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O FENOMENO TEATRAL Ha quem ainda hoje considere o teatro essencial- mente como um veiculo da literatura dramatica, espé- cie de, instrumento de divulgacgaéo a servigo do texto literario, como o livro é veiculo de romances e o jor- nal, de noticias. Essa concep¢ao exclusivamente lite- réria do teatro despreza por completo a peculiaridade do espetdculo teatral, da pega montada e representada. Vale citar, neste contexto, o que Mario de Andrade disse certa vez ao apreciar de modo positivo uma en- cenacio de Alfredo Mesquita por ter este evitado “aquela poderosa mas perigosissima atracio da palavra com que em nossa civilizac&o a literatura dominou o 21 teatro © desequilibrou-o, esquecendo-se de que ele era tes de mais nada um espetaculo”. A discussao é antiga e esta contribuigio procura evitar © extremismo contrario, em detrimento da ratura ’. Contudo, é necessdério combater uma opiniao que tende a reduzir o teatro, por inteiro, 4 literatura, qualificando a cena como “secundaria” e mero “arte- sanato” ¢ atribuindo-Ihe sé “em diminuta margem" uma “‘legitima intuicfo artistica criadora™, Nao se faz jus a arte do ator, julgando-a “escrava, secundé- ria, no inteiramente arte”. Sem divida, é certa a cri- tica a hipertrofia da fungao diretorial — tao em voga no “teatro desenfreado” das primeiras décadas deste século* —,mas dai nfo € preciso chegar ao exagero de atribuir ao diretor apenas a fungdo de “entender a peca”. HA muita gente que entende pegas sem por isso servir para diretor. Alids, 0 proprio sr. Hecker Filho acrescenta logo que cabe ao diretor comunicat a peca “em sua plena possibilidade de significagio”, dan- do-lhe “a mais adequada e humana, tensa, encarnaciio possivel”. -evidente que isso exige do diretor nfo sé a capacidade de entender a pega e sim uma série de qualidades entre as quais a menor certamente nao serd a da imaginacao criadora. Enfim, 0 problema nao é proposto na sua complexidade, quando se diz que a magnitude do teatro “reside na literatura dramatica O demais é demais”. Em se tratando de teatro, o de- mais é tudo. De outro modo bastaria ler o texto. A importancia da literatura dramética — parti- cularmente na fase atual do teatro brasileiro — deve de fato ser realcada. Reside nisso o grande mérito das teses em foco. No entanto, hé no puritanismo li- terdrio, antiteatral, algo de iconoclasmo, algo que se dirige contra o espetaculo sensivel, multicor e festivo. Esse procedimento lembra um pouco o do afamado (1) Tendéncia que prevalece mais recentemente, (2) As citagdes referem-se a trabalhos de Paulo Hecker’ Filho, advogado radical da concepeio literéria. (3) Voga que atualmente se radicaliza. 22 Gottsched, na Leipzig do século XVIII, que, dirigin- do-se com razio contra a separacao total entre um teatro inteiramente tomado pelo mimo popular das companhias ambulantes ¢ a literatura erudita, chegou ao extremo oposto de “exilar” ¢ prescrever o Arlequim; © que, na palavra de Lessing, era “a maior arlequina- da jamais levada a cena”. Diante disso surge a tenta- g4o igualmente extremista de dizer que no teatro os sentidos valem mais do que o sentido; e a vida dos sentidos mais do que o sentido da vida; que nao cabe ao ator servir de intérprete ao drama, mas a este ser- vir “& pintura viva do ator” (Lessing). Afinal, toda a histéria da literatura dramatica explica-se pela as- piragdo de dar um substrato ao teatro*. Ainda que nao se tenda a nenhum radicalismo oposto, em favor do. teatro absoluto, 4 maneira de Craig ou Artaud, ha bons argumentos para limitar-se nao s6 © exclusivismo do teatro literario, mas tam- bém a supervalorizagao do “‘literdrio” no préprio tea- tro literario. O argumento genético, no caso nao in- teiramente falso, mostra que a palavra nao desempenha papel de destaque na origem do teatro. Pode-se acres- centar que pesquisas etnolégicas atuais provam haver, entre povos que se hesita em chamar de primitivos, um grande teatro sem texto dramatico, Pode-se argumen- tar também com a Commedia dell’arte, teatro’ no sen- tido pleno do termo, o qual, alias, exerce tremenda influéncia no nosso século: ¢ a volta de Arlequim, eterna encarnagdo do prazer elementar nas manifesta- des Iidicas da cena. Acrescente-se que o critico tea- tral ndo é critico literério, embora, também neste do- minio, deva ter ampla competéncia. Existe uma “ciéncia do teatro” que estd longe de se ocupar ape- nas com a hist6ria e a andlise da pega dramatica. Uma obra dedicada a esta ciéncia costuma conter nao sé capitulos sobre a danga, mimica, pantomima, sobre o (4) Essa tendéncia de salientar a0 méximo a importincia do ator € defendida atualmente sobretudo por Grotowski. 23 “mimo” e o “ator” etc., mas também sobre uma série de tipos de textos que nfo se enquadram na “alta” li- teratura, servindo, ainda assim e por vezes precisamen- te por isso, admiravelmente a certos propésitos teatrais. Pode-se aduzir ainda que o palco literdrio, por mais realce que mereca em determinada fase de deter- minado teatro, € apenas uma das possibilidades, um dos setores do teatro, mesmo declamado. Um grande teatro como o barroco, talvez o mais espiritual e, ao mesmo tempo, o mais sensivel que jamais existiu, dava em certas das suas manifestagdes — como a jesuita — tao pouco valor a palavra que esta, sendo latina, nem sequer era entendida pela maioria do piblico, Os textos usados muitas vezes cram apenas “pré-textos” para a arte dos engenheiros, maquinistas, pintores, mt- sicos, diretores ¢ atores que se uniam para assaltar todos os sentidos de um publico a quem, simultanea- mente, se apresentava a mais espiritual das ligdes: o engano, a fugacidade, a frustracao do sensivel em face do supra-sensivel e eterno. O teatro do mundo no mundo do teatro. Todavia, todos estes argumentos sio de ordem marginal. O que importa verificar é que a pega como tal, quando lida e mesmo recitada, é literatura; mas quando representada, passa a ser teatro. Trata-se de duas artes diferentes, por maior que possa ser a sua interdependéncia. A literatura teatral vira teatro lite- rério; 0 que era substantivo passa a ser adjetivo, o que era substancia torna-se acidente. Nao é jogo de pala- vras. © fato descrito marca a passagem de uma arte puramente “temporal” (a literatura) ao dominio de uma arte “espdcio-temporal” (0 teatro), ou seja, de uma arte “auditiva” (deve considerar-se a palavra, na literatura, como um fendmeno essencialmente auditivo se nfo se tomam em conta as pesquisas concretistas que 24 invadem o terreno das artes plasticas) ao campo de uma arte dudio-visual. Estas velhas distincdes estéti- cas talvez paregam um pouco pedantes. No entanto, a sua importancia salta aos olhos visto mostrarem que as palavras cabe no teatro outro status ontologico que na literatura. Nesta, a realidade dada a percepgio € composta de sinais tipogrdficds (que sé na poesia concretista adquirem valor sensivel ¢ expressivo) ou de sonoridades quando a obra é recitada. Em ambos os casos o que “funda’’ a obra sio os elementos sonoros. das palavras, co-dadas (ao ouvido interior), quando ela € lida, e diretamente dadas a percepcio, quando é recitada. Contudo, o que “constitui” de fato a obra litera- ria € a seqiiéncia das unidades significativas projeta- das pelas palavras e oragdes, A partir deste processo muito mediado e através de varias outras mediagées constitui-se na mente, ou seja, na imaginagao do leitor ‘ou ouvinte, 0 mundo imaginario da ficcao literdria. Jé no teatro o que “funda” o espeticulo — ¢ o que é dado & percepcdo imediata — sio os atores € cendrios visiveis. Através deles sao quase-dados, qua- se-percebidos, a ponto de quase nao se notar a media- Gdo. as personagens e 0 espaco irreal da ficgdo teatral. Assim, 0 mundo imaginério apresenta-se de uma for- ma quase direta, sem as numerosas mediacoes da li+ teratura. A propria voz dada & percepgio j4 nao & propriamente do ator e sim da personagem, ao passo que na mera recitagio a voz é sempre do recitador. Tal diferenca se verifica gracas 8 metamorfose do ator tornado personagem (no teatro de Brecht, o fenémeno fundamental do teatro, a metamorfose do ator, ¢ pres- suposto: 0 ator deve ser a personagem para poder afastar-se dela; trata-se de um jogo inteiramente tea- tral, inconcebivel na literatura). Formulando de mo- do radical, pode-se dizer, portanto, que na literatura 25 € a palavra que constitui a personagem, enquanto no teatro é a personagem que constitui a palavra, é fonte dela. Com efeito, no teatro a personagem ja “fala” antes de pronunciar a primeira palavra. A grande personagem ¢€ 0 grande ator, cujo siléncio pode ser muito mais expressivo do que centenas de palavras, be- neficiam-se mutuamente de um carisma que sé através da presenca viva se manifesta. O que “funda”, portanto, o espetaculo é o ator (€ nao as sonoridades de palavras) ¢ 0 que o constitui so as personagens (e nao conceitos ou unidades signi- ficativas). Ha naturalmente a precedéncia da litera- tura teatral no teatro literario, ja que este usa aquela como seu substrato. Entretanto, para o teatro essa precedéncia, usando analogias aristotélicas, é a do blo- co de pedra que sera enformado pelo escultor, adap- tando-se este naturalmente as “exigéncias” da maté- ria na sua mao. Sem dtivida, visto da literatura, o palco apenas “interpreta” o texto. Visto, porém, do teatro, 0 texto contém apenas virtualmente, potencial- mente, o que precisa ser atualizado pela “forma”, pela “jdéia” teatral. Essa atualizagio é ao mesmo tempo “concretizacdo”, encarnacdo, € a passagem para a con- tinuidade sensivel e “existencial” do que no texto ape- nas € “esquematizado” por conceitos descontinuos ¢ abstratos. Todo leitor, individualmente, traduz os si- nais tipogrdficos, sonoridades, palavras e conceitos em “representagdes” mentais, através da sua imaginacdo. S6 © teatro, contudo, Ihes d4 a plenitude da existén- cia perceptual. E nesta passagem para o medium cénico, a palavra perde, ontologicamente, a sua fungdo fundante ou constitutiva, cedendo-a ao ator que, meta- morfoseado em personagem, torna-se fonte da palavra. Nesta passagem de uma a outra arte, j4 a esco- tha do ator é um ato criativo. A mediagéo do mun- do imagin4rio .j4 nao dependeré apenas de palavras 26 descontinuas e sim, antes de tudo, da presenga e con- tinuidade fisicas do ator-personagem que passa a preencher todos os detalhes que o texto literdrio ape- nas sugere. O que, na mente do leitor, era jogo ima- ginativo, quase sempre vago, tem de manifestar-se agora como “realidade” Audio-visual, precisa, total- mente determinada nos pormenores. Assim, 0 mundo imaginario passa do plano das “universalias” literd- rias ao plano do “nominalismo” dos sentidos; 0 que, em cada espetdculo (mesmo em se tratando da mesma peca), exige o ato criativo da individualizagio e defi- nigao radicais, da escolha entre um sem-nimero de possibilidades. E nesta definigo e escolha nao 26 co- laboram o diretor e 0 ator, mas, em cada representa- 40, 0 préprio publico — fenémeno inexistente na li- teratura. Esta escolha implica, em cada gesto, em cada acento da voz, responsabilidade criadora, estética. Mesmo um filésofo como Nicolai Hartmann, tao dado 4 supervalorizagéo da literatura, admite na sua Esté- tica que ao ator (af se incluindo sempre o trabalho invisivel do diretor) cabe plena liberdade nos porme- nores inumerdveis, pormenores que justamente consti- tuem a “realidade” sensivel da cena. E isso a ponto de o ator se tornar, segundo Hartmann, co-criador, co-poeta. Fato que Voltaire bem antes reconheceu ao observar a respeito do ator Lekain que “nfo sou eu quem criou minhas tragédias — é ele!”. Ao contrario dos adeptos do texto, que consideram 0 corpo um “dado obscuro”, Hartmann considera a palavra, face ao mundo sensivel do teatro, matéria “bruta”, pouco flexivel. Contudo, mesmo as formulacées de Hartmann no so satisfatrias. O simples fato de, no espe- taculo, jé nao ser a palavra constitutiva ¢ sim o ator- ~personagem, confere as oragGes um significado diver- 27 so do literario. Elas s6 desenvolvem scu pleno valor cénico ao se tornarem “musica de movimentos”, ao se repetirem no gesto, na mimica e¢ pantomima, em suma. ao passarem para a dimensio espdcio-visual. 2 Repetindo: o teatro, mesmo quando recorre & li teratura dramatica como seu substrato fundamental, nao pode ser reduzido A literatura, visto ser uma arte de expressao peculiar. No espetaculo j4 nao é a pala- vra que constitui e medeia o mundo imaginario. E agora, em esséncia, o ator que, como condig&o real da personagem ficticia, constitui através dela o mundo ima- gindrio e, como parie deste mundo, a palavra. Con- tudo, nao se trata apenas de uma inversdo ontoldgica. Concomitantemente, 0 espetaculo, como obra especi- fica, por mais que se ressalte a importancia da literatu- ra no teatro literério, passa a ter valor cénico-estético somente quando a palavra funciona no espaco, visual- mente, através do jogo dos atores. £ caracteristico, tanto no sentido ontolégico como estético, que os ges- tos geralmente precedem as palavras correspondentes (ainda que se trate apenas de uma fraccao de segun- dos). E a presenca sensivel daquele que ouve o outro, sem falar, € de grande importancia, ja que a_reacao do interlocutor mudo, no palco, se transmite de certo modo a platéia. © ator, em cuja criagdo para maior simplicidade se considera incluido 0 trabalho miultiplo do diretor, “preenche” com dados sensiveis, dudio-visuais, 0 que © contexto verbal da pega dramatica necessariamente deixa na relativa abstracdo das universdlias conceituais Esse preenchimento é um trabalho eminentemente in- ventivo, visto os dois textos da peca — didlogos e ru- bricas — deixarem em cada instante larga margem a escolha dos dados sensiveis. A palavra pode celebrar, nunca concretizar o ser individual e singular, somente 28 dado a atos que incluem a percepcao imediata. Cada oracdo abre assim um extenso campo de possibilida- des para a plena concretizacio e atualizacio dudio- -visuais do texto. Com efeito, a personagem nele dada nao é um ser humano integral, nao o é no pleno senti- do sensivel; é, no melhor dos casos, apenas 0 com- plexo do que é literariamente apreensivel. O jogo fi- siondmico, a melodia sonora, 0 timbre da voz, o “cres- cendo” e “diminuendo”, “accelerando” e “ritardando” da fala e dos gestos, a vitalidade e tensao, os siléncios — tudo quanto distingue a pessoa existente, nao pode ser definido pela palavra. O texto dramético somente Projeta, através da seqiiéncia unidimensional dos sig- nificados, o sistema de coordenadas psicofisico, cuja conversio para a tridimensionalidade cabe 4 cena e ao ator. Parece que foi Coquelin quem disse que uma 86 palavra deve ser capaz de provocar lagrimas e risos pela mera inflexdo da voz do ator. Assim, a encarnacéo da palavra pelo ator e pela cena parece ser a “realizagdo” do murtdo imaginério projetado pelo texto e, com isso, de certo modo, uma “traigiio” do jogo imaginativo. No entanto, é dbvio que apenas aos atores e A cena (como mera materia~ lidade) cabe ser real. As personagens e 0 mundo em que se situam sao irreais, imagindrios; sio “seres pu- ramente intencionais”, como ocorre em qualquer outra arte; com a diferenca de que a realidade mediadora das pessoas ficticias, em vez de consistir de cores, mar- more, sucessio de sons ou sinais tipograficos, € agora a de pessoas reais; dat surgir a impressio da “realizagao” do texto. Entretanto, trata-se apenas da atualizagdo € concretizagéo plenas do mundo intencional da pega, sem que em nada the seja diminuida a sua categoria de imaginagao °. Se nao fosse assim o espetdculo deixa- ria de ser arte. Em toda obra artistica se associa ao (5). © problema fenomenoligico da intencionalidade ¢ questdes re- lacionadas sfo amplamente expostos no meu ensaio “Literatura € Personagem’, vol. A Pérsonagem de Fiegéo, Ed. Perspectiva, S. Paulo, 29 plano real, de um “ser em si”, ¢ fundado nele, outro plano, de ordem imagindria, de um “ser apenas para nds”, plano esse apreendido pelo apreciador adequado. Assim, na miisica se funde, na mente do apreciador, com a sucessio fisico-actistica dos sons, perfeitamente real, o plano da “duracio”, isto é, de sinteses e totali- dades significativas, cujo ser é irreal e cuja “audigao interna”, exige uma acao especifica do apreciador ade- quado. O que parece ser um ato tnico e realmente como tal se impde, é na verdade um tecido complexo de atos que ultrapassam de longe a mera percepgdo. Posto isso, & supérfluo acentuar que as persona gens do espetaculo, apesar da sua concretizagao sen- sivel maior do que a do texto, conservam plenamen- te o cardter de personagens ficticias, em comparagao s reais: maior coeréncia (mesmo quando incoerentes), maior exemplaridade (mesmo quando banais), maior significagio e transparéncia; e maior riqueza — nao por ser a personagem mais rica do que a pessoa € sim por causa da concentragdo, selecdo, densidade ¢ esti- lizacao do contexto imagindrio que retine os fios dis- persos © esfarrapados da realidade num padrao firme consistente. Assim, 0 fenédmeno basico do teatro, a metamor- fose do ator em personage, nunca passa de “repre- sentagao”. O gesto e a voz sao reais, sao dos atores; mas 0 que revelam é irreal. O desempenho é real, a acéo desempenhada é irreal. Por mais séria que esta seja, a propria seriedade é desempenhada, tendo, pois. cardter Nidico. Visto, porém, que os significados — © mundo revelado pelo desempenho — sao aquilo a que se dirige principalmente o raio da intengio do piblico, ocorre normalmente o fendmeno do aparente “desaparecimento” do ator que —~ se nao for mau ar- tista ou, por outro, ator brechtiano — se torna “invi- sivel”, “transparente” & personagem. Esta, no sentido 30 exato do termo, nfo é “percebida” (ja que é mera ficgio); € apreendida por atos espontaneos da imagi- nagdo dos espectadores que, em virtude desses mes- mos atos visando as personagens ¢ nao aos atores, pas- sam a atribuir aquelas e nao a estes os gestos e pala- vras reais. Assim, a entidade constitutiva dos gestos e palavras passa a ser a personagem “fundada” no ator. De qualquer modo, por mais intima que seja a fusdo ¢ identificagao entre a realidade sensivel do ator ¢ a irrealidade imagindria da personagem, a metamor- fose ‘nunca ultrapassa o plano simbdlico. O fato de seres humanos (em vez de cores ou outros materiais) encarnarem seres humanos € um dado basico da an- tropologia, estudado por intimeros pensadores, desde George Mead e Huizinga a Plessner ¢ Sartre. O ator apenas executa de forma exemplar e radical o que é caracteristica fundamental do homem: desempenhar papéis no palco do mundo, na vida social. Que a mAscara faz a “persona” como o habito o monge é assi- nalado de mil maneiras pela lingua e G. van der Leeuw afirma que “a filosofia dos trajes é a filosofia do ho- mem. No traje reside toda a antropologia”. Quem perde seu traje, ficando desnudo, perde sua face, seu Ego. O ator, ao disfargar-se, revela a esséncia do homem: a distancia em face de si mesmo que Ihe per- mite desempenhar os papéis de outros seres humanos. O homem — disse Mead — tem de “sair” de si para chegar a si mesmo, para adquirir um Eu proprio. E ele © faz tomando o lugar do “outro”. Segundo Nico- lai Hartrhann, é somente no expandir-se e autoperder-se que a pessoa se encontra a si mesma ¢ scmente na identificagéo consigo mesma ela é uma estrutura ca- paz de expansio, isto é, um ser espiritual. A auto- consciéncia pressupde nao-identidade © identidade ao mesmo tempo; a identificagio pressupde a distancia. 31 No momento em que o homem se descobre, ele est além de si mesmo. Conquistando esta “présence a soi”, a pessoa se desdobra. se reflete, se fragmenta; é livre, nao coincide consigo. A capacidade de cindir-se é exercida pelo homem nas suas atividades especializadas cotidianas, ao isolar de si mesmo “pedaco” envolvido na ocupacéo. No ator, contudo, esse fragmento abrange todo o corpo € toda a vida interior que se tornam materiais da sua arte; ele se cinde, a si, em si mesmo, mas perma- nece, ainda assim, aquém da fissura. Trata-se de uma entrega controlada, o “pequeno olho vigilante” perma- nece aberto e fiscaliza a criagéo imagindria que é iden- tificagdo e nao identidade. A extrema complexidade dos problemas envolvi- dos desafia qualquer sondagem. Nem o equipameato conceitual usado nos famosos escritos de Diderot ou Coquelin, nem o dos seus adversdrios “emocionais”, estéo a altura das dificuldades. Em termos légicos, os gestos, a mimica e 0 jogo vocal através dos quais o ator exprime a emogdo nunca chegam a ser sinais de estados ou atos internos reais, isto é, “sintomas” que anunciam tais estados ¢ atos. Permanecem expressiio das imagens desses processos intimos, isto é, simbolos. Tém, portanto, cardter “semantico” e nao sintomitico. E precisamente esta intercalagéo do mundo simbélico e imaginério que permite ao homem distanciar-se de si mesmo, conquistar a autoconsciéncia e, deste modo, desempenhar papéis, dar forma A sua atuagio. Todavia, as expressdes fisicas € vocais — ao con- trario das palavras que sao quase sempre simbolos — costumam ser, pelo menos na vida real, em certa me- dida sinais imediatos da realidade (psiquica). Daf a grande fora expressiva dos gestos ¢ inflexdes da voz. Esta forca nfo se perde no desempenho cénico, em- bora o sinal passe agora a funcionar como simbolo. E 2 essa intensidade expressiva retroage sobre o proprio ator. Verifica-se uma induc&o psicofisica, a mitua intensificago dos movimentos fisicos e psiquicos de- sencadeada pela imaginacio, a ponto de a imagem da emog&io se revestir de toda a aparéncia da emocdo real. A imagem assume formalmente os aspectos di- namicos da realidade sem, contudo, adquirir o seu “peso material”. Cabe. mesmo ao ator emocional, manter-se no limiar da “realizagdo”, sem nunca ultra- passé-lo. Se o ultrapassasse, o desempenho passaria a ser auto-expressdo, sintoma de emogées reais. Tor- nar-se-ia, portanto, em mera reacdo involuntaria, “ins- tintiva”. Como tal, nao possuiria espontaneidade real, ativa, nfo pertenceria a6 reino da arte ¢ do espirito. O desempenho, como articulagdo simbdlica ou lingua- gem, como obra enfim, tem estrutura teleoldgica, nexo que é alheio aos movimentos que sao sinais. Estes traem 0 que os simbolos comunicam. Enquanto ‘estes articulam e formulam a emogio, os sinais fazem par- te dela. Mas talvez no se deva negar o momento excepcional em que 0 grande ator, pelo menos em de- terminada fase da elaboragao do papel, supera a dico- tomia e alcanca um ponto em que liberdade e necessi- dade coincidem. Seja como for, 0 desempenho do ator é uma cria- cdo imagindria, espiritual, como a de todo artista. Den- tro do sistema de coordenadas esbogado pelo drama- turgo abre-se-Ihe um vasto campo de elaboragao ficcio- nal para articular e compor as formas simbélicas dos gestos ¢ inflexdes vocais, para ritmizar, selecionar, es- tilizar e distribuir os tragos e acentos psicofisicos, cuja melodia integral constituira a personagem. Nao impor- ta se a imagem total se Ihe constitui pouco a pouco a partir de, pormenores, estes tltimos refundidos depois a partir dela, ou se de uma intuicao prévia da imagem decorrera desde logo 0 conjunto de detalhes. 33 De qualquer modo, a personagem nao “viverd” sem a sintese ativa, produto da espontaneidade livre (para citar a definigfio cldssica da imaginagao, ainda repetida por Sartre), porque sem ela o ator nao terd a imagem integral da personagem e, assim, nao podera fundir-se com esta, nem tampouco distanciar-se dela, se atuar numa peca de Brecht. © ator, portanto, nao é garcdo. Participa do pre- paro do prato. A melhor prova disso é 0 fato de que quatro grandes atores, mesmo interpretando lealmente © texto, criam quatro personagens profundamente di- versas ao representarem o mesmo Hamlet literdrio. problema que se levanta é: de onde, afinal, tira © ator a imagem humana concreta de que o autor ape- nas lhe pode propor o sistema de coordenadas? £ de supor-se que, guiado por este, submerja numa reali- dade fundamental andloga aquela que originalmente inspirou 0 autor. O texto projeta um mundo imagina- tio de pessoas e situagGes que sugere ao ator certa realidade humana que lhe é acessivel mercé da sua ex- periéncia externa e interna e conforme o nivel e rique- za espirituais préprios. A base disso verifica-se 0 ato criativo: a reconversio da experiéncia humana, de cer- to modo da propria realidade intima, em imagem, em sintese, em Gestalt que possibilite a composigao sim- bélica em termos de uma arte diversa daquela do autor. J4 nao se trataré de encontrar as palavras que consti- tuam a imagem vislumbrada pelo poeta e sim de com- por com o material do proprio corpo a imagem de uma pessoa que seja capaz de proferir estas palavras ou, me- Thor, de que tais palavras, em tais situagdes, defluam com necessidade. Ao fim, a imagem serd dele, ator (e diretor), — transfiguragdo espontanea, imagem da propria experiéncia e das préprias virtualidades, den- tro das coordenadas propostas pela pega. Nao se tra- tara, evidentemente, da auto-expressao biografica ou 34 psiquica do ator, como a peca nao é a do autor. Mas seré a formulasao simbélica, a transposi¢éo imagind- ria das préprias ¢, portanto, das potencialidades hu- manas que séo de todos nés, como seres humanos, ¢ de que todos nés podemos participar, No fundo, o grande ator nao tem modelo; o texto da pega nao o fornece. A “pessoa” que coloca diante de nés e cujo destino podemos viver intensamente gragas a identifica 40. mas que, ao mesmo tempo, podemos contemplar a distancia estética, pelo fato de a identificagao ser apenas simbdlica — esta “pessoa” 0 grande ator nao a encontrou em parte nenhuma, a nao ser dentro de si mesmo. Disfargando-se, ele se revela, revelando as virtualidades humanas. Demonstra assim que o ator € 0 homem menos capaz de disfarcar-se. em virtude da “porosidadé” do seu corpo a vida intima. E reve- lando-se, revela duplamente a humanidade: através da imagem especifica que. inspirado pelo autor, dela apre- senta, e através do mero fato de apresentar esta ima- gem especifica representando. Ao distanciar-se de si mesmo, celebra o ritual da identificagao com a ima- gem do outro, isto é, do seu tornar-se ser humano. Convida-nos a participar desta celebragaio; incita-nos a sair de nos, através da identificagao com o outro, para reencontrar-nos mais amplos, mais ricos e mais defini- dos ao voltarmos a nés mesmos. Tornou-se claro que o teatro é uma arte bem diversa da literatura. Se na literatura a palavra é fon- te da personagem, no teatro a personagem é fonte da palavra, gracas 4 metamorfose do ator em ser ficticio. No paleo, a personagem ja “fala” antes de pronunciar 4 primeira palavra. O siléncio do grande ator pode ser mais elogiiente do que centenas de palavras, enquanto na literatura o proprio silénclo tem de ser mediado por 35 palavras. E pronunciando embora o mesmo texto, a personagem dir4 outra coisa conforme o ator for alto ou baixo, gordo ou magro. A comunicagao sera em cada caso diversa, visto 0 piiblico néo apreender ape- nas palavras, na sua forma desencarnada, mas 0 todo de uma comunicagao Audio-visual em que nenhuma parcela pode ser isolada da impressdo integral. O palco encarna sensivelmente os detalhes que a palavra apenas sugere. Daf a necessidade da escolha radical entre mil possibilidades na hora em que o sis- tema de coordenadas fornecido pelo texto deve ser preenchido pela criagdo teatral. A indeterminagao do esquema projetado pela lingua torna possivel a gran- de flexibilidade do teatro vivo que pode preencher de mil maneiras os vaos ¢ vacuos deixados pelo texto, con- forme a época, a nago, o gosto especifico do publico local, Por isso, as pegas e as representagdes nfo en- velhecem como ocorre geralmente com os filmes. Do exposto resulta que o teatro vivo tem direi- tos em face do texto. Deve respeité-lo enquanto se trata de uma grande peca, mas deve interpreté-lo ¢ assimila-lo segundo as concepcdes de uma arte viva e atual que, a no ser em casos especificos, nao se sa- tisfaz em ser museu, visando, ao contrario, a comu- nicar-se intensamente com o seu publico. Essa adap- tagio, de resto, é inevitavel porque cada época inter- preta de modo diverso determinada pega. Assim, te- mos um Hamlet barroco, outro classicista, ainda outro romantico, temos 0 Hamlet nietzschiano, o psicanali- tico e, mais recentemente, 0 politico, tal como surge em paises socialistas. Essa e outras vantagens, que distinguem o teatro e que compensam a desvantagem de nao poder com- petir com os processos das indistrias culturais, Ihe advém do fato de permanecer num estdgio artesanal. Gragas a isso pode criar ilhas de resisténcia, de atrito 36 ¢ ndo-conformismo em face das gigantescas maquinas de conformizagao que sao as inddstrias culturais. Ha quem ache ridicula a propria tentativa de resistir & en- grenagem dessas industrias, tal como agora funcionam (pois ninguém Ihes nega as possibilidades enormes) Essa atitude, que leva A divinizagao do fato, simples- mente por ser fato, € um conformismo vanguardeiro que se conforma com o conformismo. Precisamente a estrutura artesanal da arte cénica, aparentemente obso- leta € arcaica, resulta em privilégio e superioridade in- contestdveis. O préprio método de produgo ja dis- tingue 0 produto. Mesmo quando a matéria-prima (a pega) é importada, o espetdculo sempre é feito sob me- dida, para a regiao, o pais, 0 piiblico em questao. Por mais que se destaque a eficdcia, a muitos res- peitos superior, do cinema, do radio, da tv, a qualida- de artesanal do teatro Ihe proporciona um privilégio indelével: a presenga viva do homem no palco, a co- municagao (no mediada por imagens ou transmiss6es) entre pessoas encarnando personagens e 0 piiblico con- creto e real, convivendo no mesmo espaco e tempo, apesar de as personagens se moverem em espacos e tempos ficticios. Precisamente hoje é importante re- petir esse fato tantas vezes destacado. Decorre dai uma atitude diversa da platéia, outra concentragdo, outra disposicio, outra maneira de ver e ouvir. Por mais que o teatro se tenha distanciado de suas origens rituais, seu publico conserva algo da sua qualidade pri- mitiva de participante numa realizagio comum. Sua presenca ativa, de certo modo criadora, distingue-se da passividade conformista do publico manipulado pelo suave terror totalitério das indastrias culturai: Gragas 4 comunicagao direta ¢ nao mediada, ba- seada no feitio artesanal do jogo cénico, a metamor- fose, fendmeno fundamental do teatro, pressuposta 37 mesmo num desempenho que tende ao distanciamen- to, pode ser suspensa de um modo inexeqiiivel na co- municagéo mediada ¢ indireta das industrias culturais. Essa peculiaridade do teatro tem sido modernamente aproveitada para acentuar o que no fundo Ihe é ine- rente — a direcéo pronunciada e explicita ao piiblico a fim de obter uma comunicagéo nova, no plano em- pirico da realidade atual, rompendo a identificagio dos espectadores com o mundo ficticio. De certo modo nunca houve homens de teatro mais tradicionalistas do que Brecht, Claudel ou Suassuna, ao confrontarem a comunicagéo do mundo ficticio das personagens repre- sentadas com a comunicacao direta entre as pessoas que representam no palco ¢ as pessoas que participam na platéia. Inspiram-se eles nas pr6prias fontes do teatro. As mais antigas formas da comédia grega per- tence a “agressdo através da pardbase”, originalmen- te talvez uma procissio de jovens exaltados “que, em- briagados, insultaram os seus compatriotas”*. De- pois, na comédia, j4 organizada em forma propriamen- te teatral, os atores tiraram durante o interlidio cérico da pardbase a mascara, tornando-se porta-vozes di- retos do autor. No entanto, s6 quem colocou a méscara pode ti- ré-la. S6 quem se metamorfoseou pode distanciar-se. A méscara, a tragica e a cémica, é por assim dizer o braséo de Dioniso, a cujo culto se atribui a origem do teatro grego e ocidental. Com efeito, o teatro gre- go nasceu do coro ritual que entoa cantos ¢ executa dancas, em homenagem ao deus da fertilidade, do vi- nho, da embriaguez e do entusiasmo. E no estado da exaltacio, da fusio e uniéo misticas, do entusiasmo (isto é, do estar-em-deus ou do deus-estar-em-nés), € neste estado do éxtase (do estar-fora-de-si) que o cren- (6) Benjamin Huninger The origin of the Theater, Dramabook, Nova York, 1961. 38 te se transforma em outro ser, se funde com o outro -— no s6 com os companheiros presentes e sim também com o proprio deus chamado A presenca pelo ritual. Fusio e identificagio concretizada pela ingestio da carne do animal que representa (ou que €) o deus. Este éxtase e entusiasmo ainda se manifestam quando © teatro deixa de ser ritual, quando, portanto, em lugar da presentagZo ou presenga da divindade ou dos he- r6is miticos se trata apenas da representacdo dos seres superiores. Algo desse entusiasmo ainda se nota quan- do Joao da Silva pée a mascara da maquiagem e, dis- fargando-se, se transforma em Macbeth ou Zé do Burro. Mas este disfarce é ao mesmo tempo uma revela- a0. Joao da Silva precisa encobrir a sua particulari- dade, o seu papel civil ou social, a mascara do cidadao brasileiro ou inglés, para assumir o papel terrivel ou hilariante do personagem, mercé do qual representa exemplarmente a condigéo humana, as vicissitudes trégicas ou cémicas da nossa existéncia. Ao apagar-se © cidadio real, ao encobrir-se a méscara empirica pela mascara dramtica, transparece a verdade mais profunda da ficgdo que se adensa em Tartuffe ou Ju- lieta. & na méscara da ficgfo que esté a verdade. Diz-me que mascara pes no Carnaval e eu te digo quem és, com que sonhas, 0 que desejas. Vimos que essa metamorfose do ator em persona- gem representativo do ser humano nao é sé dele. Tam- bém 0 piiblico se identifica com os personagens ficti- cios, Todos participam da transformagdo. Todos vi- vem intensamente a condigéio humana nos seus aspec- tos trigicos e cémicos. Até hoje o grande espetaculo teatral tem ainda esse lado de celebragéo. Os especta- dores esquecem os: seus papéis particulares de fiscais de renda, comerciantes, pais, filhos: libertam-se da sua 39 condigao particular; e participando do destino exem- plar dos heréis, vivem a esséncia da condicao huma- na. Todavia, é claro que a metamorfose nao é real. Joao da a apenas representa Macbeth, ele ndo o é. A transformagao, tanto a sua como a nossa, é, como vimos, apenas simbélica. O proceso mantém-se, em todos os momentos, no dominio da imaginacéo, Tan- to os atores como 0 piblico, no mais intenso éxtase e no auge do auto-esquecimento, se reservam uma mar- gem de lucidez e distancia. Se Dioniso é 0 deus da fuséo e do abraco ébrio, Apolo é o deus da distancia e da lucidez. O teatro grego, ao unir 0 canto e a danca do coro e 0 didlogo dos atores, uniu o mundo teltrico-demoniaco de Dio- niso e 0 mundo olimpico de Apolo, o mundo da na- tureza e 0 mundo do espirito. E neste sentido, 0 tea- tro representa exemplarmente este ser diplice que é 0 ser humano. A partir dai revela-se, como j4 foi mostrado, um novo aspecto da metamorfose. Ela é, de certo mo- do, a origem do ser humano. Vimos que o homem s6 se torna homem gracas a sua capacidade de se- parar-se de si mesmo e de identificar-se com 0 outro. © animal vive macicamente idéntico a si mesmo, ndo tem a capacidade do homem de desempenhar papéis, de libertar-se da sua unidade natural, de projetar-se além de si mesmo. £ preciso desdobrar-se, ter liber- dade para conquistar um mundo imagindrio, projetar- -se além para tomar posse do reino espiritual. Em todo verdadeiro ato de comunicag&o, enquanto perma- nego eu, preciso assumir o papel do outro, pressentin- do © que o outro espera de mim e vivendo a intimidade do seu sofrimento e da sua alegria. S6 através desse ato de empatia é possivel o verdadeiro didlogo com o outro, O significado do termo hipécrites (ator) era 40 originalmente 0 de “respondedor”. Mas para respon- der, corresponder ao outro, entrar em didlogo com ele, € preciso ser ator, é preciso saber assumir papéis. O didlogo € uma das convencées essenciais do drama. O texto dramitico, mesmo nas suas formas épicas que introduzem a narragdo, é inimaginavel sem 0 didlogo, Este, se de um lado é a forma imediata da comunicagio humana, é de outro lado, particularmente no seu significado dramatico, expressdo do conflito, do choque de vontades, da discordancia, Se a epopéia, a grande narrativa mitica, é manifestagao da unidade pri- meva do logos, no drama, que surge em fases posterio- res, jA se manifesta o dia-logos, 0 logos fragmentado, o surgir de valores contradit6rios, defendidos por vonta- des e paixdes antagénicas. No entanto, o logos, em- bora j4 dicotémico, continua espirito e como tal pos- sibilita a comunicagdo além das paixdes em choque, além dos impulsos em conflito. A divisdo que se es- tabelece no cerne do didlogo, enquanto ao mesmo tem- po separa e une, é um dos fenémenos fundamentais tanto do teatro como do homem. Revela-se nisso. a duplicidade humana de um modo semelhante aquela que se manifesta no “sentimento misto” em face do sublime, téo bem descrito por Schiller. O sentimento de prazer e desprazer diante do infinitamente grande ou poderoso, analisado por muitos esteticistas e sobre- tudo por Kant, se define para Schiller como uma com- posigio de dor, que no seu grau mais clevado se ex- terna como horror arrepiado, ¢ de jubilo, que pode elevar-se ao arrebatamento. Essa associagaéo de dois sentimentos contraditérios numa sé emogao provaria, segundo Schiller, a nossa autonomia espiritual. Visto ser impossivel que o mesmo objeto (sublime) se nos apresente duplo e dividido, segue que nds mesmos nos encontramos em duas situagdes opostas face ao objeto, de modo que duas entidades opostas se associam em 41 nés, Estas, ao se defrontarem com o objeto, mostram uma reacao contraria: 0 homem fisico € o espiritual, diante do sublime, se opdem com veeméncia; pois no exato momento em que aquele sente dolorosamente os seus limites, por nao poder apreender o infinito, o outro experimenta jubilosamente a sua forca e sente-se infi- nitamente elevado por aquilo que humilha a sua natu- reza material, A duplicidade exposta permite ao homem elevar-se além da sua condicdo natural, através do espirito e da sua capacidade de expansao ilimitada além de si mesmo. Mas nem por isso continua um ser natu- ral, finito, limitado. Essa contradigao entre a finitude da sua natureza e a expansividade infinita do seu es- Pirito é a raiz tanto da tragédia como da comédia. Na tragédia participamos do naufragio do herdi. Ele as- pira ao infinito com soberba desmedida (hibris) ou como ser moral inflexivel que, testemunha de um mun- do superior, nao se sujeita aos impulsos terrenos da sua natureza psicofisica. Mas essa opcao pelo eterno contradiz a sua finitude imersa na temporalidade. © naufragio € inevitavel, a fragilidade humana é desmas- carada. Entretanto, no fracasso tragico se revela a in- finita dignidade espiritual do homem. A grandeza su- blime do herdi sacrificado suscita em nés o sentimen- to misto descrito por Schiller. Sentimo-nos dolorosa- mente aniquilados na nossa frdgil natureza fisica ¢ sen- timo-nos exaltados na nossa condicio de seres espiri- tuais capazes de opgdes absolutas, tais como refletidas na vontade inquebrantavel do herdi. Ja na comédia é a propria dignidade, enquanto superficial ¢ arrogada (principalmente a que provém de posicdes sociais), que é desmascarada, revelando-se a sua condicao precdria, Enquanto ser espiritual, 0 homem traca planos vastos e gloriosos, mas precisa- mente por isso ndo vé a realidade imediata. Ser es- 42 piritual, paira nas alturas, distraido do mundo mate- rial, e de repente o seu corpo, sujeito as leis da gra- vidade, se estatela no chao, devido a uma casca de ba- nana, ou se desmonta ao investir contra moinhos de vento. O guarda-chuva, cuidadosamente elaborado pelo engenho humano, protege da chuva o digno portador; mas vem a cega forca natural do vento e, sem respeitar a dignidade, vira o utensilio as avessas, para gaudio ‘dos circunstantes. Paragrafos cuidadosamente estudados ¢ convengées severas, longamente estabelecidas, prote- gem a dignidade do marido; mas vem o jovem gala, desencadeia-se a cega forca natural dos impulsos e en- tre os pardgrafos brotam os chifres, para géudio dos que se sentem seguros. A duplicidade humana é ao mesmo tempo tragi- ca e cOmica. Nela reside a grandeza e a fraqueza do homem, Nas suas formas fundamentais da tragédia e da comédia, ainda modelares embora abaladas por uma nova visio do homem e do universo que se manifesta na tragicomédia grotesca, o teatro tem por tema a mesma duplicidade de que se originou ¢ de que se nutre. Ape- sar de todas as modificagdes, seu eterno enredo é a sua prépria esséncia. Nascido da mascara e tendo nela seu fundamento, o teatro nos fala incessantemente de mascaras, ehquanto as pée ¢ tira. O tema do tea- tro € o préprio teatro — o mundo humano; o tema do ator, o proprio ator — o homem. 43

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