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onze

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I
Ralo

II
Oferenda
A mulher coreografia

III
Trombada
O homem tempo

IV
Terra mantra

V
Claridade

VI
Percorrer com os olhos

VII
Som

VIII
O canto das crianças

IX
Caos

X
Ciranda fogo

XI
Serafim

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Existem passagens secretas

Passagens estreitas como um buraco de agulha


onde só passa uma coisa por vez. Nessas passagens os
mundos se costuram. Quando a gente atravessa, o corpo é
como linha que conecta dimensões.

Pra onde fomos não sei dizer; ou talvez não seja possível Walt Whitman disse que feitos heróicos foram sempre
nomear. É só murmurando, sem abrir a boca, que posso concebidos a céu aberto e que existem coisas divinas bem
sussurrar as histórias que vivemos lá. Talvez uma camada acondicionadas. Ele jurou para nós que existem coisas
fina de poeira cósmica tenha ficado para sempre no chão. divinas mais belas do que podem as palavras dizer e eu
E como numa montanha rachada ao meio é agora possível também posso jurar.
passar o dedo nas lembranças e ver, nesse processo
geológico do tempo, por onde estivemos. Na verdade não sei de que outra maneira poderia falar
dessas coisas. Uma mulher escreveu: eu vi as coisas como
É das travessias, de arcos finos quase translúcidos que se elas são. Outra mulher me disse: isso é uma dádiva. São
abrem em momentos precisos, que vou contar. raros e preciosos, os momentos claros assim.
As coisas que vivemos no Terreyro parecem mágicas. Elas são.

onze passagens
de morte e vida
sussurrando na sua orelha digo: dentro da dança
tem a morte
são passagens
permear
e abro a outra orelha:
era
mil e uma
vezes

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I Ralo
Nas últimas semanas do Ambargris * havia no
ar a calma de uma programação diminuta, do calor na passagem do um para o dois na fábula dos meses
de verão que deixa a cidade vazia e os movimentos na passagem da mulher para o homem
vagarosos. Era silêncio dentro da Renée Gumiel, nosso na faísca do amor que já não era
teatro útero morada. morríamos ali
sumíamos dali
Naquele tempo eu andava muito em círculos no escuro do
teatro. Eram círculos que iam espiralando e ficando cada invertidos renascíamos depois do funil
vez menores, que me chamavam quase magneticamente a
cada vez que eu punha os pés lá dentro. choro de recém-nascido
ecoando
Nesse verão senti que todos os acontecimentos dos últimos no avesso do teatro
meses, tudo que havíamos construído com suor, tambor,
presença, estava também girando e girando em círculos
cada vez menores, como a água quando gira puxada pelo
ralo. Dava pra sentir que se aproximava o momento de
passar por um buraco fino no centro da espiral.

caminhávamos falávamos
daquela que dançava e se enforcou no próprio xale
saltitando como criança quase bato a cabeça
ela está aqui
à espreita

dançar a morte do que precisa morrer


disse o homem dourado
sumo sumir desaparecer
disse a mulher de prata

*Ambargris foi um projeto realizado com o apoio da


FUNARTE SP pelo Cerco Coreográfico entre agosto
de 2014 e março de 2015. Em seguida, migramos
para o Terreyro Coreográfico dando continuidade à
algumas aulas, danças e coros que nasceram lá.

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II Oferenda
A mulher coreografia
Eu ensinava passos de dança a dois alunos, sob
o Sol. Pequenas sequencias de movimentos. Era uma das
minhas primeiras aulas no Terreyro.

Do outro lado da rua, debaixo do viaduto, uma mulher


vestida com sacos de lixo nos assistia. Ela sorria e acenava,
mandava beijos e gritava “eu te amo, eu te amo” ao longo
de todo o tempo, muitas e muitas vezes. A gente ria e
agradecia, chamava pra vir mais perto, ela não vinha...

No fim da aula começamos a fazer juntos uma dança


chamada Oferenda Coreográfica. Nessa hora ela se
aproximou rapidamente e entrou com tudo na dança, as
roupas parangolé voando no meio das viradas bruscas giros
saltos. Era rápido, ninguém podia prever nem se salvar de
nada, só ser claro no tempo para que o espaço de cada
coisa existisse.

Magicamente ninguém se trombou, o caos fluiu. Assim que


terminamos ela agradeceu, disse que nos amava, que tinha
muitos afazeres e voltava logo e desapareceu.

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III Trombada
O homem tempo
No meio de uma avenida no centro da cidade, farol
aberto, eu tentava atravessar. Ocupada em ver os carros e
motos que vinham rápidos à minha direita, não vi que bem
na minha frente exatamente na minha frente um homem
também tentava atravessar.

Um dois três e já fomos correndo batemos de frente


exatamente de frente. Impedindo as passagens um do Segui andando até os baixios do viaduto. Me acalmo encostando
outro como duas muralhas: duras, impenetráveis. Não a ponta do esterno na ponta da mesa de concreto, sem conseguir
havia por onde passar. falar nem chorar por um tempo – todos imersos numa reunião
conversavam e fiquei ali, respirando. A quina me acalmou. Tanto
Um tempo enorme existiu ali. que escrevi nela “esterno aqui”, para que outros pudessem
experimentar daquilo.
Nada se movia
apesar dos carros que vinham em alta velocidade apesar Naquele dia mais cedo eu estava naquela mesma mesa com
dos carros que vinham em alta velocidade apesar dos carros aquelas mesmas pessoas, fazendo planos, arquitetando
que vinham em alta velocidade cronogramas – aquelas ilusões de controlar o tempo. Um
homem sábio louco que lá estava me disse que demasiadas
De algum jeito conseguimos escolher cada um um lado e palavras saíam da minha boca, que ele via em mim o
atravessar. nervosismo e o coração disparado e que nada iria se
resolver assim. Fiquei corada, me senti nua ali, na frente
Do outro lado da rua, do outro lado do corpo, coração na de um desconhecido que via meu estado de espírito com
boca, olho de volta pra olho no olho firmar as palavras: tanta clareza e ainda o declamava publicamente. Daniel,
quase morremos juntos. como se me desse algo para vestir, disse a ele que eu
tinha mesmo muita energia e que por isso era bom me
Mas o homem não se virou. Já de costas caminhava ver dançar. Silenciosamente agradeci aquele gesto. Tentava
apressado sem olhar pra trás. Superstição talvez. Dizem serenar, mas não conseguia. A ansiedade se misturava a
que em certas ocasiões não se pode olhar pra trás pra não uma espécie de vergonha e como uma criança que levou
ficar preso no outro no inferno numa história, seja o que bronca e ficou num canto esbravejando, saí de lá para outro
for. Nunca fui muito boa nisso. Sentia que a única coisa compromisso, voltei pra lá correndo e quis atravessar o farol
necessária era aquele olhar, uma cumplicidade depois de aberto. Ele já estava vendo tudo. O que acontece quando
tocar na morte. Não aconteceu. queremos engolir o tempo sem mastigar.

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IV Terra mantra
Em meados de abril, quando as coisas se abrem,
começamos a arriscar alguns gestos de maior escala nos
baixios. Construímos a mesa de concreto onde por tanto
tempo iríamos sentar, ler juntos, estudar. No mesmo dia
fizemos um grande mutirão de limpeza, preparando a vinda
de vários caminhões pipa, que no dia seguinte, enquanto perplexa, sem saber como agir frente àquilo. Também
mulheres dançavam voos rasantes ventando tudo, lavaram tinham outras coisas, a maneira como um morador cruzou
o espaço numa linda coreografia de águas e rodas. o espaço olhando para nós, uma sensação difícil ao ficar ali,
de estar acuada. Que força tínhamos frente àquilo? Como
Foi um fim de semana de gestos grandiosos que abalaram dialogar com a violência?
bastante a vida do espaço, das pessoas que lá estavam, das
imponentes colunas de concreto. Criamos um horizonte: maio um mês verde, mês de mexer
com a terra e cantar mantras. Fizemos mutirões de plantio
Lá aprendemos que cada gesto tem uma reverberação. São durante os quatro sábados do mês, dedicando três para
coisas que aparentemente sabemos, intuímos, dizemos. Ganesha o abridor de caminhos e um para Shiva deus da
Mas é diferente quando elas se apresentam de forma dança, do tempo e da destruição.
tão absolutamente clara e visível aos olhos de todos. Lá
podíamos ver os ecos e reverberações dos menores gestos. Assim nas manhãs de sábado, sentávamos em torno da
Como formulou a Andreia: o poder de deslocar as coisas um árvore maravilhosa metade frondosa e metade seca, que
milímetro. Pode sim gerar explosões incalculáveis. Assim alguns diziam se chamar “figueira da índia”. Enfeitamos seu
como às vezes gestos que parecem grandes não interferem tronco com panos vermelhos e amarelos. Cores que também
muito na dinâmica das matérias em jogo: são só casca, sem nos vestiam. Nos galhos montamos um pequeno altar para
vibração. Ganesha. Na mesa ficavam as oferendas de flores, doces
e alimentos feitos de arroz e coco, que no fim do trabalho
Naquele abril a reverberação se fez sentir. Foi um pouco saciavam nossa fome.
agressivo para o espaço limpar, construir, voar em bando.
Às vezes é preciso ser. Então quando chegamos lá nos Cantávamos 108 vezes Om Gam Ganapataye Namaha, uma
dias seguintes, na coluna em frente à mesa havia uma saudação àquele que remove todos os obstáculos, enquanto
carta pixada pra nós, com palavras duras e enigmáticas começavam os trabalhos de plantio conduzidos por minha
das quais não me lembro bem. No lugar em que pingava tia Gloria, que nos ensinou que plantar é principalmente
água do viaduto, ao redor do qual costumávamos dançar, preparar a terra.
tínhamos aproveitado o movimento de construção e feito
um buraco com a britadeira para que as gotas tocassem a No sábado de Shiva as cores eram vermelho e roxo. Para
terra. Em cima dele posicionamos três lâmpadas compridas Ele criamos um altar em cima do totem de pedra, carvão e
que estavam por ali, formando um Y. Elas amanheceram tinta que ficava no jardim. Cantamos 108 vezes Om Namah
estilhaçadas. Foram respostas violentas. Fiquei um pouco Shivaya: eu me prostro perante Shiva. Dançamos.

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Nesse dia sincronicamente recebemos a visita do Damian,
viúvo da minha professora de dança indiana Estelamare.
Ele mora na Nova Zelândia e estava na cidade, convidei-o
para vir mas a comunicação estava difícil e eu não sabia se
ele acharia o lugar sem falar português, sem saber andar
no centro, tudo isso. Não só ele chegou como trouxe um
pequeno livro de preces para Shiva que pertencia à Estela e
que lemos juntos. Foi feliz.

Assim em maio cantamos, dançamos e escrevemos


mantras muitas vezes. Nesse tempo o mantra de Ganesha
estava comigo a toda hora, como uma música de fundo nos
pensamentos. Também reviramos muita terra, trazendo à
tona lixos e tesouros, energias estagnadas e duras, terras
úmidas e pretas debaixo da terra seca, todos os tipos de
surpresas. Abrimos calhas para que a água escorresse sem
acumular lixos nos cantos. Escolhemos plantas guerreiras
que podiam sobreviver sem água constante, num solo difícil,
expostas às intempéries da vida no viaduto. Bananeiras
pra revitalizar a terra, bambus que faziam uma cerca viva
escondendo e mostrando o baixio pra quem estava na
rua, lavandas onde tinha um cheiro ruim, uma arruda pra
proteger. Vizinhos e amigos foram trazendo outras coisas –
cactos, jasmim-manga, manjericão.

Esses foram também nossos dias de maior carinho e


intimidade com aquela majestosa árvore, com sua estranha
bifurcação de vida e morte. Foi bom estar perto dela.

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V Claridade
Estávamos nos reunindo 9h da manhã nos baixos
para falar de coreografia. Queríamos entender o que cada
um dizia quando falava essa palavra. Era tempo de se
demorar em materiais preciosos, pérolas trazidas por cada
um de nós ao encontro. Para no momento justo, realizarmos
uma partilha pública que nomeamos Ciclo de Morar na
Coreografia. modernos? Não sei. Mas aquilo me inquietou profundamente:
Cage não via clareza rítmica na dança moderna. Cage
Nos encontrávamos em cima de alguns grandes quadrados o visionário, o que vê, o que estava ali com Cunningham
de papelão que nos haviam sido dados de presente. Naquela lado a lado. Ele sabe das coisas, pensei. É preciso ouvi-lo, é
época em cima deles nós dançávamos, dormíamos, preciso entender o que ele quer dizer com isso.
podíamos inventar espaços com furos, distâncias,
configurações inusitadas em cima do chão de concreto, Nesse mesmo dia pela primeira vez veio Zuza ao Terreyro.
além de às vezes sermos surpreendidos pelos ventos que Era uma aproximação. Ainda não sabíamos que ele nos
levavam o chão embora. Aos poucos eles sumiram, entre daria aulas sobre o Nascimento da Tragédia no Espírito
vento, chuva e pessoas que precisavam deles pra dormir, da Música, nem que isso se tornaria algo tão importante.
pra morar. O Ciclo de Morar na Coreografia ali nos baixos Ele que também tocou didgeridoo enquanto dançávamos
só foi possível porque já havia a força do hábito, o morar Graham, que nos deu aulas de Tala quando estudávamos
dormir comer lá. Já era tudo impregnado dessa vida do dança indiana. Foi bonito que com Cage ele chegou.
corpo que acorda dorme acende fogo habita. Também a
coreografia já estava lá. Foi ela que nos trouxe afinal. Isso tudo foi no Cerco Coreográfico Delta, que começou
pouco tempo depois: uma estrutura de aulas onde durante
Nesse dia Andreia levou o livro Silence do John Cage e leu três meses nos dedicamos aos saberes ligados à coreografia.
para nós Four Statements on Dance. Um deles me inquietou Ao escrever sobre minhas aulas de Limón, defini como uma
profundamente: Clarity and Grace se chama e fala de ritmo, das pedras de base a clareza rítmica, que envolvia para
de estrutura rítmica. Ele questiona a dança moderna, diz que mim a prática de diferentes ritmos não só dançando, mas
ela não pode se sustentar se não der atenção à claridade, à também com nossas vozes e palmas. Fomos descobrindo
clareza da estrutura rítmica. juntos como fazer isso, eu e quem mais quis se aventurar
(só com a confiança e parceria deles pude investigar esses
Me surpreendi bastante. Nos últimos anos, me dedicando a mistérios).
estudar a dança moderna de José Limón e Doris Humphrey,
sentia justamente que um dos brilhos dessa dança era sua Só seis meses depois ao viajar à Diamantina para estudar
precisão rítmica. É preciso dizer: também sou da dança a rítmica na visão do Dalcroze, entendi que eu estava
indiana. É claro que não há comparação, mas ainda assim, dando aula de rítmica. Um período de um ano se passou,
a dança moderna me desafia ritmicamente. Será a origem estudando ritmo intensamente. Ao ritmo, fomos. Ao ritmo
mexicana do Limón que o diferencia dos outros ditos seguimos. Naquela manhã começamos.

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VI Percorrer com os olhos
Gosto de dançar com os olhos, dançar vendo o com símbolos místicos de mundos desconhecidos. Então
espaço. Às vezes é bom ver dentro de si, ou ver o infinito surgem os pés de alguma outra pessoa. Suas pernas, sexo,
além das paredes, mas me agrada esse meio: entre dentro quadril, umbigo, peito, seu pescoço, seus olhos também
e além, fora. subindo. Acima, o vão de céu que existe antes do viaduto
ou, dependendo do lado para onde se está virado, uma das
Percorrer o baixio do viaduto com os olhos é algo marcante, grandes colunas triangulares. Então o teto que é também
a vastidão daquele espaço improvável chama os olhos como chão dos carros que passam por cima de nós. Lá bem alto,
uma linha de horizonte. Lá entendi que olhar pode ser uma víamos essa fonte de onde sempre pingava água.
maneira de viver, de comer ou de habitar um lugar.
Existem outros centros no espaço – o centro da àgora, o altar
No começo de algumas aulas de dança, costumávamos fazer do fogo a céu aberto. Mas era perto da água que eu gostava
um círculo ao redor do altar da água e percorrer o espaço de fazer esse percurso. Talvez porque os olhos tenham água
na vertical, com nossos olhos. Começávamos deixando o dentro, talvez porque as gotas que pingam chamam nosso
peso da cabeça pender, curvando a coluna e soltando o ar. olhar para cima e o som dos pingos chama nosso olhar para
Aos poucos, junto com a inspiração, pressionando os pés no baixo. O altar da água me lembra um templo grego onde
chão, íamos desenrolando até chegar numa curva oposta, existe um buraco no centro e uma bacia de pedra embaixo.
com o peito para cima. Então retornávamos. O exercício era Às vezes entram raios de sol, às vezes águas da chuva; o
percorrer com o olhar cada ponto, despertando a vida do buraco recebe o que quer que venha do céu.
espaço dentro dos olhos, ganhando espaço dentro ao ver
o espaço fora. As gotas que caem do viaduto também vieram do céu e
atravessaram o concreto, é a água que a nada resiste e
No início se vê seu próprio umbigo. Depois vem o chão de diante de nada se detém, como sempre me lembra Marion.
cimento, e então o altar da água que nessa época era um O olhar é como a água.
buraco onde havia sempre uma poça ou galões que recolhiam
a água para regarmos as plantas. Ou objetos encontrados
no espaço – pregos, lâmpadas, metais, paus – dispostos de
tal maneira que se tornavam uma mistura de quinquilharias

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VII Som
Quando estivemos lá nas primeiras vezes, era muito Aos poucos fomos nos acostumando ao som do baixo. O
cansativo ouvir. No dia de confluência entre o Terreyro e o som dos carros acima de nós no viaduto, dos carros de
Ambargris usamos microfones que lutavam contra o som um lado, de outro, por todos os lados, as buzinas, as
do viaduto junto com o barulhento gerador de energia com pessoas falando, as chuvas, os ventos, os vizinhos. O som
cheiro de gasolina. Foi difícil. Exaustão sonora. daquela paisagem foi se tornando algo conhecido por onde
sabíamos fluir. Foi nascendo entre nós um saber de como
Falávamos então de desenvolver uma estrutura auricular, ouvir e ser ouvido naquele espaço, dependendo do clima,
uma arquitetura mirabolante para uma necessidade real. de estar num ou noutro canto, do assunto a ser falado,
Projetos. Será que deviam ser somente latinhas conectadas de com quem se conversava. Sempre que uma pessoa
por um fio? Aquele telefone de brincadeira de criança? nova chegava sofria um pouco, mas logo pegava um jacaré
Será que poderíamos simplesmente sussurrar tudo uns nas nesse saber de quem estava lá antes e ia entrando junto
orelhas dos outros, usando a concha das mãos e só? Se nas ondas sonoras.
fosse assim as palavras teriam que necessariamente passar
por cada um e quando conversássemos em grupo nunca As vezes em que mais sofri de ouvir foram todas aquelas
se saberia quem de fato ouviu o quê, quem disse o quê ou em que usamos microfones. Só agora me dei conta disso,
quem transformou o quê. Talvez funcionasse. coletando essas memórias. O microfone como uma afronta.

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E soar, na medida das correntes marítimas.

O tom o pulso o acento quem define são elas, as correntes


Ali parece que cada som deve ter a sua escala, um filme
marítimas.
pode ser projetado com uma caixa de som, mas a voz
humana é bom que soe no seu próprio timbre e volume. A
Tem dias que é mar revolto, dia praia de tombo, domingos
não ser que, como Flavio de Carvalho numa certa noite, se
de piscina. A cada momento o mar pede uma atenção
esteja em cima do viaduto declamando um manifesto para
diferente para entrar.
quem está embaixo dormindo ou para quem está nos carros
passando, caso em que se pode usar um megafone.
(Nesse dezembro surfamos, no mar de água do mar. Desejo
há muito gestado, esse de estarmos juntos na beira do
Foi Marion que me disse que o som do mar é um tipo de
oceano. Acho que era por isso: treinar a atenção o olhar
ruído branco. Foi Marília que me contou que há muito tempo
a escuta pra saber a cada dia em que mar nadamos. Lá
as pessoas que trabalham no Oficina sabem que o viaduto
na beira tive um pouco de medo de entrar que as águas
é para eles como o mar. Branco. Sons que não se pode
estavam fortes. Então teve um momento em que fiquei bem
diferenciar, compreender, controlar. Só ouvir.
parada e as ondas vindo e enterrando meus pés, eu ali
parada. Fui ficando e ficando e quando vi estava já dentro
da água, a beira já bem lá atrás. Pensei: porque eu vou
entrar no mar se posso deixar o mar entrar em mim? Fiquei
radiante meio que nem criança, deu uma alegria. Acho que
descobrimos alguma coisa.)

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VIII O canto das crianças
Durante sete dias fomos recebidos por alguns índios uma dessas músicas que ouvia na infância, bem alto, com
Guarani na aldeia Kalipety. Foi um momento bem especial instrumentos e tudo. Ali era longe da casa de reza e eu
de conviver com as histórias, as crianças e com muita, não poderia ouvir tão bem se eles tivessem cantando lá,
muita, muita fumaça. Uma das coisas mais lindas foi ouvir mas não me parecia muito provável que alguém estivesse
os seus cantos no escuro da casa de reza. Canto em coro, tocando em outro lugar tão cedo.
singelo, que toca diretamente o coração. Me emocionei com
a força e a beleza daqueles momentos. Ajoelhei na cama e tentei espiar pelas frestas de madeira
da parede, pra ver se via alguma luz. Nada. Pensei que
Também me lembrei muito de como ouvia na infância deviam ser os moradores da casa ao lado, talvez estivessem
gravações de crianças guarani cantando. Era um CD que acordando bem cedo e talvez tivessem um daqueles CDs.
se chama Nande Reko Arandu – Memória Viva Guarani, e Só podia ser isso. Fiquei ouvindo por um tempo que não sei
descobri que de fato foi gravado por crianças daquela aldeia dizer quanto, de repente o som parou. Silêncio total. Senti o
junto com outras. Ouvia tanto essas músicas, que mesmo coração batendo mais rápido e demorei pra dormir de novo.
não compreendendo o significado das palavras sei alguns No dia seguinte contei a história para Jerá que morava
trechos de cor. na casa ao lado, ela disse que não, que ninguém estava
acordado àquela hora e muito menos ouvindo música.
No meio dessas lembranças, uma coisa misteriosa aconteceu Eu estava muito acordada depois de caminhar no frio,
numa das nossas noites lá. Eu não conseguia dormir porque ajoelhada e tudo, não foi um sonho. Pelo menos não um
estava apertada. Fiquei tentando esquecer, porque isso sonho dormindo. Mistério.
significava ir lá fora no frio e na neblina, mas não teve jeito.
Levantei, fiz xixi no mato, voltei pro quarto. Estava tudo
escuro, devia ser uma 4h30 da manhã. Quando me deitei
e tentava dormir de novo, de repente comecei a escutar

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IX Caos
Um dos dias mais caóticos que já vivi aconteceu no fim de semana. Não sabia o que fazer. Voltei. A princípio
nos baixios. Era um momento difícil. Muitas pessoas tinham teríamos uma reunião.
ido morar lá e fechado pequenos cercadinhos em volta de
suas camas. O vazio central virou uma espécie de quintal, A confusão estava maior ainda. O álcool rolando solto e
um espaço mais de vida doméstica que de vida pública. meio que todos os casais brigando. A violência doméstica
Havia muitos casais e muitas brigas de casais. As bebidas, contra as mulheres era aquilo, pensei. Um homem corria
que antes rolavam só de noite ou de um jeito mais discreto, atrás da mulher com uma vassoura e a puxava pelo braço,
de repente estavam ali o tempo todo, deixando as pessoas outro casal trocava gritos pelo espaço, aquela primeira
bêbadas. Fomos convivendo enquanto deu, nosso trabalho chorando num canto. Ficamos ali meio atônitos. Não dava
e essa nova vida do espaço, mas num certo ponto não deu pra interferir, não dava pra fazer reunião, não dava pra
mais e nos retiramos. ir embora. Ficamos só observando o estado das coisas,
tentando acalmar o que era possível de ser acalmado.
Antes disso, era sábado, aniversário de Ganesha. Eu tinha
ido lá cedo fazer um pequeno rito com meditação, mantras De novo o primeiro homem apareceu e foram todos bater
e uma dança. O clima estava um pouco tenso. nele. Tive medo que ele fosse linchado, mas ele correu pra
rua mais uma vez. No meio disso, entrou um cara de moto
Quando eu estava indo embora uma mulher me chamou. no espaço e começou a dar uns cavalos de pau se exibindo
Ela veio morar lá logo que começamos o trabalho e para os amigos que bebiam animados numa mureta,
acompanhou bastante a gente, conversávamos sempre. Ela passou super perto dos pés de alguém, as poucas crianças
estava bem grávida e veio me mostrar marcas roxas no seu que lá viviam correndo soltas no meio daquilo tudo. Uma
corpo, dizendo que seu companheiro tinha batido nela. Ela outra mulher apareceu mostrando pra nós as marcas de
estava bastante bêbada, chorando muito, fiquei ouvindo-a uma briga de faca com seu namorado mas disse que agora
contar tudo e ir se acalmando enquanto falava. Alguém já estava tudo bem, que ela tinha uma faca também e que
trouxe água. ele tinha ficado com medo. De repente éramos um pouco
o público daquele caos, a quem um ou outro se dirigia pra
Depois de um tempo ele chegou, muito bravo, bêbado reclamar ou contar um caso, acusar alguém, comentar os
também, gritando e chutando coisas nela. Eu fiquei por acontecimentos. Foi muito estranho.
alguns instantes entre os dois sem saber como agir, meio
em choque, e logo os outros homens que moravam lá Fiquei junto de uma menina de cinco anos que morava lá
vieram correndo com paus pra bater nele, que correu pra e parecia deslocada no meio de tudo isso. Ela pediu um
rua. As mulheres que moravam mais no fundo do espaço incenso que tinha visto de manhã e acendemos. Marion
chamaram-na pra ficar junto delas onde estava mais deu umas voltas de bicicleta no espaço, Daniel separou
protegida, e ela foi. Fui almoçar e fiquei pensando se devia alguma briga, Andreia conversava com algumas mulheres.
falar com as assistentes sociais que às vezes apareciam. Isso rolou das 10h da manhã às 10h da noite. Não houve
Cheguei a encontrar os telefones, mas não funcionavam resolução, nem resposta, nem nada.

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X Ciranda Fogo
A ciranda no meio de tudo foi um fogo só. Que ciranda
que eu saiba é aquela dança música que se dança em
roda, marcando um pé pra frente, todos de mãos dadas,
maravilha essa dança é. Mas nessa festa pessoas de todos
os lados foram aparecendo, os amigos, os moradores do
baixio, os moradores do Bixiga, aquele conhecido lá de
Eu achava que sabia o que era ciranda e já até longe, outros que ninguém nunca viu, aqueles que vieram
mesmo gostava muito disso, até o dia em que dançamos só vender pipoca, aquele outro que era só curioso, tudo
uma ciranda nos baixios do viaduto, que o Dani Viana veio juntou e pimba. Era tanta gente tanta gente que não cabia
lá cantar. Era uma grande festa junina no dia de São João numa roda só, mesmo naquela imensidão que é o baixio.
que celebrava o fogo. Não sabíamos quem viria, se alguém E não sei como é que foi, se começaram a tentar pôr roda
viria, mas preparamos bem a coreografia e assim ela fluiu. dentro de roda e roda dentro da roda dentro da roda, mas o
Digo assim porque outras vezes não preparamos bem e não que sei, é que de repente, toda aquela gente junta sem guia
aconteceu assim nessa fluência nesse movimento que as nem líder nem nada, virou infinito labirinto de mil cirandas.
coisas vibram. Não é só porque nossas coreografias são em Todo mundo de mão dada rodava por formas imprevisíveis
escalas outras que a do corpo humano que não precisam indizíveis, umas dentro das outras, que nem cobra em
de preparação. Não diria ensaio, mas aquela concentração espiral comendo o próprio rabo, sem saber onde começa
de energia, quando a gente sente que todos estão mirando onde acaba aquilo tudo se é que começa e acaba em algum
uma mesma direção e afunilando as forças do universo lugar. E rodamos cantamos cirandamos assim muito muito
pra chegar lá, naquele ponto, cada vez mais perto cada tempo de jeito que era de perder o fôlego e não acreditar
vez mais estreito até que pá, chega. Assim foi nessa festa. se o que se via era mesmo de verdade. Ninguém cansava e
Tinha fogos de tudo. Começamos cantando dançando Shiva nem conseguia sair daquele movimento tão imenso, daquele
no fogo do Oficina, aí veio Prometeu que roubou o fogo e acontecimento, ciranda cósmica de São João ou sei lá. Ai
levou num cortejo cantoria até São João no baixio, que lá foi difícil de acabar. Iá ciranda boa como aquela eu queria
queimou uma pólvora riscada no chão em Y e se acendeu a era dançar.
fogueira gigante que o sanfoneiro cantou. Depois os fogos
de velas acesas no muro dos desejos, fogos de artifício
começando as danças da festança, gente cuspindo fogo e
bamboleando fogos no quadril e foi aí que veio a ciranda –
antes dos fogos de defumação que limparam as energias e
do fogo brasa que cozinhou umas mandiocas com pinhão e
foi acalmando até apagar e irmos pra casa.

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XI Serafim
Os Serafins são descritos como anjos de seis asas:
com duas cobrem o rosto, com duas cobrem os pés e
com duas voam. Na tradição católica é dito que louvam
continuamente a Deus cantando a música das esferas,
e assim regulam o movimento dos céus. Eternamente
ardendo em amor a Ele, seu brilho é insuportável até
mesmo para os outros anjos. Em outras descrições se diz
que, como serpentes ardentes, os Serafins teriam além dos
saberes do fogo onde ardem, os saberes da terra por onde
se arrastam e os saberes da água pela semelhança com
seus movimentos ondulantes.

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Conheci Serafim nos baixios. Nosso primeiro encontro
foi parecido com aquilo que o Viveiros descreve como a pequena roda, e erguendo a voz com a maior firmeza
um encontro na floresta. Era fim de tarde já escuro e que podia ter eu disse “Parou”, enquanto erguia minha mão
terminávamos a aula de dança indiana numa pequena roda estendida, palma aberta, dedos esticados encostados uns
fazendo mudras – gestos com as mãos, gestos que canalizam nos outros. Aquele gesto era também o mudra patako, o
a energia: selam, abrem, irradiam. Ele foi chegando e parou primeiro mudra. Fiquei totalmente surpresa com a eficácia
a uma distância razoável. Com uma jaqueta de couro preta, daquilo quando vi ele largar os bastões e se sentar no chão
o rosto meio encoberto por um capuz ou talvez pela sombra encolhido, abraçando os joelhos, a cabeça entre os braços
da sua própria cabeça baixa, começou a fazer acrobacias como um cachorro acuado: ficou ali parado olhando pra
com dois bastões que carregava. Ele girava, apontava pra baixo. Sem saber quanto tempo duraria isso, rapidamente
nós, se movia como se batesse em alguém, imitava uma fechei a aula e saímos dali. Naquela época ainda tínhamos
arma, fazia um grande show. Era impressionante e meio uma chave do portão, naquela época ainda tinha portão:
assustador, afinal qualquer um podia entrar ali. Eu sentia a tranquei e fomos embora.
violência dos seus gestos e senti medo. Me lembro de sair atordoada e de ter nomeado o que senti
Era importante finalizar os mudras com as pessoas, naquele momento como medo da morte. Sim, de novo.
não deixar o medo interromper tudo de repente, sem Até que a morte não é uma coisa tão distante, afinal. E
fechamento. Fui terminando, mas concentrava minha junto com isso ainda me sentia responsável pelas pessoas
atenção absoluta nos gestos dele, na distância a que que estavam ali fazendo a aula, àquela hora, debaixo do
se encontrava de nós, pronta para reagir a qualquer viaduto, “que sentido tinha aquilo?”, eu pensava. Nessas
instante. Eu era a única que o via e no momento em que horas você se pergunta essas coisas. Por alguns dias, senti
subitamente ele abandonou sua performance e avançou que estar ali era perigoso.
decidido na nossa direção, levantei com tudo atravessando

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Houve um dia em que iríamos ficar nos baixios durante
várias horas para que as pessoas interessadas pudessem
fazer suas inscrições para o Cerco Delta, os três meses de
estudos em torno da coreografia. Era importante ter um
meio de inscrição que não dependesse do acesso à internet
e também que as pessoas vissem com os próprios olhos qual
Pouco tempo depois, acho que numa manhã de sábado, era o espaço para onde nós as convidávamos a trabalhar.
estávamos sentados na mesa. Era Serafim que dormia em Quando cheguei, Andreia já estava lá. A mesa estava
cima dela no outro canto mas eu não o reconheci. Acho repleta de panos coloridos e retalhos de todos os tipos,
que vestia umas roupas mais azuladas (no outro dia ele muitas estampas, muitos tecidos. De longe eu não entendia
era pra mim um homem todo de preto). Foi ele então o o que estava acontecendo. Quando cheguei perto vi: era
primeiro a sonhar na mesa que tínhamos construído; o Serafim. Nessa época nós já tínhamos uma espécie de
o primeiro a sonhar a mesa. Nós conversávamos sobre amizade. Ele tinha encontrado alguns sacos cheios desses
coreografia e Andreia falava do sentido de circular, dos giros retalhos, sobras de alguma fábrica da região, e estava em
da patinação no gelo, do ato de desenhar um círculo com o êxtase. Brincava de ser estilista. Pegava um tecido, e outro,
corpo. Serafim acordou de um sono profundo e aos poucos e outro e imaginava em voz alta o que poderia fazer com
começou a desenhar círculos na mesa com os próprios cada um deles: um vestido, roupas para um homem, para
dedos. Ele parecia sentir um prazer naquilo, de modo que uma moça, uma saia rodada. “Já imaginou?” – perguntava.
não conseguia parar e falava pra nós sobre os círculos. Não Ele ia vestindo vários panos como dava e nós também, nos
consigo me lembrar o que. Queria tanto lembrar mas não tornamos os manequins da sua imaginação. As pessoas
sei. Ele era doce, um pouco querendo atenção, um pouco que chegavam para se inscrever ele as recebia mostrando
falando sozinho, e no meio disso dizia coisas incríveis que as possibilidades de combinar uma estampa com outra, ou
ficamos ouvindo por um tempo. Foi muito depois que entendi sem nem olhar para elas continuava mirabolando o que
que ele e o homem do bastão eram a mesma pessoa. faria com cada pano.
Foi uma tarde muito feliz, demos altas risadas e alguns
desses panos estão ainda entre nós. Depois disso, em
momentos em que era difícil para mim estar no espaço, eu
vestia em torno do umbigo ou como faixa na cabeça meu
pano vermelho com um risco branco no meio. Ele é como
um amuleto que me aproxima do Serafim.

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Há um outro modo de encontrar Serafim nos baixios. Ele
ensinou para Andreia um exercício, de deixar suas mãos
atravessarem os buracos nos muros para ouvir o silêncio.
Quando fazíamos o Ciclo de Morar na Coreografia, no Esses buracos foi o Rodrigo quem abriu, na época em
terceiro dia Marion conduzia os trabalhos. No final do que entramos no espaço e começamos a dar aulas lá. Nos
acontecimento, o fogo ainda aceso, alguns partindo, outros sentíamos um pouco enclausuradas, era tudo fechado,
conversando num canto, brincamos de mirar o projetor no o portão ficava trancado e entrávamos e saíamos por um
próprio viaduto e não mais na tela. É lindo ver a luz nos buraquinho na grade. De fora ninguém nos via ou ouvia e
volumes da arquitetura e Serafim foi lá dançar. Ele tinha as pessoas que vieram fazer as aulas rodavam bastante até
ficado meio perto naquela noite, um pouco inquieto que encontrar onde é que era. Um espaço gigante, totalmente
eu me lembre. Mas aquele momento era dele, ele sabia e invisível. Então o Rodrigo durante vários dias abriu buracos
foi dançar na luz do projetor. Ao mesmo tempo declamava no muro, criando ao mesmo tempo um ritmo das ferramentas
em voz alta olhando para a fogueira: “O que vem depois do no concreto e passagens de luz, vento, som, que deixavam
fogo? O que vem depois do fogo?” E dançava. “É a água”, os olhos das pessoas da rua atravessarem os tijolos. Durante
dizia. “Depois do fogo vem a água”. E girava e dançava e a primeira festa junina que fizemos lá, esse muro se tornou
dizia outras coisas que eu não ouvia. Eu estava ali meio o muro dos desejos, onde cada um podia acender uma vela
exausta, meio ficando doente, não é brincadeira essa dentro de um saquinho de pipoca com areia e fazer um
história de morar na coreografia. Não absorvi muito das pedido. Era mesmo um muro mágico. Então um dia muito
palavras daquela noite. Também porque tinha o microfone, tempo depois fui fazer a aula da Andreia e ela nos ensinou
que era difícil pra mim. Absorvi só chá de gengibre, a esse exercício que o Serafim ensinou pra ela: deixar suas
história dos músicos que levam seu tapete para onde vão mãos atravessarem os buracos, do jeito que fosse bom, seja
para improvisar em cima dos padrões desenhados neles e lento, rápido ou como for, uma mão ou as duas, uma de cada
o título da noite: a dança é como a água. Disso o Serafim vez, e ouvir o silêncio... É um jogo. É muito emocionante,
já sabia. não dá pra descrever. Talvez seja possível jogar em outros
buracos, se vocês quiserem experimentar, mas não tenho
certeza. Pra mim lembro que dava um frio na barriga, de
sentir aquele vento, aquela travessia.

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Ele virava também. O homem da jaqueta de couro com
os bastões, o que vira tudo do avesso, o que briga grita
esperneia. Em alguns momentos ele era muito doce e nos
ensinava várias coisas, conversava, ajudava nos mutirões
de limpeza e até brincava de fazer uns pedaços das aulas.
Arranjou um cachorrinho bebê muito pequeno e se derretia
de amores por ele, ensinando, brigando, fazendo carinho,
talvez especialmente quando alguém estava assistindo: ele
gostava de demonstrar seu amor. Em outros momentos
acho que posso usar aquela expressão e dizer que ele
era da pá virada. De longe já dava pra sentir o humor do
dia. Tinha dias em que não dava pra se aproximar, em
que o caos e a violência reinavam dentro dele e então ao
redor. Ele arranjava brigas por ali, várias vezes. Ouvíamos
falar. Ele ainda gostava de fazer suas acrobacias com os
bastões e eu entendo o que seja sentir medo dele, nesses
momentos. Outros moradores, que não transitavam entre
tantos mundos que nem Serafim, não gostavam muito
dessa história de um dia cá outro lá. Um dia ele sumiu e
nunca mais o vimos. Imaginamos coisas, será que deram
um fim em Serafim, será que ele saiu andando nessa vida
dos loucos nômades sábios das ruas da cidade, será que ele
atravessou mesmo pra outra dimensão da qual vivia no beiral
prestes a se jogar? É bom ter tantas lembranças. Aprendi
muito com Serafim. Me lembro daquela outra história que
o Viveiros nos ensinou, de que existe uma chance de que o
outro não seja um espelho, mas um destino.

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Bárbara Malavoglia. Mitológicas. Terreyro Coreográfico. 2017

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