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O "novo espírito" do capitalismo

Slavoj Zizek

O medo do Outro "tóxico" é, portanto, o anverso (e a verdade) de nossa


empatia pelo outro reduzido a semelhante. Mas como surge essa síndrome? O novo
espírito do capitalismo, de Boltanski e Chiapello, examina o processo em detalhe,
especialmente a propósito da França. De modo weberiano, o livro distingue três
"espíritos" sucessivos do capitalismo: o primeiro, o espírito empreendedor, durou até a
Grande Depressão da década de 1930; o segundo teve como ideal não o empreendedor,
mas o diretor assalariado da grande empresa. (É fácil ver aqui um paralelo próximo da
conhecida passagem do capitalismo ético-protestante individualista para o capitalismo
corporativo-gerencial do "homem de empresa" 1.) A partir da década de 1970, surgiu
uma nova figura: o capitalismo começou a abandonar a estrutura fordista hierárquica do
processo de produção e, em seu lugar, desenvolveu uma forma de organização em rede
baseada na iniciativa do empregado e na autonomia no local de trabalho. Em vez de
uma cadeia de comando centralizada e hierárquica, hoje temos redes com miríades de
participantes nas quais o trabalho é organizado na forma de equipes ou projetos e a
atenção geral dos trabalhadores está voltada para a satisfação do cliente, graças à visão
de seus líderes. Dessa maneira, o capitalismo foi transformado e legitimado como
projeto igualitário: ao acentuar a interação autopoiética e a auto-organização
espontânea, acabou usurpando da extrema esquerda a retórica da autogestão dos
trabalhadores, transformando o lema anticapitalista em capitalista.

Na medida em que esse espírito pós-68 do capitalismo forma uma unidade


econômica, social e cultural específica, essa mesma unidade justifica o nome "pós-
modernismo". É por isso que, embora tenha havido muitas críticas legítimas ao pós-
modernismo como uma nova forma de ideologia, ainda assim devemos admitir que,
quando Jean-François Lyotard, em A condição Pós-Moderna2, elevou o termo de
simples designação de certas tendências artísticas novas (principalmente na literatura e

1
Há uma descrição detalhada desse trecho em Luc Boltanski e Eve Chiapello, The New Spirit of
Capitalism ' (Londres, Verso, 2005). Ed. bras.: O novo espírito do capitalismo, São Paulo, WMF Martins
Fontes, 2009.
2
12. ed . Rio de Janeiro, José OIympio, 2010.
na arquitetura) à denominação de uma nova época histórica, houve um elemento de
autêntica nominação nesse ato. O "pós-modernismo" funcionava agora, efetivamente,
como um novo Significante-Mestre que introduzia uma nova ordem de inte1igibilidade
para a multiplicidade confusa da experiência histórica.

No nível do consumo, esse novo espírito é o do chamado "capitalismo


cultural": fundamentalmente, compramos mercadorias não pela utilidade ou pelo
símbolo de status; compramos para ter a experiência que oferecem, consumimos para
tornar a vida prazerosa e significativa. Essa tríade lembra necessariamente a tríade RSI
lacaniana: o Real da utilidade direta (comida boa e saudável, qualidade de um carro
etc.), o Simbólico do status (compro determinado carro para indicar meu status - ponto
de vista de Thorstein Veblen), o Imaginário da experiência prazerosa e significativa. Na
distopia de Paul Verhoeven, O vingador do futuro, uma agência oferece instalar
lembranças de férias ideais no cérebro; ninguém precisa mais viajar para outro lugar, é
muito mais prático e barato simplesmente comprar lembranças da viagem. Outra versão
do mesmo princípio seria ter a experiência das férias desejadas na realidade virtual; já
que o que realmente importa é a experiência, por que não apenas comprá-la, evitando o
desvio desconfortável pela realidade? Supõe-se que o consumo sustente a qualidade da
vida, seu tempo deveria ser um "tempo de qualidade" - não tempo de alienação, de
imitação de modelos impostos pela sociedade, do medo de não conseguir "acompanhar
os vizinhos", mas tempo de realização autêntica de meu verdadeiro Eu, do jogo sensual
da experiência, de ser prestativo aos outros envolvendo-se com caridade ou ecologia,
etc. Um caso exemplar de "capitalismo cultural" é a campanha publicitária da
Starbucks: "Não é só o que compramos, é em que acreditamos". Depois de louvar a
qualidade do café propriamente dito, o anúncio continua:

“Quando você compra na Starbucks, percebendo ou não, você passa a


acreditar em algo muito maior do que uma xícara de café. Passa a acreditar
em uma ética do café. Com nosso programa Starbucks Shared Planet (Planeta
Compartilhado da Starbucks), compramos mais café do comércio justo do
que qualquer empresa do mundo, garantindo que os agricultores que cultivam
os grãos recebam um preço justo por seu trabalho. Aprimoramos e investimos
em comunidades e práticas de cultivo de café no mundo inteiro. É o karma
bom do café. [...] Ah, e parte do preço de uma xícara de café da Starbucks
ajuda a dar ao lugar cadeiras confortáveis, boa música e o clima certo para
sonhar, trabalhar e conversar. Todos precisamos de lugares assim hoje em
dia. (...) Quem escolhe a Starbucks compra uma xícara de café de uma
empresa que se importa com tudo isso. Não admira que seja tão gostoso”.3

Aqui, o excedente "cultural" é explicado em seus mínimos detalhes: o café é


mais caro que em qualquer outro lugar porque, na verdade, o que estamos comprando é
a “ética do café”, e isso inclui preocupação com o meio ambiente, responsabilidade
social para com os produtores e um lugar onde podemos participar da vida comunitária
(a Starbucks sempre apresentou suas lojas como uma comunidade Ersatz - substitutas).
E, como se não bastasse, se a sua necessidade ética ainda não estiver satisfeita e você
continuar preocupado com a miséria do Terceiro Mundo, você pode comprar outros
produtos. Eis a descrição da Starbucks do programa "Ethos Water":

“Ethos Water é uma marca com uma missão social: ajuda as crianças do
mundo a ter acesso a água potável e faz crescer a consciência sobre a
escassez mundial de água. Toda vez que alguém compra uma garrafa de água
Ethos™, o Ethos Water contribui com 5 centavos de dólar (10 centavos no
Canadá) para a nossa meta de arrecadar pelo menos 10 milhões de dólares em
2010. Através da Starbucks Foundation, o Ethos Water apoia programas
humanitários de acesso à água na África, na Ásia e na América Latina. Até
hoje, a concessão de recursos pelo Ethos Water superou os 6,2 milhões de
dólares. Estima-se que esses programas ajudarão 420 mil pessoas a ter acesso
a água potável. saneamento e informações sobre higiene.”4

(Não se menciona aqui que uma garrafa de água Ethos é 5 centavos mais cara
na Starbucks do que em estabelecimentos semelhantes...) É assim que o capitalismo, no
nível do consumo, incorpora a herança de 68, a crítica do consumo alienado: a
experiência autêntica tem importância. Uma campanha recente dos hotéis consiste numa
afirmação simples: “As viagens não nos levam apenas de A para B. Elas deveriam
também nos tornar pessoas melhores”. Há apenas uma década, alguém imaginaria um
anúncio desses? Não é também por essa razão que compramos alimentos orgânicos?
Quem realmente acredita que as maçãs “orgânicas” meio podres e muito caras são mais
saudáveis que as variedades não orgânicas? A questão é que, ao comprá-las, não
estamos apenas comprando e consumindo, estamos fazendo algo significativo: estamos
mostrando nossa consciência global e nossa capacidade de nos preocupar, estamos
participando de um projeto coletivo... A mais recente expressão científica desse "novo

3
Citação de um anúncio de página inteira no USA Today, 4 maio 2009. p. A9
4
Citado de: www.starbucks.com
espírito" é o surgimento de uma nova disciplina: os "estudos da felicidade". No entanto,
como é possível que em uma época de hedonismo espiritualizado, em que o objetivo da
vida é definido diretamente como felicidade, o número de pessoas com ansiedade e
depressão esteja explodindo? É o enigma dessa autossabotagem da felicidade e do
prazer que torna a mensagem de Freud mais pertinente do que nunca.

ZIZEK, Slavoj. Primeiro como Tragédia, depois como Farsa. São Paulo: Boitempo,
2009. Pág 52-55.

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