Trata-se do fato de que, pela exploragao mesma da capacidade de compreender o siléncio com nossos procedimentos reflexivos, fizemos um percurso pe- la andlise de discurso que nos mostra, por sua;Vvez, ° a fungio e o alcance de alguns de seus conceitos, assim como nos permite avaliar melhor seu espago tedrico ea historia de seu desenvolvimento. Isso se deve talvez ao fato de que, procurando entender a materialidade simbdlica espectfica do silencio, pudemos alargar a compreensao da nossa relagdo com as palavras. Esse lago, assim compreen- 1 | as FoRtas 00 SILENCIO ilido, indica-nos que nao estamos nas palavras para lular delas, ou de seus “contetidos”, mas para falar ‘om elas, Se assim podemos passar de palavras para \ Imagens (relagio do verbal com a metéfora), fa- vemos ainda outra passagem mais radical, passan- ilo das palavras para o “jogo”. E nessa dimensao do \iynilicar, como jogo de palavras, em que importa jiuis a remissao das palavras para as palavras — des- inontando a nogao de linearidade e a que centra o wentido nos “contetidos” —, que o siléncio faz sua entrada. © nao-um (os muitos sentidos), o efeito ilo um (0 sentido literal) ¢ o (in)definir-se na re- lagiio das muitas formacées discursivas tém no si- léncio © seu ponto de sustentagio. Desse modo é que se pode considerar que todo discurso j4 é uma (ala que fala com outras palavras, através de outras palavras.’ Com efeito, através da reflexao sobre o siléncio, rellexdo que tem como base a formulagao de ques- \6cs que pensassem o “nao-dito” discursivamente, para que se tornasscm visiveis aspectos deste que nao aparecem no tratamento lingitistico ou prag- matico dado a ele, também alguns aspectos da ana- lise de discurso se tornaram mais claros. Uma observacao se imp6e para situar um ponto essencial dessa relacéo de meu trabalho sobre o si- léncio ¢ a compreensio de certo percurso tedrico da andlise de discurso. Embora a condigao do significar 1 Sem esquecer que, da perspectiva discursiva, as palavras jé sio sempre discursos, na sua relagao com os sentidos. wiropucao | 15 seja o imaginatio — do sujeito e do sentido —, paraa andlise de discurso hé real (mesmo que para isso seja preciso distinguir diferentes tipos de “real”, segun- do Paécheux, 1983). E nessa relacio do imagindrio com o real que podemos apreender a especificidade da materialidade do siléncio, sua opacidade, seu tra- balho no processo de significacao. Ea partir desse ponto de vista que gostariamos de situar algumas questdes fundamentais para quem trabalha com o discursivo. Nao devemos, por outro lado, esquecer que, embora as nogdes de imagindrio, real e sim- bélico estejam definidas como tal no campo da psicandlise, o modo como a andlise de discurso vai articular essas trés nodes é proprio de seu campo especifico. Essa especificidade esta em que a articula- gio dessas trés nogdes se da, na andlise de discurso, em relagao a ideologia ¢ 4 determinagao historica ¢ nfo ao inconsciente, como é 0 caso da psicandlise. Isso produz um certo deslocamento no modo de pensar essas nogdes em suas posigdes relativas, pars ticularmente em relagao ao que a andlise de dis- curso trata no dominio do imagindrio e dos efeitos da evidéncia, produzidos pelos mecanismos ide as légicos. Tomando Pécheux como referéncia basica para entender a andlise de discurso da escola francesa, podemos dizer que o que singulariza 0 pensamento desse autor, c estabelece conseqiientementea susten- tacio fundamental da andlise de discurso, ¢ 0 lugar particular que ele daa lingua, de um lado, em rela- cio aideologia, que ele trata no dominio conceptual 16 | AS FoRMAS 00 siLencio ‘lo “interdiscurso’, e, de outro, ao inconsciente, na iehijio da lingua com o que seria a alangue (Lacan) : (le que Pécheux nao trata especificamente* em seu \iabatho, j& que ele visa justamente o outro lado des- 1 1elagdo: o discurso como lugar de contato entre linpuae ideologia. Isso Ihe permite conccber, diferentemente das cién- ‘lav sociais, o que é e como funciona a ideologia (pela jvo-transparéncia da linguagem: leia-se pela tomada vin consideragao da materialidade lingitistica), ao iiesmo tempo em que desloca 0 conceito de lingua ei sua autonomia absoluta (como ¢ vista na lingitis- \iea) para a autonomia relativa (pensando a mate- i\alidade histérica). Daf sera andlise de discurso por tle proposta distinta da andlise de contetido e da initlise lingiifstica, O funcionamento do siléncio atesta o movimen- io do discurso que se faz na contradigio entre o ium” eo “multiplo”, o mesmo e o diferente, entre purdfrase e polissemia. Esse movimento, por sua vez, mostra o movimento contraditério, tanto do wujcico quanto do sentido, fazendo-se no entremeio entre a ilusao de um sentido sé (cfeito da relagao com o interdiscurso) ¢ 0 equivoco de todos os sen- tidos (efeito da relagao com a /alangue). Embora iio trabalhasse, como trabalhamos, com 0 siléncio, Pécheux conduziu com maestria, ao longo de sua M, Pécheux (2969, p. 110): “Nous soulignons encore une fois que la ildorie du discours ne peut en aucune fagon se substituer A une théorie le Pidéologie, pas plus qu’a une théorie de Finconscient, mais quelle peut initervenir dans le champ de ces théories’. wiroougao | 17 teflexdo, a consideragao da regularidade e do equi- voco. Nao como observador onisciente, que, com seu esboco de teoria, tudo pudesse controlar, mas como quem sofria teoricamente os embates do jogo dos sentidos (no observado e no observador). Palavras com palavras, palavras com conceitos, pa- lavras com coisas, interioridade com exterioridade, descrigio e interpretagao, csses foram os pares que nao deixaram de se colocar em sua movéncia no pré- prio modo de esse autor pensar a teoria do discurso. No entanto, se algo fica como alvo fixo nessa cons- tante movéncia, é sem ditvida o reconhecimento de que se tem necessidade da “unidade” para pensar a diferenga, ou melhor, ha necessidade desse “um na construgio da relagao com © miltiplo. Nao a “unidade” dada mas 0 fato da unidade, ou seja, a “uni- dade? construida imaginariamente. Ai est4.a grande contribuicio da andlise de discurso: observar os modos de construgio do imaginario necessario na produgao dos sentidos. Por nao negar a eficdcia ma- terial do imagindrio, cla torna visiveis os processos da construgao desse “um” que, ainda que imaginaria, necessdria e nos indica os modos de existéncia e.d relagdo com 0 miultiplo, pois, como diz Pécheux (1975, pp. 83-84), “a forma unitaria € meio essen- cial da divisao e da contradigio’. Ou, dito de outra maneita, a diferenga precisa da construgao imagina- ria da “unidade”. Os que negam a eficdcia do imagi- nario em geral o reduzem seja ao “irveal’, seja a um. ‘ulcmos que a dispersao dos sentidos e do sujei- jd condigao de existéncia do discurso (Orlandi ¢ (uimaries, 1988), mas para que funcione ele toma \ aparéncia da unidade. Essa ilusio de unidade é tivity ideoldgico, é construgdo necessdria do ima- ylitvio discursivo. Logo, tanto a dispersio como a iliwao da unidade sao igualmente constitutivas. listas nossas consideragdes vao na diregio de peusar a lingua como “base comum de todos os jacessos discursivos’, ou seja, de pensar a necessi- ‘hide de manter a nogao de lingua (enquanto estru- \va) como pré-requisito indispensdvel para pensar 14 processos discursivos. Entretanto, no se trata de pensar a lingua enquanto forma abstrata mas em ia materialidade. Isso tudo pode ser observado, no pensamento ile Pécheux, quando ele considera que a ideologia ‘ao funciona como um mecanismo fechado (e sem lulhas) nem a lingua como um sistema homo- }Cnco, Mais precisamente, como tivemos a ocasiao de afirmar muitas vezes em nosso trabalho (Or- landi, 1983, p. 162), a relagao entre lingua e dis- curso se faz por reconhecimento, ¢ suas fronteiras ao colocadas em causa constantemente. A lingua iio existe pois na “forma de um bloco homogé- neo de regras organizado 4 maneira de uma ma- quina Idgica” (Pécheux, idem). Dai o vai-e-vem incessante entre a ordem das coisas, a do pen- samento ¢ a do discurso, e que mostra a decalagem constante entre pensamento e forma gramatical na constituigio discursiva dos referentes. Ha, em su- iad? “efeito psicolégico individual, de natureza poetica. Nao véem assim sua necessidade ¢ sua eficacia. INTRODUGAO 18 | _ AS FORMAS DO SILENCIO wwiropucao | 19 ma, uma separagao irremedidvel entre a ordem das coisas ¢ a do discurso. £ nesse Ingar tedrico que aparece a necessida- de da ideologia na relacao com a produgio de sen- tidos. A ideologia se produz justamente no ponto de encontro da materialidade da lingua com a ma- terialidade da histéria, Como o discurso € 0 lugar desse encontro, é no discurso (materialidade espe- cifica da ideologia) que melhor podemos obser- var esse ponto de articulacéo. Para isso 7 preciso compreender o estatuto tedrico e metodoldgico do conceito de formagio discursiva na andlise de dis- curso, As diferentes formulagoes de enunciados se retmem em pontos do dizer, em regides historica- mente determinadas de relagées de forga ¢ de sen- tidos: as formacées discursivas. Expliquemo-nos. Para Pécheux, o discurso € efeito de sentidos entre locutores. Compreender o que € efeito de sentidos écompreender que o sentido nao est (alocado) em jugar nenhum mas se produz nas relagGes: dos su- jeitos, dos sentidos, ¢ isso sé posstvel, ja que suj eito e sentido se constituem mutuamente, pela sua ins- crigio no jogo das multiplas formages discursivas (que constituem as distintas regides do diztvel para os sujeitos). As formagées discursivas sio diferen- tes regides que recortam 0 interdiscurso (0 .dizivel, a meméria do dizer) ¢ que refletem as diferengas ideoldgicas, o modo como as posigdes dos sujeitos, seus lugares sociais ai representados, constituem sentidos diferentes. © dizivel (o interdiscurso) se parte em diferentes regiocs (as diferentes formagées 20. | As FORIAS 00 SILENCIO lincunsivas) desigualmente acessiveis aos diferentes lctitores, Quando se concebe a lingua — como os linpulistas — enquanto sistema de formas abstratas (e mo material), tem-se a transparéncia e o efei- to de literalidade. Porém, se a concebemos — na perspectiva discursiva — como materialidade, essa mutcrialidade lingitistica € o lugar da manifestacao thus relagdes de forgas e de sentidos que refletem os -ontrontos ideolégicos. Essa perspectiva devolve a upacidade do texto ao olhar do leitor. Compreender 0 que € efeito de sentidos, em su- ma, é compreender a necessidade da ideologia na constituigdo dos sentidos ¢ dos sujeitos. E da telacio icputlada historicamente entre as muitas formagées dliscursivas (com seus muitos sentidos possiveis que se limitam reciprocamente) que se constituem os iliferentes efeitos de sentidos entre locutores. Sem esquecer que os préprios locutores (posi¢des do su- jcito) no sdo anteriores 4 constituicao desses efeitos mas se produzem com cles. Importa ainda lembrar uc o limite de uma formagao discursiva é 0 que a distingue de outra (logo, 60 mesmo limite da outra), 0 que permite pensar (como Courtine, 1982) que a lormagio discursiva ¢ heterogénea em relagao a ela mesma, pois j4 evoca por si o “outro” sentido que cla nao significa. Ora, a relacdo com as miltiplas for- mag6es discursivas nos mostra que nao hd coincidén- cia entre a ordem do discurso e a ordem das coisas. Uma mesma coisa pode ter diferentes sentidos para os sujeitos, E é af que se manifestam a relagao contra- ditéria da materialidade da lingua e a da histéria. itroDugKO | Falar em “efeitos de sentido” é pois aceitar que se est sempre no jogo, na relagao das diferentes for- magées discursivas, na relacao entre diferentes sen- tidos. Dai a presenga do equivoco, do sem-sentido, do sentido “outro” e, conseqiientemente, do inves- timento em “um” sentido. Aise situa o trabalho do siléncio. Essa relagado entre os processos discursivos ¢ a lingua est4 na base da compreensio do imaginario como necessario. Os processos discursivos se de- senvolvem sobre a base dessa estrutura (a lingua) € nao enquanto expressio de um puro pensamen- to, de uma pura atividade cognitiva que utilizaria “acidentalmente” os sistemas lingiifsticos (Pécheux, ibidem). Dai que discurso nao é a fala, isto ¢, uma forma individual concreta de habitar a abstragao da lingua. Ele nao tem esse carater “antropolégico”. Os discursos estao duplamente determinados: de um lado, pelas formacoes ideoldgicas que os relacio- nam a formagées discursivas definidas e, de outro, pela autonomia relativa da lingua. Desse modo, se 0 lingiiista pode dizer que a lin- gua ¢ indiferente ao discurso, pois teny sua auto- nomia relativa, ela se rege por leis internas, o ana- lista de discurso dira no entanto que o discurso nao ¢ indiferente a lingua. E 0 que diz Courtine (1982) quando afirma que o discurso materializa © contato entre 0 ideoldgico e o lingiifstico, pois ele representa no interior da lingua os efeitos das contradigdes ideolégicas ¢ manifesta a existéncia da materialidade lingit{stica no interior da ideo- logia. Por que, diz cle, falamos a mesma lingua e falamos diferente? E assim que podemos compreender o silancio fundador como o nio-dito que é histéria ¢ que, dada a necess4tia relacao do sentido com o imagi- nario, é também fungio da relagao (necessdria) en- tre lingua ¢ ideologia. O siléncio trabalha entio essa necessidade. Sealinguagem implica siléncio, este, por sua vez, é0 nao-dito visto do interior da linguagem. Naoéo nada, nao € 0 vazio sem histéria. E 0 siléncio signi- ficante. Vale alids a pena redizer, nesta introdugao, 0 que scré dito em muitas partes desta reflexio: 0 fato de que a relacio siléncio/linguagem é comple- xa, sem deixar de sublinhar ainda uma vez que, no entanto, em nossa reflexao, o siléncio nao ¢ mero complemento de linguagem. Ele tem significancia prépria. E quando dizemos fundador estamos afir- mando esse seu cardter necessdrio e proprio. Funda- dor nao significa aqui “origindrio”, nem o lugar do sentido absoluto. Nem tampouco que haveria, no siléncio, um sentido independente, auto-suficiente, preexistente. Significa que o siléncio é garantia do movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do siléncio? O siléncio nao é pois, em nossa perspec- tiva, o “tudo” da linguagem. Nem o ideal do lugar “outro”, como nao é tampouco 0 abismo dos sen- 3, Einseressante observar, em rslagio a essa importincia fundamental do silencio, o fato de que a expressio “algo calou fiando em X” mostra bem © seu sentido diiplice: calar = nao dizer, e, no caso, calar = impregnar 0 sujeito X daquele sentido, itropugao | 23 tidos. Ele é, sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradigao constitutiva, a que o situa na relacao do “um” com o “miultiplo”, a que aceita a reduplicacao ¢ o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discut- so que lhe da realidade significativa. Por isso, distinguimos entre: a) 0 siléncio funda- dor, aquele que existe nas palavras, que significa © nao-dito ¢ que da espago de recuo significante, produzindo as condigoes para significa; ¢ b) a po- litica do siléncio, que se subdivide em: b 1) siléncio constitutivo, o que nos indica que para dizer ¢ pre- ciso nao-dizer (uma palavra apaga necessariamente as “outras” palavras); ¢ b 2) 0 siléncio local, que se refere & censura propriamente (aquilo que é proibi- do dizer em uma certa conjuntura). Isso tudo nos faz compreender que estar no sentido com palavras e estar no sentido em siléncio sio modos absoluta- mente diferentes entre si. E isso faz parte da nossa forma de significar, de nos relacionarmos com o mundo, com as coisas € com as pessoas. Finalmente, sea reflexdo sobre o siléncio nos mos- traacomplexidade da andlise de discursa, j4 que por ela podemos nos debrugar sobre os efeitos contradi- térios da producao de sentidos na relac&o entre o dizer ¢ o nao-dizer, essa reflexao nos ensina também que, embora seja preciso que ja haja sentido para produzir sentidos (falamos com palavras que j4 tém sentidos), estes nado estao nunca completamente ja la. Eles podem chegar de qualquer lugar ¢ eles se movem e se desdobram em outros sentidos, 24 | AS FORMAS Do SiLeNCIO Essa possibilidade de movimento, dedeslocamen- to de palavras em presenga e auséncia, leva-nos a fa- ver um paralelo que mostra ao mesmo tempo uma relagao fundamental entre a linguagem ¢ 0 tempo. Em latim, 0 tempo marcado (tempus) tem uma relagao com 0 “eyo” (aevum), que ¢ 0 tempo con- tinuo. O tempo é que marca 0 “evo”. A definigéo do tempo medieval (em Sao Tomas) é zumerus mo- tus secundum prius et posterius, ou seja, o nimero do movimento segundo 0 que vem antes e depois (medioevo = evo médio). Assim é que vemos a re- lagao entre palavra ¢ siléncio: a palavra imprime-se no continuo significante do siléncio ¢ ela o marca, o segmenta e 0 distingue em sentidos discretos, cons- tituindo um tempo (sempus) no movimento con- tinuo (aevum) dos sentidos no siléncio.t Podemos enfim dizer que ha um ritmo no significar que su- pe o movimento entre siléncio e linguagem. 4 Agradego ao professor Mendonga a possibilidade desse paralelo. Além dessa forma latina, ele também lembrou a presenca do siléncio nos textos de Guimaraes Rosa, c referiu a fala da gente da roga 20 negociar bois. Uma conversa que pode durar muito tempo ¢ na qual desvios ¢ introducao de Hovos assuntos ndo significam interrupgao de negociacao. As expresses que vao marcar 0 negdcio feivo ou nao (“Quanto voce quer?”/“Quanto vocé d42”) podem vir entremeadas de muito siléncio que nao ¢ de modo algum sem sentido. wrropugao | 25 SILENCIO E SENTIDO No inicio é 0 siléncio. A linguagem vem depois Quando o homem, em sua histéria, percebeu 0 si- loncio como significagao, criou a linguagem para reté-lo. O ato de falar ¢ 0 de separar, distinguir e, parado- xalmente, vislumbrar 0 siléncio e evita-lo. Esse ges- to disciplina o significar, pois j4 é um projeto de se- dentarizagio do sentido. A linguagem estabiliza 0 movimento dos sentidos. No siléncio, ao contrario, sentido e sujeito se movem largamente. Em suma: quando o homem individualizou (ins- tituiu) o siléncio como.algo significativamente dis- cernivel, ele estabeleceu 0 espaco da linguagem. Apreendendo o siléncio Estudando o discurso religioso, tive de passar ne- cessariamente pela questao do siléncio. E para nao estacionar no tio conhecido siléncio mistico, fiz um esforgo de reflexo para pensar as outras formas de siléncio, eu diria mesmo os outros siléncios. As palavras séo multiplas mas os siléncios tam- bém o sao. A especificagao dessa idéia comecou a se claborar a partir da minha observacio sobre dife- rentes ordens de discurso em suas distintas proprie- dades ¢ definigées. A primeira coisa que percebi é que, inadvertida- mente, eu havia mal definido o discurso religioso como “aquele em que fala a voz de Deus” (Orlandi, 1983). Essa definicao pode ser interessante parao ted- logo, mas nao o é para o analista de discurso. Dessa perspectiva, a do analista de discurso, 0 que se pode dizer ¢ que o que funciona na religiao é a oni- poténcia do siléncio divino. Mais particularmente, isso quer dizer que, na ordem do discurso religioso, Deus €0 lugar da onipoténcia do siléncio. E 0 homem pre- cisa desse lugar, desse siléncio, para colocar uma sua fala especifica: a de sua espiritualidade. Nem por isso a religido deixa de lhe ser funda- mental: no discurso religioso, nao ¢ apenas o mesmo sempre-homem falando; 0 que importa é quéa reli: gido institui um outro lugar e assim da um estatuto (ec, logo, um sentido) diferente a essa fala. Diferenga a qual o homem nio ¢ indiferente. Assim, reformulando a definiggo que havia pro- posto, eu diria agora que no discurso religioso, em seu siléncio, “o homem faz falar a voz de Deus”, A partir dessas reflexes, e conduzida pela mi- nha convivéncia com a discussio sobre o politico na linguagem, interessei-me Por outra caracteristi- 28 | AS FORMAS no siwencio ca desse mesmo tema: a politica do siléncio. Isto go silenciamento. Ai entra toda a questio do “tomar” a palavra, “tirar” a palayra, obrigar a dizer, fazer calar, silenciar ete. Em face dessa sua dimensio politica, o siléncio pode ser considerado tanto parte da retérica da do- minago (adao presséo) como de sua contrapartida, aretérica do oprimido (a da resisténcia). E tem todo um campo fértil para ser observado: na relacao en- tre indios e brancos, na fala sobre a reforma agraria, nos discursos sobre a mulher, s6 para citar alguns terrenos ja explorados por mim. A partir dai uma nova passagem tedrica se faz necessaria. Nao é suficiente pensar o silenciamento. Para compreender alinguagem é preciso entender o siléncio para além de sua dimens4o politica. Desenvolvendo entao essa reflexio podemos che- gar a algo que, a meu ver, coloca em estado de ques- tao a prdpria histéria da reflexdo sobre a linguagem, com respeito tanto 4 Gramatica quanto a Retérica. Chegamos entio a uma hipétese que é extrema- mente incémoda para os que trabalham com a lin- guagem: 0 siléncio ¢ fundante. Quer dizer, 0 siléncio éa matéria significante por exceléncia, um conti- nuum significance. O real da significacao € 0 silén- cio. E como 0 nosso objeto de reflexio éo discurso, chegamos auma outra afirmacao que sucede a essa: 0 siléncio é 0 real do discurso. O homem esté “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, ha uma injungao 4 “interpretacao”: tudo tem de fazer sentido (qual- SiLENcIO E senting | 29 quer que ele seja). O homem esta irremediavelmen- te constituido pela sua relacao com o simbélico. Numa certa perspectiva,adominante nos estudos dos signos, produz-se uma sobreposigao entre lin- guagem (verbal ¢ nao-verbal) c significacao. Disso decorreu um recobrimento dessas duas no- ges, resultando uma reducio pela qual qualquer maré- via significante fala, isto é, é remetida 4 linguagem (so- bretudo verbal) para que lhe seja atribuido sentido. Nessa mesma direg4o, coloca-se o “império do verbal” em nossas formas sociais: traduz-se o silén- cio em palavras. Vé-se assim o siléncio como lingua- gem e perde-se sua especificidade, enquanto maté- ria significante distinta da linguagem. Revendo o dilema entre Semiologia e Lingiifs- tica — qual contém qual? —, podemos coloca-lo como um falso dilcma, pois pressupde a domi- nancia da linguagem verbal: toda linguagem esta repassada de linguagem verbal ou, como se diz, todo sistema de signos (de qualquer natureza) é atravessado (interpretado) pela linguagem verbal. Sao pensadas af as varias linguagens, sem, contudo, se conceder um lugar mais decisivo a sey. exterior. Sendo a relagio do homem com o sentido’ uma re- lacio necesséria, o significar nao tem exterior; no entanto, se concebemos 0 siléncio tal como estamos propondo, a linguagem tem. So se pode pensar o siléncio, sem cair na armadi- Iha dessa relagdo, quando se pensa o “avesso da cs- trutura’, sem o binarismo, sem as oposigdes ¢ regras estritas e categdéricas. Quando se pensam radical- 30 | As FoRMAS 00 siLénicio mente no os produtos Mas Os processos de Signifita- cao, isto é, 0 discurso. Entao, ao invés de pensar osilénciocomo falta, pode- mos, ao contrario, pensar a linguagem como excesso. Essa possibilidade, alids, j4 estd tematizada na linguagem corrente em expressdes que se opdem, como as que seguem: Estar em siléncio/Romper o siléncio Guardar o siléncio/Tomar a palavra Ficar em siléncio/Apropriar-se da palavra Nelas se pode perceber o siléncio como 0 estado primeiro, aparecendo a palavra j4 como movimento em torno. Na perspectiva que assumimos, o siléncio nao fala. O siléncio é Ele significa. Ou melhor: no silén- cio, o sentido Podemos mesmo chegar a uma Proposicéo mais forte, invertendo a posigéo que nos ¢ dada pelo senso comum (e sustentada pela ciéncia), na qual a linguagem aparece como “figura” e o siléncio como “fundo”. Desse modo, podemos dizer que o siléncio € que é “figura”, ja que ¢ fundante. Estru- turante, pelo avesso. Fazendo-se um paralelo com © que diz Hjelmslev (1943) a propdsito dos trés niveis, o da subscAncia, oda forma e o da matétia (sens), € no nivel dessa ultima que localizamos 0 siléncio fundante. Constitutive em primeira e multiplas instAncias, ele tem primazia sobre as palavras. Siténcio ESentioo | 31 A linguagem, por seu lado, ja é categorizagdo do siléncio. E movimento periférico, ruido. O desejo de unicidade que atravessa o homem é fungao da sua relagao com o simbdlico sob o modo do verbal. Alinguagem ¢ conjuncao significante da existén- cia e é produzida pelo homem, para domesticar a significagio. A fala divide 0 siléncio. Organiza-o. O siléncio é disperso, ¢ a fala é voltada para a unicidade ¢ as entidades discretas. Formas. Segmentos visiveis ¢ funcionais que tornam a significagao calculdvel. Se tudo isso pode ser dito a propésito da lingua- gem, falar do siléncio traz, em si, uma dificuldade maior, ja que ele se apresenta como absoluto, conti- nuo, disperso. O siléncio nao esta disponivel a visibilidade, nao é diretamente observavel, Ele passa pelas pa- lavras. Nao dura. Sé é possivel vislumbra-lo de modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das falas. Para tratar da questao doysiléncio, j4 que é impos- sivel observa-lo (organizd-[e), podemos usar duas ordens de metdforas: a do mar ea do eco. Em ambas jogam a grande extensdo e um certo movimento que retorna ¢€, ao mesmo tempo, pro- duz um deslocamento. “O final da onda que o mar sempre adia.” O mar: incalculavel, disperso, profundo, imével em seu movimento monétono, do qual as ondas sao as frestas que o tornam visivel. Imagem. 32 | AS FORMAS 00 SILENCIO O eco: repeticao, nao-finitude, movimento con- tinuo. Também fresta para ouvi-lo, Som. Senos voltamosagora paraa histéria das palavras, encontramos a ctimologia de silentium, referida a silens, que significa: que se cala, silencioso, que nao faz ruido, calmo, que esté em repouso, sombra etc. Algumas observac6es a respeito do uso dessa palavra sdo interessantes. Embora na época classica nao houvesse diferenga de sentido entre sileo e taceo (calar), primitivamente sileo nao designava propria- mente “siléncio” mas “tranqitilidade’, auséncia de movimento ou ruido: “Estar em siléncio” = “Estar quieto”. Empregava-se sileo para falar de coisas, de pessoas e, especialmente, da noite, dos ventos ¢ do mar. Silentium, max profundo. E ai deparamos com o aspecto fluido e liquido do siléncio. A nossa metdfora aproveita esse impulso etimo- ldgico. Como para o mar, ¢ na profundidade, no siléncio, que esta o real do sentido. As ondas sao apenas 0 seu ruido, suas bordas (limites), seu movi- mento periférico (palavras). A linguagem supée pois a transformagéo da ma- téria significante por exceléncia (siléncio) em sig- nificados apreens{veis, verbalizAveis. Matéria e for- mas. A significacao é um movimento. Errancia do sujeito, errancia dos sentidos. E preciso insistir que a matéria significante do siléncio é diferente da significancia da linguagem (verbal e nao-verbal). Ao tornar visivel a significa- cao, a fala transforma a prépria natureza da signi- ficacao. SWLENCIO EseNTIDO | 33 Essa diferenga de natureza pode ser mais bem pen- sada se consideramos a articulagao entre gesto csilén- cio, enquanto expressividade. Também a gestualidade, a relacio com o corpo, esta orientada pela fala. Quando alguém se pega em siléncio, rearranja-se, muda a “expressio”, os gestos. Procura ter uma expressao que “fala”. Ea visibilidade (legibilidade) queseconfigurae nos configura. A lin- guagem se constitui para asseverar, gregarizar, unifi- car 0 sentido (e os sujeitos). Quer dizer: a identidade — coeréncia, totalida- de, unicidade — produzida pela nossa relagio com a linguagem nos faz visiveis ¢ intercambidveis (fa- miliares 4 espécie humana). O siléncio, de seu lado, é 0 que pode transtornar a unicidade. Nao suportando a auséncia das pala- vras — “por que vocé est4 quieto? O que vocé estA pensando?”—, o homem exerce seu controle e sua disciplina fazendo o siléncio falar ou, ao contrario, supondo poder calar 0 sujeito. Isso resulta de um imediatismo tanto mais acen- tuado quanto mais vem em linha reta da tradicao da racionalidade: 0 claro e distinto. O homem — tendo de responder A injungao de ‘tyansparéncia . objetividade — nao se dé o tempo de trabalhar a diferenga entre falar e significar. Para nosso contexto histérico-social, um homem em siléncio é um homem sem sentido. Entao, o ho- mem abre mao do risco da significagao, da sua amea- ga ese preenche: fala, Atulha o espago de sons e cria aidéia de siléncio como vazio, como falta. Ao negar 34 | As Formas 00 siténcio sua relagao fundamental com o siléncio, ele apaga uma das mediagoes que lhe sao basicas. Desse modo, a partir da eliséo dessa mediacao, estabelecem-se e desenvolvem-se as reflexes que te- matizam a relagao linguagem/pensamento ¢ lingua- gem/mundo (sociedade) ¢ que atribuem fungdes que confirmam a centralidade da linguagem. De nossa parte, proporiamos um deslocamento, um descentramento da linguagem, que permitiria refletir sobre um outra relagdo, anterior, a meu ver, aesta, e mediadora: mundo (sociedade) Linguagem / siléncio pensamento Quando nao falamos, nao estamos apenas mu- dos, estamos em siléncio: hd o “pensamento’, a in- trospecgo, a contemplagao etc. O nosso imaginario social destinou um lugar su- balterno para o siléncio. Ha uma ideologia da comu- nicagao, do apagamento do siléncio, muito pronun- ciada nas sociedades contemporaneas. Isso se expressa pela urgéncia do dizer e pela multidao de linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo tempo, espera-se que se estejam produzindo signos visiveis (audiveis) 0 tempo todo. [uso de controle pelo que “aparece”: temos de estar emitindo sinais sonoros (diziveis, vistveis) continuamente. Nao acreditamos que tenha sido sempre assim. A nossa hipétese é a de que ha, na relagdo com a lin- signe esenrian | 35 LL t—“— guagem, uma progressao histérica do siléncio paraa verbalizag4o, o que se reflete nao s6 na pratica geral da linguagem como no discurso da ciéncia. Assim, teriamos: +siléncio - — siléncio mito tragédia filosofia Ciencias Humanas e Sociais No mito, a significagao prescinde da explicita- ¢40 cabal de seus modos de significar. Ja na tragé- dia, essa explicitagao comega a alargar seu lugar. Podemos pensar, por exemplo, no mito de Electra, no reconhecimento de seu irmao Orestes, que se da apenas pelo agon (confronto). Jé na magédia, ha uma descricio do reconhecimento: ela o reconhe- ce porque ele carrega a espada de modo peculiar, porque tem uma cicatriz na testa etc. No caso da filosofia, passa-se para um outro discurso, em que se tematiza vastamente 0 sentido em sua relacao com o set, Percurso que desemboca nas Ciéncias Sociais ¢ Humanas, que se instituem em varias disciplinas diferentes com distintos objetos ¢ dis- cursos diversos para falar dessa mesma coisa. Do- minado pelas mmiltiplas metalinguagens, 0 fato tem de significar nas diferentes “explicagdes’, que, por sua vez, 0 povoam de muitos signos. Exilio do siléncio. Do século XIX para ca se aceleram a producao de linguagens ca contengio do siléncio. As palavras se desdobram indefinidamente em pa- 36. | AS FORMAS Do SiLENCIO lavras (na maior parte das vezes, ecos do mesmo, sem sair do lugar). O siléncio, mediando as relagdes entre lingua- gem, mundo ¢ pensamento, resiste A press4o de con- crole exercida pela urgéncia da linguagem e significa de outras e muitas maneiras. Essa mediag&o é mais um dos elementos que desve- lam a ilusao referencial: 0 siléncio nao ¢ transparente c ele atua na passage (des-vao) entre pensamento- palavra-e-coisa. Também aqui se verifica que nao ha uma relagao termo a termo entre esses dominios. Para terminar, ainda uma vez Saussure. Ao tomarmos o siléncio como objeto de reflexao, nao o fizemos sem pensar no mestre genebrino que aliou cm si duas formas de siléncio. Estamos fa- lando: a) do siléncio de Saussure, que nao se fez au- tor de seu Curso; e b) do siléncio sobre Saussure, 0 dos Anagramas, que os lingitistas preferem ignorar com deferéncia. Ha ainda o siléncio em Saussure, quando tematiza uma certa nogao de sistema (va- lor), ou do eixo das substituigses etc. ‘Tampouco vamos apagar, na questao do siléncio, a presenga de Pécheux. O interlocutor silenciado, ou em siléncio. Que se deu o trabalho dificil de falar da Langue Introuwvable (1984) € que, com suas reflexoes sobre 0 discurso, permitiu que se pensasscm 0 silén- cio, a significagao, no meio do alarido formalista, O Pécheux que, falando do “discurso-real autoprote- tor”, diz do engendramento de uma nova fraseologia que, “efletindo o que todo mundo sabe, permite ca- Jar o que cada um entende sem confessat” (1982). cio esenTioo | 37 Os Limites bo Métopo E DA OBSERVACAO* A inica palavra que me devoraé aque- la que meu coragao nao diz, SUELI Costa £ ABEL SILVA, “Jura Secreta” Um livro deve valer por tudo o que nele nao deve caber. G. Rosa, Tutaméia Os textos acima sugerem a reflexdo sobre a relacio entre silncio ¢ emogao, siléncio e escrita. Quer se trate de uma coisa ou de outra, essas duas citagées referem o siléncio enquanto elemento constitutivo do sentido. Elas, no entanto, fazem isso contextua- lizando o siléncio de modo diferente. A primeira evoca 0 canibalismo (“devora”) pre- sente na cultura brasileira de varias manciras: a) a antropofagia enquanto real histérico (atestado Uma primeira versio deste capitulo foi apresentada, em francés, no Coléquio de Urbino (1988), cujas avas foram publicadas no livro Les sens et ses hétérogénéités (1990). abundantemente na literatura européia dos séculos XVI c XVII); ¢ b) o canibalismo simbdlico, tornado movimento intelectual, inaugurado pela Semana de Arte Moderna em Sao Paulo (1922): a cultura euro- péia “digerida” pela cultura brasileira. A antropofagia define, nos dois casos, para o bra- sileiro, uma origem em que a devoragao (seja his- térica, seja simbélica) esta na base mesma de sua relagdo com a “alteridade’. Na segunda cita¢ao, trata-se da literatura brasilei- ra e de um de seus escritores mais expressivos, que trabalhou a lingua “em seu estado gasoso’, segundo suas palavras: uma lingua sem margens, sem limites. Em sua relacao 4 alteridade, em sua relagao a lin- gua,a cultura brasileira acolhe o siléncio. Teria pois o siléncio um aspecto cultural? Com toda a evidéncia. Mas a cultura nao é 0 tinico fator que conta. Determinagées politicas e historicas es- tao igualmente inscritas af. Com efeito, as diferentes abordagens s4o muito distintas e resultam em concepgées muito diversas de siléncio. Em nosso caso, essa abordagem foi estabelecida durante uma pesquisa de campo em que observava- mos os processos de linguagem na situacao de con- tato entre indios e brancos. Na Floresta Amaz6nica, nas margens do grande rio Xingu, compreendemos a importAncia fluida do siléncio. Ou melhor, compreendemos que ha uma relacdo fundamental (fundadora) entre o homem e o siléncio, em face da significacdo. 40 | AS FoRMAS 00 siuéwcio Outras experiéncias, dessa vez delinguagem, tam- hém nos fizeram entender isso. Na poesia, a leitura de Mallarmé, de M. Bandeira oude Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Nao sé na poesia, alias, mas na liceratura em geral, o siléncio é fundamental.’ Na misica, compositores como P. Geist, J. Cage, Webern, E. Gismonti, E. Satie e o intérprete C. Ar- rau, em particular, Ou seja, também a musica em geral, em suas diferentes express6es, propde-nos uma relacio com o siléncio. No campo das imagens, ha filmes que nos trazem a reflexo sobre o siléncio de modo particular: Pai Patrao e Paris, Texas. Por outro lado, pela observacao dos diferentes discursos, podemos reconhecer fatos que nos reme- tem A importancia do siléncio: o discurso religioso, em que Deus representa a onipoténcia do siléncio (Eckart, segundo Heidegger, “é no que a linguagem nao diz que Deus € verdadeiramente Deus”); 0 ju- ridico, em que o discurso liberal (“todos os homens sio iguais perante a lei”), produzindo o apagamen- to das diferencas constitutivas dos lugares distin- tos, reduz o interlocutor ao siléncio; o cientifico, do qual ¢ bem conhecido o fato de que ha teorias que nao deixamos significar; 0 discurso amoroso, em que a onipoténcia avizinha o impossivel, é um discurso votado ao siléncio. 1 Avesse respeito veja-se, por exemplo, a reflexio de B, Waldman (1989) sobre a produgao do siléncio em Dalton ‘Tievisan, em Clarice Lispector. 05 UNITES DO METODO E DA oBseRvacho | 4 Os siléncios, 0 siléncio Era’assim preciso que trabalhasscmos essas intui- des sem cair na mistica do siléncio ou na relacao si- léncio-NADA (morte), interpretacdo essa reiterada pela cultura ocidental (cf. Shakespeare, em Hanslet: “o resto é0 siléncio”). Como fazer aparecer a dimensao, por assim di- zer, “otimista” do siléncio? De inicio, propondo-nos uma concepgao nao-ne- gativa de siléncio: o siléncio nao fala, ele significa. A partir dessa concepgao nao o definimos nega- tivamente em relacdo a linguagem (0 que ele do ¢) mas em sua relac4o constitutiva com a significacao (o que ele é). Esse era um inicio. A partir dessa definigao (pro- vis6ria) e de algumas nog6es auxiliares, procedemos a andlises em que pudemos discernir tragos do tra- balho do siléncio em diferentes discursos. O silencio significa de multiplas maneiras e ¢ 0 objeto de reflexao de teorias distintas: de fildsofos, de psicanalistas, de semidlogos, de etndlogos, e até mesmo 0s lingiiistas se interessam pelo siléncio, sob a etiqueta da eclipse e do implicito. ne : Além disso, ha siléncios miltiplos: o siléncio das emogées, © mistico, o da contemplacao, o da intros- peccao, o da revolta, o da resisténcia, o da disciplina, o do exercicio do poder, o da derrota da vontade ete. A partir da concepc4o nao-negativa de siléncio, e da observagio de seus modos de existéncia, outra quest4o se impdc: como compreender o siléncio? 42. | As FoRMaS po sitencio Inicialmente, tornando precisa a perspectiva da qual estamos falando: a perspectiva discursiva, que se define pelo fato de que a nocio de discurso supde superagao da dicotomia estrita lingua/fala. Desta perspectiva, ha alguns objetivos a atingir, através da reflexo sobre o siléncio, que procurare- mos expor aqui. Esses diferentes objetivos tem em comum o fato de nao proporem uma aproximagio dos modelos cxistentes, mas, ao contrario, de recusarem 0 iso- morfismo. Procuramos assim nos distanciar desses modelos, mesmo se a finalidade ultima é a de retor- nar sobre a linguagem. Esse esforgo de nos afastarmos dos modelos existentes permite que nos ponhamos em guarda contra o que chamariamos de “tendéncias inte- gracionistas” — tais como a pragmiatica, a etno- metodologia, as teorias da enunciagio — que referem (reduzem) o siléncio 4 linguagem verbal, apagando sua especificidade. Essa forma de traba- lho representa a redugio dos fatos de linguagem ao “mesmo’, ao j4 conhecido, em suma, ao sistema lingiiistico tal qual. Voltemos, pois, aos objetivos visados pela pers- pectiva discursiva na reflexio sobre o siléncio. 0S LIMITES 00 METODO E DA OBSERV Pensar o siléncio Pensar o siléncio é um esforco contra a hegemonia do formalismo A reflexao sobre a linguagem conduzida pelas dife- rentes formas da lingiiistica — seja sob 0 modo do estruturalismo, seja do transformacionalismo — ex- clui o siléncio, pelo menos tal como o estamos defi- nindo. Primeiramente, pelo lugar ancilar que dé a significagao e, em seguida, pelo compromisso com o objetivismo abstrato, pela sua relagio com 0 racio- nalismo, ja que esta reflexo nao leva em contaa irra- cionalidade, 0 equivoco, a desorganizac4o tanto do sentido quanto do sujeito. No estruturalismo, a idéia de “meta” ¢ a de “O” como oposigio nao deixam lugar para o siléncio e preenchem tudo com o lingitistico definido em sua totalidade. O siléncio adquire o valor que lhe dita seu oposto; nao existe como tal. O formalismo chomskiano, noseu intento, alias louvavel, de preen- cher o vazio tedrico dos modelos behavioristas, im- pede, no entanto, que af se claboié uma teoria do “fato’ da linguagem ¢ tapa o buraco com uma teoria rarcfeita e de fSlego curto, dominada por formulas. Que fala da gramatica mas nao fala da lingua. O si- léncio, com seu carater n4o-vistvel (legivel), obscu- ro, continuo, nao-calculavel, esta excluido. Propomos, pois, a problematizagao de toda ten- tativa de sedentarizacao da nogao de silencio, seja na forma da clipse (ao nivel da frase), das “figuras” (cm retérica), ou da distingao dito/nao-dito, que ieduz 0 nao-dito ao implicito (as teorias da argu- inentagao). Nés opomos a isso a idéia de que sem siléncio nao ha sentido, sendo que o siléncio nao é apenas tum acidente que interyém ocasionalmente: ele é necessario a significacao. O implicito é j4 um subproduto desse trabalho do siléncio, um efeito particular dessa relagdo mais dc fundo e constitutiva, O implicito é0 resto visivel dessa relacao. E um seu residuo, um epifendmeno. Osiléncio, tal como o concebemos, nao remete ao dito; ele se mantém como tal, permanece siléncio. Pensar o siléncio representa um esforco contra 0 positivismo na observacao dos fatos de linguagem O siléncio nao € diretamente observavel ¢ no en- tanto ele nao é 0 vazio, mesmo do ponto de vista da percepgao: nds o sentimos, ele esta “Id” (no sorriso da Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas grandes extensdes, nas pausas). Para torna-lo visivel, é preciso observa-lo indire- tamente por métodos (discursivos) histéricos, criti- cos, desconstrutivistas. E preciso aqui lembrar que pensamos a relagao indireta entre o produto e sua “origem’, sua “causa”. Sem considerar a historicidade do texto, os proces- sos de construgao dos efeitos de sentidos, é impossi- vel compreender o siléncio. (0S LIMITES DO METODO E DA OBSERVACAO | 4 5 Nao podemos observi-lo senao por seus efeitos _ (retéricos, politicos) ¢ pelos muitos modos de cons- trugao da significagio. Quando se trata do siléncio, nds nao temos mar- cas formais, mas pistas, tragos. £ por fissuras, rupturas, falhas, que ele se mostra, fugazmente: “fi. s6 de tempos em tempos que ele se volta para o homem” (Heidegger, falando do Sere do Ente, 1969). Mesmo seo siléncio est4 sempre 1a, ele ¢ eféme- ro em face do homem, no que diz respeito a sua observagao. Assim, sem teoria nao se atinge o seu modo de existéncia e de funcionamento na signi- ficag4o. Pensar o sil€ncio é problematizar as nogdes de linearidade, literalidade, completude Discursivamente, o sentido se faz em todas as di- regdes. Conceitos discursivos como “interdiscurso” (meméria do dizer), “intertexto” (relagao entre tex- tos), “relagao de sentidos” 0 atestan A significagao nao se desenvolvé sobre uma li- nha reta, mensuravel, calculdvel, segmentdvel. Os sentidos sio dispersos, eles se desenvolvem em to- das as diregGes € se fazem por diferentes matérias, entre as quais se encontra o siléncio, A materialidade do sentido nao é indiferente aos processos de significag’o € a seus efeitos: 0 si- 46 | AS FORMAS DO SILENCIC léncio significa de modo continuo, absoluto, en- quanto a linguagem verbal significa por unidades discretas, formais. Eis uma diferenca que é preciso nao apagar. Por outro lado, nog6es como as de incisa e de clipse sao interessantes para observar a extensao do dominio conceptual da linearidade ¢ da lite- ralidade. A incisa aparece, na histéria da reflexao pramatical, como acréscimo contingente, e a elip- se, como falta necessaria. Quando tomamos o si- Iencio como fundante, essa dissimetria (paradoxal do ponto de vista da linearidade) se explica: o silén- cio é assimétrico em relacao ao dizer ea elipse ¢ do dominio do siléncio. A incisa é evitada; os grama- ticos intufram a importancia do siléncio e a rejei- taram: o dizer precisa da falta. Quanto 4 completude, ja tivemos ocasiao de observar em diversas ocasiées que a incompletu- de é fundamental no dizer, Ea incompletude que produz a possibilidade do multiplo, base da polis- semia. E é 0 siléncio que preside essa possibilida- de. A linguagem empurra o que ela nao € para o “nada”. Mas o siléncio significa esse “nada” se mul- tiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais siléncio se instala, mais possibilidades de sentidos se apresentam. OS LIMITES DO METODO E DA OBSERVAGAG | 47 Pensar o siléncio é colocar questdes a propésito dos limites da dialogia, Pensar o siléncio nos limites da dialogia é pen- sara relacéo com 0 Outro? comouma relacdo contraditéria Quando se pensa o sujeito em relagio com o si- léncio, a opacidade do “Outro” se manifesta. Assim, pensar o siléncio é pensar a solidao do sujeito em face dos sentidos, ou melhor, é pensar a histéria solitaria do sujeito em face dos sentidos, E por af que se pode fazer interyir as “fissuras” que nos mostram efeitos de siléncio. O Outro est4 pre- sente mas o discurso, de modo ambiguo (presente e ausente). E os modos de existéncia (presenga) das personagens do discurso sao significativos, Pensar 0 siléncio como um limite ao dialogismo é fazer a critica a uma sua concepgao behaviorista, dominada pela fungao de informagao ¢ de turnos de fala, assim como 4 esquematizacéo da relagio 2 Aquestio da relacao com 0 Outro como constitutiva do sujeito, na tra- digo dialégica — que coloca que nao ha centro Para osujeito — temem]. Authier (1984) um momento de claboragao fundamental na confluéncia tedrica dos campos enunciativo, psicanalitico e discursivo. Fstabelecendo © conceito de “heterogencidade’, ela fala da fungio do desconhecimento que, no imaginario do sujeito dividido,“téconstréi a imagem do sujeito auténomo apagando a divisio que remett™2o ponto de vista segundo o gual “o centro é um ‘golpe montado’ para o sujeito, de que as Ciéncias Humanas fazem seu objeto, ignorando que ele é imaginario” (Roudines- co, E. 1977). Authier diré entao: “En rupture avec le Moi, fondement de {a subjectivité classique congue comme un interieut face & lexteriotité du monde, le fondement du sujet est ici déplacé, délogé dans un liew multiple, fondamentalement hétéronome, oit rextériorité est & rinterieur du sujet (Clément, C., 1972), LA ott se rejoignent ces conceptions du discours, de Vidéologie, de r'inconscient, que les théories de rénonciation ne peuvent sans risque pour la linguistique, éluder, c'est dans affirmation que, consti- tutivement, dans le sujet, dans son discours, ily a de fAutze” (1984). 4B | As FORIAS 00 siencio Ue significagio entre os diferentes sujeitos e suas posigdes, A intervencao do siléncio faz aparecer a falta de ‘imetria entre os interlocutores. A relagdo de inter- k ycugao nao é nem bem-comportada, nem obedece uma Légica preestabelecida, Ela é atravessada, en- (re outros, pela des-organizacao do siléncio, O conceito de dialogia sé se faz necessdrio Ppor- (ue as unidades sao segmentAveis, A dialogia tem sua realidade conceptual sustentada pela nogao de lingua (gregaridade, tegras com suas ordens pré- prias, linearidade) e de segmental, A matéria significante do siléncio é de outra na- (ureza e nao opera pela “discregio”, pela “gregarida- le’, deslocando assim a nogio de partilha, de com- pletude e também a de dialogia. Anao-completude, que é prépriaatodo Pprocesso discursivo, vista na Perspectiva da questao do silén- cio, fica entao assim: a) 0 siléncio, na constituigao do sujeito, Tompe com a absolutizacao narcisica do cu que, esta, seria a asfixia do sujeito, jd que o apa- gamento € necessdrio para sua constitui¢ao: 0 silen- ciamento é parte da experiéncia da identidade, pois é parte constitutiva do processo de identificagao, é © que lhe dé espago diferencial, condicao de movi- mento; b) 0 siléncio, na constituigéo do sentido, é que impede 9 non sense pelo muito cheio, produ- zindo 0 espaco em que se move a materialidade sig- nificante (0 nao-dito necessdrio para o dito), 5 LIMITES DO METODO E DA OBSERVACAO | 49 Pensar o siléncio em sua especificidade significativa é problematizar palavras como “representacao’, “interpretacao” O siléncio é representavel? Nao acreditamos. Isso coloca limites & interpretabilidade e & redu- sao da linguagem sé A informagao, 4 comunicacio. Temos proposto, em nosso trabalho, distinguir (Orlandi, 1987): a) inteligibilidade (unidade signi- ficativa discernivel em nivel de frase); b) inverpre- tabilidade (atribuicao de sentido ao enunciado); e c) compreensao (apreensio dos processos de signi- ficagdo de um texto). Diriamos que o siléncio nao é interpretavel, mas compreensivel. Compreender o siléncio ¢ explicitar o modo pelo qual ele significa. Compreender o siléncio nao é, pois, atribuir-lhe um sentido metaférico em sua relacao com o dizer (“traduzir” o siléncio em palavras), mas conhecer os processos de significag4o que ele poe em jogo. Co- nhecer os seus modos de significaty” Finalmente, pensar o siléncio, a nosso ver, é tragar um limited redugaodasignificacéoaoparadigmadalinguagem verbal. Isso significa propor uma descentracdo do verbal A descentragao do sujeito, que ¢ um princfpio constitutivo da andlise de discurso, junta-se, pela re- 50 | AS FoRMAS Do sittwicio Ilexao sobre os processos significativos do siléncio, a descentragao da linguagem verbal enquanto espaco privilegiado de significagao. Fazendo apelo ao siléncio, deslocam-se as relac6es: SINTAXE = GRAMATICA SIGNIFICAGAO = LINGUAGEM VERBAL, A linguagem (e as contribuigées de seu estudo) deve estar pressuposta, mas nao pode ter oestatuto de paradigma ou de centro para o qual se orientam tan- to a significacao do siléncio quanto sua explicacao, Como se trata do dominio da semantica discursi- va, esta excluida a possibilidade de falar em “grama- tica do siléncio”, ou de “sintaxe do siléncio” outras formas (integracionistas) de nao considerar 0 silén- cio em sua especificidade material, Ao mesmo tempo, a observacao da materialidade (significativa) do siléncio nos permite ser criticos cm face da afirmacao categérica de que a linguagem hao tem exterior (Barthes, 1978). Essa é uma afir- magao que nao reconhece a contradicao, que elide o funcionaniento paradoxal dos sentidos, As diversas categorizagées de siléncio Podemos perceber que, em muitas Ppropostas de classificagio, domina a concepcao negativa do silencio, OS LIMITES DO METODD E BA OBSERVAGAO. | 51 Lyotard (1983, p. 30) propde a distingao de quatro siléncios. Segundo ele, a frase que substitui o siléncio seria uma negativa. O que é negado por ela seria uma das quatro inst4ncias que constituem um universo de fra- ses: 0 destinatario, o referente, o sentido, 0 emissor. Ainda segundo esse mesmo autor, a frase impli- cada pelo siléncio seria uma negativa que se formu- laria assim: a) esse caso nao é da sua conta; b) esse caso nao existe; c) esse caso nao é significavel; d) esse caso nao é da minha conta. Essas categorizagdes, embora definidas negati- vamente, trazem alguma contribuicao para a com- preensao do siléncio ¢ organizam o seu modo de significar. Mas, de certa forma, remetem ainda for- temente o siléncio ao dito, permanecendo na ins- tancia da frase. Também a retérica é, claramente, um lugar rele- vante para a discussio das formas de siléncio. E desse modo, em relacio a retérica, que Prandi (1988) transpée os limites da frase e do carter ne- gativo do siléncio. ' No quadro da frase, diré ele, a eclipse, figura frds- tica do siléncio, qualifica-se negativamente, como realizacéo vazia de uma categoria formal funcional dada. No discurso, entretanto, o siléncio adquire uma identidade positiva, indice, entre outros, que 52 | AS FORMAS DO SiLENcIO se traduz na presenga das figuras do siléncio espe- cificamente textuais, da elipse. Prandi assinala: a reticéncia (“la sventurata rispose”), a descontinui- dade tematica (“Pedro ganhou? Viva a Franga!”), « subdeterminagao semantica (“Uma morte per- fumada”), Nos acrescentariamos ai a pretericao (o siléncio que é projetado para o futuro discursivo), De modo geral, se nos colocamos em uma pers- pectiva discursiva e, em conseqiiéncia, nao-negativa do siléncio, toda uma revisio das “figuras” seria ne- cessaria e revelaria aspectos interessantes do prdprio estudo da retérica. No caso presente, o que nos interessa é sobretu- do fazer aparecer, em relagao As categorizagdes das formas de siléncio, duas delas: a) o siléncio fundan- te; eb) a politica do siléncio (o silenciamento). A primeira nos indica que todo processo de signi- ficagao traz uma relagao necessdria ao siléncio; a se- gunda diz que —comoosentidoé sempre produzido de um lugar, a partir de uma posi¢ao do sujeito — ao dizer, ele estar4, necessariamente, no dizendo “ou- tros” sentidos, Isso produz um recorte necessdrio no sentido. Dizer e silenciar andam juntos. Fa, pois, uma declinagio politica da significagao que resulta no silenciamento como forma nao de calar mas de fazer dizer “uma” coisa, para nao dei- xar dizer “outras”. Ou seja, o siléncio recorta o dizer, Essa é sua dimensao politica. Essa dimensio politica do siléncio est4, no en- tanto, assentada sobre o fato de que o siléncio faz parte de todo processo de significacdo (dimensio OS UIMITES DO METODO EDA OBSERVACKO | 53 fandante do siléncio). Sem siléncio nao ha sentido porque o siléncio é a matéria significativa por exce- léncia, ou, como diz Wittgenstein (1961): “a relagao do silancio com a linguagem mostra a constitui¢ao essencial da linguagem”. Quando atentamos para 0 siléncio, tematizando razoes “constitutivas’, fazemos 0 percurso da rcla- gio siléncio/linguagem e€ estamos no dominio do siléncio fundante. Quando circulamos pelas razes politicas, trabalhamos a dimensao do silenciamen- to na “formulagio” dos sentidos. Siléncio, linguagem, analise Do que acabamos de expor resulta que, se a Jinguagem € categorizagao do siléncio, isto ¢, ela produz a sedentarizagao dos sentidos, as palavras representam ja uma disciplinacao da significagao “sclvagem” do siléncio. Assim, a producao verbal setve pata a administracao (gestao) do sentido. O dizer como ato que domestica 0 significar ser- ve A assercao, 4 unificagao do sentido ¢ unicidade do sujeito. A identidade — que exige Goerénicia, unicidade, heterogeneidade disciplinada — produzida por nos- 3 Em Courtine (1982) podemos observar a articulagio entre os dois ¢i- os, 0 da constituiggo ¢ 0 da formulagio, na produgao dos sentidos. O eixo da constituigao (0 vertical) ¢ o que se relaciona 20 interdiscurso ¢ € 0 res- ponsivel pelo saber discursive, sua histéra (odizivel, odio), eixo da formmulaggo se remete ao intradiscurso e representa a atualizagio do dizer por um sujeito em seu aquic agora. 54 | AS FORMAS 00 siLENCIO sa relacao a linguagem nos torna visiveis e intercam- bidveis, como sujeitos. Ao contrario, por sua relagao com 0 siléncio, o homem se remete 4 continuidade, 4 contradig&o, a diferenga, 4s rupturas, ao absoluto ¢ a indistingao. Pensando a representagéo tal como tem sido concebida pelas teorias da linguagem, referidas ao verbal, podemos considerar que 0 siléncio nao ¢ re- presentavel. Resulta assim uma dificuldade colocada pela re- sisténcia do “objeto” siléncio: como falar de algo ndo-representdvel e cuja observagio nao se pode fazer pelos métodos correntes? Levando essa reflexao mais longe, podemos mes- mo considerar que esses métodos € essas teorias sao a propria negacao do siléncio como matéria signifi- cativa diferente e espectfica. Assim, a dificuldade na andlise — quando se coloca a questao do siléncio — nao ¢, como para outras disciplinas da linguagem, ora 0 excesso de dados, ora a falta de teoria, mas sim a necessidade de uma rupzura. Dissemos, mais acima, que observamos o silén- cio indiretamente. Mais do que “marcas” (paradig- ma da demonstra¢ao), temos “pistas” (conjecturas). Para analisar o siléncio é assim preciso fazer intervir a teoria enquanto critica. Em conseqiiéncia, ¢ preciso deslocar a andlise do dominio dos produtos para o dos processos de pro- dug’o dos sentidos. O método de que necessitamos deve entao ser “histdrico” (discursivo), e fazer apelo OS LIMITES DO METODO E DA OBSERVACAO | 5 a a “interdiscursividade”, trabalhando com os entre- meios, os reflexos indiretos, os efeitos, A partir desse deslocamento podemos pensar os seguintes modos de aproximagao do siléncio: a) Trabalhar com a nogio de completude (incompletu- de) claborando, porexemplo,a relacio elipse/incisa, em face do enunciado canénico ( paradigmatico). Alids, a prépria definigao de linguagem em Aris- toteles remete A questo da completude (e sil€ncio), pois, segundo ele, dizer é “falar algo de algo.” De onde podemos esbogar trés possibilidades, pelo menos: Dizeralgodetudo — Erudicao Dizet tudo de algo Especializacao Dizer tudo de tudo Formalismo O mito da exaustividade leva & abstracao como condigao do saber, assim como 3 ilusdo da onipo- téncia do método; 0 siléncio, uma vez que nao é tangivel (cmpiricamente), mostray‘de forma para- doxal, os limites dos métodos formidis. b) Analisar as “figuras’, produzindo um desloca- mento no modo como se trabalha a Retérica. Seria necessario trabalhar as “figuras” como “sin- tomas” da marginalizacao do siléncio dos processos de significagio, 56 | AS FoRNAS bo sitewcio Assim, um modo interessante de considerar o siléncio é por exemplo, através de uma fenomeno- logia das figuras (Prandi, 1988), que nos traz acom- plexidade ¢ a multiplicidade de “acontecimentos” do siléncio, produzindo um deslocamento metodo- légico em que o siléncio pode ser compreendido. c) Por em relagio miltiplos textos (intertextuali- dade), pela andlise das parafrases, em particular. O siléncio é fugaz. O homem nao o suporta ¢ as- sim nao lhe permite senao uma existéncia efémera. Pela relagao entre multiplos fragmentos de lingua- gem, pode-se construir uma certa duracdo para tor- nd-lo observavel, nas condigdes em que ele se pro- duz. Ressalta-se assim sua materialidade histérica. Em todos esses casos se faz intervir a historicida- de de forma particular, pelo fato de se relacionarem miultiplos discursos. Para ilustrar isso nds podemos lembrar alguns aspectos de nosso estudo (1990) a propésito do si- Iéncio sobre a presenga/auséncia do indio na(da) identidade cultural brasileira. Como o indio foi excluido da lingua e da identi- dade nacional brasileira? Com efeito, 0 indio nao fala na historia (nos tex- tos que sio tomados como documentos) do Brasil. Ele nao fala mas é falado pelos missionarios, pelos cientistas, pelos politicos. Mesmo se eles t¢m boas inteng6es, como media- dores, eles reduzem os indios a “argumentos” da re- OS LIMITES DO METODO E DA OBSERVAG, térica colonial. Eles falam do indio para que ele nao signifique fora de certos sentidos necessAtios paraa construcao de uma identidade brasileira determina- da em que 0 indio no conta. Trata-se da construgao de sentidos que servem sobretudo 4 instituigao das relagdes colonialistas entre os paises europcus ¢ 0 Novo Mundo. Para compreender esse siléncio, foi preciso refa- zer toda uma trama discursiva que foi construida pela ciéncia, pela politica social ¢ pela religido (a catequese) ao longo de uma histéria de 500 anos. Por seu lado, esse siléncio pode ser compreendido como resisténcia do indio a toda tentativa de inte- graco: ele nao fala (do lugar em que se “espera” que ele fale). Quer se trate de dominacao ou de resistén- cia, é pela historicidade que se pode encontrar todo um processo discursivo marcado pela producao de sentidos que apagam o indio, processo que o colo- cou no siléncio. Nem por isso cle deixa de significar em nossa histéria.* Osiléncio nao é pois imediatamente visivel e inter- pretavel. E a historicidade inscrita no tecido textual que pode “devolvé-lo”, tornd-lo apreenstyel, *com- preensivel. Desse modo, 0 trabalho cont" siléncio implica a consideragao dessas suas caracteristicas. 4. Outro modo de pensar o silencio em nossa histéria, apresentado dessa vex pelo historiados, pode ser apreciado no livro O siléncio dos vencidos (E. De Decea, 1982). 58 | AS FORMAS Do SLENCIO Os diferentes modos de considerar as formas do silencio, que citamos no inicio, se mantém. Entre o siléncio que se pode apreender na Amaz6nia ¢ 0 que hos ensina Mallarmé; ha, claro, uma grande distan- cia a percorrer. E isso que procuro compreender, As vezes em siléncio. 5 Neste capitulo, fizemos referéneia a filmes, miisica, poesia, pintura. Na pintura, especificamente, a questo do silencio tem sido evocada, pelo vids do “Agural’, de forma interessante. Cito aqui duas passagens da reflexio de M. Bacherich sobre a pintura: a) “o efeito que faz ver, que faz dizer, que faz prazer, furor, escindalo, como o atesta a histéria da pintura, nunca deixa de ter uma ligagio com a profundidade, a mp- tura, o entre — dois — planos, algo que est4 no batimento do objeto, sua presenga e suia austncia figurada; ali onde a efigie teria uma ligagio com aauséncia’; b) “O Vazio desarranja a perspectiva linear, coloca uma relagio de devi [...]. O Vazio é signo entre signos” 05 LIMITES DO METODO E DA OBSERVACAO | SiLEncio, SUJEITO, HISTORIA SIGNIFICANDO NAS MARGENS Notemos — de passagem — que o projeto fenomenologico husserliano, que visa reencontrar no “solo origind- rio” dos atos do stujeito (como conscitn- cia, atividade etc) a fonte daquilo que determina na realidade, 0 sujeito como tal é, com bastante exatiddo, a repetic¢éo do mito idealista da inte- rioridade, pelo qual 0 “ndo-dito” ndo poderia ser diferente do “ja-dito” ou do ‘diztvel” que 0 sujeito pode encon- trar por uma reflexdo sobre si mesmo. M. Picueux, Les Vérités de La Palice Nao se trata, aqui, de falar do siléncio da imagem, do siléncio da paisagem ou do mar. Nés nos propo- mos a falar do siléncio que significa em si mesmo. Com ou sem palavras, esse siléncio rege os proces- sos de significagao. Em suma, com nossa reflex4o, estamos procurando dar ao siléncio um estatuto explicativo. Essa concepgio de siléncio modifica e torna mais complexa sua relacio com a linguagem verbal, como veremos, No entanto, uma observacao se imp6e: nao tra- taremos aqui do siléncio cm sua concepgao mistica. Essa concepcao ¢ freqitentemente a dominante por- que o siléncio é um tema cuja histéria esta muito ligada ao sagrado, as religioes. Ele é considerado como “um apoio & adoragio” ou como “método que prepara aalma para experién- cias pessoais” (Enciclopédia de Religido e Etica de Hastings). Assim, cle foi praticado por pequenos ¢ gtandes grupos em quasc todos os periodos da his- téria religiosa no mundo todo. Na Grécia, 0 siléncio tinha um lugar importan- te nas sociedades pitagéricas e nos circulos drficos. Pitagoras exigia um ou mesmo trés anos de siléncio como forma de iniciagao na ordem religiosa. S6- crates refere varias vezes a importancia do siléncio como forma de conhecimento e, comparando-o a fala, afirma que o siléncio é bem mais decisivo que aquela. Por outro lado, ¢ remarcdyel que no Antigo Tes- tamento haja varias referencias ao siléncio, enquan- to no Novo ha apenas raras mengoes. Santo Agostinho, em suas Confissées, fala do silén- cio quando refere sua estada em Ostia com sua mae. Os misticos, os cristaos, os neoplaténicos, os per- sas, os hindus, os arabes, os judeus na Idade Média fizeram largo uso do siléncio como meio de encon- trar Deus. 62 | AS ForHtas po siutcio Os misticos catdlicos da Contra-Reforma e os Quietistas do século XII apreciavam bastante o si- léncio e faziam da pratica da presenca de Deus no siléncio o centro de sua religiao. Os trapistas, como sabemos, fazem voto de silén- cio eterno. Entre os protestantes, pode-se lembrar a Sociedade dos Amigos ou mais particularmente os Quakers, para os quais o siléncio tem um lugar central. Sem esquecer os eremitas que tém garantida — de diver- sas formas, adaptadas As diferentes formas da so- ciedade — sua presenga ao longo da histéria da hu- manidade. Finalmente, como do misticismo para a supersti- gio hd sé um pequeno passo, nao se pararia de enu- merar todas as seitas cujos fi¢is atribuem ao siléncio um poder “magico”. Essa longa histéria da relacao e da reflexio sobre o sil€ncio, nas suas determinagées religiosas ou mis- ticas, contribui bastante para uma tradicaéo em que nao se reflete sobre o siléncio em sua materialidade signipicativa. Assim, é preciso um certo esforco para “laicizar” a reflex4o sobre o siléncio. Nao é uma tarefa facil. Mesmo quando tomamos uma distancia razodvel em relagao 4 concep¢So mis- tica do siléncio, acabamos por significar no velho “tom” religioso: “Assim é 0 homem. O mundo est4 nele. E quando ele se retira, nao é somente da mul- tiddo exterior que ele se distancia, mas dessa multi- dao enorme que faz nele sua morada”. SILENCIO, SUsEITO, HISTORIA | 63 Siléncio, retiro, transcendéncia: nao é disso que estamos falando mas da necessidade de se conside- rar o siléncio que torna possivel toda significagao, todo dizer, O siléncio que nao é distanciamento mas presenga. O siléncio, mas nao 0 inefavel, “o ele- mento mistico” (Wittgenstein, 1961). Podertamos, por outro lado, relacionar siléncio e filosofia, pois “querer remeter a filosofia ao siléncio, como 0 fazem as reflexdes da existéncia [...], deixa lugar para o siléncio fascinado diante do brilho sem falhas dos mundos tradicionais” (A. Juranville, 1984). No entanto, nosso interesse incide sobre os processos de produc3o dos sentidos estabelecidos pelo siléncio e “a histéria como ruptura chama para além do siléncio da filosofia” (idem). E pois desse siléncio, presente na constituicéo do sentido e do sujeito da linguagem, de que nos ocu- pamos aqui. Duas ordens de questées se impdem desde o inicio: 1. Uma se refere diretamente ao sentido: up arog a) Como se pode explicar a literalidade como uni- dade e permanéncia de “um” sentido? b) Como se pode explicar 0 fato de que, para dizer “X’, € preciso nao dizer “y”? c) Como se pode explicar o sentido da censura? 2. Conseqitentemente, procuramos mostrar como questées desse género, e que envolvem a reflexio 64 | AS FORMS 00 siuewco sobre 0 siléncio, se refletem na concepgio de su- jeito do discurso. A fim de desenvolver essas quest6es, vamos dis- tinguir as diferentes nogées de siléncio, ou, dito de outro modo, as diferentes formas de siléncio. Siléncio e implicito E preciso, jA de inicio, diferenciar conceitos que cstao préximos mas que tém naturezas diferentes. ‘Trata-se da distingao siléncio/implicito que con- sideramos como duas nogées distintas com pressu- postos tedricos e conseqiténcias analiticas diversas, Do mesmo modo que a nogio de “ambigitidade” resulta da disciplinarizacdo da nogao de “polisse- mia, disciplinarizagao esta produzida pela meto- dologia da andlise lingitfstica, a nogao de implicito (Ducrot, 1972) é uma forma de “domesticagao” da no¢ao do nao-dito pela semantica (notadamente a semantica argumentativa). Essa domesticagio se faz pela exclusio da dimensfo discursiva e pela re- cusa da opacidade do nao-dito. Segundo Ducrot (idem), hd [...] modos de expressao implicita que permitem dei- xar entender sem incorrer na responsabilidade de ter dito [...]. Ora, tem-se freqiientemente necessidade de dizer certas coisas ¢ ao mesmo tempo de poder fazer como se nao as tivéssemos dito, de dizé-las mas de modo tal que se possa recusar a sua responsabilidade. SILENCIO, SUJEITO, HisTORA | 65 Para o implicito assim definido, 0 recorte que se faz entre 0 dito e o nao-dito 0 que se faz entre sig- nificac&o atestada e significacio manifesta (Ducrot, idem): o nao-dito remete ao dito, Nao é assim que concebemos 0 siléncio. Ele nao remete ao dito; ele se mantém como tal; ele permanece siléncio significa, A partir de sua referéncia necess4ria ao dizer, tal como se d4 com o implicito, o siléncio foi freqiien- temente concebido de forma relativa-negativa, sig- nificando, por sua dependéncia das palavras, apenas como contrapartida do dito, tendo uma funcao an- cilar ao dizer. A fim de produzir uma mudanga de terreno, defi- nimos osiléncio em si atribuindo-Ihe deste modo um valor positivo. Podemos, a partir de entao, apreender determinagées significativas do nao-dito que nao fo- ram ainda exploradas ¢ que fazem parte do que con- sideramos como siléncio. Essa mudanga de terreno deriva do fato de termos considerado que 0 siléncio tem seus modos proprios de significar. Em suma, nds distinguimos siléncio e implicito, sendo que o siléncio nao tem uma relagao de depen- déncia com o dizer para significar: 0 sentido do si- léncio nao deriva do sentido das palavras. Essas observagées se fazem necessérias porque é preciso considerar a relacio fundamental das pala- vras com o siléncio sem, no entanto, reduzir este a um complemento da palavra. Assim, procuramosnosdistanciardealgumasformas particulares de categorizagao do siléncio ja fixadas: 66 | AS FORMAS Do sittncio )) reafirmando, inicialmente, que o siléncio nao recobre o mesmo campo (tedrico, analitico) do implicito; b) em seguida, considerando que o siléncio, assim como a linguagem, nfo ¢ transparente. Um outro aspecto do deslocamento que procura- mos produzir desemboca no fato de que o siléncio nao se reduz, a auséncia de palavras. As palavras so cheias, ou melhor, sao carregadas de siléncio. Nao se pode exclui-lo das palavras assim como nao se pode, pot outro lado, recuperar o sentido do siléncio sé pela verbalizacao. Consideramos a tradugio do si- léncio em palayras como uma relagao parafrastica. A “legibilidade” do siléncio nas palavras sé é tornada possivel quando consideramos que a mate- tialidade significante do siléncio e a da linguagem diferem e que isso conta nos distintos efeitos de sentido que produzem. Siléncio e significacao A partir dessas consideragées, é importante insis- tir em que o siléncio nao se define como tal sé por sua relacdo com a parte sonora da linguagem, mas com a significagio, ou melhor, pela relagdo signifi- cativa som/sentido. SILENCIO, SUJEITO, HISTORIA | 67 0 siléncio fundador O siléncio de que falamos aqui nao é auséncia de sons ou de palavras. Trata-se do siléncio fundador, ou fundante, principio de toda significagio. A hipotese de que partimos é que o siléncio éa propria condic¢ao da produgao de sentido. Assim, ele aparece como 0 espago “diferencial” da signifi- cagao: “lugar” que permite a linguagem significar. O siléncio nao € 0 vazio, ou o sem-sentido; ao contrario, ele é o indicio de uma instAncia signifi- cativa. Isso nos leva A compreensio do “vazio” da linguagem como um horizonte e nao como falta. Evidentemente, nao é do siléncio em sua quali- dade fisica de que falamos aqui, mas do siléncio como sentido, como histéria (siléncio humano), co- mo matéria significante. O siléncio de que falamos éo que instala o limiar do sentido. O siléncio fisico nao nos interessa, assim como, para o lingiiista, 0 ruido enquanto matéria fisica nao se coloca como objeto de reflexio, Segundo J. de Bourbon Busset (1984), 0 siléncio nao é auséncia de palavras; ele € 0 que ha entre as palavras, entre as notas de misica, entre as linhas, entre os astros, entre os seres. Ele é 0 tecido intersti- cial que pde em relevo os signos que, estes, dao va- lor 4 propria natureza do siléncto que nao deve ser concebido como um “meio”. O siléncio, diz 0 autor, é0 “intervalo pleno de possiveis que separa duas pa- lavras proferidas: a espera, o mais rico € o mais fragil de todos os estados...”. O siléncio é “iminéncia”. 68 | As FORMAS Do siLENCIO No entanto, o siléncio nao esta apenas “entre” as palavras. Ele as atravessa. Acontecimento essencial ila significagao, ele é matéria significante por exce- léneia. Dessa concepgdo de siléncio, como condicao de significagao, resulta que ha uma incompletude constitutiva da linguagem quanto ao sentido (assim como, veremos em seguida, também o sujeito tem uma relagdo importante com a incompletude). Segundo essa perspectiva,-a busca da completu- de da linguagem — o que implicaria a auséncia do siléncio — leva 4 falta de sentido pelo muito cheio, mesmo sc, do ponto de vista estritamente sintatico, ha gramaticalidade. Exemplo: “A mulher que eu vi que tinha um livro que era amarelo que tinha com- prado para seu primo que moraya ao lado...” Assim, em face do discurso, 0 sujeito estabelece necessariamente um lago com o siléncio; mesmo que essa relacio nao se estabelega em um nivel to- talmente consciente. Para falar, o sujeito tem neces- sidade de siléncio, um siléncio que ¢ fundamento necessdrio ao sentido e que ele reinstaura falando. Af est, acreditamos, um dos aspectos da polisse- mais se diz, mais 0 siléncio se instala, mais os sen- mi: tidos se tornam possiveis e mais se tem ainda a dizer. Mas, em nossa concepgao, o siléncio ¢ mais ainda — ele significa por si mesmo: “O siléncio nao sao as palavras silenciadas que se guardam no segredo, sem dizer. O siléncio guarda um outro se- gredo que o movimento das palavras nao atinge” (M. Le Bot, 1984). SILENCIO, SWETO, HisTORIA | 69

Você também pode gostar