Você está na página 1de 82

Kant

Oiavo de Carvalho
I

Kant
Aula 24

por Olavo de Carvalho

coleção

História
Essencial da
Filosofia
Kant
Aula 24
por Olavo de Carvalho

Coleção História Essencial da Kilosoliu

Acompanha esta publicação um DVD,


que não pode ser vendido separadamente.

Impresso no Brasil, fevereiro de 2008


Copyright iS 2008 by Olavo de Carvalho

l-oto Olavo dc Carvalho


M ário CüsLellu

Editor
Edson Manoel de Oliveira Pilho

Projeto Gráfico
Monique Schenkels e Dagmar Rizzoio

Diagramação
Esliidio É - André Cavalcante Gimenez

Transcrição
Dcnny Marquesani

Revisão
Jessé dc Almeida Primo

Os direitos autorais dessa edição pertencem à

É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Lida.


Caixa Postal: 45321
CEP: 04010-970 - São Paulo - SP
Telelax: (11) 5572-5303
E-niail: e(merealizações, com, br
ww w. c realizações.com. br

Reservados todos os direi los desta obra. Proibida toda o <|iinl(|iii,i n,|iroiliu.;ao desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, loim opin pi evacuo ou qualquer meio.
Kant
Aula 24

por Olavo de Carvalho

coleção

História
Essencial da
Filosofia

£
2008
7
I olcção História Essencial da Filosofia
Kant - Aula 24
por Olavo de Carvalho

Todo esle período da história da filosofia, do século XVÍII até pelo


menos metade do XÍX, nós temos condições de saber que toda a visão
que se tem disso no ensino universitário e na bibliografia consagra­
ria é totalmente errada, quer dizer, esse talvez seja o período mais
desconhecido na história do pensamento universal. Quanto mais se
pesquisa, sobretudo nas últimas duas ou três décadas, quando o pes­
soal começou a abrir a caixa preta do esoterismo europeu, ocultismo,
sociedades secretas, cada dia que passa se descobre mais coisa que
interfere de tal modo na interpretação dos filósofos da época que nós
podemos dizer que em alguns casos a interpretação consagrada chega
a ser o inverso da realidade. E particularmente o menos estudado nesse
empreendimento arqueológico tem sido Kant, então à respeito de Kant
não se descobriu ainda nenhuma novidade, mas também, ninguém
procurou. As pesquisas se centraram mais no período propriamente
romântico, então seriam Fichte, Schelling e Hegcl. A respeito desses
se tem hoje nos círculos estudiosos uma visão muito diferente daquela
que está consagrada nos livros de história da filosofia. A história da
filosofia é uma disciplina dc progressão muito lenta, porque como é
uma disciplina de conjunto, ela depende de que milhares de problemas
tenham sido resolvidos primeiro na escala monográfica, problema por
problema. Então, depois que todo mundo já está sabendo de alguma
coisa, aquilo ainda demora um tempo para entrar nos livros de his­
tória da filosofia, quer dizer, os estudos sobre este ou aquele filósofo,
sobre este ou aquele tema em particular, são muito mais velozes e c
natural que seja assim, primeiro você tem que resolver as partes para
depois resolver o conjunto, Não existe nenhuma história da filosofia

5
atualmente que apresente desta época uma imagem que esteja à altura
do que hoje se sabe a respeito na área dos estudos monográficos. Nós
podemos dizer que esse novo campo também não é tão recente, cie
começa, creio que em 1923 com a obra de Auguste Viatte, “Les sources
occultes du Romantisme’111 (As fontes ocultas do Romantismo) cm que
ele vai rastreando a influência que doutrinas esotéricas, alquímicas,
teosóficas, etc., tiveram no Movimento Romântico considerado mais
do ponto de vista literário, mas também pegando alguns filósofos aí no
caminho. A partir dessa sugestão inicial o pessoal começou a rastrear,
na década de sessenta saiu o livro do Jacques D'Hondt que eu citei no
Jardim das Aflições. Hegel secret (Hegel secreto), e isso foi somando,
somando resultado, daí, tudo isto converge para este livro, “Hegel and
the Hermetic Tradition”, de Glenn Alexander Magee, que c um livro
que eu nem acabei de 1er ainda, nias que já dá para perceber tudo o
que foi estudado nessa área. Para você chegar a uma conclusão nesse
ponto com relação a um filósofo, já são vinte ou trinta anos de trabalho
e até isto depois se incorporar na história da filosofia, sáo mais vinte
ou trinta anos, de modo que vocês podem dar por seguro que tudo o
que se lê hoje nas histórias da filosofia atualmente existentes, mesmo
nas melhores, a respeito deste período, vai ser muito mudado nos pró­
ximos vinte ou trinta anos quando este material todo for incorporado
nas histórias da filosofia. Para vocês terem uma idéia das conclusões a
que o sujeito chega cu vou 1er uns parágrafos aqui para vocês, depois
mais tarde nós vamos ver isso direitinho quando estudarmos Hegel,
mas só para se ter uma idéia do período.
O livro começa assim:
“Hegel não é um filósofo, ele não é um amante ou buscador da sa­
bedoria, ele acredita que a encontrou. Ele escreve no prefácio da Feno-

1Viatte, Auguste, ''Les sources oeeijll.es du romantisme". Editora : Albin Micliei, 1“ Hdiçao - 2001.

à
iiifitoiogia do Espírito: “Ajudar a trazer a filosofia para mais perto da
forma da ciência com o objetivo de que ela possa deixar de lado o título
de amor à sabedoria e tornar-se conhecimento efetivo, este c o objetivo
a que eu me propus”. No fim da Fenomenologia Hegel afirma ter che­
gado ao conhecimento absoluto que ele identifica com a sabedoria.
A afirmação de Hegel de ler atingido a sabedoria é complctamente
contrária à concepção grega original da filosofia como amor à sabe­
doria, isto é, como a busca continuada, sendo antes uma busca con­
tinuada do que a posse final da sabedoria. Essa afirmação no entanto
é plenamcnte coerente com as ambições da Tradição Hermética, uma
corrente de pensamento que deriva o seu nome da chamada hermetica
ou corpus herrneticum, uma coleção de tratados e diálogos gregos e
latinos escritos no primeiro ou segundo século d. C.. e provavelmente
contendo idéias que são muito mais amplas”.
E assim ao longo do livro ele vai buscando as fontes herméticas, al-
quúnicas, esotéricas e ocultistas de praticamente cada linha de Hegel.
Então, ele diz:
“Interpretar Hegel como um autor, como um doutrinário her­
mético não é uma das interpretações possíveis de Hegel, é a inter­
pretação obrigatória, fora disso você não entende nada do que ele
está dizendo.”
Então você imagina que Hegel na história da filosofia é Lido as­
sim como uma espécie dc culminação do racionalismo clássico. Isto,
depois deste estudo, não se sustenta mais, isso vai cair. Por mais
escandaloso que pareça, a bibliografia acumulada a respeito é muito
grande. Uma disciplina como a história da filosofia, que é uma dis­
ciplina de conjunto, de síntese, não vai sc permitir ser afetada por
uma ou outra descoberta particular, mas quando as coisas começam a
acumular chega uma hora que não dá mais para segurar. Muita gente
pode tentar ainda continuar lendo Hegel e Fichte e Scheliing dentro

/
da linha costumeira. E sc isso demora um tempo para chegar na his­
tória da filosofia, você imagina o tempo que isso vai levar para chegar
ao Brasil. Nós podemos quase profetizar que no Brasil as pessoas
jamais chegarão a saber disto.
Quanto mais a gente descobre essas coisas, mais a gente fica in­
seguro com relação à visão costumeira que sc tem. Por exemplo, nós
não sabemos direito as ligações esotéricas, maçónicas do próprio Kant,
não temos idéia disso, o pessoal pegou muito o Hegel, mas depois que
descobriu tanta coisa a respeito de Hegel c Fichtc, a gente já fica com
um pé atrás com relação ao próprio Kant. Você veja que entre as in­
fluências esotéricas importantes da época estava o tal do Swedenborg.
Emmanuel Swedenborg era um ocultista sueco que é um dos tipos
mais extraordinários da história, porque ele teve três vidas, ele primei­
ro fez um sucesso enorme como poeta e hedonista, era considerado
um dos maiores da Suécia. De repente ele largou tudo isto para se
dedicar inteiramente às ciências naturais e à tecnologia. Na área da
tecnologia a sua realização máxima, única na história certamente, foi
um trilho que ele construiu para transportar por terra toda a Marinha
Sueca, atravessou a Europa, isso cm 1810 mais ou menos. Você imagi­
ne uma obra desta na época, a dificuldade que teria para fazer, o cara
conseguiu transportar, levou toda a Marinha por terra. E fez uma série
de descobertas importantes, dc maneira que ele por volta dos cinqüen-
ta anos {a carreira literária foi até os vinte e cinco anos, aos vinte e
cinco anos ele parou e começou a carreira científica) estava no auge da
glória científica, era considerado o maior homem de ciência da Suécia,
ele também parou tudo e começou a terceira carreira, de místico, e
escreveu uma série de livros muito impressionantes com descrições dc
visões do céu e do inferno.
Quando Kant leu isso ficou indignado e escreveu então um escrito
chamado “Sonhos de um Visionário”, no qual ele impugna as visões de

8
Swedenborg. Eu tenho a impressão de que essa leitura de Swedenborg
deve ter sido muito importante para o Kant, porque “Sonhos de um
Visionário” é um dos poucos escritos de Kant onde ele muda de tom,
você vê que ele está realmentc indignado, que ele está bravo; imaginar
Kant bravo é impossível, você não vê isso em parte alguma, é um ho­
mem normalmente tão frio, e ali você vê que aquela coisa rcalmente
mexeu com ele e se tornou para ele importante provar de algum modo
que aqueles conhecimentos esotéricos trazidos pelo Swedenborg eram
não apenas falsos, mas impossíveis. De algum modo nós podemos
interpretar toda a obra de Kant como uma tentativa de provar a im­
possibilidade do conhecimento de Deus, do infinito, da vida após a
morte, etc. e ao mesmo tempo uma tentativa dc criar uma religião que
fosse independente desses conhecimentos, ü u seja, uma religião que
já não seria baseada no conhecimento dos fatos de ordem espiritual,
mas seria baseada inteiramente em considerações e exigências de or­
dem moral, ou seja, Kant é o inventor da transformação da religião em
moral. Um processo que certamente acabou afetando todas as religiões
ocidentais, ao ponto de que a redução da religião a exigências morais
está impregnada na opinião pública. A ideia mesma da religião, qual é
a noção que ela evoca imediatamente? A idéia de uma disciplina moral
que você tem que seguir. Isso está tão distante da idéia originária da re­
ligião que, conforme eu creio já lembrei neste curso mesmo, o sistema
da teologia moral católica só ficou pronto no século XVIII, quer dizer,
até lá você tinha uma grande diversidade de critérios morais, é Santo
Afonso de Ligório que junta tudo e coloca ordem. Ora, a religião pôde
passar dezoito séculos se expandindo, ocupando a Europa inteira, che­
gando até às Américas, educando os índios, sem ter um sistema moral
pronto, quer dizer que esse sistema moral não era tão vital assim para
a vida cristã. O aspecto da fé, do rito, do simbolismo, do imaginário e
tal era certamente mais importante. Nós podemos dizer que o aspecto

9
cognitivo predominava, a religião era sobretudo o acesso a certas rea­
lidades. Por isso o Evangelho se chamava “boa notícia”. O que é uma
boa notícia? É o comunicado de um fato e não a emissão de uma or­
dem ou de um mandamento moral. Você vai ter o mandamento moral
também, mas ele faz parte de toda uma história, dc algo que aconteceu.
As primeiras discussões que aparecem sobre o cristianismo no século
I c II não são de maneira alguma de ordem moral, quer dizer, aquilo é
uma doutrina, uma visão do mundo que está sendo apresentada c que
as pessoas discutem para saber se o sujeito concorda ou não concor­
da, se ele vê as coisas daquela maneira ou não, A ênfase moral é uma
coisa muitíssimo recente. Por exemplo, a partir do século XIX começa
a haver muito a expectativa de que o seguidor de uma religião aja na
sua vida pessoal precisamente de acordo com aquilo que ela manda. E
até então c durante a Idade Media inteira ninguém tinha esta expecta­
tiva porque sabem que isto é muito idealístico, sabem que as pessoas
rcalmcntc não são assim. A ênfase estava muito mais colocada no fato
de que a religião era um meio de limpar as culpas dos pecadores e não
uma espécie de camisa de torça que eles tinham que vestir para todos
eles sc comportar direitinho até então. A diferença da sensibilidade
moderna para a antiga nisso aí c tão grande que ela chega a ser inima­
ginável para o cidadão contemporâneo. Normalmentc, como existe a
visão da religião como sobretudo um código moral na modernidade, a
tendência (é quase que automática) o sujeito imaginar que este con­
junto de exigências morais deveria ser ainda mais rígido e mais pesado
nos séculos anteriores. Quando na verdade todo o moralismo cristão,
pelo menos na esfera católica, c uma coisa bastante nova na história.
Não precisa dizer também que essa ênfase moral reflete um pou­
co das tendências do protestantismo, mas no protestantismo o lado
moral se torna especialmcntc importante justamente pelo fato de que
você não tem mais a autoridade dogmática, você não tem mais um

10
papa, que c o sujeito que assegura qual é a doutrina verdadeira e qual
c a falsa. Então, vocc passa a ter um problema de auto-organização
das comunidades e, cm função disso, é claro que, por um problema
prático, o aspecto moral se torna particularmentc importante. Você
não tem outro critério para você se orientar senão ver a conduta das
pessoas, e você mesmo se adaptar a uma conduta que lhe pareça mais
apropriadamente evangélica. Mas note bem que esta inclinação protes­
tante para a religião moralista não é uma inclinação do tipo doutrinal,
ninguém disse que a coisa tinha que ser assim, foi simplesmente uma
circunstância prática que na formação das comunidades protestantes
tornou mais importante na prática o código moral do que os aspectos
doutrinais e cognitivos da religião. Mas com Kant esta ênfase se lor-
na explícita, Kant diz não apenas que a religião é assim, mas que ela
tem de ser assim e que só pode ser assim. Por que só pode ser assim?
Porque de acordo com ele só existem dois tipos de conhecimento, tem
aquele conhecimento que você adquire pelos sentidos e que lhe dá
então informação do que se passa no mundo exterior e existe o conhe­
cimento de ordem racional que você obtém por análise dos conceitos
que você mesmo já tem. Ora, o conhecimento racional então só lhe
dará informações, só lhe acrescentará alguma coisa de ordem pura­
mente formal que não se aplicará ao domínio dos fatos. Quer dizer, a
armadura formal, a armadura lógica da mente humana não contém fa­
tos, ela só contém relações lógicas. E do conjunto das relações lógicas,
por mais que você as conheça e as esclareça, você não pode deduzir
que nenhum fato aconteceu, você só pode deduzir as condições gerais
que lhe permitiriam acontecer ou que o determinariam que aconte­
cesse de tal modo. Mas, se aconteceu ou não, esta é uma informação
empírica, ou seja, tem que ser obtida pela experiência e portanto pelos
cinco sentidos. E diz ele [que] os fatos de ordem espiritual não são
nem uma coisa nem outra, eles não são acessíveis nem por análise de

11
conceito porque eles não são constituídos apenas de formas lógicas;
eles têm a pretensão de ser acontecimentos reais, mas por outro lado
se são acontecimentos reais não são acontecimentos da ordem física,
portanto não são acessíveis aos sentidos; então, tudo o que a religião
pretende transmitir em matéria de conhecimento de Deus, dos anjos,
da vida após a morte, tudo isso aí, ele diz, são coisas que nós podemos
pensar, mas nós não podemos conhecer. Isso quer dizer que não temos
acesso ao tipo de experiência que seria necessário para você transmitir
alguma informação sobre Deus. A hipótese de que se a estrutura da
mente humana limita o nosso conhecimento a esses dois tipos, a hipó­
tese de que esta limitação incidindo sobre o ser humano não limitasse
também concomitantemente o próprio Deus, em nenhum momento
ocorre ao Kant. Você veja que ao longo de toda a tradição espiritual
ninguém disse que o homem tem capacidade de chegar a tais ou quais
conhecimentos, nunca ninguém disse isso. Segundo os esoterislas e
ocultistas, que são da parte da tradição hermética ou gnóstica, através
de exercícios ascéticos, etc., você se torna capacitado para obter certos
conhecimentos de ordem espiritual. Mas isso aí são apenas grupos eso­
téricos e gnósticos que tem essa pretensão, nenhuma religião jamais
teve; o que ela diz é que Deus infunde esse conhecimento em você por
um meio que só ele sabe. Então, nós podemos perguntar: em que me­
dida o conhecimento dos limites do aparato cognitivo humano afetaria
realmentc a doutrina religiosa? A mim parece que não afeta dc manei­
ra alguma. A idéia mesma de um Deus onipotente implica que cie pos­
sa se comunicar com as suas criaturas por meios que transcendem as
limitações delas, porque essas limitações não afetam o próprio Deus.
O conceito, por exemplo, da ciência infusa... O que é ciência infusa? E
o conhecimento que você não tinha e de repente você aparece lendo.
Então c uma ciência que foi infundida ou infusa dentro dc você pelo
próprio Deus. Eu não vejo como o conhecimento das limitações da

12
mente humana pudessem limitar também o fenômeno corno a ciência
infusa; já está dito desde o inicio que a parte ativa na produção desse
conhecimento não é o ser humano, porem o próprio Deus.
Mas Kant está seguro de que uma vez que ele demonstrou as limi­
tações da mente humana, os conhecimentos de ordem metafísica, não
só os conhecimentos religiosos, mas todo conhecimento de ordem
metafísica está bloqueado de uma vez para sempre. “A não ser - diz
ele — que se mude o sentido da metafísica”. A metafísica, então,
para ela sobreviver como ciência, teria que desistir da sua pretensão
de conhecer os fenômenos que estão colocados para além da experi­
ência sensível e ela tem que mudar a direção do seu enfoque, operar
um giro de cento e oitenta graus e passar a se interessar justamente
pela estrutura do aparato cognitivo humano. Dito de outro modo, a
metafísica tem que se transformar cm teoria do conhecimento. Então,
doravante, segundo Kant, não falaremos mais do infinito, da imorta­
lidade, do scr, etc., etc., mas falaremos apenas das estruturas do co­
nhecimento humano, seja no seu aspecto sensível, seja no seu aspec­
to racional. O conhecimento da estrutura racional da mente humana
toma a forma então de um sistema das categorias. As categorias são,
dito de outro modo, os tipos de juízos que você pode fazer, os tipos
de afirmações que você pode fazer, No tempo de Aristóteles se di­
zia que as categorias são os tipos de scr, quer dizer, as modalidades
de existência. Então, dizia Aristóteles, as coisas podem existir, por
exemplo, como substância. O que c substância? Substância é uma in­
dividualidade metafísica, algo que é ele mesmo e não parte ou aspec­
to de outra coisa. Ele define substância exatamente assim: substância
é aquilo que não é nem parte de outra coisa nem predicado de outra
coisa. Dito de outro modo, a substância c o único verdadeiro sujeito
das afirmações filosóficas. Mas nem tudo o que existe é substância,
existem também qualidades, por exemplo... ou existem quantidades,

13
üu existem ações, existem ações que você faz e que você padece;
existem posições e relações; então, de tudo o que você conhece no
mundo, você pode classificar tudo conforme você esteja falando de
uma substância, dc uma qualidade, de uma relação, etc.
Aristóteles nunca chegou a uma conclusão exata de quantas cate­
gorias existiam; ele tem uma lista de oito c tem uma lista de dez. Ago­
ra, sc o conhecimento da estrutura do ser já não c mais cognoscível,
segundo Kant, então as categorias já não são mais tipos de existência,
modalidades de existência, mas são apenas modalidades pelas quais
nós enfocamos a existência, naturalmente ele tem que mudar a lista
das categorias. Ele faz uma lista de doze categorias que na verdade
vão corresponder não à lista das categorias que Aristóteles faz, mas às
categorias dos modos de predicação; por exemplo, você pode fazer urn
juízo de tipo categórico quando diz por exemplo que dois mais dois são
quatro; ou você pode fazer um juízo de possibilidade ou de impossibi­
lidade c assim por diante. Então, nós vemos que as categorias de Kant
são apenas tipos de juízos que você pode fazer independentemente
do que seja a realidade a respeito da qual esses juízos estão falando.
Da realidade já não conhecemos mais nada, conhecemos somente as
estruturas do nosso próprio aparato cognitivo. E no aspecto do conhe­
cimento sensível, também as duas grandes categorias do conhecimento
sensível são, segundo ele, o tempo e o espaço. Ele diz [que] se nós
não podemos conhecer nada da realidade externa objetiva, o tempo
e espaço têm que ser então formas da nossa própria percepção. Não
é que existem tempo e espaço fora de você, é você que enxerga ludo
dentro do tempo e do espaço; você não consegue perceber nada fora
do tempo e do espaço. Sendo que o tempo corresponde à modalidade
que você tem da percepção de vocc mesmo, e o espaço à modalidade
que você tem de perceber os objetos que não são você. Dito dc outro
modo, o tempo é a estrutura da existência do conhecimento interno

14
que temos cie nós mesmos, e o espaço é a estrutura do conhecimento
que lemos do mundo em geral. Quando nós dizemos que algo existe,
nós queremos dizer que existe no tempo e no espaço; porem não pode­
mos dizer que o próprio tempo e o espaço existem. Na verdade o existir
algo é estar colocado dentro do tempo c do espaço, mas o tempo c o
espaço por sua vez não têm propriamente a existência porque eles são
apenas a forma que nós temos de conhecer as coisas. Está aí admitida a
hipótese de que talvez não existam nem espaço, nem tempo, nós é que
enxergamos as coisas assim.
Cá para nós, eu acho tudo isso uma confusão miserável, mas o
trabalho que Kant tem para isto, para criar isso aí, é absolutamenLe
monstruoso. Por que na época isto impressionou tanto? Porque você
já vinha desde umas décadas antes, a partir do próprio Hume, já se vi­

nha desenvolvendo a idéia do fenomenismo. O que é o fenomenistno?


Fenonienismo significa que você não conhece as coisas propriamente
ditas, você não conhece a realidade, você só conhece aquilo que che­
ga até você, aquilo que lhe aparece. E a palavra “fenômeno” vem do
verbo grego phainesthai que quer dizer justamente aparecer. Você só
conhece as aparências que têm a amabilidade de se mostrar a você.
Vocês se lembram da aula sobre Hume quando ele coloca em dúvida os
sentidos da memória, etc., etc.?2 Ele diz até mesmo que o próprio cu
cognoscente é duvidoso, nós não conhecemos nem isso, nós conhece­
mos apenas aparências, até de nós mesmos nós só conhecemos aquilo
que aparece para nós.
Isso quer dizer que a idéia dos entes c das substâncias reais que nos
chegam através de uma multidão de sinais é dissolvida nesses próprios
sinais, só sobram os sinais, você não pode garantir que exista nada por
trás. Kant endossa esta idéia de Hume, ele lê Hume e concorda, diz:
“É, de falo as coisas são assim”. Mas por outro lado, Kant também

' David Hume, Aula 22, Olavo de Carvalho, Cd. f, Realizações, 2007.
havia lido Newton, e se convenceu de que Newton também tinha
razão, de que existe a gravitação universal, existe mais isto, mais
aquilo, ou seja. que Newton tinha chegado a uma descrição eficaz da
realidade física. Então a esta altura o problema que Kant ataca e que
ele vai tentar resolver através dessas idéias que eu acabo de expor é
justamente a de: como é possível uma ciência da natureza desenvol­
vida. como Newton a descreve, se ao mesmo tempo, segundo Hume,
nós nada podemos conhecer além dos fenômenos? Como ele está
convencido dc que nós nada conhecemos além dos fenômenos, então,
isso quer dizer que ele não vai poder explicar a ciência de Newton
a qual ele endossa, ele não vai poder explicá-la como uma descrição
da realidade objetiva, mas ao mesmo tempo ele reconhece que ela é
válida. Então, como c possível uma ciência válida que você não sabe
se ela corresponde à realidade objetiva?
Está entendendo o problema? Para mim esse problema parece to­
talmente artificial, mas foi assim que ele colocou, e esse problema es­
tava na cabeça de muita gente na época.

(Aluna): - Sem falar também que é a mesma coisa quando ele


descreve a realidade objetiva...
Não, cie diz que não é islo!

(Aluna): - Para ele não!


Para ele nâo! Ele diz: ilEssa ciência é válida, mas nós não pode­
mos saber sc cia corresponde à realidade objetiva. Então a validade
dela deve estar numa outra coisa’’. E onde é que ele vai encontrar um
princípio de validade da ciência? É na própria estrutura do conheci­
mento humano. Ele diz que as estruturas da nossa racionalidade e do
nosso sentido são universais, isto é, valem para todos os homens. En­
tão qualquer teoria científica, se ela corresponder a esta estrutura do

16
pensamento humano, à estrutura da percepção e à estrutura da ra­
zão, ela será universalmente válida, ainda que nós não saibamos se
ela corresponde com a realidade objetiva. Significa que ciência válida
passa a ser aquela que convence igualmente a todos os homens ou que
deveria convencer igualmente a todos os homens e que sc ela estiver
errada, estarão todos errados juntos. Ou seja, em lugar do conceito
da realidade como princípio aferidor da veracidade ou falsidade das
nossas idéias coloca-se a idéia de humanidade. A universalidade da
estrutura do pensamento humano torna-se agora o verdadeiro critério,
ou seja, não há uma realidade acima de nós ou fora de nós que julgue a
veracidade ou falsidade das nossas idéias, E a nossa própria estrutura
que, por ser universal, por ser idêntica em todos os homens, garante
a validade desses conhecimentos. Mas garante a sua validade e não a
sua realidade. Não se fala mais da realidade, só existem os fenômenos
e os juízos válidos. O que é válido? Válido significa que confere com a
estrutura universal da mente humana.
Como é que fica dentro disso, dentro desse novo esquema, a idéia
da religião, a crença em Deus, por exemplo? Ele diz: :‘Nós não pode­
mos saber se Deus existe ou Deus não existe, o que nós podemos fazer
é validar a religião pelo mesmo modo que nós validamos as ciências”.
Ou seja, em função da estrutura da razão humana ou da estrutura
do conhecimento humano em geral. Então, diz ele que a crença em
Deus é o que ele chama o imperativo categórico, quer dizer, alguma
coisa que tem que ser porque senão o homem seria menos homem,
estaria diminuído por assim dizer. Ele valida Deus, não em função da
existência de Deus, mas da necessidade que o homem tem de crer em
Deus para ele manter o seu estatuto, a sua nobreza humana. Quer
dizer que abolindo a realidade, abolindo Deus, abolindo a natureza,
abolindo as substâncias, sobra o quê? Somente a estrutura da mente
humana, e esta passa a ser o juiz supremo de todas as coisas. Na épo­

17
ca isto tem um impacto absolutamente formidável porque a crítica
fenomenista havia convencido todo mundo e por outro lado também
todo mundo estava convencido da validade da nova ciência, estava
todo mundo orgulhoso das conquistas da ciência física, c ao mes­
mo tempo todo mundo persuadido de que a crítica fenomenista ou
céptica era válida. Quando Kant consegue harmonizar essas duas
coisas fazendo o que cie chama de “revolução copernicana”. ele diz:
“Assim como Copérnico tirou o centro do mundo da Terra e colocou
no Sol, eu estou virando também o universo inteiro das ciências que
antes girava em torno de um Ireco chamado realidade c agora gira
em torno da nossa mente“. Este giro... nós ainda estamos dentro
dele. Quer dizer, a influência de Kant no mundo é assim avassa­
ladora, em todas as teorias científicas, seja na esfera de ciências
naturais, seja dc ciências sociais, o Kant está presente em tudo. Isso
quer dizer que esta precaução kantiana de jamais falar da realidade,
mas falar somente dos fenômenos, c dc privilegiar o processo e a
estrutura do conhecimento diante do objeto conhecido, quer dizer,
o objeto é preterido em favor do sujeito cognoscenle, isso aí está de
tal modo impregnado que eu acho que nunca mais nenhuma teoria
depois de Kant, nenhuma dessas teorias mais famosas que circulam
por aí, jamais pretendeu ser real, pretendeu apenas ser válida. Você
imagina então o efeito absolutamente anarquizanle que isso tem no
domínio da ciência.

(Aluno): - Acho que não só nas ciências, mas acho que já chegou
às últimas consequências, o homem comum já pensa dessa maneira.
Sim, o homem comum já c kantiano.

(Aluno): - Por exemplo, eu ontem conversando com um amigo,


disse a ele uma coisa e ele disse: “Não! Isso que você está dizendo é

18
titilido!" '‘Sim! Mas você acha que isso que eu estou dizendo é certo?”
"Não! É a sua opinião...”
Veja que esta idéia, por exemplo, este tipo de relativismo atenuado
que diz que todas as opiniões são válidas, você vê, isso c um eco lon­
gínquo do Kant.

(Aluno): - E as pessoas não admitem...


Quer dizer, não existe o teste da realidade.

(Aluno): - Depois você fala em objetividade, mas há intolerância


em relação a...
É! Objetividade segundo Kant seria apenas corresponder às estru-
luras da razão c da percepção. E diz ele [que] nós podemos conhecer
os Fenômenos, isto é. as aparências, c podemos conhecer também por
uma análise reflexiva a nossa própria estrutura do conhecimento; isto
c tudo que podemos conhecer. Isto, segundo ele, não implica desmen-
lir a religião, implica apenas fundá-la em novas bases; as bases agora
seriam já não cognitivas, mas bases morais.
É impossível, por exemplo, ler a sociologia de Max Webcr sem você
saber que tem a sombra do Kant por trás, porque Weber é um sujeito que
sempre que vai chegar a alguma afirmação sobre a realidade coloca os
lermos entre aspas. As aspas têm um efeito atenuante, então se ele vai
falar a realidade objetiva, ele põe objetiva entre aspas. Isso quer dizer:
não é a realidade objetiva mesmo, é aquela realidade que você pensa que
é objetiva. Todo esse conjunto dc precauções dá a impressão de que você
Fez uma espécie de upgrade, tudo se torna mais rigoroso, mais científico,
mais cuidadoso. Mas se você examinar bem, de fato, tudo está mais cui­
dadoso c mais preciso e mais rigoroso, exceto os conceitos iniciais com
que Kant começou essa coisa toda. Porque quando você vai examiná-los
você vê que nada disso se sustenta, mas nem um único minuto.

19
O curioso é que esta grade de limitações kantianas oprimiu de tal
maneira o cérebro das gerações seguintes que todos tentaram sair de
lá de dentro, porém todos tentaram sair partindo do princípio de que a
conquista kantiana era definitiva. Então, você tem que partir de Kant
para diante, para a frente, você não pode voltar atrás, aquilo que ele
descobriu é válido e está dito. Até para você restaurar, por exemplo, a
metafísica, você teria que restaurá-la por um caminho que fosse kan­
tianamente admissível; tudo o que está na filosofia do idealismo ale­
mão, com Fichte, Schelling e Hegel, c baseado nesta ideia, quer dizer,
eles colocam o Kant como ponto de partida.

(Aluno): - Olavo, lá na USP eu já ouvi gente comentando que filó­


sofo mesmo, só quatro: Platão, Aristóteles, Descartes e Kant.
É! As pessoas acham isso. Agora, o Kant... a minha opinião pessoal
sobre o Kant é muito depreciativa, eu acho que Kant é burro, eu já tive
vários sinais disso aí.

(Aluno): - Por quê?


Por quê? Porque ele começa a colocar uns conceitos e ele não per­
cebe as implicações imediatas desses conceitos. Por exemplo, se ele diz
que o tempo é a forma da interioridade c o espaço a forma da exterio­
ridade, você cria um problema. Como é que você relaciona uma coisa
com outra? Quando você percebe [que] um trem está se deslocando,
você está fazendo o quê? Você está fazendo uma relação espaço-tempo,
essa relação não é feita por um raciocínio, você a percebe. A percepção
do movimento mostra que o espaço e o tempo não aparecem para você
como elementos separados.

(Aluna): - Gozado! E nem me parece que ele leu o Nezvton!


Bom, não sei, eu não conheço muito o Newton.

20
(Aluna): - Quer dizer, o espaço e o tempo são as variáveis
básicas da física!
Sim, mas ele diz que você pode desenvolver toda a física do Ncwton
sem você pressupor a realidade externa do que você está dizendo. Você
vai dizer apenas que aquela armadura de conceitos e de observações...
de relações criadas por Newton correspondem aos fenômenos. Quer
dizer, de tudo aquilo que você colheu na realidade, todos os dados que
chegaram até você, aquela armadura combina com eles. Você não pode
dizer se as coisas são realmente assim.

(Aluna): - É! Isso acaba invalidando qualquer outra...


Isso quer dizer o seguinte: você conserva a ciência inteirinha, tudo
o que você sabe é revalidado, só que não significa mais realidade, signi­
fica apenas coincidência com os fenômenos. Então, as coisas, as subs­
tâncias, as entidades ficam excluídas da estéra cia ciência e sobram ape­
nas os fenômenos que chegam até você e as relações que logicamente
você estabelece entre eles. Dá a impressão de que fica tudo igual: agora
eu estou vendo vocês, cu estou supondo que vocês estão aí, mas se eu
disser que vocês são apenas fenômenos que chegam até mim, funcio-
nalmente isso não vai mudar em nada. Porque todos os dados que eu
estou captando eu vou continuar captando do mesmo modo. Eu só
direi que não são entes, não são entidades, não são coisas, não são pes­
soas, são fenômenos que me aparecem. Agora, se essas coisas existem
na realidade objetiva, este é outro problema que nem me interessa e
que não é possível de averiguar.

(Aluno): - E como é que ele acha que as pessoas possam ver


o mesmo fenômeno?
Porque as estruturas de percepção e da razão são universais. Então,
elas coincidem, nós todos estamos vendo um mundo, mas nós não sabe-

21
mos c esse mundo é assim, nós sabemos apenas que nós. seres humanos,
como coletividade vemos assim; como nós não podemos sair de dentro
da nossa estrutura cognitiva, jamais saberemos se é assim ou não, só
sabemos que todos vemos assim, então aquilo que estamos dizendo a
respeito não é necessariamente real, mas é universalmcnte válido,

(Aluna): - Quem detém o conhecimento sobre a estrutura univer­


sal da mente humana?
Ele diz que pode, por exemplo, por uma análise introspecliva, urna
análise transcendental.,, O que é transcendental para ele? Transcen­
dental é aquilo que determina o quadro da experiência possível, mas
que só se revela para você depois da experiência. Quer dizer, é a con­
dição a priori, anterior à experiência, mas que você só conhece a pos­
teriori; quer dizer, depois que você teve a experiência, você a analisa
e vê que antes mesmo de ela acontecer já havia certas condições que
predeterminavam a forma desse conhecimento, isso é o transcendental
dele. O transcendental significa você retornar sobre o conjunto da ex­
periência para ver não só o que se passou durante a experiência, mas
quais as condições anteriores, as condições prévias que já davam o
quadro, a grade pela qual você obteve a experiência,

(Aluna): - Quer dizer, só é possível então esse conhecimento a pos­


teriori, a interpretação a posteriori?
Não, mesmo u conhecimento do a priori só vem a posteriori. Urna
coisa é o modo de você obter o conhecimento, outra coisa é a natureza
dele. Tem conhecimentos que em si não dependem da experiência para
ser válidos, mas você só os obtém através da experiência. Por exemplo,
que dois mais dois são quatro. A validade de “dois mais dois são qua­
tro" não é uma validade experimental, não é uma validade empírica,
é uma validade lógico-universal. Mas você só descobre isso depois de

22
você fazer a conta ele dois mais dois. Agora, tem coisas que vêm através
da experiência e que só são validadas pela experiência; por exemplo, o
falo de que vocês estão aqui agora; cu não posso por lógica, por mera
análise lógica dc conceitos, cu jamais poderia provar que vocês estão
aqui agora; eu preciso do dado de experiência para isso. Então, esse
conhecimento não somente c obtido por experiência, mas a condição
de validade dele está na própria experiência; mas tem outras que não,
você obtém pela experiência, mas a condição de validade deles não c
experimental, é lógica.

(Aluna): - E isso está em Kant?


Está no Kant. Mas essa distinção entre o empírico e o racional de
algum modo já estava cm Aristóteles.
Acontece que Kant faz várias confusões, uma delas é ele achar que
por Irás dos fenômenos precisaria existir uma coisa-em-si para que o
nosso conhecimento tivesse realidade objetiva. Então, existe por um
lado o fenômeno que é aquilo que as coisas me mostram, aquilo que
chega até mim; e para além disso talvez exista ou talvez não exista
uma coisa-cm-si. O que é a coisa-em-si? E a coisa independentemente
do que cu conheço dela. Somente esta coisa-em-si é que seria a tal da
realidade objetiva, a realidade que é em si mesma.
Já começamos com o seguinte problema: por que só aquilo que eu
não conheço c que tem que ser objetivo? Quando eu digo que uma
coisa é objetiva eu quero dizer que ela existe independente mente da
minha interferência, não do meu conhecimento. Isso quer dizer que
quando cu me coloco não como sujeito agente, produtor do aconte-
cimento, mas como observador, eu digo que ele aconteceu indepen-
dentemente de mim; mas dc mim como sujeito agente, não como
sujeito cognoscente. Porque senão, por exemplo, se eu testemunho
um crime, então eu posso dizer que o crime aconteceu rcahncntc

23
sc cu não o observei? Isso e duma estupidez assim tão formidável!
Como você pode definir a coisa-em-si como aquilo que ela é indepen­
dentemente do seu conhecimento? Isto é a primeira coisa, A segunda
coisa: toda a análise que Kanl faz é a análise do sujeito cognoscente,
quer dizer, a análise das estruturas racionais e perceptivas do sujeito
cognoscente. E através dessa análise ele chega à conclusão dc que o
princípio de validade do conhecimento é justamente a compreensão
dessa estrutura do conhecimento; então, cia passa a ser a medida de
aferição, ela, e não o objeto; o objeto nem precisa existir, se a estru­
tura é universalmente válida, então, o conhecimento obtido por ela é
válido independentemente de o objeto existir ou não.
Só que nós temos aí um pequeno problema: este sujeito cognos­
cente é sempre e unilatcralmcnte sujeito ou ele é também objeto? Eu
poderia ser sujeito sem ser objeto? E eu poderia chegar ao conheci­
mento das minhas próprias estruturas cognoscitivas de sujeito se eu
não fosse objeto?
É claro que não!
Tudo o que Kanl fez foi examinar uma imagem no espelho fazen­
do abstração de se aquilo é imagem de alguma coisa fora do espelho
ou não. Então, a imagem no espelho vai se parecer bastante com a
realidade; só que se vocé não se interessa por saber sc a imagem
refletida no espelho reflete algo externo ou não, tudo para você será
imagem no espelho daí para diante. Eu digo: tudo será imagem no
espelho, mas e o próprio espelho? Quer dizer, para o espelho refletir
alguma coisa fora, alguma imagem fora, é necessário que ele não seja
apenas uma imagem. Bastaria vocé inverter, dizer: olha. não existe
só a imagem no espelho, existe a imagem que você tem do espelho.
Você também está vendo o espelho! Senão, você não poderia dizer o
que ele está espelhando.

24
O mundo de Kant é urna espécie de inundo bidimensional em que
sé) existe sujeito, e o sujeito é sempre e uniformemente sujeito. Se você
considerar aquele sujeito, por exemplo, o próprio Kant, como objeto,
você vai ver que a existência objetiva deste objeto é condição para
que ele seja sujeito. Quer dizer, sc tudo o que eu conheço, eu conheço
como fenômeno sem saber que tem algo por trás, eu preciso ver se eu
próprio poderia conhecer isso sendo eu mesmo apenas um fenômeno,
li a resposta é evidentemente “não”.
Então, Kant pula fora desse problema levando em conta somente
as estruturas do sujeito e jamais consentindo em se colocar a si mesmo
como objeto. Ora, o teste aí é bastante simples, se você se olha num
espelho você vê que a imagem que aparece no espelho é determinada
pela estrutura do espelho (não é isto?), quando Kant examina a mente
humana ele está examinando como se fosse um espelho e dizendo:
“olha, a imagem que sc reflete aqui não depende da estrutura do ob­
jeto, depende da estrutura do espelho.” Quer dizer, a mente humana
é o espelho no qual se refletem os fenômenos, e eles adquirem uma
forma que é determinada pela estrutura dessa própria mente, assim
como a imagem no espelho depende das propriedades refletanles do
próprio espelho. Muito bem, mas quando você se olha no espelho, a
sua imagem é determinada só pelo espelho, ou pelo que você faz dian­
te do espelho? Existe por um lado a estrutura do espelho e existe a
estrutura daquilo que se mostra ao espelho, nenhum dos dois pode
determinar totalmente o outro. Por exemplo, sc eu fizer tais e quais
gestos diante duma superfície que não tem o poder refletante nada se
refletirá, eu faço diante desta parede, não aparece nada nela; agora se
eu fizer diante do espelho, aparecerá o mesmo gesto. E sc eu não esti­
ver diante do espelho, o espelho pode ter a faculdade refletante que ele
queira, ele não me refletirá. Portanto, é inteiramente absurdo você su­
por que a partir dessa pura análise do sujeito você possa compreender

25
ü processo cognitivo, considerando o objeto apenas como fenômeno.
Porque você mesmo em você mesmo, você tem o aspecto fcnomênico
c você tem o aspecto substancial, c os dois não se confundem de ma­
neira alguma. Porque se você, no instante em que você se conhece,
conhece algum fenômeno a seu próprio respeito, por exemplo, você diz
“eu estou com frio!’; bom, esse c um fenômeno, 6 um dado da expe­
riência que chega até você. E quem registra isto? É outro fenômeno?
E este fenômeno, por sua vez, será registrado por outro fenômeno, e
por outro fenômeno, e por outro fenômeno, e por outro fenômeno...
Você terá multiplicado a coisa formidavelmente! Além disso, a idéia
que ICant faz da mente humana subentende que os fenômenos chegam
para nós de maneira totalmente caótica, eles não têm unidade, não
existe uma unidade na estrutura do universo, na estrutura do real. É a
menle humana que cria a estrutura e o mundo então é, na melhor das
hipóteses, um aglomerado de fenômenos que em si mesmo não tem
estrutura, Ioda estrutura nós damos. Damos como? Quando percebe­
mos as coisas dentro do espaço c dentro do tempo estamos projetando
sobre os fenômenos as estruturas que se chamam tempo e espaço, as
quais estão na nossa mente.
Bom, isso para mim. c uma impossibilidade pura e simples. E
impossível você fazer isso. Por quê? Por exemplo, eu estou perce­
bendo esta sala. O que significa eu percebê-la? Significa que eu a
enquadrei nas minhas categorias de espaço c tempo. E por causa
disso ela me parece ser uma sala com pessoas dentro, com esta, esta,
esta característica. Mas eu não sei se realmente essa estrutura que
eu estou percebendo corresponde à estrutura da entidade objetiva
que está diante dc mim.
Muito bem, e quando eu percebo que eslou percebendo? Ou seja,
eu percebo esta sala c cm seguida eu reflito sobre o alo que eu tenho
de perceber isto. Então, nesse instante eu me transformo para mim
mesmo no quê? Num fenômeno! Eu também não me conheço subs-

26
lanlivamente, só me conheço como dado fenomênico. Mas quando eu
percebo este dado fenomênico, por sua vez, cu o percebo desde um
outro ponto de vista que também é fenomênico. Você pega aquela fa­
mosa frase do padre Ladusãns: “se eu sei, eu sei que sei, e se eu sei que
sei, eu sei que sei que sei”. Traduza isso na linguagem do Kant. Quer
dizer, se eu sei, isso não quer dizer que eu sei algo de objetivo, eu sei
apenas que algo foi fenomenicamente percebido. Mas se eu sei que sei,
eu também não sei que sei substantivamente, cu só sei que eu tive um
fenômeno de percepção da própria percepção, e em seguida tive outro
fenômeno da percepção da percepção, e assim por diante. Então, é o
espelho do espelho do espelho do espelho do espelho do espelho do es­
pelho do espelho... Não dá para parar esla conta; não existe um limite.
Sc não existe um limite, como é que você pode dizer que você resolveu
o problema? Não, você criou um problema absolutamente formidável,
você criou um enigma. Porque o conhecimento que se processasse por
um jogo dc espelhos sem limite ele seria inviável sob todos os aspectos,
e você nem poderia chegar a dizer o que você está dizendo. Porque sc
você está dizendo é porque você fechou um esquema. Mas você mul­
tiplicar um problema não c você rcsolvc-lo de maneira alguma. Então,
vale contra o Kant o mesmo argumento de Aristóteles contra a teoria
das formas ou das idéias de Platão. Se existe aqui um homem, mas a
verdadeira realidade deste homem é um outro homem que existe no
mundo das idéias, é porque existe uma semelhança entre eles. c esta
semelhança não é nem um nem o outro, é um terceiro homem. Tem eu,
tem o meu modelo no mundo das idéias e tem um terceiro homem que
é entre eu e o outro formando e elo de semelhança. Mas entre eu e esse
terceiro também tem que ter um outro.

(Aluno): - E entre esse terceiro e o outro...


E assim por diante. Então, quando você diz que a verdadeira re­
alidade não é esta que está aqui, mas c a do mundo das idéias, você
está multiplicando os objetos indefinidamente. Quer dizer, se você já
está vendo aqui um gato ou uma tartaruga e já está difícil de você en­
tender isto, se você multiplicar indefinidamente o número de tartarugas
que existem entre você e ela, você não está ajudando em absolutamente
nada, você está apenas complicando, você está criando um artificialis­
mo absolutamente inútil, e, pensando bem, você não disse nada. Dizer
que tudo o que nós conhecemos são fenômenos e não as coisas em si
é não dizer absolutamente nada. Quer dizer, é uma frase que não tem
substancialidade. Por quê? Porque qual é a diferença entre fenômeno e
coisa-cin-si? Fenômeno é aquilo que eu enxergo e coisa-cm-si é aquilo
que a eoisa é independentemente do que cu sei dela. Muito bem, aí você
está supondo que tudo que você sabe da coisa não faz parte da estrutura
da coisa. Aquilo que você sabe é só fenômeno c aquilo que ela é é o que
ela c independentemente de você conhecer. Por que raios aquilo que cu
sei dela tem que ser excluído da estrutura dela? Tsso quer dizer que cada
vez que ela me manda uma informação ela trata de não corresponder a
essa informação.

(Aluna): - Que é o problema...


Claro! Aqui tem o sapo, o sapo parece verde, na hora cm que ele
emitiu esse verde, ele diz: “agora isso aqui já virou fenômeno, então não
sou mais eu”.

A idéia de que a coisa-em-si, de que a realidade objetiva da coisa teria


que ser aquilo que ela é independentemente do que sabemos dela supõe
que uma coisa possa existir independentemente de qualquer sujeito que
a conheça, não apenas eu, mas qualquer outro sujeito que a conheça, ou
seja, a eoisa para ser real teria que estar totalmente isolada de qualquer
informação que ela passasse para qualquer outra coisa. Dito de outro
modo: se nós entendemos que, mesmo considerando tudo fenomenica-

28
mcnle, o que nós chamamos de universo é um tecido de relações, mes­
mo que seja fenomênico, então a coisa-em-si só poderia ser aquela que
estivesse totalmente fora desse tecido de relações, e isto evidentemente
e nina condição impossível. A coisa-em-si é aquela que não transmitisse
informação alguma para ninguém a respeito de sua própria existência. É
claro que isso não pode existir.

(Aluno): - Nós é que talvez...


Não, isso não pode existir de maneira alguma.

(Aluno): - Talvez ele queira dizer que a coisa-em-si emite informa­


ção sobre ela...
É, traduzindo a coisa em termos de teoria da informação, você tem o
emissor e o receptor da informação, então, o sujeito é o que recebe a in­
formação, objeto é o que emite, se você equacionar assim, isto esclarece
prá caramba. Uma vez definido sujeito c objeto assim, você diz: c possí­
vel um objeto que jamais seja sujeito? Ou um sujeito que jamais seja ob­
jeto? A resposta é evidentemente “não". Porque o sujeito absoluto teria
que ser aquele que só recebesse informações sem jamais emiti-las, nem
mesmo para si próprio. Então, ele teria que ser informado dc tudo sem
nada saber de si próprio. E o objeto absoluto seria aquele que apenas
emitisse informações sem jamais receber nenhuma. E você ate entende
que nesse caso tanto o sujeito quanto objeto são duas formas de inexis­
tência. E ele está definindo então como coisa-em-si o objeto inexistente.
Quer dizei; para ser uma coisa-cm-si precisaria ser inexistente. Se chega
a nós de algum modo é porque não é a coisa-em-si. Eu digo: mas que
raio! Quer dizer que cada coisa só informa para nós o que não é ela?

(Aluno): - Então,talvez seja que ela informa aquilo que é ela. só


que a nossa capacidade de perceber é distorcida...

29
Não! Isso já está incluído. Não tem nada que ver. Vamos supor
que eu quando vejo uma coisa eu opero uma distorção nela, ela me
manda um conjunto de informações das quais eu só pego algumas,
e essa seleção é determinada pela forma da minha percepção. Muito
bem, aquele conjunto de informações que ela me mandou e que eu
estou selecionando do meu modo, esta seleção que eu faço corres­
ponde à estrutura dela ou não?

(Aluna): - Terrt uma parle que sim...


Então, isso aí pode ser resolvido pela teoria do sapo c da águia
que eu já expliquei, creio, no Seminário, não sei sc aqui expliquei.
Aqui tem um sapo e aqui tem uma águia; urna águia enxerga a dez
quilômetros de distância, então ela vê o sapo a dez quilômetros dc
distância e diz: “Oba! Está aii o meu almoço!” O sapo só enxerga
até um metro de distância, então ele nada saberá da águia até ter
virado almoço dela; ou seja, nenhum sapo jamais soube da existên­
cia de nenhuma águia, não dá tempo de ver, ele morre c não sabe
porquê. Por outro lado, tem aqui um mosquito que é o almoço do
sapo; e o mosquito quando ele vê o sapo - você sabe que o mosquito
tem um monte de olhos - ele vê mil sapos. Muito bem, cada um está
vendo a coisa por um ângulo; a águia viu lá o sapo e não viu mosca
nenhuma porque também enxergar uma mosca a dez quilômetros dc
distância não dá, mas o sapo ela vê; o sapo não viu águia nenhuma,
mas está vendo um mosquito, mesmo assim o mosquito está só num
dos dois lados do mundo, porque o sapo não junta os dois olhos, c
uma para cada lado, as duas visões, então... “ah! tem um mosquito
no mundo direito!” E o mosquito por sua vez vê mil sapos diante
dele. Ora, o sapo está aqui e ele está emitindo uma informação para
a águia e outra informação para o mosquito. Ele pode trocar? Ele
tem a capacidade dc emitir para o mosquito a informação que ele

30
emite para a águia? Ele tem a capacidade de ser visto pelo mosquito
do jeito que a águia o vê? Não! Então, isto significa que a maneira
que a águia c o mosquito vêem o sapo não está determinada só pelo
aparato de percepção da águia e do mosquito, mas pela estrutura
do próprio sapo, ele não pode trocar isso, ele não tem poder sobre
is s o . Quer dizer que Ioda informação que é emitida e recebida, de­

pende não só da estrutura do receptor, mas também da estrutura do


emissor. Senão o emissor poderia trocar os seus sinais à vontade.
Então, existe uma limitação do aparato de percepção do receptor.
Sem dúvida! Mas essa limitação é coniproporcionada à estrutura
emissiva do emissor. Portanto, a estrutura da nossa percepção é
coniproporcionada à estrutura dos objetos.

fAluno): - Ele pode não perceber exatamente o que eu queria,


mus alguma coisa dele...
Não, não é só isto. Cada ser só opera urna seleção. Essa seleção
reflete somente a estrutura de percepção do sujeito? Não. Ketlele a
do objeto também. Porque para aquele tipo de observador cie não
pode emitir outras informações. Por exemplo, se você vc o sapo
como verde, não c porque o seu olho está montado assim. Se o sapo
quisesse parecer azul, ele conseguiria? Não! Teste você isso aí. Por
exemplo, você está diante do espelho, você fique pelado diante do
espelho e tente aparecer vestido. Essa limitação c do espelho? Cer-
lamente, coitado, cie não pode vestir você. Mas voeê também não
tem a capacidade de aparecer vestido se você está pelado. Então,
quer dizer que a seleção que o observador opera 6 coniproporciona­
da à seleção das informações que o objeto emite.

(Aluna): - E o sapo não pode parecer grande e a águia não pode


parecer pequena.

31
Claro! Vamos inverter: agora o sapo começa a ver como a águia ou
então ele emite informações para a águia c diz: “olha, eu não estou
aqui, eu sou o mosquito”. Ele não pode fazer isto! Quer dizer que
esse conjunto de perspectivas, cada uma limitada, que os vários seres
têm uns sobre os outros, não está somente neles enquanto observa­
dores, mas enquanto objetos também. E você percebe isso claramente
quando você emite uma informação para você mesmo. Por exemplo,
ficando diante do espelho pelado ou vestido. Quer dizer, o espelho
não tem a capacidade dc captar você alem do que está na frente dele,
mas você também não tem a capacidade de projetar nele o que você
não está fazendo.
Toda esta idéia kantiana da estrutura da percepção é uma idéia
muitíssimo interessante, só que ela não existe independentemente
da estrutura dos objetos. Ele está supondo não só a existência de
um sujeito absoluto, quer dizer, um sujeito que fosse sempre e uni­
formemente sujeito, mas ele está supondo que toda a humanidade
seja assim. Então, este é o primeiro furo. Não existe o sujeito sem ser
objeto e você se considerar como sujeito é uma abstração que você
está fazendo, quer dizer, você está apenas decidindo se examinar sob
metade dos aspectos que fenomenicamente você mostra. E você es­
colheu essa metade, por quê? Porque você quis. Em vez de eu fazer
o exame da minha estrutura de percepção, que é a mesma coisa que
estrutura de recepção, vamos fazer um exame da minha estrutura de
emissão. Por exemplo, você só pode me ouvir numa determinada fre­
quência dc onda, mas e se eu quiser falar nouLra frequência de onda,
cu consigo? Eu também não! Então, através da articulação do que eu
percebo com o que eu emito é que cu percebo que eu também sou um
objeto. Agora, se você diz: “não podemos conhecer a coisa-em-si!”
Eu digo: muito bem, mas eu também sou coisa? Eu também sou ob­
jeto de conhecimento? Tanto sou que eu estou faiando a meu próprio

32
icspcilo. Eu mc conheço a mim mesmo só como sujeito? Fosso me
conhecer a mim mesmo só como sujeito cognosceníe? Não. Para isso
cu precisaria abolira minha própria existência no espaço c no tempo
e me considerar somente como receptor de sinais que não está em
parle alguma. Se eu estou em algum lugar, sc cu mesmo estou dentro
do espaço-tempo, então também estou me conhecendo a mim mesmo
como objeto. Eu vejo minha mão, vejo meu pé, ouço minha voz. Não
c assim? Lembro de meus próprios pensamentos, lembro de coisas
que mc aconteceram. Então, eu também sou objeto para mim. Eu
digo: muito bem, se eu não posso conhecer a coisa-em-si. eu também
não posso conhecer o eu-em-mim.
Não c assim? Agora, se eu não posso conhecer o eu-em-mim, então
nao há nenhuma diferença de valor cognitivo entre eu e os objetos, ou
seja, eu serei para mim mesmo tão real quanto os demais objetos ou
lao irreal quanto eles; se eu só posso conhecer as coisas como fenôme­
no, eu também só posso rrie conhecer a mim mesmo como fenômeno.
Agora, em que medida um fenômeno pode ser sujeito e com que direito
você diz que um simples fenômeno tem uma estrutura de percepção
universalmente válida? Se é urn fenômeno, você só conhccc empirica­
mente. E tudo o que você fez para analisar a sua estrutura de percep­
ção, tudo isso, também seria fenomênico, não tem nenhuma razão para
que isso não seja fenômeno. Em suma, o universo de Kant está todinho
errado, é tudo fantasia, é tudo besteira, e é melhor esquecer. Kant não
disse nada, todo o universo de Kant me parece uma vasta pegadinha,
sabe, de tipo “faz dc conta que eu não estou aqui” e impressiona muito
por scr muito exato nos seus detalhes.

(Aluno): - Professor, eu não consigo entender... num exemplo,


no caso que é o que ocorre, por exemplo, pessoas que perdem um
membro, uma perna, um braço, esse tipo de coisa, ainda sentem o

33
órgão como se tivessem. Aí há uma espécie de cisão entre o eu como
sujeito e. o eu como objeto, e além disso não se reajusta...
Eu entendo isso. Mas como c que você articula isso com o negócio
kantiano? Eu não entendi.

(Aluno): - E estou falando o seguinte...jincompreensível!


Não, eu não estou querendo dizer que você como sujeito e você
como objeto estejam sempre perfeitamente articulados de uma manei­
ra consciente. Isso não c necessário. O que cu estou querendo dizer é
que não pode haver uma separação absoluta deles, E claro que den­
tro dc você, na sua composição objetiva, existem muitos aspectos que
você mesmo não conhece e que você vai conhecendo ao longo da vida.
O que é prova de que você como sujeito cognoscente e você como ob­
jeto não coincidem perfeitamente. Mas o que a filosofia de Kanl supõe
c que não coincidam jamais, é que estejam absolutamente separados, e
que urn possa ser examinado dc maneira totalmente independente do
outro. Mais ainda, está suposto que você jamais seja objeto.
Quer dizer, a estrutura cognitiva do sujeito pode ser descrita em si
mesmo. E c isso que eu estou dizendo que não pode. Eu mesmo tenho
dc ser objeto para que cu possa descrever a minha própria estrutura
de percepção! E se cu sou objeto, então recai sobre mim mesmo as
objeções que eu acabo de fazer contra a coisa-em-si. E se islo recai
sobre mim mesmo, por que não há de recair sobre a minha estrutura
de percepção? Por que é que ela também uão há de ser apenas um te­
cido fenomênico? E por que ela há de ter uma validade universal? Não
tem nenhum motivo para ter. Se tudo o que você conhece do mundo
exterior é fenômeno, e não só do mundo exterior, tudo o que você co­
nhece do espaço e do tempo, cu digo: mas a si mesmo você se conhece
no tempo. Agora, você pela análise da sua experiência temporal chega
à conclusão dc que existem certas condições anteriores, a priori, sem

34
.is quais a sua experiência temporal não teria acontecido. Mas corno é
que você chega a isso? Pela análise da experiência temporal. E quem
disse que a sua experiência temporal aconteceu como teria de aconte­
cei':' Se ela é como é, então, analisada ela revela que precisa de tais ou
quais condições. Essas condições, por sua vez, são apriorísticas, não
dependem da existência da própria experiência. Mas o conhecimento
que você tem delas depende de que você tenha a experiência. Então,
a única maneira de você chegar às condições a priori é a análise da
experiência, mas a experiência também é fenomênica. Então, por que
as condições que determinaram aquela estrutura daquela experiência
lém que ser universais? Teria que ser por um processo indutivo, você
analisa uma experiência, outra experiência, outra experiência, outra
experiência, nada pode lhe garantir que a análise da próxima experi­
ência não vai lhe revelar outras condições a priori que você não tinha
percebido ainda. Aliás, o próprio Kant à medida que ele vai fazendo
análise vai descobrindo outras condições a priori.

(Aluno): - Ele mesmo reconhece isso!


Ele mesmo reconhece. Então, quem lhe disse que toda esta bela
estrutura que você descreveu também não é fenomênica?

(Aluno): - Baseada na experiência do próprio Kant...


Do próprio Kant, sem dúvida! Então, sc você partir para o fenome-
nismo, não tem saída. O cara que parte para o fenomenismo tem que
declarar claramente “eu não existo'”
Essas objeções todas aqui não são minhas, elas são apresentadas.
Eu creio que a única que é minha propriamente dita, é a da correspon­
dência, do negócio do sapo e da águia, quer dizer, o emissor e o recep­
tor, c a articulação do espaço-tempo. Porque se não existisse a articu­
lação de espaço e tempo, então a síntese de espaço e tempo teria que

35
ser racional e não percepliva. Se as duas únicas condições da percepção
são o espaço e o tempo, o que lhe permite dizer que tal coisa aconteceu
durante “x tempo” e cm tal lugar? Somente uma síntese racional, teria
que ser uma síntese lógica, não uma síntese perceptiva. Então, o fato dc
nós percebermos o movimento teria que ser explicado por um raciocínio
que você está fazendo.

(Aluna): - E o raciocínio é justamente o contrário...


Então, o movimento deixa de ser um dado. E muita gente diz isso. No
curso de filosofia do Alain Émile Chattier, ele demonstra o tempo todo
que o movimento é uma síntese que você está fazendo na sua mente.

(Aluna): - Quando é justamente o contrário, você tem que pensar o


espaço e tempo separado para juntar os dois na experiência.
Como é? 1

(Aluna): - Você tem que abstrair o espaço e o tempo para...


Ele está dizendo, ‘'você percebe de um lado o espaço e do outro lado
o tempo, você percebe o espaço fora c o fempo dentro...” Mas se eu per­
cebesse o espaço fora e o tempo dentro, como é que eu posso saber que
eu estou aqui? O que está dentro está dentro, o que está fora está fora!
Ou seja, eu nunca posso perceber que eu estou num lugar, eu só posso
concluir que estou num lugar. Então, a minha própria presença física
em tal ou qual lugar deixa dc ser um dado dos sentidos e passa a ser o
resultado duma conclusão, dum raciocínio que eu fiz. Você não percebe
que isto c muito complicado?

(Aluna): - Então, todo mundo precisaria ser Kant.


Todo mundo precisaria scr Kant, senão ninguém saberia que está
em parte alguma! Quer dizer, veja, uma coisa c você validar por um

36
raciocínio algo que você está percebendo pelos sentidos; outra coisa é
você dizer que a própria percepção nasce de um raciocínio. Eu digo: não,
da lem urna estrutura que pode ser, que é análoga ou homóloga a de
11ui raciocínio que você pode fazer. Ou seja, além dc você perceber uma
coisa, você pode prová-la racionalmente.

(Aluno): - Tem um terceiro caso...


Mas não quer dizer que você fez primeiro o raciocínio para
depois perceber.

(Aluno): - Tem um terceiro caso, o absurdo que você percebe não


existe, o raciocínio é que está correto.
(Aluna): - Mas aí você não percebeu a. realidade, você criou um
raciocínio.
(Aluno): - Mas tem muita gente que passa isso.
Não, mas se você acreditou perceber algo, rnas não percebeu re-
alrnente, isso não influi nem contribui nesse caso aqui. A alucinação
você também teve em algum momento e em algum lugar! Quer dizer,
você teve a alucinação realmente ou só pensou que teve? A alucinação
enquanto tal é uma experiência real? Ela foi, mas se ela foi real, então
voeê estava em algum lugar durante algum tempo enquanto você alu­
cinava! Então, voltamos à etapa um. Quer dizer, o problema da articu­
lação entre o espaço e o tempo só pode scr resolvido se você disser que
esta articulação é resultado de um raciocínio, uma síntese que você faz
no domínio do raciocínio e não da percepção. Você teria que ter uma
terceira categoria entre o espaço e o tempo, você teria que ter uma
terceira forma a priori da percepção. Essa terceira forma como é que se
chama? Existência! E essa é o que o Kant não admite que existe.
Então, existência c a forma da articulação do espaço e tempo. Mas
acontece que se você percebe algo como existente, voeê não pode ao
mesmo tempo dizer que é inexistente.

37
(Aluna): - Então, a questão que ele falou que existia um terceiro
caso seria que você acredita que percebeu algo, na verdade não per­
cebeu porque aquilo não se passou, mas você teve uma alucinação e
elaborou um raciocínio em cima...
Sim, mas isso aconleceu!

(Aluna): - Ou seja, tem implicação... não, mas aí acaba... você


pode aplicar então...
A diferença enlre percepção real e alucinada não faz...

(Aluna): - Então, poderia transformar isso numa realidade, pen­


sando... a alucinação poderia transformar isso numa realidade...
(Aluno): - Sim, mas para que ela pudesse ser, é preciso que você
tivesse existido...
Nãol Note bem! O mundo do Kant corresponde milimetricamente ao
mundo real, e é por isso que fez sucesso nas ciências. Só que você não
diz que é o mundo real, você diz que é o mundo do seu conhecimento.
Se eu decidisse, por exemplo, que vocês não existem, vocês são apenas
fenômenos que estão na minha frente, mas acontece o seguinte: eu não
tenho o poder de alterar esses fenômenos, e qualquer outra pessoa que
estivesse aqui perceberia esses fenômenos igual a mim, então, continuo
vivendo, conversando com vocês como se fossem reais, sabendo que
não são reais, vocês são apenas universalmcnte válidos. Estão compre­
endendo? É isso mesmo que eu estou dizendo para vocês, isto é uma
impossibilidade pura e simples. Porque para cu percebê-los como fenô­
meno eu tenho que perccbê-los no espaço e no tempo, mas para isso
eu tenho que articular espaço e tempo, ou seja, eu não posso perceber
vocês só no espaço ou só no tempo; então, eu tenho que articular os dois
de uma vez; se para eu articular os dois cu precisasse fazer isso através
de um raciocínio e não de uma percepção, então evidentemente vocês

38
não seriam mais fenômenos, mas resultado de um raciocínio meu; vocês
seriam conclusões lógicas e não fenômenos.

(Aluna): - Desse jeito então não há diferença entre alucinação e


realidade?
I lá porque a alucinação não se repetiria igual em qualquer outra
pessoa, a alucinação não tem validade universal, A alucinação pode
ser dita um erro porque só um sujeito ou um grupo que sente, não
são todos. Agora, nós todos estamos aqui, e nós todos vemos esta sala
mais ou menos da mesma maneira, mas não quer dizer que a sala seja
assim, quer dizer que a nossa estrutura de percepção é idêntica. Estão
compreendendo? Eu digo: está tudo muito bem, só que resta o pro­
blema da articulação entre o espaço e o tempo. Se essa articulação é
somente urn raciocínio então significa que todos os fenômenos não
poderiam ser nem mesmo fenômenos, eles seriam sempre conclusões
de um raciocínio. É a mesma coisa que dizer [que] não existem nem se­
quer fenômenos, existem apenas conclusões do nosso raciocínio pelo
qual nós articulamos um negócio chamado tempo com outro chamado
espaço. É por isso que, se existem as categorias do espaço e do tempo,
tem que existir uma terceira que articula os dois, e essa terceira é o
que você chama [de] existência. Então, significa: a coisa existir é estar
no espaço e no tempo? É só você inverter: olha, estar no espaço e no
tempo é existir. Agora, o que o Kant está dizendo é o seguinte: ‘‘existir
para nós significa apenas estar no espaço e no tempo, mas você não
pode dizer que aquilo que está no espaço e no tempo existe”. Você está
entendendo? Então, o que você está fazendo é realmente considerar
as imagens no espelho em si mesmas independenlemente do objeto
que está projetado nelas. É um artifício! Quer dizer, você está desfigu­
rando as condições efetivas em que sc dá a experiência. Eu não per­
cebo as coisas primeiro no espaço, depois no tempo e depois articulo.

39
A percepção de tempo c de espaço não é distinta; aliás, você só percebe
o tempo por alterações no espaço, mesmo que sejam alterações inter­
nas. Quer dizer, se você fizer abstração de toda e qualquer alteração no
espaço, portanto alteração corporal, não tem nem percepção de tempo!
Isto para você ver até que ponto a percepção de tempo e espaço está
articulada previamente a qualquer raciocínio que você laça.

(Aluna): - Está ligado a uma pergunta que eu já estava querendo


jazer que é: como que o Kant fundamenta, essa associação entre tem­
po e conhecimento interior e espaço e conhecimento /exterior]?
Tempo para cie é a forma da interioridade e espaço da exterioridade.,,

(Aluna): - Mas como que ele fundamenta isso? É totalmente


arbitrário!
É arbitrário! Mas cu estou dizendo, todos, mas lodos os conceitos
fundamentais do Kant são todos arbitrários; não só arbitrários como
totalmente desprovidos de fundamento!

(Aluna): - E como é que... você estava falando que o tempo e o


espaço são as duas variáveis básicas da física por causa...
E que ele parte da veracidade da crítica dc Hume e da veracidade
da física de Ncvvton. Nós podemos duvidar da veracidade das duas
coisas, não somos obrigados a aceitar isso aí. Então, tudo o que ele fez
foi tentar articular essas duas coisas. E se a física de Newton funciona,
mas se Humc demonstrou que nada conhecemos do mundo objetiva­
mente, então, a validade da física de Newton deve estar fundada cm
outra coisa. Que outra coisa é essa? É a universalidade da estrutura da
nossa percepção. Então, não é que a física de Newton seja real, ela é
apenas universalmente válida. Agora, isso dá para o pessoal acadêmi­
co a oportunidade dc mostrar assim uma aparência dc rigor, dizendo:

40
"olha, at|ui nós nada afirmamos, nós apenas descrevemos as aparên­
cias"! Mas tudo isso é teatro, porque não tem rigor nenhum nessas
coisas, isso aí é urna confusão miserável e de um artificialismo atroz.

(Aluna): - Gostaria de saber exatamenle onde está na obra ãe


Kanl quando ele faz essa... quando ele pega... fala que tempo é quan­
do você conhece o...
Eu não sei... Isso aí está na ‘"dedução das categorias", talvez eu
devesse ler trazido a "Crítica da Razão Pura" para poder mostrar onde
está, eu não lembro exatamenle, mas está na parte que é a "dedução
das categorias”, aliás, está na “Estética Transcendental”. O que é a
"Estética Transcendental”? O transcendental é aquilo que determina a
experiência previamente a ela, mas que só c conhecido depois da expe­
riência. Então, quando você sc volta sobre a experiência para discernir
nela as condições prévias que a enformaram, que a determinaram, você
está sc colocando do ponto de vista transcendental. Então, a "Estética
Transcenclenlai” é o estudo das condições prévias que determinam a
forma da percepção. Condições que por sua vez você só pode conhe­
cer através da análise da própria percepção, lí nesta parte que está
este problema do espaço e do tempo. Mas ele diz que tudo o que nós
percebemos não apenas está no espaço c no tempo, mas que perceber
é situar as coisas no espaço c no tempo. De fato, perceber c situar as
coisas no espaço e no tempo. Ele diz: “o juízo dc existência que você
faz à respeito das coisas do mundo exterior ou interior consiste em
situá-los no espaço e no tempo, você diz.er que tal coisa aconteceu é
dizer que eslava cm tal espaço e estava em tal c qual tempo.” Agora,
digo: bom, mas inverte; se existir c estar no espaço e no tempo, por
que é que estar no espaço e no tempo não é existir? Ademais, estar no
espaço e no tempo juntos não é nem estar apenas no tempo nem estar
apenas no espaço, é ter um algo mais. Ele diz que este algo mais somos

41
nós que fazemos, nós que articulamos. Agora, para eu fazer isso com
os objetos eu teria que fazer isso comigo mesmo. Por exemplo, cu
estou percebendo vocês, quer dizer, eu os estou situando dentro das
minhas categorias de espaço e de tempo, e ao mesmo tempo estou
fazendo a mesma coisa comigo mesmo, eu também estou me situando
a mim mesmo no espaço e no tempo, e digo que a existência c apenas
isso. Mas não pode ser apenas isso, porque se você cruzou o espaço
c tempo você obteve uma coisa que não é nem espaço nem tempo!
E é este cruzamento mesmo que você chama de existência, então,
isso é uma terceira categoria. Por exemplo, você pode conceber uma
realidade espacial sem tempo? Eu digo: pode! A geometria faz exata-
mente isso, você concebe o espaço independentemente do tempo. E
você pode conceber o tempo também independentemente do espaço?
Pode! Só que quando você faz isso você sabe que está apenas pensan­
do, você não está percebendo nada. Quando você percebe significa
que você percebe as coisas inseparavelmente no espaço e no tempo. E
esta fusão de espaço e dc tempo dá a esses objetos uma qualidade que
não é nem espacial nem temporal, ou melhor, que não é nem somente
espacial, nem somente temporal. Isso quer dizer que a categoria da
existência, embora ela consista da articulação de espaço c tempo, ela
não pode ser reduzida a espaço e tempo, ela é um terceiro ponto dc
vista especificamente diferente, então, nós temos três estruturas da
percepção: o espaço, o tempo e existência.
Mais tarde Xavier Zubiri vai dizer que perceber as coisas como
existentes é a forma específica da percepção humana. Isso significa
que o mundo do Kant é um mundo que é estrutural mente correspon­
dente à realidade, só que é um mundo dc papel, é um mundo fictício,
que corresponde esfruturalmcnte, mas ele não é a realidade, ele é
apenas uma imagem num espelho.

42
[Aluno): - É uma abstração!
lile é mais que uma abstração, cie c uma ficção.

(Aluno): - Isso teria algum vínculo com a visão indiana de que


tudo o que a gente percebe como existente é maya, é uma ilusão?
Mas a maya não é isto, A maya, o mundo da ilusão cósmica é
um mundo perfeitamente real, é um mundo que a misericórdia divina
criou para botar você dentro dele, a maya é ilusória em face dos deu­
ses, mas não em face de nós; a maya é uma aparência real como uma
vestimenta, a vestimenta é real, a vestimenta não corresponde com a
pessoa, mas a vestimenta existe também. Agora, o falo é que muita
gente no Ocidente entendeu maya como ilusão mesmo, mas não quer
dizer ilusão, quer dizer jogo, brinquedo, ou como se fosse uma peça de
teatro, um baile; então, ela não é uma irrealidade, ela não corresponde
ã totalidade, não é a realidade no seu todo, ela e apenas um aspecto,
e apenas um aspecto mais superficial, mas é inteiramente real. A es­
trutura do mundo, mesmo, como o mundo é para os deuses, talvez
você não agüenlasse vê-lo, então, eles criam um tecido, mas esse teci­
do existe, ele faz parte da estrutura da realidade, ele é como se fosse
a porta da realidade, mas a porta também existe. Agora, no Ocidente
sc entendeu muito o negócio da maya como ilusão, e o que eu penso
do mundo do Kant, não existiu... não se pesquisou ainda o elemento
esotérico no Kant como se pesquisou em Hegel ou SchelHng, mas cu
acabo de dar essa aula para vocês e eu já fico cm dúvida, porque eu
não sei sc ele tirou isto aqui de algum negócio gnóstico, teosófico, eu
não sei de onde ele tirou esta coisa. Mas esta espécie dc separação que
ele faz entre o homem e a realidade externa corresponde por um lado
a unia tremenda depressão cognitiva, quer dizer, nada podemos saber
da realidade em si, mas por outro lado corresponde a uma tremenda
exaltação do homem: não, a realidade em si não interessa, só interessa

43
a estrutura de percepção humana que é uníversahncnte válida, então,
a humanidade se torna o centro da realidade, a comunidade humana
é tudo. Sem essa ideia da comunidade humana não teria havido Karl
Marx, a comunidade humana coino sujeito histórico que constrói a
sua própria realidade, etc,, etc,, sem Kant não teria lido Marx também,
embora Marx nunca reconhecesse essa dívida.

(Aluno): - Hegel também não!


Não, Hegel também não! Veja, os três filósofos do idealismo tentam
reconstruir a idéia da metafísica, a ideia do conhecimento espiritual,
mas partindo duma concordância inicial com Kant. Os três fazem isso.

(Aluno): - Nunca houve objeções na época contra ele? Teve gente


que já objetou de cara ou... ?
Teve que gente que objetou de cara, mas não pegou.

(Aluno): - Olavo. Freud também nasce muito disso aí...


Certamente! Se você pensar bem, todas as escolas de pensamento
que tiveram mais irradiação cultural depois disso, todas são filhotes
de Kant. Porque todas estão empenhadas em buscar por trás da ex­
periência as condições a priori que a determinam. Quando Karl Marx
descreve o esquema da luta de classes, ele eslá dizendo: “olha, existe o
cenário histórico que nós vemos, o cenário histórico aparente, mas por
baixo existe uma condição a priori que é permanente e que determina
tudo”. Freud faz a mesma coisa, ele diz: “Por trás de tudo o que você
vivência, sente, imagina, etc., por trás do mundo real existe a estrutura
instintiva, instintual que predetermina também tudo”. Quando Jung
pega o negócio dos arquétipos do inconsciente coletivo e diz: “por
baixo de tudo o que sentimos e experimentamos tem os arquétipos
do inconsciente coletivo...” Depois o pessoal da linguística estrutural
fala: “não, você tem a estrutura da linguagem que está por trás de toda

44
essa..." Todos estão buscando o quê? Formas a priori'. E ninguém che­
ga para perguntar: mas espera aí, e se não for assim? E se estas famo­
sas formas a priori existirem em pluralidade indefinida? E se em vez de
elas serem uma coisa que está antes da experiência, elas sejam apenas
aspectos da experiência? Que é o que me parece que são.
Você pode olhar por esse lado, por aquele lado, por aquele lado, você
sempre vai ver alguma coisa que está dentro do cenário c alguma coisa
que determina a forma do cenário. Se você está assistindo uma peça,
bom, tem o enredo da peça c tem as condições a priori que não fazem
parte da peça mas que a determinam: o formato do teatro, o tamanho
do palco, a personalidade dos atores, etc., etc., aquilo está colocado por
assim dizer antes e atrás da peça que você está assistindo. Mas por que
considerar que essas coisas que estão por trás têm prioridade? Aquilo
que visto sob um aspecto é condição a priori da experiência, visto de
outro aspecto c apenas um componente da experiência. Ou seja, é você
que está colocando uma coisa na frente e outra atrás. Por exemplo, você
pega a estrutura da linguagem, a estrutura da linguagem pode ser unia
forma a priori enquanto você está usando a linguagem sem pensar na
sua estrutura, tão logo você pensa na sua estrutura, ela se torna objeto
da experiência como qualquer outro. Não existe uma perspectiva estru­
tural permanenle que separe frente e fundo. Frente e fundo estão conti-
nuamente mudando de posição conforme o lado pelo qual você olha.

(Aluno): - É interessante que o Mises apesar de usar conceitos


kantianos, ele faz o contrário. Não é? Porque ele diz...
É! O Mises' é um kantiano. Kantiano é Lodo mundo nas ciências
sociais, todo mundo.

' Ludwig von Mises (Lviv, 29 de Setembro de 18S1 — Nova Iorque, K) de OuLubro de 1973)
filósofo c economista. Maiores informações no siLe do Ludwig von Mises Institute: http://www.
mises.org

45
(Aluno): - Sim, mas eu digo o seguinte: porque ele também acha
que pode haver um por trás das decisões subjetivas, etc., mas ele diz:
“bom, só que a gente não sabe, então, enquanto não sabemos, vamos
trabalhar assim assado... então...”.
O IVÍiscs transforma todo esse kantismo apenas em precauções me­
todológicas. Como precaução metodológica, tudo isso vale; não vale c
quando você dá urna validade dc um alcance metafísico para a coisa
e diz: “nós estamos realmcnte presos dentro desta estrutura kantia­
na’1. Sc você dissesse: “não, eu von usar aqui esse método kantiano só
por necessidade de precaução, quer dizer, não vou dizer que as coisas
são exatamente assim como eu estou dizendo, direi apenas que elas
aparecem assim desde tal ponto de vista’’. Eu digo: muito bem, como
precaução vale. Mas isso é como o problema weberiano do juízo de
valor. Uma coisa c você dizer: espera aí, no estudo de tais ou quais cos­
tumes, ou tais ou quais leis, ou tais ou quais ações humanas, eu farei
abstração do juízo de valor, ou seja, cu não considerarei se estes atos
eslão certos ou errados, etc., etc. Bom, eu não levar em consideração
c uma coisa, e esses aspectos não existirem lá c ouira completamenle
diferente. Agora, prosseguindo nessa linha kantiana a gente chega a
absurdos lotais e o sujeito que partindo do preceito metodológico de
que a sua ciência, às vezes uma sociologia, uma antropologia, não leva­
rá em conta as diferenças de valor entre os fenômenos que ela estuda,
chegará à conclusão dc que não cxislem realmentc essas diferenças de
valor. Como que você pode afirmar que não existem aquelas coisas que
justamente o seu estudo não leva em conta? Como é que aquilo que a
sua ciência não estuda, aquilo que já foi declarado como fora do seu
horizonte de estudo pode scr declarado ao fim desse estudo existente
ou inexistente? É de um absurdo total, c uma coisa de meter sorvete
na testa, é uma coisa de gente burra, Quer dizer, se você não estuda tal
coisa, se a sua ciência não estuda tal coisa, então ela não pode se pro-

46
1111nciarsobre se essa coisa existe ou não. Não é isso? E tem o negócio
do Antropólogo Antropófago, não c? Tem uma apostila minha chama­
da “O Antropólogo Antropófago”. Você vai estudar antropofagia, mas
você não vai dizer que aquilo é bom, nem mau, que há alguma diferen­
ça de valor entre você alimentar uma criancinha ou alimentar-se dela.
“Nós aqui somos neutros, somos superiores a essas coisas”. Está bom,
você pode até estudar por esse lado. Embora, a abstenção de juízo
de valor nessa caso seja uma extravagância um pouco esquizofrênica.
Mas você abstrai assim. Agora, como é que ao fim desse estudo você
pode dizer sc a diferença de valor existe ou não, se logo no início você
já disse que o seu estudo não ia abranger esse fenômeno? Isso quer
dizer que a ciência sc considera tanto mais habilitada a se pronunciar
sobre um fenômeno quanto menos cia o estuda.

(Aluno): - Então, o Kant declara que a ineficiência da coisa-em-si...


Não! Ele diz: “não podemos saber se a coisa-em-si existe ou não”.
Eu digo: mas acontece que o modo como você definiu a coisa-em-si é
nonsense; ele define a coisa-em-si como aquilo que a coisa c indepen­
dente do meu conhecimento; ou independentemente do que qualquer
outro sujeito saiba. Se você acabou de dizer que o seu conhecimento
é universalmcnte válido porque a sua estrutura de percepção é igual a
de lodos os homens, então você dizer que a coisa-em-si é aquilo que a
coisa é independentemente do seu conhecimento é a mesma coisa que
dizer: é o que a coisa é independentemente de qualquer conhecimento
que qualquer ser humano tenha dela, mas o que você acabou de dizer
do ser humano vale também para qualquer outro sujeito na medida em
que a noção de conhecimento seja a mesma entre eu e um cachorro,
entre eu e uma lagartixa, etc., etc. Então, a coisa-em-si é aquilo que a
coisa c indcpcndcntemcnte do que qualquer sujeito saiba dela. Então,
você teria que considerá-la fora de tudo o que se sabe dela. Quer dizer,

47
essa noção é auto-contraditória. Uma coisa da qual nada sc sabe não é
uma coisa-ern-si, é uni simples nada. Unia coisa da qual ninguém sabe
nada é uma coisa que não está relacionada com nenhuma outra, urna
coisa que jamais transmitiu informação nenhuma para ninguém, ou
seja, c uma coisa totalmente inócua, insípida, inodora, e que não está
em parte alguma, que não faz nada. Você está entendendo? E claro que
esta definição é um flatiis voeis, você não está dizendo nada com isso
aí. Então, se você disser: '‘podemos conhecer a coisa-em-si” ou “não
podemos conhecer”, dá na mesma. Na medida em que você separa
coisa-em-si e fenômeno c diz: “você só conhece os fenômenos”, então,
para mim é o seguinte, você falar de fenômeno sern falar da coisa da
qual o fenômeno c fenômeno, não significa nada, porque mesmo que
você só saiba da coisa aquilo que fenomenicamente ela lhe mostra, isto
é característica dela, e se você fez um recorte que não coincide perfei­
tamente com a natureza da coisa é porque está na natureza dela só se
mostrar a você por esse aspecto, tanto que ela não tem o poder de se
mostrar sob outro aspecto. Por exemplo, por que é que as cores não
têm gosto? Você pinta uma superfície de vermelho, não sente gosto
nenhum. Não é assim? Você olha o vermelho, não tem gosto nenhum.
Está vendo como a sua percepção c limitada? Eu digo: mas não é a mi­
nha percepção que é limitada, o vermelho não tem a capacidade dc ter
gosto por si! E quando eu percebo isto dele, eu estou percebendo urna
limitação que é dele e não minha; senão eu não seria capaz sequer de
perceber a diferença entre cor e gosto,

(Aluno): - Então, o vermelho... o vermelho só como cor. Porque


para vermelho ser cor. ele tem que ter um substrato...
Um substrato materialI

(Aluno): - Material!

+8
Claro, evidentemente! Mas acontece que com vários substratos ma-
leriais diferentes você pode produzir o vermelho. Não c isso?

(Aluno): - Tudo bem!


K esses vários substratos materiais teriam gosto diferente. Então,
você entende que a cor como tal não está vinculada a um gosto espe­
cial. Não c isso? Digo: como é que eu sei disto?

{Aluno): - Colocando o dedo e sentindo o gosto...


(Aluna): - Como é que você sabe que o vermelho não lem gosto
específico?
Como é que eu sei disto?

(Aluno): - Porque você sabe que vermelho não é um gosto...


Se eu dependesse para isto de conhecer o vermelho em si, eu ja­
mais chegaria. Agora, acontece que o vermelho em si é somente uma
suposição que eu fiz, lodos os vermelhos que cu conheço estavam
em alguma coisa como diz... Aristóteles já dizia: “se a coisa não tem
extensão também não tem cor”. Não é? Não é assim? Por exemplo,
a cor é co-exlensiva com a extensão, a coisa só tem uma cor do ta­
manho que ela é. Posso dizer kantianamente que isto é uma forma,
c uma estrutura da minha percepção? Jsto é inconcebível como for­
ma da percepção. Porque senão você está dizendo que cu só posso
perceber a cor na extensão que o objeto tem, mas eu não sei se a cor
pode se mostrar de outro jeito nem se a extensão pode ser de outra
maneira. Eu digo: se a limitação está cm mim c não no próprio obje­
to, então, meu filho, eu não sei o que é cor nem o que é extensão. Eu
não teria nem como distinguir um do outro, Se eu distingo é porque
essa diferença não está em mim, é porque ela está cm limitações que
o próprio coitado do objeto tem.

49
(Aluno): - Mas não têm os dois?
Claro que sempre tem os dois!

(Aluno): - E além disso...


Claro, claro! Eu só percebo do objeto o que é comproporcional com
o meu esquema de percepção. E ele só me emite o sinal que é eompro-
porcionai ao aspeclo dele que corresponde à minha percepção. Porque
ele não está capacitado a mc emitir sinais que eu não capte. Ele não
tem essa capacidade.

(Aluno): - Não?
Claro que não!

(Aluno): - Uma pedra radioativa? A gente chega perto dela...


Você não percebe a radioatividade. Só com o contador Geigcr.

(Aluno): - Mas ela está transmitindo...


Eu digo: muito bem! Mas...

(Aluno): - Ela está transmitindo...


Por exemplo, eu posso ver a pedra, mas não posso sentir a radio­
atividade, o contador Gciger percebe a radioatividade, mas não ve a
pedra. Eu digo: e a pedra consegue trocar?

(Aluno): - Não, mas aí...


Vista pelo contador Geigcr e emitir radioatividade de maneira que
eu a sinta? Ela não consegue fazer isso.

(Aluno): - Mas sem o contador Geiger ela está transmitindo a


radioatividade.
Está transmitindo. Sem dúvida.

50
(Aluno): - Está transmitindo.
(Aluna): - Mas aí é uma limitação sua não perceber. Não é isso?
Claro, é uma limitação minha não perceber, mas é uma limitação
dela lambem, cia não pode fazer isso de modo que eu perceba.

(Aluno): - Ela transmite... a pedra... o objeto...


Como c que eu posso... Como é que eu sei disso? Sc cu mesmo ficar
radioativo, eu só serei percebido por um contador Geiger e não pelas
uniras pessoas.

(Aluno): - Mas o objeto transmite sempre tudo o que ele é.


Não! Não! Ele transmite tudo o que ele c, mas não em todas as
direções e não para todos os receptores.
Como é que cu sei disso? Forque eu mesmo tenho esta limita­
ção. Eu posso ser ouvido pelo espelho? Eu fico diante do espelho e
fico faiando...

(Aluno): - Não! Mas espera um pouquinho! Espera lá! Mas você


e.síá emitindo a voz para o espelho, ele é que é limitado.
Não, não! Porque eu também não transmito pelo mesmo canal.

(Aluno): - Como? Você transmite...


Eu expresso a minha imagem física pela boca?

(Aluno): - Não. com o corpo você transmite tudo o que você é.


Não pelos mesmos canais. Você tem uma diferenciação de canais.

(Aluno): - A diferenciação de canais não foi falada antes, eu não


peguei essa aula.
Você tem uma estrutura que tem vários canais pelos quais você
emite sinais. Você emite, por exemplo, uni sinal visual porque você tem

51
um corpo que reflete luz! Você emite cheiro porque lern certas substân­
cias no seu corpo. Você emite som porque você tem boca.

(Aluno): - Porque o coração bate!


Ou seja, mas esses canais não sc confundem, você não pode trocá-
los. Quer dizer, eu tenho urna limitação na emissão dos meus sinais, c
também tenho uma limitação na percepção dos sinais dos outros cor­
pos. Essas limitações têm que scr comproporcionais senão os corpos
não se perceberiam, se eu emito numa frequência que você não capta,
você não fica sabendo que cu estou emitindo. Esta limitação está cm
você? Digo: não, também está ern mim.

(Aluno): - É uma adequação das limitações.


É! É uma adequação das formas. A expressão do Mário Ferreira dos
Santos: a fórmula de proporcionalidade intrínseca de cada um dos dois tem
que ser coniproporcionada pai a que haja comunicação, senão não tem.

(Aluno): - E mais fácil explicar isso com o livro na biblioteca,


como na aula passada.
Qual?

(Aluno): - O senhor pega um livro qualquer como esse que está do


seu lado, se o senhor vira a contra-capa para o senhor e a capa para
nós, o livro não pode mostrar a contra-capa para nós.
Claro! Ah, certamente! Por exemplo, você está vendo esta mesa
por esse lado e eu estou vendo por este lado. Está vendo como a nossa
percepção é limitada? Eli digo: muito bem! E a mesa?

(Aluno): - A mesa não está...


Ela consegue estar para os dois lados ao mesmo tempo?

52
(Aluno): - A mesa não pode mostrar o tampo para nós. a mesa
também é aí...
Você está entendendo? Quer dizer, a limitação nossa está compro-
porcionada à limitação dela. Ela está nas três direções do espaço ao
mesmo tempo. Mas ela não está do mesmo jeito, não está voltada toda
para o mesmo lado. Islo é uma limitação da estrutura dela.

(Aluna): - E nós podemos ajudá-la a que ela nos deixe perceber se...
Claro! Você pode olhar por um lado c pode olhar pelo outro, mas
não pelos dois ao mesmo tempo. Você precisa olhar por um lado. Guar­
dar na memória aquele lado e depois ir para o outro. Esta diferença de
tempo que se passa entre uma percepção c a outra corresponde estru-
luralmente à diferença espacial de um lado e de outro. Sempre existe
essa eomproporcionalidade porque quando não existe a percepção não
se dá. Isso quer dizer que é impossível explicar a percepção somente
pela análise do sujeito. Ainda que você conheça toda a estrutura cogni­
tiva do sujeito, isto não lhe permite perceber absolutamente nada.

(Aluno): - Porque vai depender...


Porque depende da estrutura do que o objeto queira lhe mostrar.
Você está vendo aqui uma tartaruga... Eu digo: mas você vê por fora,
não é? E a tartaruga por dentro? Ah, você não vê! Está vendo como
c limitado? Eu digo: não, limitada é a tartaruga porque se ela se abrir
para você ver dentro, ela morre. Nós também somos assim, eu só estou
vendo vocês por fora. Está vendo como eu sou limitado? Não, limitado
é você que não consegue tirar o seu intestino, me mostrar, e depois
botar para dentro dc novo.

(Aluno): - Ou mostrar a parte de dentro sem se abrir ou tirar, não é?

53
Você não consegue ficar transparente. Não c isso? Então isso quer
dizer que a idéia de que exista um sujeito, que o sujeito seja o pólo
seguro da realidade, c de que a realidade em torno seja insegura, que
é a idéia cartesiana no fim das contas, esta é complctamcnte maluca,
isso não pode ser aceito nem por dois segundos, isso é uma ilusão, um
efeito hipnótico que prende as pessoas dentro do seu próprio ego e não
deixa sair mais. Agora, uma vez que você entrou lá dentro fica difícil
você sair, mas você só entrou porque você aceitou os conceitos iniciais,
e você não os examinou criticamente; porque se examinasse você tem
que dizer: olha, essa sua proposta é absolutamente inviável, não dá
para fazer isso que você está dizendo que vai fazer. Então, a filosofia dc
Descartes é inviável, de Thomas Hobbes é inviável, de John Lockc é in­
viável, dc Kant é inviável, são projetos que na primeira já deveríam ter
sido recusados. '‘Olha, eu quero fazer um estudo assim, assim”, Pode ir
para casa, meu filho, isso aí você não vai fazer, só vai dizer que faz.

(Aluno): - E isso o Aristóteles, ele já tinha previsto essa possibili­


dade de erro em que o Kant incorreu, não é? Porque tem um ponto em
que ele está abordando o que é a substância e jala do método incorre­
to que seria encontrara substância pela eliminação dos acidentes. Se
você for tirando os acidentes você não vai chegar...
Não sobra nada, claro! Por quê? Porque o acidente é metafisica-
mente necessário. Isso eu já expliquei uma vez. Esta é a definição de
realidade concreta: realidade concreta é a substância acompanhada
dc todo os acidentes. Agora, a substância separada dos acidentes é
só uma definição.

(Aluno): - ü que o Kant está fazendo é exatamente isso!


Ele está tirando os acidentes um por um e dizendo: “não sobrou
nada, portanto não tem coisa-cm-si”! Eu falo: é claro que não sobrou!

54
(Aluno): - Isso aí é...
Tudo isso aí é primarisnio, primarisnio, falta de técnica filosófica,
burrice, falta de cultura. E esse o problema desses caras.

(Aluno): - Isso é válido apenas para estudo...


Claro, para fins de estudo hipotético, claro. É como você fazer um
desenho. Por quais aspectos você vai desenhar o cara? Então, você
seleciona, mas não quer dizer que só existem aqueles que você está
desenhando. Como preceito metodológico vale, como afirmação me­
tafísica não vale nada. A confusão, o imperialismo do método, quer
dizer: “nós nada conhecemos da realidade, mas nosso método é tal”,
então o método determina a realidade, isso aí que fala o Voegelin, a
ditadura do método. Eu digo: bom, você sumiu com a realidade, então
só sobra o método. Agora, com isso você só vai conhecer o método do
método do método do método do método do método e nunca vai sair
disso. Você vai parecer muito científico, mas você não está fazendo
absolutamente nada.
Quando você vai ver qual é o problema com esses camaradas,
eu digo: primeiro, você tem três problemas: primeiro problema, a
partir do século XVI todos os filósofos estão vinculados a alguma
sociedade secreta, sociedade ocultista, etc., então, cies já não dizem
tudo, eles escondem um pedaço. Se você pega o conjunto do que
eles escreveram, do que eles publicaram c ler, você não vai chegar a
entender porque tem o elo perdido; o elo perdido às vezes está atrás.
Essa é a primeira coisa.
Segundo: eles conhecem mal a filosofia dos que os antecederam,
com exceção de (legei; Hegel conhecia muito bem, mas era o mais
mentiroso de todos. Mas Kant, por exemplo, Kant conhecia terrivel­
mente mal a filosofia antiga c escolástica. Então, cornetc erros que para
os escolásticos seriam primários.

55
E o terceiro problema: o terceiro problema é o chamado clima
de opinião; quer dizer que a instituição universitária, a mídia cul­
tural, etc,, etc., as idéias imediatamente caem nessa máquina e se
espalham para tudo quanto c lado e começam a ser discutidas por
milhões de pessoas absolutamente desqualificadas e elas se trans­
formam enlão numa corrente de força histórica antes de poder ser
discutidas seriamente. Então, você tem esses três problemas: a
ocultação, a ignorância e o falatório.
Antes de você saber porque c que o sujeito disse algo e se o que
ele disse vale ou não valo, aquilo já virou moda e já lem prós e contras
e já virou uma corrente cultural que afeta a vida das pessoas, afeta o
curso dos acontecimentos. A discussão saiu da esfera científica para
virar prática, para virar ação. E daí os cenários todos já estavam al­
terados por aquele negócio. Você está entendendo? Então, este é o
método pelo qual você fica louco. Você inventa uma mentira para
você, esconde dc você mesmo porque que você está dizendo aquilo.
E em segundo lugar você se impede de fazer o exame crítico para
saber se aquilo é verdadeiro ou não. Mas em terceiro lugar você já sai
dizendo aquilo para todo mundo, e você já se torna conhecido como
o cara que detende aquela idéia. Faça isso urnas dez vezes c você já
está doidinho. Você não sabe mais quem c você, de onde você come­
çou. Então, o que esses camaradas estão fazendo. Descartes, Kanl, é
enlouquecer a humanidade. E à medida em que nos últimos começa a
aparecer, o pessoal começa a abrir a caixa preta para saber quais são
as verdadeiras fontes, da onde eles tiraram essas idéias, são sempre
sociedades ocultistas, gurus secretos. Estas fontes não estão expostas
de maneira que você possa discutir seria mente, está tudo escondido.
Você tem a ocultação, em cima da ocultação você tem a mentira. E em
cima da mentira você tem a lenda e assim por diante. Eu digo: mas
como pode Ler uma discussão séria nesta base?


(Aluno): - Mas em grau menor isso existiu em Platào também, não é?
(Aluno): - Mas tem o negócio que o Giovanni Reate faz...
Não, o fato de você ter um ensinamento oral, se é um ensinamento
oral, ele não está escondendo! Ele está explicando para os seus alunos.
() que você tem é que apenas que cie faz uma diferença entre a parte
mais difícil, que é explicada só para uma elite, e a parte que é popular.
Mas ele não está escondendo, não está apagando fonte. Agora, você
pega um Hcgcl, ele nunca diz. de onde ele está tirando aquilo, os outros
é que às vezes percebem. Então, Schelling percebeu, Schelling logo
falou; 'isso que você eslá dizendo é tudo coisa do ]acob Bõehme!” Ele
não diz. que estava re-expondo maquiada a filosofia de Jacob Boherne,
não, ele simplesmente...

(Aluno): - Quem?
Jacob Bólieme, que era um visionário do século XVII...

(Aluno): - Um místico?
Um místico. Olha, o que você eslá expondo aqui, você pode partir
de um simbolismo alquímico, é inleiramente legítimo, você diz: "Olha,
tem um simbolismo alquímico que diz isso assim, assim, assim, agora
cu vou explorar isso aqui cognitivamente para ver o que dá.” Agora,
você esconde o simbolismo alquímico c começa a raciocinar de um
certo ponlo para diante, então isto é ocultação, o conjunto do que ele
escrever, do que ele disser publicamente, vai ter um efeito mítico sobre
as pessoas. Ele está lhe contando um pedaço da história e está escon­
dendo outro, então, você nunca vai entender perfeilamente, você sem­
pre enlendc que por trás do que cie diz tem algo. Mas o que é que tem?
Como você não sabe o que c, você fica adivinhando. Como você fica
adivinhando, você começa a projetar riquezas intelectuais lá que talvez
não eslejam lá, Você está entendendo? Então, daí cada um cria o seu
Hcgcl. Eu interpreto assim, ouro interpreta assado. Ninguém entendeu
coisa nenhuma, mas lodo mundo está discutindo a coisa c aquilo se
transformou numa influencia monstruosa sem que ninguém entendes­
se. Isso c mistificação! Um homem sério, um Filósofo, um cientista, ele
não faz isto. Ele expõe tudo, diz: “Olha. a teoria c essa assim, eu tirei
daqui, eu acho que isso aqui está certo, você, por favor, verifique”.
Agora, sc eu escondo, eu não estou deixando você entender o que cu
eslou dizendo; então eu crio um simulacro dc racionalidade que está
cheio dc alçapões c dc insinuações pur trás, mas você não sabe direi­
to quais são, está fazendo mágica mesmo. É a mistificação, você está
jogando areia nos olhos das pessoas. Agora, o fato c que quase todos
os filósofos do ciclo moderno fazem isto. Mas tem alguns onde a fonte
esotérica é clara porque não é ilegítimo você buscar isso lá, ao contrá­
rio, o esoterismo é uma fonte de inspiração enorme, mas uma coisa é
você pegar unia inspiração, a outra coisa é você fazer de conta que não
está lá. Não é isso? Por exemplo, o Schelling reconhece todas as suas
fontes místicas sem problema nenhum. Então, você sabe ate onde você
pode coniprccndê-lo sem a referência mística e em que ponto onde
começa a precisar ir nessas fontes. Agora, fonte mística é uma coisa,
pertinência à sociedade secreta é outra coinpletamcntc diferente, por­
que aí você está vinculado por juramentos de segredo, etc., etc., e uma
sociedade secreta, afinal de contas, é uma força agente na sociedade
humana à qual você está servindo de instrumento. Então, cria uma
filosofia que parece sc destinar a tais ou quais fins, mas tem uma outra
finalidade secreta por trás que você não sabe, Agora, você imagina al­
gumas gerações de filósofos fazendo isso, onde é que vai parar? Chega
urna hora em que você tem que estourar essa bolha de sabão! Eu acho
que chegou a hora já cie fazer isso. Os caras, com f legei, já estão fa­
zendo. É que esses estudos são mais ou menos recentes, |na hora| em
que eles começarem a sc incorporar na história da filosofia você vai ver

5N
que toda a nossa visão dos últimos séculos, toda ela é mistificada, nós
estamos vivendo na era da mistificação há três ou quatro séculos. Essa
história de que você não pode enganar todas as pessoas ao mesmo tem­
po, cu digo: bom, você não enganar todas as pessoas durante todo o
tempo, mas você pode enganar a parte mais ativa da sociedade. E você
deixa a realidade para dois ou três carinhas que ninguém conhece,
que ninguém liga para eles c que eles estão sabendo da realidade, mas
que vão passar até por loucos. Essas coisas de Hcgel, os primeiros que
disseram isto, ninguém nem prestou atenção. Daí teve que vir outro, e
outro, e outro, e outro, você começa a acumular o número de provas,
aí chega uma hora que não tem mais como negar, isso é que nem o
Poro dc São Paulo, você pode esconder durante um tempo, mas depois
chega uma hora aquilo vai aparecer. E esse ciclo moderno é o ciclo da
mistificação, da ocultação, da total falta de sinceridade, por isso que cu
digo, as teorias desses caras não valem a pena ser discutidas, porque se
tem unta motivação oculla então a teoria tem duplo sentido, tem um
sentido para quem sabe a fonte e outro sentido para quem não sabe.
Então, você tem a senha, sem a senha você não vai entender o que o
cara está dizendo. Tudo isto c um empreendimento de manipulação da
sociedade humana, instrumento de poder e não de conhecimento.

(Aluno): - E a sociedade então ela existe para quê? Se ele está


servindo como instrumento dessa sociedade...
Espera aí, o que você quer dizer com o “para quê”?

(Aluno): - Se ele está servindo de instrumento para sociedade se­


creta, para que ele vai fazer isso? Ele vai fazer isso por algum motivo,
por algum interesse ou coisa assim...
Mas, como interesse? Eu não entendo, a pergunta não faz senti­
do: mas para que eles fazem isto? O que mais eles iriam fazer? Por

I
59
que você acha que lem que ler um outro motivo além desse motivo
mesmo? Quer dizer; “nós temos aqui um plano, nós somos as pesso­
as iluminadas c nós queremos ter o poder no mundo!” Se você acha
que você tem o conhecimento total e absoluto, o que mais natural do
que você mandar no mundo? É inteiramente natural, você não precisa:
“ah, cu vou ganhar dinheiro!” Dinheiro! Será que um cara desse pensa
em dinheiro? Voeê imagine, Hegel estava convicto de que ele alcan­
çou a sabedoria final, o conhecimento absoluto. “Mas se eu tenho o
conhecimento absoluto por que esses caras não me obedecem?” Ato
contínuo, está lá você buscando o poder total, é a coisa mais natural
do mundo, aliás, seria até difícil o cara se conformar: “olha, cu sei
tudo c não mando nada!” É uma situação muito desconfortável, bas­
ta você sabor um pouquinho, não é?... Quer dizer, saber tudo e não
mandar nada é próprio do filósofo, é um aspecto quase de santidade
do filósofo. “Olha, cu sei um monte dc coisa e quem está mandando
são esses ignorantes, eles podem fazer tudo errado, vai dar tudo errado
e eu não vou poder fazer nada para ajudar!” Isso aí desde Sócrates,
todos eles vivem assim. A filosofia começa com Tales, e Tales anali­
sando a situação, ele disse: “Espera aí, tem o Império Persa, ele vai
crescer, e ele vai invadir esta merda aqui, então é melhor a gente se
unir para articular a defesa!” Todo mundo riu. Duas gerações depois,
o que aconteceu? Exatamente o que cie disse! Bom, Tales não sabia
tudo, não tinha o conhecimento universal, ele sabia islo, e saber isto
não adiantou nada. Agora, você imagina se o cara está convicto dc
que ele sabe tanto quanto Deus, então é quase impossível que ele não
busque um poder proporcional à sabedoria que ele acha que lem. Não
precisa nem saber nada, ela tem urna opinião, ela já acha que deveria
ter o poder dc colocar aquela opinião em ação? Você não vê quantos
brasileiros têm projetos de Brasil, têm soluções para o Brasil? O único
que não tem nenhuma sou eu, quer dizer, eu não sei o que fazer, agora,

60
lodo mundo sabe; e como sabem, então eles reivindicam o poder de
agir. Então, reivindicar o poder dc agir, a reivindicação de poder é com-
proporeional ao que você acha que sabe. O sujeito não precisa ter um
outro objetivo, não, isso já está intrínseco, seria impossível que essas
sociedades que acham que tem o conhecimento absoluto, etc., etc.,
que cias se conformassem cm permanecer sempre: “Nós temos aqui a
sabedoria então ficam esses bispos aí mandando, esses caras que não
sabem nada!” Para você se conformar de não ter o poder quando você
tem algum conhecimento, isso é sabedoria, para isso precisa ser um
filósofo mesmo, não sábio como Hegcl se pretende.

(Aluno): - Olavo, nas tribos primitivas, os que mandavam eram


os que Unham mais saber.
Os pajés, você tem autoridade espiritual lã manda,

(Aluno): - Os que tinham mais informação...


É, mas quando você vai ver, não sabem coisa nenhuma, essa é que
c a verdade, apenas sabem mais do que os outros. Sc você viajar um
pouquinho, for até a outra tribo, você vai ver que lá tem um pajé que
sabe um monte de coisa que aquele primeiro não sabe. Por isso você
precisa ver assim: conhecimento humano c sempre relativo, parcial,
provisório, ele serve para um tempo, quer dizer, o conhecimento é uma
adequação do indivíduo humano dentro da campo da verdade. Eu sem­
pre defino a verdade como um domínio, um campo, e o ser humano se
adapta dentro desse campo porque ele também quer ser verdadeiro, o
ser humano não quer ter uma existência fantasmática como as sombras
do Hades, Aliás a imagem do inferno grego, o Hades, é horrível porque
você não sabe se existe ou se não existe. O ser humano quer existir c
ele quer ser real. para ele ser real cie precisa estar na Verdade, então,
ele estará na Verdade durante aquele prazo da vida dele c para os fins

61
dele; ele não vai ter mais Verdade alem do que ele precisa. Aquilo que
ele sabe de verdadeiro é absolutamente verdadeira; mas isso não quer
dizer que ele vai ter que saber a verdade completa. Eu não acredito que
a verdade seja uma qualidade dos nossos pensamentos, se você pegar
lá o texto “O Problema da Verdade e a Verdade do Problema", você vai
ver que a verdade para mim é urna qualidade que existe na própria re­
alidade, a realidade é verdadeira, ela afirma algo, ela ensina algo e você
se coloca dentro disso. Para quê? Para você também ser real, para você
não ser uma sombra, para você não ser um fantoche. Se você disser:
“bom, qual é a sua contribuição original à filosofia universal?” Está
aqui... essa é a primeira. Esse conceito da verdade como um domínio,
nunca ninguém disse, isso aqui é meu mesmo. Pode ser que outro cara
tenha descoberto, mas eu não sei. nunca vi, na filosofia ocidental eu
nunca vi isso aí.

(Aluno): - Em Agostinho tem o conceito de Livro do Mundo...


Em parte a gente se inspira nisso, mas formalmcntc dizer: qual é
o conceito da verdade? O que é a verdade? É uma propriedade dos
juízos, a coincidência entre o intelecto e a realidade, o que é? Não é
nada disso, a verdade é um domínio, a verdade existe objetivamente.
Eia existe como campo de realidade dentro do qual nós existimos. Po­
rém, como a nossa existência se dá no tempo e eia não vem pronta,
você precisa se tornar existente, e você precisa criar uma história para
você, criar uma história, criar uma personalidade; criar uni ser para
você. você recebe apenas um ser potencial. Mas quando você pergunta:
quem foi fulano de tal? A resposta toma forma do quê? Narrativa da
vida, não c? Eie fez isto. isto, isto, isto. Então, isto é o que ele fez da
sua existência, portanto, isto é o que ele é. “Tel qu’en lui-méme enfin
Vêternité le change”, a eternidade o toma finalmentc aquilo que ele
é, quer dizer, morreu, fechou, ele não pode acrescentar mais nada ao

62
seu ser. É isto o que nós fazemos cm vida, nós absorvemos a verdade
para nos tornarmos verdadeiros e participarmos do reino da verdade.
E para que fazemos isso? Para fugir do risco da vida fantasmal. Por
que nós temos medo, por exemplo, da doença mental9 Porque c uma
vida fantasmal, você diz uma coisa e faz outra, aquilo que você está
dizendo, você mesmo não acredita, você está fora, é uma existência
fantasmal. Por que nós queremos, por exemplo, ser honestos? Por que
o ser humano tenta ser honesto? Não é só por uma exigência moral,
mas por uma exigência ontológica, ele tem não somente um dever de
honestidade, mas tem uma necessidade de honestidade para ele existir
realmente. Agora, honestidade considerada com toda a complexidade,
com toda a ambigüidade que o honesto c desonesto têm dentro dessa
vida. Como que e ser honesto? Por exemplo. Kanl achava que se entra
um ladrão na sua casa, c pergunta onde que está a grana, você não terri
o direito de mentir. Eu acho que isto iá c mentira. Isso é tido como ‘ah!
rigorismo moral kantiano, você não tem o direito dc mentir para...’
Isso não é rigorismo moral, isso é trapaça,

(Aluno): - Burrice...
Não, não só burrice, isso é trapaça. Ele está desarmando você pe­
rante o ladrão. Dc onde saiu todo esse conceito atual dos direitos hu­
manos, que os delinquentes matam trinta pessoas dentro da cadeia
c você fica com raiva dc quem? Deles? Não, você fica com raiva do
governo porque não fez nada. Isso é Kant, isso 6 puro Kanl, isso não c
rigorismo moral, isso é uma moral invertida, é a moral que não existe
na verdade, você não está na verdade da situação; a verdade da situa­
ção diz que, por exemplo, para se defender de um ladrão você poderia
matá-lo. Sc cu posso matar o sujeito por que eu não posso nem mentir
para ele? Se eu posso fazer o mal maior, eu posso fazer o mal menor;
isto é a verdade da situação; para cu defender a minha propriedade,

63
eu posso agredir o cara. Se eu posso agredir, por que eu não posso
mentir? Mentir para uma pessoa é fazer o mal a ela, evidentemente.

(Aluno): - Quanto a isto. você acredita que exista... o estágio em


que a verdade esteja...
Não, a verdade já existe eternamente, ela sempre esteve aí, é você
que está entrando dentro dela progressivamente ao longo da vida.
Quando você vê uma criança pequena, você pergunta: o que essa
criança vai ser? Você não diz o que ela é. O que você vai ser quando
crescer? Você pode se tornar aquilo, e daí você será aquilo. Enlão, a
forma da existência humana vai como todas da potência para o ato.
Ele é apenas uma potência dc realidade que se atualiza, que se efetiva;
e esse é um instinto humano fundamental, tornar-se algo, tornar-se
alguém. Não é isto? Quando se diz: ‘‘ser alguém’’... Você já não era
alguém? Bom, você era apenas dc direito, mas não de falo, quer dizer,
você ser alguém desde que nasce significa que nós reconhecemos em
você o direito de tornar-se alguém. Então, esse tornar-se. esse realizar
uma vida é a forma humana de ser. Nós não existimos assim como por
exemplo os planetas que estão aí girando faz séculos e nada os muda.
Nós existimos sob essa forma propriamente histórica, biográfica; en­
tão. nós somos uma possibilidade de ser, nós não sabemos direito o
que vamos ser, mas sabemos que queremos scr algo. Por que não nos
contentamos cm sonhar corn esse algo? Porque sc você sonha, você só
é aquilo no momento cm que sonha. Não é isso que você quer, você
quer tornar-se real. Essa diferença entre a vida fantasmal e a vida ver­
dadeira, essa c básica para o ser humano; e quando Homero coloca os
mortos no Hades para que aí levem uma vida fantasmal, onde você vê a
pessoa, vai falar com ela e ela some, tem a famosa cena ern que Ulisses
vê a mãe dele: “Mãe!”, ela sumiu! Você não sabe sc cia estã ali ou não
está; então, o fato de os colocar no inferno mostra o horror que nós

04
lemos da vida fantasmal. Ou seja, nós queremos ser c queremos saber
o que somos e queremos ser o que queremos. Isto é a sua entrada no
mundo da verdade. Essa entrada é dificultosa, ela é por etapas e ela só
culmina quando a verdade da sua vida puder ser testada em face da
verdade como tal. Isso c o Juízo Final, o que é que você rcalmcnte fez.
Aquilo que não for verdadeiro, vai parar no Hades. Então, você vê a
que léguas cu posso estar do Kant, o Kant para mim c todo fantasmal,
aquilo é tudo fantasmagoria,
Agora, a verdade que existe no pensamento, cu não chamo de
verdade, eu chamo de veracidade. Veracidade é a qualidade que um
juízo tem de imitar a verdade no plano do pensamento. A veracidade
é a verdade pensada. Isto está tudo explicado lá naquela apostilinha.
Então, quando você tem um novo conceito da verdade você também
tem junto com ele um novo conceito do pensamento. Isso quer dizer
que a idéia de que toda essa coisa subjelivista, da modernidade, do
sujeito, do eu, do cogíio, das formas a priori e tal, para mim tudo isso
c fantasmagoria. Quando o Apóstolo diz: “Nele vivemos, nos move­
mos e somos”. Nele quem? Deus! O que é Deus? Deus é a Verdade!
Então, nós estamos dentro da Verdade. Mas nós estamos ainda não
como pessoas, estamos apenas como bichinhos dotados da capacida­
de dc tornarmos pessoas.

(Aluno): - A verdade é toda a realidade, é parte de toda a realida­


de, ela está como atributo do universo, fora da subjetividade...
Totalmente fora e acima, nós somos um espelho da realidade, um
pequeno espelho, no qual só alguns aspectos dela vão aparecer. O que
importa não é que a gente reflita toda a realidade, mas que nós sejamos
reilexo no todo, que tudo em nós reflita a realidade. Isto é a vida na
Verdade, isto é muitíssimo difícil, e nós somos desviados disso não só
pelas nossas incapacidades, mas pela confusão cm torno, pelo Dcinô-

65
nio, e ate às vezes pela própria confusão moral criada pelas próprias
morais. Uma exigência como essa do Kant, por exemplo, lira você da
realidade por vinte anos. Porque você vai se basear num preceito moral
e não na verdade, você está sobrepondo um preceito moral ao próprio
Deus, você está dizendo que a sua bondade, o seu senso de dever é
superior ao próprio Deus. Porque se Deus montou a situação assim,
assim, assim, assim, é dentro dessa situação que você está sendo colo­
cado, e você tem que dizer qual c a situação e o que eu estou fazendo
lá dentro. Aí sim, vocc tem que tirar a sua decisão moral do conheci­
mento da realidade, do conhecimento verdadeiro da realidade, e não
de uma sentença moral previa. Por que Deus coloca como primeiro
mandamento “amar a Deus sobre todas as coisas”? Porque tudo o mais
depende disso, se você vai amar a sua própria honestidade acima do
próprio Deus, você não pode ser tão honesto quanto o próprio Deus,
não adianta, vocc tem que ter a cota de honestidade que a situação
exige na verdade perante o olhar de Deus. É aquele negócio que diz na
Bíblia que Abraão era um sujeito que caminhava diante de Deus. Quer
dizer que o sujeito está sempre espelhando a Verdade, o que ele faz é
em função da Verdade. Por isso muitas vezes ele fala coisas que um
outro pode até julgar desonestas, mas que perante Deus são honestas.
Isso é nrn grande mistério que tem na Bíblia, porque vocc pega um
monte de cara, Abraão, o rei David, Moisés, c tal, fizeram um monte
de sacanagem, e no entanto Deus os considerou perfeilos. Por que?
Porque eles não eram perfeitos quantitativamente, quer dizer, eles do
tamanhico que eram, a personalidade inteira deles refletia a verdade,
não toda a verdade, apenas a verdade comproporcional a eles. E du­
rante o curso da nossa vida, nós só saberemos o que cada um de nós
precisa saber para ser verdadeiro, por isso que o problema da verdade
absoluta ou relativa não existe, a verdade é sempre absoluta e é sempre
relativa. É sempre absoluta cm si mesmo e é relativa na cota que chega

66
a você. Ela tem que ser absoluta e tem que ser relativa, absoluta em si e
relativa a nós, relativa em nós. Esse é o mistério da personalidade hu­
mana. Por que que certas criaturas humanas são tão mais interessantes
do que as outras? Elas não são fantasmais, cias continuam existindo
para você milênios depois de terem morrido. Por quê? Elas foram ilu­
minadas pela Verdade, a Verdade aparece, então aquela personalidade
se torna Speculum Dei, espelho de Deus, mesmo com a sua imperfei­
ção humana. Quer dizer, o que você pode realizar não é perfeição no
sentido quantitativo, mas apenas aquela que Deus exigiu de cada um;
c que é diferente para cada um, c que não tem fórmula para isso. Ago­
ra, quando você perde totalmente o senso de orientação moral, então,
daí por um lado você se permite comportamentos desumanos, cruéis,
desonestos, etc., etc., e por outro lado você faz julgamentos morais de
rigor absoluto dc você mesmo e dos otilvos, Eu digo: então, você está
no inferno! Porque você proclama regras morais que estão muito acima
da sua capacidade, e você exige isso dos outros, c quando você mesmo
se dispensa delas, você se acusa cm segredo e se defende em público!
Eu digo: que é isso? Por isso que quando as pessoas vêm com proble­
mas morais para mim, sabe qual é o único conselho que cu dou? Não
se preocupe com isso, meu filho! Que importam os seus defeitos, que
importam os seus pecados? Isso aí não tem a mais mínima importân­
cia! Veja lá o que está fazendo de bom e continue fazendo de bom, vá
somando, somando, somando, no fim a conta dá certo. Agora se você
começa examinar muito seus defeitos, seus pecados, bom. em primeiro
lugar você está perdendo o seu precioso tempo, porque eu sei quanlo
c difícil você vencer um único defeito, por pequeno que seja; e se você
concentrar naquilo, você não vai fazer outra coisa na vida. Mas quem
disse que Deus está querendo isso de você? Por que você não espera
que ele lhe diga?

67
(Aluno): - Por isso que ele fala: "Muito será perdoado a quem
muito amou”.
Mas é isso mesmo, ü segredo é só esse.

(Aluno): - Como é?
“Muito será perdoado a quem muito amou”. É isso, você ama a
Deus, você o quer, você o deseja, você quer que Ele fale eorn você, e
Ele vai lhe falando de pouquinho.
Isso é assim: toda preocupação moral é besteira, besteira total.
Agora, nós vivemos hoje numa época, ao mesmo tempo, de extrema
imoralidade c extremo moralismo, daí c uma coisa absolutamente in­
fernal. Você vê os jornais, eles só mentem o tempo todo, colaboram
com tudo o que não presta, e estão o tempo todo de dedinho em riste
fazendo exigência moral: “Isto é uma imoralidade, isto tem que aca­
bar!”, não c?

(Aluno): - E o bem?
É o próprio Deus, é a própria Verdade. Olha, Verum, Unum, tio
num ; os transcendentais de Duns Scot. Não, não há bondade para
além da Verdade.
É isso aí, se você está fazendo isso você está, como diz Abraão,
caminhando diante de Deus, se você errar algum negócio no caminho,
como você vai errar, a coisa será neutralizada; portanto, não tem que
se preocupar, você faz o bem e esquece o mal, o seu c o dos outros.

(Aluno): - Porque mesmo quando a pessoa faz o mal, em algum


nível ela está servindo a Deus. involuntariamente como o...
Não, mas aí não, não é, mas isto c vida fantasmáüca, nesse sentido
até o Marquês de Sade fez o bem, ou Stálin. mas é vida fantasmáüca.
Eu quero que o bem que eu penso seja bem mesmo, perante Deus,
perante a Verdade.

68
(Aluno): - Bem humano?
Claro, seria um bem efetivo e não fantasmático. Você está fazen­
do um bem totalmcntc inconsciente enquanto está fazendo um mal
consciente! É vida fantasmática, você está pensando uma coisa e está
fazendo outra. Eu quero que aquilo que cu esteja fazendo seja exata-
mente o que eu estou pensando. E isso que exatamente que eu estou
pensando c exatamente como Deus está vendo.

(Aluno): - Isso é o que seria amar a Deus!


É, é isso mesmo! E o único modo prático,

(Aluno): - Só que as religiões têm uma quantidade bem grande de


normas bastante...
Esqueça isso, não funciona, não funciona, nenhum ensinamento
moral. Toda regra tem que ter uma mediação; muito bem. essa media­
ção é o conhecimento instintivo que vocc tem do bem. Mas se esse
conhecimento funcionar então para que precisa regra? Quer dizer, a
regra c apenas uma tradução inteleclualmente válida de uma norma
que na prática você já está seguindo. Então, o que importa sc c o en­
sinamento? Você tern que treinar a percepção moral, e não ensinar
regra. Não é assim? Uni professor de desenho, o que ele faz? Ele faz o
traço c diz: "faça... copia exatamente assim”? Não. ele põe lá a maçã
na sua frente, o vaso na sua frente, põe a mulher pelada na sua frente,
e diz: "olhe bem!” Daí você vai e desenha um pouco. “Você não olhou
direito, olha lá, mede direito!” Ele não vai dizer para você corno dese­
nhar, cie não vai lhe dar a fórmula de desenhar, ele vai ensinar você a
olhar e insistir para que você olhe e daí você vai desenhar do seu jeito,
mas que vai coincidir com o objeto, e a mora! a mesma coisa. Qual ê a
regra? Na sei, mas... examina direito.

69


(Aluno): - Os Dez Mandamentos não servem como princípios morais?
Mas escuta: como é que você pode apreender a moral através de
princípios? Princípios são o conhecimento intelectual da moral e não
o conhecimento moral da moral. A moral se dá no reino da ação que é
sempre singular. Você conhecer os princípios não lhe ajuda em nada a
você agir de maneira melhor.

(Aluno): - Você vai ter que aplicar...


No fundo, no fundo, se você quer saber, os Dez Mandamentos não
são normas morais.

(Aluno): - São ontológicas?


São ontológicas!

(Aluno): - Eu vi um comentário interessante de um legislador


americano criticando uma lei que saiu, faiando [que] não se deve
legislar sobre o bom senso, a lei não deve entrar...
Na verdade não se deve legislar sobre quase nada...

(Aluno): - É, ê isso que eu ia dizer! Aqui no Brasil a gente tem a


mania de dizer que não existe o bom senso, substitui o bom senso por
um conjunto de leis.
Mas se você disser isso para um jurista, ele vai ficar horrorizado,
mas o progresso do direito, a ampliação do sistema jurídico traz a
ampliação da criminalidade. Isso é uma coisa tão constante e tão
irrevogável que cu acho que qualquer sujeito que não enxergue isto,
está muito ruim da cabeça. Mas já estava escrito no Evangelho: “A
força do pecado c a lei". A hora em que Cristo falou isso, espera aí,
quanto menos lei, melhor para nós. Quando foram lá para o profeta,
pedir para nomear um rei... Quem é o profeta mesmo? Samuel? Acho

70
que era! Ele falou: Vocé vai morrer, vai botar um rei, cie vai botar
imposto, ele vai botar lei, ele vai chamar seus filhos para servir o
exército, ele vai querer suas as filhas para servir de escravas, só vai
dar problema. Por que vocês querem essa porcaria?”.4 Porque você
foi avisado duas vezes, no Antigo Testamento e no Novo, e até hoje
os caras não entenderam. Agora também tem os caras que pegam a
própria lei e dizem: “Vamos transformar aquilo num sistema jurídi­
co!” Eu digo: para quê? Os tipos que eu mais detesto no mundo é
teólogo e jurista, são umas pessoas que vivem dizendo para os outros
0 que eles devem fazer. Faça você!

(Aluno): - Como seria a sociedade moderna sem...


Não sei, não sei! Não sei porque agora a coisa já complicou de tal
modo! No curso de Teoria do Estado lá no Paraná, eu estou dando
exatamente isto, em Lodo e qualquer sistema jurídico você sempre tem
uma autoridade, você tem sempre um poder supralegal, sempre existe,
e ele é a garantia de tudo. Isso sempre existe. Tem alguém que está
acima das leis, que pode destruir tudo se quiser e que não destrói. En­
tão você pode saber a tipologia da sociedade através desta pergunta:
Quem é a li o poder supralegal? Sc você pegar por exemplo sei lá o rei
da França, o Luís XIV, Luís XIV estava acima da lei, quer dizer, ele
só presta satisfação a Deus. Então, se ele errar, só Deus pode puni-lo,
Muito bem, mas você sabe quem é Luís XIV. Então, você sabe quem
é o poder supralegal, ele está visível. Você sabe que ludo depende da
confiabilidade dele, sc ele for bom, terá um bom reinado, se ele for mau
lerá péssimo, Agora, e sc você não sabe quem está no poder suprale­
gal? E você tenta se garantir contra ele fazendo proliferar o número dc
leis, ele vai ficar cada vez mais escondido e vai continuar mandando do

1 Samuel I. S:5-1K

71
mesmo modo; em suma, a ideia ele que você possa substituir a confian­
ça do ser humano no outro ser humano, quer dizer, a confiança mútua,
por um sistema de leis é unia utopia.

(Aluno): - Então, a democracia é uma utopia?


A democracia só funciona dependendo da confiabilidade dos seus
fundadores c daqueles que têm poder acima da lei. Por exemplo, sc
você tem, como no Brasil tinha, tinha o imperador que c o chefe do
exército e que é o poder moderador, se ele é o poder moderador, você
não vai poder querer enquadrá-lo na mesma lei, ele está realmente aci­
ma da lei. Se ele for bom, você está com sorte; se ele for mau você está
azarado. “Ah, mas não pode ter, precisa estar tudo dentro da lei!’’ Tudo
dentro da lei é contradição de termos. Você vai ter a máfia, a sociedade
secreta, a FARC, e esses caras estão acima da lei. Só que você não sabe
onde eles estão, não sabe quem são. E no fim você acaba tendo que
confiar no quê? Neles! No Rio de Janeiro, nós sabemos... todo mundo
sabe que o destino depende dos traficantes. Então, “tomara que o trafi­
cante seja bom!” A eficácia da lei depende da natureza do poder supra
legal. E não existe garantia contra eles; nada garante contra eles, só
Deus garante. Isto era assim na Idade da Pedra c c assim na mais mo­
derna democracia constitucional. Por que as coisas funcionam às vezes
melhor onde as leis não estão muito bem definidas, onde se confia mais
no costume? Porque o costume, o próprio povo é o poder supra legal.
Por que o sistema inglês funciona tão bem? Porque é assim!

(Aluno): - Mas lá eles têm a situação de que não... a coroa!


Pois é! Então tem o poder supralegal. Mas ela representa o quê? A
força do costume, a força da tradição, então você pode confiar porque
fazia assim no século X, continua fazendo até agora então supõe-se

72
que cia não vai mudar amanhã. E se der na cabeça do sujeito mudar,
bom, pode acontecer que simplesmente cortem a cabeça dele como já
fizeram uma vez,
Quem é o soberano? O soberano está acima da lei. Agora, se você
ao definir o soberano, você o define só cm termos abstratos: “ah, o
soberano c o povo!” Eu digo: bom, isso aí não resolve absolutamente
nada porque o povo são cento e oitenta milhões de pessoas... Como c
que vai reunir essas pessoas para tomarem providência? “Ah, vai ser
uma assembléia eleita, etc., etc.” Como é que as pessoas chegam lá?
Para chegar lá precisa ter dinheiro, precisa isso mais aquilo, então,
em suma. tem um poder supralegal que vai determinar quem são os
legisladores. Não c isso? O sujeito pede dinheiro para o Fernandinho
Beira-Mar: “olha, mc dá a grana aí para eu me eleger a deputado para
eu fazer de conta que eu estou fazendo a lei, quem está fazendo é você,
mas cu vou fazer, em seu nome sou eu que assino”. É ou não é assim?
Então, cu acho que a sociedade que funciona melhor c aquela na qual
você sabe quem é o poder supralegal e você não podendo cobrá-lo cm
nome da lei, você pode cobrá-lo em nome cia decência, em nome da
religião, em nome da simples humanidade: “Então, não, olha, você tem
o poder total, você pode fazer o que você quiser, mas você não vai fazer
tais e quais coisas... Por quê? Porque você é um bom sujeito. E você
também tem medo do Juízo Final, etc., etc.” Então, isso quer dizer que
na verdade... o único regime que exisle é a monarquia absoluta, todos
os regimes são monarquias absolutas. Numas você sabe quem é o go­
vernante e noutras não.
Não c assim?
Qual c a melhor democracia que tem? Os Eslados Unidos! “Ah,
está tudo certinho!” Bom, mas acontece que por trás de tudo tem o
CFR, jCouncil on Foreign Relations] por trás do CFU tem o Skull and

73
Boncs e por trás deste tem não sei o quê, não sei o quê, e no fim tem
uma elite lá que está mandando...

(Aluno): - Urna oligarquia?


Uma oligarquia! Se a cabeça da oligarquia estiver funcionando
bem. sorte nossa, se eles mudarem de idéia nós estamos ferrados. E
sempre assim. E o número de leis: “não, eu vou fazer mais controles
legais!" Não. só complica o negócio e ajuda a criação do poder arbitrá­
rio, quanto mais lei tem, mais confusa é a coisa c mais os dois ou três
que mandam podem mandar!

(Aluno): - No período antigo as leis eram mais explícitas, assim,


0 poder supremo...
Em qualquer sociedade mais primitiva é mais explícito, você sabe
quem manda. Agora, aquele que manda não c seu inimigo. Você chega
na tribo dc índio, o cacique é seu inimigo? Ele quer ferrar com todo
mundo? “Não, ele é nosso amigo, ele gosta de nós, ele nos protege, ele
vai para a guerra em nosso lugar!” Não é assim que ele faz? “Ah, agora
nós precisamos nos garantir contra o cacique!” Se chegou ao ponto de
você precisar se garantir contra o cacique, você já está ferrado. Porque a
hora em que você inventar uma garantia, cic vai inventar outra melhor.
A disparidade dc poder é uma componente estrutural da natureza
humana, um ser humano pode mais do que o outro, e pode incalcula-
velmenle mais do que o outro, sempre foi assim. Se você disser: “Não,
é a burguesia porque ela tem poder econômico...” Você lira o poder
econômico, ela inventa outro poder pior. “Ah, mas nós precisamos
fazer o controle externo dele!” Está bom, ele vai inventar o controle
interno do controle externo. Não tem jeito, nós nunca vamos nos li­
vrar do poder, esse é que é o negócio. A melhor coisa seria através dc
influências culturais e religiosas você moderar o poder, acalmar o cara:

74
“Olha, você não precisa nos matar, não precisa fazer nada, nós somos
honzinhos!” É o máximo que dá para fazer! Agora, que você sempre
está na mão do poderoso, que ele pode lhe matar a qualquer momento,
é claro que pode! Ele só não faz isso porque não quer. Agora, muito
da democracia moderna é só para escamotear a existência do poder. É
uma ilusão! No fim, quem garante a democracia? É a oligarquia!

(Aluno): - No estado de direito, nesse sentido. ele não resolve a


questão, mas ele ajuda...
Todos esses regimes são bons contanto que você saiba quem manda
c possa haver relações humanas entre o que manda c o que é mandado.
Agora, se o mandante se tornou invisível, então ele adquiriu um poder
divino, e isso a gente não pode permitir.

75
SGA A Serviço
l do Esporte:
Stretching Global Ativo
Norbcrt Grau

Fundamentos do SGA
Philippe Souchard

Sua Imagem, sua Escolha


Munir Curi

Euloniu: Arte e Pensamento


Hugo César Pcrronc

Coleção É In lati tu juvenil

O Príncipe das Pedras


Ivo Minkovicius

A Magia das Coisas


Ivo Minkovicius

Coleção História Essencial da Filosofia


(cada volume é acompanhado dc um DVD)
Olavo de Carvalho
Leituras sugeridas

KENOUVTER, Charles Critique da la Philosophie de Kant,


Paris, Alcan. 1906.

CÀSS1RHK. Ernst Kant; Vida y Doctrine, trad. Wcnccsiao Roces,


Mexico, F.C.E., 1948.

VERKEAUX, Roger Le Vocabulaire de Kant. Doctrine et Méthodes, 2 vols..


Paris. Aubier-Montaigne. 1968.
Dados In to m a d ona is da Cataloguçau na Publicação (CIP)
(Camara Brasileira do Livro. SB, Brasil)

Carvalho, Olavo do
História essencial da filosofia /
por Olavo dc Carvalho - San Pauío: P Realizações, 2907
(Coleção hislória essencial da filosofia)

Inclui um DVD. Conteúdo:


arda IP: iMaquiavd c a form ação das identidades nacionais
aula 20: Filosofia na Idacle Moderna -
aula 2 1: Filosofia Anplo-Saxónica -
aula 22: David 1lume e Thomas Reid
aula 20: A cxisLcueiu do ,LLu" -
aula 24: liam.

1. Filosofia - Fsludo e ensino 2. Filosofia-


Hislória 1. TÍLulo. II. Série.

08-00322 CD D-109

Indices para catálogo sistemático:


1. Filosofia: HisLúria 109

ISBN 13 DÍGITOS: 978-85-88062-5 l-J

Eiste livro é a Lranserição da aula que


foi gravada no dia 04/06/2004 na
E Realizações em São Paulo - SP Brasil.

Impresso pela Prol para a


E Realizações, em fevereiro de 2008.
O s tipos usados são da família Dutch.
O papel é Chamois Bulk 90 g/m- para
o miolo e supremo 250 g/m2 para a capa.
A fira

'
-..: • : : •
:•;: .
í*
. .

Afiraçfi^fifihA/fii

• ■ : ' iSSSfiíSíssfi fihfi:

Você também pode gostar