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Atravessamentos poéticos: a criação artística como potência educativa em teatro


nos diferentes territórios sensíveis (a atuação do artista-docente em teatro nas
diferentes modalidades de ensino)

Pedagogia dos Saberes Nômades

José Flávio Gonçalves da Fonseca


flavio.g.f@gmail.com
UNIFAP

Resumo: O seguinte projeto propõe a realização de uma pesquisa multidisciplinar no campo das artes e da
educação por meio de dispositivos midiáticos. Para tanto, é problematizado as ideias de poéticas e saberes nômades,
a partir da realização de um processo artístico-pedagógico que utiliza as tecnologias digitais para traçar um diálogo
entre dois grupos de sujeitos artistas-estudantes-investigadores: professores em formação estudantes do curso de
licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Amapá e estudantes de escolas da rede estadual de educação
do estado do Ceará. A pesquisa se propõe a partir da utilização dos dispositivos presente no contexto dos
estudantes, efetuar uma pesquisa-guiada-pela-prática onde os saberes de territórios distintos se mostrarão em
situação de interrelação, promovendo a partir da criação artística midiática, a troca de saberes.

Palavras-chave: Arte-educação. Saberes nômades. Tecnologias digitais na educação.

Abstract: The following project proposes to carry out a multidisciplinary research in the arts and education through
media devices. Therefore, it is questioned the poetic ideas and nomadic knowledge, from the realization of an
artistic-educational process that uses digital technologies to trace a dialogue between two groups of subjects artists-
students-researchers: teachers in training students of course degree in Theater of the Federal University of Amapá
and students of the state schools of the state of Ceara education. The research aims from the use of this device in
the context of students, perform a search-guided-by-practice where knowledge of different territories show in
interrelation situation, promoting from the media artistic creation, exchange of knowledge .

Keywords: Art education. Nomadic knowledge. Digital technologies in education.

Minhas trajetórias artística e pedagógica partem do mesmo território: o Teatro. É nesse lugar sensível que
iniciei ainda na escola a minha prática artística. Mais à frente estive na condição de estudante de Graduação em
Teatro – licenciatura do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, onde passei a partir daquele
momento à encarar a experiência prática vivenciada anteriormente, bem como durante a graduação enquanto um
exercício do pensamento a partir de aspectos epistemológicos do Teatro e da Arte, ou seja, estes vistos enquanto
campo de conhecimento, sendo portanto, cada vez mais instigado por uma vontade de investigar os processos
artísticos, não só de Teatro mais na arte em geral sob a ótica de um pensamento crítico-reflexivo sob as suas
práticas.

Nesta caminhada, após a graduação em Teatro, ingressei no programa de Pós-graduação em Artes do


Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, no mestrado acadêmico em Artes onde voltei o olhar
para a pesquisa que se mostrou enquanto um registro de um rastro de passagem em uma experimentação que se
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deu no âmbito da processualidade na criação cênica, problematizando a relação da pesquisa em arte trazendo o
processo enquanto método de pesquisa e ainda a relação da arte e seus aspectos autorreferenciais.

A partir desta experiência no mestrado em Artes, bem como a partir do momento que me vi atuando
enquanto docente em uma escola de pública da rede estadual do estado do Ceará, comecei a ampliar os horizontes
para os desejos, não só mais de criação artísticos que me rondavam, mas também de caráter pedagógico e me vi
experimentando novos modos pensar a arte e a educação tendo por base a hibridização das linguagens, indo ao
encontro da performatividade do ato artístico, bem como na inserção das mídias nesses processos tanto artísticos,
como pedagógicos.

Nesse percurso, acabo ingressando na docência superior, deslocando-me para o estado do Amapá para
trabalhar na formação de professores no curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Amapá,
trazendo comigo o desejo de iniciar uma pesquisa que buscasse perceber a potência das tecnologias no âmbito da
arte-educação.

Por outro lado, percebi nesta pesquisa a possibilidade de estabelecer conexões entre dois ambientes
educacionais que se diferenciavam não somente no âmbito dos níveis (ensino básico e ensino superior) mas
também na posição geográfica de cada realidade, na qual eu, na figura do nômade, desejava traçar interrelações.

Desse modo, proponho a partir desta pesquisa modos de interrelação entre arte e educação no âmbito de
confrontar saberes de lugares distintos que podem estabelecer conexões entre si a partir da inserção de novas
mídias em uma processo de construção poética entre professores em formação (estudantes do curso de licenciatura
em Teatro da Universidade Federal do Amapá) e estudantes da rede estadual de educação do estado do Ceará que
possibilita o estreitamentos das relações entre universos da arte-educação distintos, uma vez que a o Amapá possui
uma relação insipiente no aspecto de ensino de arte nas escolas e que o contato com outra realidade oportunizará
a reflexão da prática docente em meio à processos envoltos aos modos de saberes nômades.

Desse modo, esta interação aqui proposta se efetiva a partir da utilização dos dispositivos midiáticos e das
tecnologias que auxiliarão na construção desses saberes mútuos.

Assim, propomos a realização desta pesquisa, a partir das tecnologias como potencializadora das trocas de
saberes acerca da educação com forma de contribuir para a construção de novas perspectivas da educação em
ambos os lugares que a pesquisa se insere.

Com o advento da pós-modernidade ou mesmo, no espaço tempo que estamos inseridos, no qual
nomeamos como contemporaneidade, estamos cada vez mais imergindo em um território que dá espaço à modos
de percepções e atuações diferentes, nos mais variados setores da sociedade, estando em meio à uma velocidade
tremenda, principalmente no que diz respeito à informação e a imagem.

Somos cada vez mais atravessados por mecanismos que estreitam essa relação entre corpo e mídia, dando
margem à modos de significação totalmente novos no que diz respeito às formas de construção de conhecimento
que se dá agora nesta velocidade das informações.

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Contudo, ao pensarmos nessa velocidade do acesso à informação, não poderíamos deixar de pensar no
excesso da informação e nesse sentido, trazer a problematização lançada por Jorge Larossa Bondìa (2002) no seu
célebre trabalho “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, onde o autor nos fala sobre alguns
paradigmas da contemporaneidade no aspecto da experiência e nos traz uma crítica à respeito do sujeito do excesso
de informação, tendo como mote a relação deste excesso como um empasse à efetivação dos modos de
experiências.

O autor nos fala que:

A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência,
ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase
contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a
constituirnos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa
que cancelar nossas possa da informação é uma sociedade na qual a experiência é
impossível. (BONDÌA, 2002, pág. 22)

Na perspectiva do autor, o excesso de informação nos talha a possibilidade da efetivação da experiência.


Nesse sentido, como poderíamos lidar com este inevitável sintoma da pós-modernidade, trazendo à tona a potência
desse jogo que ao mesmo tempo que nos atravessa cada vez mais de informações, também nos priva da efetivação
das experiências?

Podemos aqui lançar um olhar para a questão da educação. É possível que estejamos vivenciando nos
processos educativos a problemática do excesso de informação como fator de não efetivação das experiências.

Contudo, é possível que esta dicotomia, excesso de informação/não experiência, se dê talvez por uma
relação de como a educação lida com este espaço-tempo da contemporaneidade, estando muitas vezes em
contramão a estes novos modos de enxergar o mundo.

Nesse sentido, questiono aqui como poderíamos possibilitar que a informação, mesmo nessa sua
velocidade que pode gerar esse excesso que rompe a experiência, se desloque para um território de possibilidade
de construção de experiências?

No intuito de lançar possibilidades de efetivação da questão levantada acima, trago mais uma vez Bondìa
(2002), desta vez a partir da ideia de sujeito da experiência, onde o mesmo nos fala que:
O sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma
superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos,
inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos”. (BONDÌA, 2002, pág.
24)

Assim, neste pensamento de passagem enxergo a possibilidade da experiência em meio aos


atravessamentos da informação e ainda buscando problematizar ainda mais a relação de que tipo, ou conceito de
informação que estamos trabalhando aqui.

Para cá, interessa pensar esta informação enquanto uma potência, uma vez percebendo esta não somente
no campo dos processos de compartilhamento através de seus meios de divulgação – mídia impressa, audiovisual
e informática – mas ampliando a ideia da velocidade e na grande quantidade de informação como elemento que
expande para outros campos esta informação em transito e com isso o corpo passa a se dar como mais um elemento
de compartilhamento desta informação uma vez encarado, como um “corpomidia”.

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O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda
informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado
desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com
esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia
pensada como veículo de transmissão. (GREINER e KATZ, 2005, pág. 07)

Através da ideia de “corpomídia” trago aqui a relação deste com a educação, a arte e as novas mídias
(tecnologias digitais na educação).

Estes sujeitos da contemporaneidade, em que seus corpos estão em meio à atravessamentos, meios de
passagem das informações e, portanto, susceptíveis a experiência, começam a perceber novos modos de interação
com o meio e os outros sujeitos, que cada vez mais estão intermediados pelas novas mídias, que se configuram
como parte integrante de sua jornada diária.

Os dispositivos como celulares e tablets, além dos ambientes de interação social em meio online, passam
a estabelecer outras possibilidades de experiência, mas que muitas vezes, em contradição às abordagens que muitas
vezes a educação formal ainda se propõe, gera verdadeiros conflitos.

É muito comum observar relatos de proibições de dispositivos nas salas de aula, alegando-se a dispersão
e o desvio de foco para os conteúdos trabalhados.

Contudo, é interessante pensarmos como a educação está lidando com este fenômeno da
contemporaneidade, onde cada vez mais o corpo se conecta à dispositivos midiáticos no intuito de estabelecer
novos modos de experiência, aquela pautada na ideia de corpomídia? Seria possível, promover um diálogo como
os processos educacionais e os atravessamentos das informações por meio dos dispositivos midiáticos?

Nesse sentido, trago para esta problematização a relação potente que a arte tem com a questão da
experiência. Podemos ter como referência, por exemplo, os parâmetros curriculares nacionais que apresenta, para
o ensino de Arte a relação das experiências com o sensível, bem como a relação dos meios de produção artísticas
e os contextos dos estudantes.

Nessa perspectiva, a arte estaria no campo do diálogo com o contexto e desse modo as relações com este
fluxo de informações a partir dos dispositivos midiáticos estaria em constante atravessamentos aos aspectos do
ensino da arte e ainda, a relação que a arte estabelece com o corpo, dentro desta perspectiva das tecnologias da
informação possibilita ainda mais o jogo com os aspectos desse entendimento do corpo como um “corpomídia”.

Esta relação se estreita ainda mais quando pensamos a educação em arte a partir das reflexões da arte
contemporânea e nesse sentido uma relação cada vez maior entre arte, vida e os dispositivos que atravessam esses
sujeitos, estabelecendo conexões em meio à saberes nômades.

Assim, busco problematizar aqui a partir da seguinte questão:

Como poderíamos trazer para prática educativa as relações entre o corpomídia (modo de ser do sujeito
contemporâneo) através de processos de criação artística, dentro da escola tendo como suporte poético –
entendendo poética enquanto modos de construção sensíveis – os dispositivos presentes no cotidiano dos
estudantes?

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Por outro lado, questiono ainda, como podemos efetivar a formação de professores (de arte) que lancem
o olhar para estas relações com estes dispositivos, entendendo os processos sensíveis da arte como potencializados
a partir da aceitação desses modos de interação midiática tão forte nas escolas?

Este trabalho, portanto, buscar investigar a partir da prática artístico-pedagógica, modos de construção e
compartilhamento de saberes através da utilização de tecnologias digitais e dispositivos midiáticos.

Além disso, almeja realizar a troca de saberes entre professores em formação e estudantes da educação
básica de regiões distintas por meio da interação mediada por tecnologias digitais dos contextos destes sujeitos.

Essa investigação está focada na efetivação da criação artística por meio de dispositivos midiáticos e com
isso traçar redes de saberes nômades, investigando assim a criação de espaços outros por meio virtual, bem como
a experimentação de possibilidades de telepresença por meio de dispositivos e ambientes virtuais.

Este trabalho busca confrontar, enquanto processo metodológico, a questão da prática da pesquisa que
esteve por muito tempo em meio a dois paradigmas que guiaram as investigações para campos distintos, uma vez
levando em consideração o caráter de cada uma.
Se por um lado a pesquisa quantitativa esteve presente em investigações cujos os resultados se mostram a
partir de aspectos objetivos e que buscam a validação e comprovação a partir de dados, muitas vezes numéricos,
por outro lado a pesquisa qualitativa esteve presente na maioria das investigações no campo social, cultural e da
educação, trazendo sempre discussões que vão permear o campo dos resultados expressos em texto.
Nesse sentido, tendo uma flexibilidade próxima do campo do sensível, a pesquisa qualitativa esteve
amparando a maioria das investigação oriundas do design, das novas mídias e bem como da Arte e da educação.
Contudo segundo Haseman (2006):

Ao longo da última década, muitos pesquisadores qualitativos têm chegado à mesma


conclusão. Limitados pela capacidade das palavras para captar as nuances e sutilezas do
comportamento humano, alguns pesquisadores têm utilizado outras formas simbólicas
para representar suas reivindicações de conhecimento. (HASEMAN, 2006, pág. 45)

O autor nos aponta para uma tendência da prática de pesquisa que se emancipa da dicotomia quantitativo
e qualitativo e vai propor a aceitação de uma terceira vertente de pesquisa que tem na prática a condução de sua
investigação, onde esta, (a prática) deixa de se mostrar apenas como método e passa a se estabelecer também
enquanto objeto desta pesquisa.
Assim, o autor aponta para um modo de pesquisa que é “conduzida-pela-prática” e nos fala ainda que:
A “prática” em “pesquisa conduzida-pela-prática” é essencial – não é um extra opcional;
é a precondição necessária de envolvimento na pesquisa performativa. É importante
notar que, ao usar o termo performativa para definir esse campo de pesquisa, estou
buscando ir além da maneira com que “performativa” está sendo usada atualmente na
literatura de pesquisa. (HANSEMAN, 2006, pág. 48)

Assim, a partir deste ponto de vista, da pesquisa “conduzida-pela-prática”, nos deparamos com a “pesquisa
performativa”, que emerge da preocupação dos pesquisadores que se orientavam pela pesquisa qualitativa que em
meio as tendências trazidas pelo o que Hanseman (2006) chama de “a vez da performance” que vai alimentar este
modo outro de investigação que mesmo tendo relação direta com a pesquisa qualitativa, se configura como uma

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terceira vertente, uma vez que estabelece modos investigativos que geram resultados que vão além de símbolos
dados por texto, mas se abre para uma gama de possibilidades para a discussão de seus resultados.

Tendo em vista que este trabalho propõe a investigação de processos de criação em arte-educação por
meio de redes que se traçam por via da construção de espaços e presenças outras, a partir da relação do corpo e
dispositivos midiáticos e ainda, que se propõe a estabelecer uma relação de articulação de saberes nômades, trago
aqui a proposta de pesquisa performativa, e nesse sentido o processo artístico-pedagógico se dá enquanto próprio
método e objeto da pesquisa. Ainda nessa perspectiva, somado à esta abordagem performativa da pesquisa, trago
também a reflexão à respeito desta enquanto um funcionamento em meio às linhas do rizoma, conceito chave nos
escritos de Deleuze e Guatarri (1997), trazendo nela a fluidez e a mobilidade de um jogo que se estabelece no
entre a criação em meio ao corpo, aos dispositivos e aos saberes nômades em questão se relacionando não enquanto
linhas de ligação ou passagens de um elemento a outro, mas que se mostra em um movimento de linhas que se
entrecruzam, linhas de força de criação que se ligam sempre de um ponto a outro sem delimitação nem marcação,
pois nem mesmo os pontos de ligação podem ser fixados, pois são da natureza dos fluxos, portanto, nômades.

A pesquisa, então, se detém a criar rastros, desenhar linhas que se dissolvem e se redesenham em um mapa
de vetores (uma cartografia).

Dessa forma, além da pesquisa performativa, guiada-pela-prática, este trabalho propõe ainda que a
cartografia se mostre presente, uma vez tendo em mente o caráter processual de construção dos saberes artísticos
e pedagógicos em meio a redes corpóreo-midiáticas.

Assim, a cartografia, estaria atrelada à pesquisa performativa em meio a sua própria existência enquanto
anti-método, estando esta presente na construção de mapas em meio as passagens e rastros dos processos
vivenciados.

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,


suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo,
uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte,
construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características
mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas[...] Um mapa
tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ‘ao mesmo’.
(Deleuze e Guattari 1997, pág. 21)

A pesquisa por via da cartografia, deve ser capaz de buscar pistas para dar corpo à multiplicidade do
trabalho em constante construção, assim, deve ser encarada como um meio de experimentação e de produção de
devires, um meio de passagem, uma trama processual do decurso da obra-pesquisa, aquilo que Renato Cohen
(1998) chama de leitmotiv.

Portanto, a abordagem metodológica aqui proposta se mostra em uma multiplicidade que relaciona em
rede de fluxos e devires, a pesquisa qualitativa, uma vez lidando com o campo da arte e seus territórios sensíveis,
o que também vai trazer a prática como guia e nesse sentido abrindo-se para a pesquisa performativa atravessadas
pelo caráter processual que sugere a cartografia.

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Nesse sentido, assim como na relação do rizoma em Deleuze e Guattari (1997) estas abordagens
metodológicas não se dão em territórios distintos, mas em um fluxo de rede que dissolve qualquer possibilidade
de uma se sobressair à outra. A relação aqui se dá de fluxos de desterritorializações e reterritorialização da pesquisa
em desenvolvimento.

A partir desta perspectiva, a proposta metodológica de pesquisa aqui apresentada trabalha diretamente
com dois públicos: um público de estudantes de escolas públicas e um público de estudantes universitários
(professores em formação). Estes públicos se localizam em espaços geográficos diferentes, compreendidos pela
cidade de Fortaleza-Ce e pela cidade de Macapá-AP.

O procedimento de pesquisa se dão a partir da utilização de dispositivos de mídia, onde, a partir da ideia
de saberes nômades, professores em formação do curso de Teatro – licenciatura da Universidade Federal do
Amapá estarão interagindo a partir de ambientes de compartilhamento de informações on-line com estudantes de
escolas públicas de Fortaleza, a partir da construção coletiva e por meio mediado por tecnologias, de uma obra de
arte que tem como pressupostos a relação com o corpomídia e a educação. Para tanto, ferramentas oriundas do
universo dos estudantes serão utilizadas, tais como Facebook, Instragran, Snapchat, Periscope, Skype e etc.

Desse modo, a pesquisa aqui proposta, busca investigar os modos como os saberes nômades se efetivam
através da utilização das tecnologias digitais na educação, reformulando com isso a ideia de presença e espaço fixos,
dando margem a modos de criação que inventam novos lugares virtuais e dialoga com modos de telepresença.

Trago como referência preliminar três aspectos teóricos: O olhar da educação para a potência dos meios
tecnológicos enquanto possíveis promotores de experiência; A arte e da educação como possibilidade de se
estabelecer a construção de saberes nômades; A promoção desses saberes nômades a partir das relações entre arte,
educação e tecnologia na sala de aula. Para tanto, trago aqui algumas referências que deverão ser tomadas como
base para a discursão desses processos acima citados, bem como guiarão a investigação a partir dessas práticas.

A respeito da experiência, trago como principais referências os autores, Jorge Larossa Bondìa e John
Dewey a partir das obras “Tremores: escritos sobre experiência de Jorge” (2002) e “Notas sobre a experiência e o
sujeito da experiência” (2002) de Larossa Bondìa e “Arte como Experiência” (2010) de John Dewey. Assim,
buscaremos pensar a partir desses autores na perspectiva de que “A experiência ocorre continuamente, porque a
interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver”. (Dewey, 2010,
p. 109) e que “que pensar a educação a partir da experiência a converte em algo mais parecido com uma arte do
que com uma técnica ou uma prática” (Larrosa, 2014, p. 12).

Para o aspecto da efetivação dos saberes nômades, trago como referência a filosofia de Deleuze & Gattari,
com recorte na obra Mil Platôs, na discussão acerca do nomadismo, bem como estaremos ainda aparados na
referência do autor Daniel Lins, na obra por ele organizada “Cultura e subjetividade: saberes nômades” (2000).

Desse modo, aqui interessa a relação dos saberes nômades por via do entendimento deste como potência
criativa a partir da produção de intensidades poéticas a partir da capacidade de criação de novos territórios de
agenciamento e nesse sentido são instaurados modos de reterritorialiações e desterritorialização dos saberes, tendo

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como meio para isso a utilização dos recursos tecnológicos, este sendo entendidos como dispositivos de
desterritorialização.

Além disso, para o desenvolvimento da pesquisa, é necessário a realização de procedimentos pautados na


criação artística por meio de dispositivos tecnológicos que estabeleçam a construção de espaços nômades de
interação entre os indivíduos em meio ao processo.

Para isso, temos como referência duas autoras, uma que traz consigo o método do Drama como disparador
criativo na educação e outra que irá discutir os modos de criação artística a partir das novas mídias e dispositivos
tecnológicos.

Relativo a inserção dos dispositivos midiáticos que fazem parte da construção artístico-pedagógica, trago
como referência os trabalhos da pesquisadora Valzeli Sampaio, a partir dos seus escritos acerca dos processos de
convergência entre arte e vida, a partir da relação com a tecnologia e novas mídias em especial na sua obra intitulada
“Arte e vida: estudo e levantamento de relações nas mídias locativas” (2012).

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Antonio. A encenação performativa. Revista Sala Preta, São Paulo, ECA/USP, n. 8, p. 253-258, 2008.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. in Revista Brasileira da
Educação. No. 19, Jan/Fev/Mar/Abr, Rio de Janeiro: ANPED, 2002.
______. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
COHEN, Renato. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2004.
DELEUZE, Gille; GUATARRI, Félix. Mil Platôs. 2ed. São Paulo: Editora 34, 1997. Vol. 4
DEWEY, John. Arte como experiência. São paulo: Martins Fontes, 2010.
FÉRAL, Josette. Teatro Performativo e Pedagogia. Revista Sala Preta, São Paulo, ECA/USP, n. 9, p. 255-267,
2009.
FONSECA,T.M.G; NASCIMENTO, M.L.; MARASCHIN, C. Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto
Alegre: Sulina, 2012.
HASEMAN, Brad. Manifesto for Performative Research. In: Media International Australia incorporating
Culture and Policy. n. 118, Febrary 2006.
KATZ, H.; GREINER, C. Por uma teoria corpomídia. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo:
Editora Annablume, 2005.
LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: Perspectiva, 2007.
LINS, Daniel. (org.).Cultura e Subjetividade - saberes nômades. São Paulo: Papirus, 1997
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. (Orgs.) Pistas do método da cartografia:
Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: Processo de criação artística. São Paulo, Annablume, 1998.

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_____. Redes da Criação – Construção da obra de arte. São Paulo: Editora Horizonte, 2006.
VALZELI, Figueira Sampaio. Arte e vida: desatando os nós - estudos e levantamento de relações nas mídias
locativas. Estágio pós-doutoral. São Paulo: Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo
(ECA/USP), 2012.

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Arte educação em escolas de educação militar: poéticas de criação a partir da


resistência e da desobediência

Debora Frota Chagas


deborafrotachagas@gmail.com
SEDUC/CPM

Raimundo Hélio Leite


rhleite@terra.com.br
UFC

Resumo: Este artigo foi constituído a partir de um processo reflexivo acerca da investigação de meu mestrado em
Educação Brasileira intitulado PROCESSOS DE CRIAÇÃO E AVALIAÇÃO: POÉTICAS DA
APRENDIZAGEM EM ARTE NAS ESCOLAS MILITARES DA REDE ESTADUAL DE ENSINO DO
CEARÁ. Ações artísticas realizadas na primeira escola militar pesquisada, Colégio da Polícia Militar do Ceará,
instituição de educação básica integrante da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social, conveniada à
Secretaria de Educação do Estado, onde sou professora desde 2012, ministrando a disciplina Arte Educação e
oficinas de teatro, para estudantes do Ensino Fundamental II e Médio. As ações artísticas pedagógicas partem de
reflexões críticas com os estudantes a cerca do regulamento rígido da escola e das sensações e emoções dos
estudantes no cotidiano escolar. A escrita é antes de tudo um relato de experiência, produzida pela necessidade da
Arte existir e resistir nas escolas de educação militar.

Palavras-chave: Criação artística. Indisciplina. Resistência.

Abstract: This article was made from a reflective process about the investigation of my master entitled
PROCESSOS DE CRIAÇÃO E AVALIAÇÃO: POÉTICAS DA APRENDIZAGEM EM ARTE NAS
ESCOLAS MILITARES DA REDE ESTADUAL DE ENSINO DO CEARÁ. artistic actions taken in the first
military school studied, Colégio da Polícia Militar do Ceará, basic education institution member of the Secretaria
de Segurança Pública e Defesa Social, contracted to the Secretaria de Educação do Estado, where I am a teacher
since 2012, teaching the discipline Art Education and theater workshops for students of elementary and secondary
school II. Pedagogical artistic actions start from critical reflections with students about the strict regulations of the
school and the feelings and emotions of students in the school routine. Writing is first and foremost an experience
report, produced by the necessity of art exist and resist the military education schools.

Keywords: Artistic Creation. Indiscipline. Resistance.

1. — Atenção pelotão. Sentido!

A organização e o ambiente disciplinador do Colégio da Polícia Militar do Ceará fica a cargo do


comandante da escola, tendo sempre à frente um Coronel da Polícia Militar. A gerência de outras funções
administrativas é responsabilidade dos demais oficiais e os praças são responsáveis pelo monitoramento constante
dos estudantes, para garantia do cumprimentos das regras de comportamento e conduta nas dependências da
escola e em ambientes externos em aulas de campos, passeios, dentre outros.

A escola é vista como quartel e os estudantes, considerados paramilitares, são divididos entre filhos de
militares e civis, totalizando quase 2 mil, entre Fundamental I, II e Médio.

Em 2013, após um ano como professora de Arte e de adaptação ao regime educacional militar, reflito
sobre o lema da escola, “Aqui, aprende-se com disciplina” e inicio uma investigação teatral com cerca de vinte

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estudantes do ensino médio. A partir de diálogos, questionamentos, privilégios e contravenções de diversas


proposições artísticas pedagógicas, uma ação inspirada em poéticas do caos e do acaso, produz um jogo
performático intitulado “Corpo in-disciplinado”, composta em forma teatral, onde o foco está na crítica da
movimentação dos corpos moldados ao regime educacional militar, alinhados em uma estrutura dura, sequencial
e uniforme.

Pautada no conceito de “Corpos Dóceis”, de Michel Foucault, onde a disciplina como forma de
dominação fabrica corpos submissos e exercitados, Corpo in-disciplinado tem a estrutura de um jogo cênico onde
os alunos “brincam” com as movimentações dos corpos a partir dos comandos e frases que fazem parte do
cotidiano dos alunos do CPM, retratando de forma crítica e exagerada a realidade diária imposta aos corpos desses
adolescentes, trazendo para a cena um modelo (in)dócil e (in)útil.

Com proposições de movimentos emergindo uma nova noção de corporalidade para os alunos
rigidamente acostumados ao sistema disciplinador, investiguei uma possibilidade mais experimental visando
estimular o desenvolvimento da percepção e da sensibilidade por meio de elementos externos. O objetivo era
desmecanizar os corpos tão retilíneos, acostumados a uma movimentação dura e sequencial. Não apenas os corpos
eram questionados, mas todos os elementos constitutivos do ambiente escolar, como a imagem imaculada de sua
indumentária básica - o uniforme diário: camiseta azul marinho colada ao corpo, por cima uma camisa de botão
bem passada, calças na medida certa, meias obrigatoriamente pretas, para os meninos e cor da pele para as meninas,
sapatos bico-fino sempre engraxados, bibico (pequena boina de dois bicos) utilizado sempre em ambientes sem
cobertura (teto), meninos de cabelos muito curtos, meninas de cabelos presos, sem brinco pendurado, colar ou
anel, muito menos batom ou unha pintada; para alguns alunos brevês (broches) na camisa e alamares (três cordas
coloridas ao ombro) designando os alunos de melhor desempenho. Vestimenta cheia de regras e corpos alinhados
ao regime educacional-militar.

Para a tentativa de rompimento dos padrões cristalizados do militarismo, são sentidas tintas, águas,
paus e pedras; no calçamento, no banheiro, no pátio, na quadra e na areia, tendo como impulso de ações situações,
narrativas e emocionais, propostas pelos alunos e em sua maioria, vivenciada no ambiente da própria escola. Corpo
in-disciplinado torna-se uma ação de ocupação/habitação escolar.

Mesmo com as ações experimentais percebe-se que a rigidez da escola ainda pertence aos corpos dos
alunos, pois muitos estudam no CPM desde o primeiro ano, há nove anos. “Se não pode derrotá-los, junte-se a
eles”, pensamento de resistência e sobrevivência. A partir daí, o direcionamento para o tema militarismo toma
“outro rumo”: desordenar significa criar uma lupa aos movimentos para potencializar esdruxulamente o controle,
a rigidez e a disciplina.

Essa realização teve em sua pretensão inicial ir de confronto às metodologias pedagógicas da escola,
criando conflitos conscientes com a ruptura de forma transgressora com o conceito de disciplina e ordem projetado
pelos agentes escolares militares.

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A linguagem do teatro era (e ainda é) vista como “movimento proporcionador de desordem no espaço
escolar, deslocando os alunos para um espaço de instabilidade e inquietude”1, o que de certo modo traz como
reflexão pedagógica na, da e em arte, que a proposição como prática contemporânea de ensino-aprendizagem
torna-se um ato criador e “libertador”2 para os estudantes. Uma ação que o produzir arte vem a ser um processo
vivo, não se tratando de explicar ou apresentar certezas, mas de propor abertura de espaços e agenciamentos para
a troca de experiências, experienciando a cena e, por si, produzindo aprendizagem. Uma atuação buscando, dentre
outros pontos, um caminho para encontros e desencontros do ser humano com o mundo. Uma ação de criação
na qual as duas áreas, arte e educação, são mescladas de tal forma que não se possa bifurcá-las ou sequenciá-las,
derivando uma experiência que não se sabe onde começa ou termina, um processo ...artístico-pedagógico-
artístico…

Esses e outros processos estéticos foram produzidos partindo de temas levados pelos estudantes e suas
necessidades de experienciar situações emergenciais, muitas vezes não trabalhadas na escola ou em casa e de
proposições minhas, provocadas pelas relações e contra-relações da Arte com o ambiente (para)militar.

2. — Apresentar arma. — Firme.

Falar de indisciplina requer uma delimitação de sentidos que a palavra pode apresentar. Em uma escola
onde o lema é “Aqui, aprende-se com disciplina”, trabalhar a partir da indisciplina pode gerar uma representação
de que não há aprendizado, mas os processos artísticos tratados de forma crítica e reflexiva apresentam uma série
de ações e criações que inevitavelmente produzem conhecimentos estéticos.

Em 8 turmas, com aproximadamente 30 estudantes cada, realizamos processos de criação a partir da


resistência e da quebra de regras do CPM e construímos um arcabouço de rendimentos com o modus operandi
resistir, questionar e desobedecer.

Diante de inúmeras inquietudes que (des)nortearam o processo, apresento algumas que resultaram em
conflitos diretos com a direção da escola.

A primeira proposição, realizada por uma turma de 1º ano do ensino médio chamada “Não sou militar,
sou aluno”, criação proposta a partir de discussões e reflexões do cotidiano da escola e do artigo “Não sou nem
obrigada”, por Camila Prado, em 2 de fevereiro de 2016, na Revista Cariri3

1 Comentário de um monitor (policial militar) ao assistir uma aula de teatro na escola.


2 Este termo é utilizado de forma simbólica, pois pelos relatos muitos estudantes consideram as regras aplicadas na escola como
uma forma de aprisionamento.
3 O artigo questiona o “tipo” de formação do estudante de uma educação militar. Acesso em
http://caririrevista.com.br/nao-sou-nem-obrigada/

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A segunda ação “Quais as cores do seu movimento?” foi realizada a partir de uma experiência sensorial
retratando uma “guerra” de tintas, que aborda o tema Ordem, Disciplina e Progresso, retratados pela cor preta e
da Liberdade de Expressão, representada por cores como o azul e o amarelo.

A ação foi uma narrativa de movimentos e gestos, criada pelas sensações e emoções dos estudantes a
cerca do cotidiano da escola.

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Após a proibição do comando da escola em realizar ações nas aulas de Artes no ambiente externo a sala de aula,
uma terceira proposição foi realizada, chamada “Qual é o seu grito de liberdade?”. Realizada em sala de aula, as
turmas instalaram diversos cartazes nas paredes da sala, com produções sobre seus sentimentos e pensamentos em
relação aos “mandos e desmandos” da direção da escola.

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Para compreender as discussões simbólicas dessas criações, relaciono Arte como experiência e
Educação como processos de criação, fomentando reflexões sobre sua importância na docência, bem como suas
implicações nas atividades artísticas direcionadas para a educação formal, com abordagem de conteúdos específicos
que visam dar condições para construir um repertório de reflexões, em diálogo experimentos teórico-práticos
construído em sala.

Enfocando principalmente o papel da Arte no ensino médio, foram abordados, a prática cartográfica
utilizada foi apresentada por Deleuze e Guatarri (1995), que se apresenta como trilha para acessar aquilo que força
a pensar subjetividades e a transformar práticas, e não como um conjunto de regras a serem aplicadas a um objeto,
mas como pistas que ajudam a refletir acerca das experiências de produção da realidade. Assim, cartografar surge
como acompanhamento de processos inventivos e de produção de subjetividade, que se associam aos processos
de intervenção, já que interferem nos sujeitos.

Nesse contexto, o método cartográfico é utilizado em um sentido inverso do convencionado de metá-


hódos, predeterminado de partida (méta) a um caminho (hódos). Essa inversão metodológica, etimológica e conceitual
proposta, não preestabelece a direção da meta a um caminho, mas aponta para a transformação em hódos-méta
(ESCÓSSIA, KASTRUP, PASSOS, 2009). Assim, a cartografia é vista não como uma metodologia, um método
para ser aplicado, mas para ser experimentado.

A metodologia se apoiou na busca de uma estrutura que se estabelece a partir do próprio processo
artístico e reflexivo, pela construção do trabalho em desenvolvimento. Dessa maneira é importante frisar que a
relevância está tanto no trabalho de observação e reflexão, quanto no processo de produção artístico como
possibilitador de criação|crítica.

3. — Marcar passo. — Sentido.

As trilhas desse percurso são definidas como ser artista, ser pesquisadora e ser educadora.

Como artista, as poéticas do acaso e do caos, a interpretação que confronta a representação, uma
produção que possa entrelaçar várias áreas, na qual o atravessamento das linguagens artísticas produz uma
diversidade de possibilidades são os direcionamentos iniciais. Uma obra que encontra na autobiográfica diversos
caminhos e resultados possíveis, onde depoimentos de caráter testemunhal sobre as questões automobilizadoras
se aliam à dramaturgia dos desejos. Territórios que permeiam o campo da realidade, da ficção e da não-ficção.

As produções criativas são incentivadas a partir do caos, do acaso, da autobiografia e da


performatividade.

O caos e o acaso são vistos não apenas enquanto meio, mas como fim para a criação, podendo aparecer,
ou não, um acidente provocado. A proposição artística abre mão do controle dos resultados, em maior ou menor
grau, trabalhando sistematicamente com ações irrefletidas e mecanismos aleatórios, promovendo diversos sorteios.
Nesse caso, como afirma Entler (2000)

Podemos dizer que a forma final e os eventuais significados decorrentes são imprevisíveis, mas
não há ocorrência do acaso propriamente dita. Há, portanto, o paradoxo de uma intenção sobre

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o acaso. Mas isso não o invalida pois, por mais que o processo seja desencadeado com
consciência, seu resultado não se reduzirá à intenção do artista. Assim como – parafraseando
Mallarmé – um lance de dados, quase sempre voluntário, jamais abolirá o acaso. (ENTLER,
2000, p. 51)

A autobiografia trata a memória como matéria involuntária que atravessa o corpo, não se constituindo
a partir de lembranças de uma experiência especificamente única e própria, mas sim como uma projeção de uma
imagem particular de si, estando ainda de acordo com as percepções dos outros. Todos carregam memórias do
passado e geralmente estas são distorções seletivas da verdade. Todos possuem uma história de vida para contar,
embora esta seja mais próxima da ficção do que da realidade.

A Performance e Teatro, como processo de estímulo a outras percepções para a criação, sustenta que
“performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Educadores da percepção ativam e evidenciam a latência
paradoxal do vivo - o que não para de nascer e não cessa de morrer simultânea e integradamente” (FABIÃO, 2009,
p. 237). A partir da avaliação da autora em que a performance trata de forma alterativa com o estabelecido,
experimentando estados psicofísicos alterados, proporcionando situações de “dissonâncias de ordem econômica,
emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial...”
(FABIÃO, 2009, p. 237), trabalhar a performance em um ambiente educacional militar torna possível a diluição
das fronteiras e dos conceitos estanques de ordem e disciplina, expandindo um fluxo de ideias e práticas discursivas,
a fim de impedir a constituição de uma obra com procedimentos exclusivamente fechados.

Efetivar processos de criação artística a partir do teatro performativo em uma escola de educação
militar, possibilita desenvolver uma sequência de experimentos e descobertas que transcende a simples produção
escolar em arte. Torna viável o desenvolvimento inventivo do autoconhecimento para uma criação sem prescrição.
Uma pesquisa teórico-prática que contribui para o fortalecimento de uma experimentação que não nega o já
existente e estabelecido, a ordem e a determinação, mas se valem delas com a segurança de quem busca uma
reestruturação na forma de conceber um processo artístico e principalmente, de perceber o mundo. É um
momento de deslocamento, de desordenação e de reconstrução que confronta a percepção em face do
esclarecimento e do distanciamento, no limite do reconhecimento do sujeito.

Enquanto pesquisadora, escolher as práticas de orientar processos criativos e estar concentrada nos
recursos para a reflexão de um amplo processo, envolve, de certo modo o entre, uma interseção da área artística e
da educação. Investigar, assim, processos de criação, a meu ver, permite uma analogia com uma obra inacabada e
aberta, onde, segundo Umberto Eco (2003) estimula no intérprete uma cadeia de entendimentos e interpretações
espontâneas, porém conscientes, permitindo-lhe, por meio de inúmeras possibilidades, uma maneira própria de
entendimentos sem estar condicionado por padrões ou normas preestabelecidos tradicionalmente a conduzi-lo na
organização do objeto passível de fruição.

Já na vertente da educação, pondero zonas antropológicas e sociológicas, buscando uma área


marcante no universo dos estudantes e do ambiente escolar, propondo um processo que trate do educando como
sujeito participativo e autônomo, com suas experiências postas em evidência, contribuindo cada vez mais para uma
construção crítica e reflexiva na coletividade.

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Considero o processo artístico como uma ação sócio político-cultural de grande influência na escola,
principalmente em uma instituição de educação militar, agindo de forma crítica e reflexiva no enquadramento
sistematizado da escola, a fim de produzir uma experiência criativa libertadora sendo necessário ainda

Compreendê-la como uma provocação sobre algo concreto sem que se possa prever o
movimento que desencadeia sobre aquilo em que toca. A ação tem um início determinado mas,
uma vez exteriorizada, deixa de fazer parte do campo dominado pelos agentes, passando a fazer
parte daquilo que a propaga e que se pode chamar de acontecimento. (CARMINDA, 2007, p
91)

Inevitavelmente, os experimentos caminham para além da tecitura de uma partitura estética dos
discursos, de corpos e memórias do coletivo, do material humano como processo de autoconhecimento, mas de
conhecimento de um universo muitas alheio a realidade do aluno. Um momento de conexão do entre-lugares, de
deslocamento para realocar em uma nova forma de perceber o social.

Vivenciar as práticas e suas compreensões, questionando seus posicionamentos perante essa mesma
prática, numa integração entre saber, praticar e criar, estabelecendo uma “experiência estética”, significa – para o
educador e o educando – não uma reprodução mecânica de uma ação pré-elaborada, mas a produção de um novo
material didático que pode sair dos livros e se tornar corpo. Experiências que valorizam a técnica, o conteúdo, a
complexidade e a diferença.

Assumir esta concepção é se colocar em lugar de fronteira, trânsito entre ser artista, pesquisador e
professor, a compreender que o ensino e a pesquisa em arte, devem reconhecer que “arte, pesquisa e ensino não
são feitos, mas vividos” (IRWIN, 2008, p. 97).

Durante muito tempo a tradição dos processos de ensino e aprendizagem deveriam seguir uma
concepção com bases sólidas e ordenadas, como em uma fórmula matemática. Essa concepção de “aprendizagem”
como um modo sequencial de saberes que cresce de forma ordenada, em uma lógica crescente, do simples ao
complexo, é denominada de forma arborescente.

Para Deleuze (1925-1995) e Guatarri (1930-1992), o conhecimento não é algo pronto que deva ser
direcionado ou encaminhado a alguém. Em sua argumentação os autores utilizam o termo “rizoma” enquanto
metáfora para os pensamentos moventes, construídos em rede, sem uma unidade ou sequencialidade, mas sim
multiplicidade e complexidade, afirmando que “não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra
numa estrutura, numa árvore, existem somente linhas” (1995, p.17). Para eles, constroem-se saberes ao se vivenciar
situações cotidianas, que nos permitem, em dado momento, tomarmos consciência desses saberes. Ideias não são
dadas, mas criadas, e estão sempre em movimento, para serem novamente criadas e recriadas.

Considerar saberes de forma determinística como única verdade, cria situações sem movimento e
instabilidade. Aprender e ensinar arte deve vir a ser um processo vivo que se desenvolve no encontro com teorias,
produções artísticas e vivências culturais, criando um espaço para conversa, troca de ideias e experiências. É
estabelecer com o cotidiano uma relação próxima ao sentido de experiência de John Dewey em sua obra A arte
como experiência (2010). Na acepção de Dewey, uma verdadeira experiência ocorre na interação ativa do indivíduo
com os acontecimentos de seu mundo. Ao invés da negação aos desejos e ao caos, resulta de um processo que

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agrega valores e significados passados com os acontecimentos presentes, movido pela interação entre o fazer e o
receber, dialogando entre ação, consequência e percepção.

A verdadeira “experiência”, é dotada de qualidade estética, que de acordo com Dewey, está sob o
mesmo padrão de uma obra de arte. Tal “experiência” se opõe a simples reprodução, ao mecanicismo, à repetição
arbitraria, à inexistência de objetivo, e é integrada pela atuação coletiva da prática.

Inspirada em Dewey, Sumaya Mattar Moraes fundamenta sua pesquisa sobre a aquisição de
conhecimento artístico pela prática, pelo “fazer”, no “ensino prático reflexivo capaz de vincular as dimensões
teórica e prática”, colaborando para a valorização do “potencial da aprendizagem por meio da prática e dos
elementos que dela participam” (MORAES, 2007). Moraes aborda uma aprendizagem realizada pelo
reconhecimento da atuação simultânea, coletiva e dialética entre conhecimento acumulado e ação, portanto entre
reflexão e prática. Enquanto realizamos, refletimos, aprendemos, pois revemos ideias estabelecidas, preconcebidas.
Mas para isso é necessário prestar atenção nas ações reflexivas decorrentes da prática, manter o olhar “ativo”,
atento e curioso, imprimindo as relações do entorno e a qualidade estética de uma “verdadeira experiência” coletiva.

Prioritariamente vivenciada no processual, esta investigação trata a arte como experiência, estreitando
ao máximo possível a relação teoria e prática, com a interlocução de que é necessário investir numa ação cultural
que valoriza o processo e não apenas o produto, ou mais, entender o próprio processo como produto, assumindo
uma distinção entre o fazer, isto é, o processo estético, e o que é feito, o produto artístico.

4. — Descansar. — Fora de forma, marche!

Realizar poéticas de criação a partir da resistência e da desobediência fortalece o desejo e a decisão de


investigar não apenas processos de criação, mas a constituição do próprio processo como uma ação política, com
a finalidade de possibilitar aos educandos e a mim uma experiência estética, diferenciada dos modelos estabelecidos
tradicionalmente. Transformando a escola em um espaço múltiplo, de diversas experiências, que auxilia no
despertar no estudante, não apenas em relação as suas potencialidades artísticas, mas em sua percepção ao observar,
interagir e produzir no mundo. Assim, promove a formação dos educandos em questões mais abrangentes,
contribuindo para um processo de identidade, identificação e comunicação com a sociedade em que ele está
inserido. Um lugar de transformação objetiva e subjetiva, onde o cotidiano escolar, sendo constituído de laços
sociais, torna-se palco de uma teatralidade de enredos que se renovam.

Este percurso convoca a um exercício voltado muitas vezes, mais para a capacidade de inventar e
reinventar o mundo do que de reconhecê-lo. Como diz Kastrup (2009), é uma experiência percebida como um
saber-fazer, um fazer que resulta do saber, com base na construção do conhecimento como fruto das
multideterminações sociais que configuram o campo perceptivo. É um movimento concentrado na experiência,
na observação de pistas e de signos do processo em curso, uma forma de experiência que alcança a dimensão
estética. Uma pesquisa que traz para o ambiente escolar, referenciais de uma investigação participativa, buscando
uma produção coletiva de subjetividade, de forma a singularizar as experiências dos estudantes e não a generalizá-
las.

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Por fim, cabe agora a mim reprocessar e continuar a produção no CPM, buscando mais incentivos e
acreditando que operando o pensamento de uma maneira inquieta, na pulsão da transformação, o ato de provocar
gera em mim outras provocações, exercendo sempre o movimento.

Referências

ANDRÉ, Carminda Mendes. Teatro pós-dramático na escola (inventando espaços: estudos sobre as
condições do ensino do teatro em sala de aula). São Paulo: Editora Unesp, 2011.

DEWEY, J. Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

ECO, Umberto. Obra aberta, São Paulo: Perspectiva, 1971.


ENTLER. R. Poéticas do acaso: acidentes e encontros na criação artística. Tese de doutorado, ECA-USP,
2000.

FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. In: FLORENTINO;
TELLES (Orgs.). Cartografia do ensino do teatro. Uberlândia: EDUFU, 2009, pp. 237-246.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São
Paulo, no 8, 2008. p. 197-210. Tradução: Lígia Borges.

IRWIN, R. A/R/Tografia: uma mestiçagem metonímica. In: BARBOSA, A. ; AMARAL, L. (Org.).


Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: SENAC/SESC, 2008, pp. 87-104.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

OSTROWER, Fayga. (e 2a edição de 1995) Acasos e Criação Artística, Rio de Janeiro: Campus, 1990.
PASSOS, Eduardo, KASTRUP, Virgínia e ESCÓSSIA, Liliana da (orgs.). Pistas do método da cartografia:
Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade /Porto Alegre: Sulina, 2009.

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Cenas em vestígios: experiência com memória e o processo de criação no teatro


da escola.

Gilvamberto Felix4
gilvambertocomunidade@hotmail.com
SMEM, Ceará, Brasil.

Resumo: Cenas em vestígios: experiência com memória e o processo de criação no teatro da escola é fragmento
da dissertação de uma pesquisa desenvolvida na Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental
Deputado José Martins Rodrigues, onde se realizou uma investigação cênica que problematiza a tríade: memória,
escola e teatro. Considerando primeiramente os conceitos de Nora (1993) sobre memória e como poderiam se
aplicar dentro da construção de cena no ambiente escolar, esta pesquisa também dialoga com Salles (2013) e suas
percepções acerca do processo de criação. Investigando a preparação, experimentação, construção de cenas
realizadas e estimuladas pelas memórias dos alunos na escola, resultou em um espetáculo teatral denominado
Rastro, que problematiza as questões referentes às memórias individuais e coletivas dos alunos, percebendo que o
ser humano investiga o passado, para compreender o presente e projetar o futuro, conhecendo quem fomos,
influenciando quem somos e impulsionando quem seremos. O processo de criação teatral através de memórias
revela e evidencia potencialidades pedagógicas e criativas. Dessa maneira, aponta-se ainda a reverberação e o
impacto deste processo de criação nos alunos e na escola.

Palavras-chave: Teatro na escola. Processo de criação. Memória e teatro.

Abstract: Scenes in traces: experience with memory and the creation process in the school theater is fragment of
the dissertation of a research developed at the Municipal School of Early Childhood Education and Elementary
Education Dep. José Martins Rodrigues, which took place a scenic research that questions the triad memory,
school and theater. first considering the concepts of Nora (1993) on memory and how they could be applied in
the construction scene in the school environment, this research also converses with Salles (2013) and their
perceptions about the process of creation. Investigating the preparation, experimentation, building scenes
performed and stimulated by memories of the students at school, resulted in a play called Rastro, which discusses
issues relating to individual and collective memories of students, realizing that man investigates the past,
understand the present and plan for the future, knowing who we were, who we are influencing and driving who
will be. The process of theatrical creation through memories reveals and highlights educational and creative
potential. Thus, also points up the reverberation and the impact of this creation process the students and school.

Keywords: Theatre at school. Creation process. Memory and theater.

1 RASTROS E VESTÍGIOS AO LONGO DO CAMINHO

O ambiente selecionado para esta pesquisa foi a Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental
(Emeief) Deputado José Martins Rodrigues, por conta do revelar da necessidade de falar sobre suas memórias que
os alunos apresentavam durante as aulas de arte. A escola tem em suas mediações uma população de classe baixa
e, segundo a linha de base5 da escola, pode-se notar que o alunado é bastante carente, dentre os quais uma boa

4Gilvamberto Felix é professor de Arte e Teatro na Prefeitura Municipal de Maracanáu, cidade da região metropolitana de
Fortaleza, Ceará, atualmente nas escolas EMEIEF Dep. José Martins Rodrigues e na EMEF Estudante Ana Beatriz Macêdo
Tavares Marques, lecionando do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. É também ator e diretor do Grupo Acordes de Teatro.
Licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Ceará e Mestre em Artes pela mesma instituição.
5 Linha de Base é o resultado de uma pesquisa realizada em cada uma das escolas da rede pública de ensino de Maracanaú.

A pesquisa é realizada através de questionários e respondida pelos alunos e por seus pais, tendo como base perguntas
de caráter social, relacional, comportamental, com temas da sociedade contemporânea.

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quantidade já teve contato com algum tipo de droga ilícita, além de, em sua maioria, serem filhos de casais
separados. A escola atende a cerca de 900 alunos e funciona durante os três turnos.
O trabalho se iniciou com alguns alunos do grupo de teatro que foi criado após a chegada do
projeto na escola. Com um grupo composto por nove discentes, sete meninas e dois meninos, o trabalho
começa a ser gerado. Neste trabalho serão apresentadas algumas falas desses estudantes que foram dadas em
encontros, escritas nos diários de bordo, faladas em rodas de conversas, em entrevistas, entre outros 6. Os
educandos tinham uma faixa etária variante entre 12 e 15 anos.
O objetivo principal foi investigar o processo de criação teatral através da memória na escola e
experimentar a memória como matéria-prima e potencializadora para a criação de espetáculo. Desse modo,
esta pesquisa foi se dando de maneira teórico-prática, em que foram sendo criadas células cênicas através dos
estímulos estudados com a finalidade de apresentar essas mesmas células para públicos diversos e
constantemente analisando a criação.
A realização desta investigação partiu da premissa de que a memória é um tema relevante para se
questionar identidade, autoconhecimento e sensação de pertencimento a algum local – neste caso, à escola –,
ou a relação entre alunos e escola. Dessa forma, foram sendo analisadas todas essas questões que serão
desaguadas a partir desses processos de investigação, dando evidência aos diversos aspectos referentes aos
alunos.
Foram realizadas entrevistas abertas e semiestruturadas, para que elas pudessem, de uma fo rma
mais incisiva, apontar caminhos e abrir pensamentos e ideias que alunos desenvolviam a partir e nas práticas
teatrais.
2 RASTREANDO MEMÓRIAS
Para responder a alguns questionamentos, recorreu-se à própria escola para sondar o que os alunos
pensavam. Dessa maneira, o professor junto com os alunos do Grupo de Teatro, elaboraram algumas questões
relativas à memória, à escola e ao teatro. O levantamento foi feito com os alunos dos 8os e 9os anos da escola.
O primeiro questionamento sugerido pelos alunos foi “Você acredita conhecer-se por completo?”. Cerca de
60% do total de alunos questionados responderam que acreditam que não se conhecem por completo ou que se
conhecem parcialmente. Assim, foi-nos revelado o sintoma do não entendimento total de si e da falta de propriedade
ao falar do seu eu.
A partir da afirmativa do historiador Michael Pollak (1989, p. 12), de que “O passado longínquo pode
então se tornar promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à ordem estabelecida”, realizou-se a pergunta: “Você
acredita que seu passado influencia seu futuro?”. Diante desse questionamento, 73% dos alunos questionados
responderam que sim, que o passado influencia no futuro deles; dentre esses, 52% acreditam que a influência
ocorre tendo em vista as consequências das suas ações do passado e outros 21% não sabem explicar o porquê,
mas, ainda assim, acreditam nessas influências.
Na construção das questões, após se elaborar a pergunta sobre a influência do passado no futuro, foi
sugerido por uma aluna também questionar: “O que você faz hoje irá influenciar quem será amanhã?”. Cerca de 70% dos
entrevistados acreditam que sim, que o hoje influencia o amanhã. 60% dos entrevistados que acreditam nessa
influência apontam que essa acontece também a partir das consequências das próprias ações e outros 16% não sabem
explicar como se dá esta influência.
Outra questão levantada, tendo em vista uma análise do passado e reconhecimento da reverberação do
passado no presente, foi: “As memórias de suas experiências te ajudam a tomar decisões?”. Nas respostas, foi evidenciado que
93% dos que responderam acreditam que sim, que as memórias das experiências influenciam nas decisões, na medida
em que, como diz a frase escrita ao lado de um dos questionários por um dos entrevistados, “[...] aprende-se com o que
foi vivido

6 Para resguardar a identidade dos alunos e o sigilo das informações, os nomes dos discentes serão substituídos por
pseudônimos.

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Esses levantamentos iniciais respondidos pelos alunos serviram de base para o processo de criação
realizado, tendo em vista que, a partir das respostas por eles informadas, foi possível localizar os territórios sensíveis
aos quais os discentes se remetiam ao falarem sobre teatro, escola e memória, localizando-se ainda quais afirmativas
faziam acerca dos temas questionados e como cada aluno sentia o ato de utilizar a memória na escola. Dessa
maneira, de que forma poderia se trabalhar com essas afirmativas no teatro e na escola? De que forma se
problematizaria essa percepção?
Para investigar quais marcas da escola seriam experimentadas na cena, mais uma vez se recorreu aos
alunos dos 8os e 9os anos da escola. Foi realizada uma ação na qual foi solicitado a esses discentes que marcassem
as situações ou locais da escola que eles achavam mais interessantes. Vale ressaltar que não se tratava de escolher
o local/situação que mais os agradava, mas o que, de certo modo, era para eles mais instigante, na intenção de
escolher temas que delimitariam os laboratórios. Foram sugeridos pelos alunos tópicos que representavam espaços,
ou seja, locais, situações comuns e sujeitos da escola.
Entre os mais apontados, estavam os “tipos” de professores; os “tipos” de alunos; as brincadeiras da
escola; os namoros proibidos; o recreio; a saída; os amigos da escola, que ocupou o primeiro lugar quase como
unanimidade dos pesquisados. Essas informações revelam o teor de importância da relação dos alunos para com
os outros colegas da escola. Os estudantes apontaram relações com quem possuem maior proximidade, como com
os seus professores (por mais que essa seja uma proximidade estabelecida pela hierarquia da escola), com os seus
colegas de sala e também com aqueles aos quais eles consideram amigos. Evidencia-se que, para o aluno, o que é
mais interessante na escola são os laços criados, os elos, os vínculos criados entre ele e outros, por que não dizer,
o coletivo, a memória coletiva, os rastros deixados em conjuntos.
Entre os menos apontados no levantamento, estavam a merenda; a sala de aula; a sala de leitura; as
brigas; acordar cedo para ir à aula; o bullying; a entrada; os funcionários; e a gestão da escola, que ocupava o
primeiro lugar em rejeição, tendo menos que 3% dos votos. O primeiro ponto a ser analisado seria o fator de
que a instância de relações pessoais também é evidenciada, agora de uma forma a negar ou revelar um
relacionamento conturbado. Desse modo, as brigas, o bullying, os funcionários e a gestão apareceram como itens
dos mais rejeitados dos tópicos sugeridos. Revela-se o olhar que o aluno tem dos outros membros da
comunidade escolar, tendo em vista que esses mesmos são os responsáveis por manter as regras e zelar pelo
bom funcionamento da escola, porém, como disse uma aluna no encontro no qual se elaborou esse questionário:
“Nós não gostamos muito de regras” (MILENA, 2015).
Para dar início à parte prática do processo, tendo em vista as necessidades específicas deste grupo
escolar, foi determinado, antes de se iniciar o trabalho referente à memória e à construção de cena, que fossem
realizados procedimentos introdutórios da arte teatral. Pode-se perceber que “[...] existem várias maneiras de
coordenar processos artísticos, diferentes itinerários a serem seguidos num processo de encenação”
(MENDONÇA, 2013, p. 145); e começar por uma base teatral foi a opção que se tomou nesta pesquisa. Pode-se
considerar, para entender essa opção tomada, que era o primeiro contato com a arte teatral para boa parte dos
alunos pertencentes ao grupo. Segue-se nisso à pedagoga teatral Ana Carneiro (2013, p. 38), quem discorre sobre
a necessidade de, ao se iniciar um procedimento, realizar-se um momento de ambientação do trabalho, “[...] como
um período de construção de uma primeira base”, a qual vai se integrando com as escolhas posteriores com
respeito, nesse caso, ao trabalho da memória.
Foram realizados durante dois meses: jogos, exercícios, experimentações e estímulos para o trabalho
de dicção, projeção, níveis, planos, tônus, profundidade, forma, ritmo, velocidade, palavras de valor e entonação,
trabalhando corpo, voz, espaço, tempo e texto com os alunos do grupo de teatro.
Sobre quais territórios estimular as memórias para a criação da cena? Tomando como base o fato
de que “[...] o teatro pode fazer a conexão entre o trabalho desenvolvido em sala de aula com as diferentes
realidades vividas pelos alunos além dos muros da escola” (BENEVIDES, 2013, p. 168), mostra-se que a relação
entre sala de aula e experiências vividas podem acontecer através da cena teatral.
Os laboratórios foram divididos nas seguintes experimentações: O primeiro laboratório experimentado
foi denominado Memórias de brincadeiras, pois nele foram investigadas as brincadeiras que aconteciam nas escolas.
O segundo laboratório de criação foi denominado Memórias de desejos, o qual se destinou à investigação cênica dos
desejos e vontades que existem no contexto da escola, pensando, assim, de que forma o que se foi desejado na

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escola/por conta da escola se transformou em memória e apontou possibilidades para a criação de cenas. O terceiro
laboratório de criação foi denominado de Memórias de sujeitos da escola, o qual teve como base de investigação a
percepção das memórias que se relacionem com os indivíduos da escola, os indivíduos que a compõem e as relações
e diálogos entre eles. O quarto laboratório de criação foi denominado Memórias dos dedos; esse nome foi sugerido
por uma aluna, pois esse laboratório tem relação com o ato de apontar os defeitos, rir das deficiências, mostrar as
falhas, as imperfeições que são comuns dos seres humanos. O quinto laboratório de criação teatral foi denominado
Memórias secretas e segredos. Essa delimitação de memórias dá-se pelas situações proibidas que ocorrem dentro da
escola, as quais logo se tornam segredos, pois não podem ser compartilhadas com todas as pessoas. O sexto
laboratório de criação foi denominado de Memórias relacionais, as quais delimitam as memórias que fazem alusão à
relação dos alunos com seus pares. Eles com eles mesmos. Amizades, brigas, namoros. Memórias compartilhadas
dos que ocupam a mesma função dentro da escola, porém cada um tem o seu mundo de particularidades. O sétimo
e último laboratório de criação desta investigação foi denominado de Memórias da saudade, tendo em vista que foi
afirmado pelos alunos que, ao se explorar as memórias da escola em geral, percebeu-se que todas as vivências
que aconteceram naquele ambiente, em um curto tempo, deixarão de acontecer.
Cada jogo, exercício, experimentação ou estímulo recebeu dos alunos uma intervenção de sua
complexa subjetividade, com suas singularidades e particularidades. Assim, vale analisar a influência das memórias
dos educandos na construção de cenas. Uma aluna dissertou sobre suas impressões quanto à cena da criação:

O que eu achei mais legal durante os laboratórios de criação com a memória foi que a gente podia mostrar de
várias outras formas o que estávamos querendo. [...] No teatro, tem várias formas da gente dizer na hora que
está criando, os mais fáceis são falar e escrever, porque desses todo mundo já está acostumando, os outros são
fazendo o que você quer mostrar, e existem vários jeitos, ao invés de simplesmente ler ou ouvir, pode ver, sentir,
tocar e diversas outras coisas. [...] o teatro deixa a gente fazer de vários jeitos, e isso é legal, porque tem coisa que
a gente não consegue falar com a boca, a gente quer falar com o corpo, quer falar com o coração, ou, às vezes, a
gente nem quer falar, quer só quase falar e deixar que a pessoa pense no que a gente quase falou, mas não disse.
(MILENA, 2015, anotações do Diário de Bordo, 14 de junho).

As criações nem sempre precisam explicitar o que são, gritar qual a sua forma e o que representam,
mas podem simplesmente sugerirem, incitarem, essa qualidade polimórfica da cena. O produto, a obra de arte, o
ponto de chegada, é fruto do processo, porém nunca se sabe como será a viagem e o que acontecerá nela.
Nesse contexto, pode-se afirmar que o teatro pode contribuir com a transformação pessoal e social,
como previsto no PPP da escola (MARACANAÚ, 2014, p. 17). Em função do trabalho da investigação da
memória através da cena, o aluno se apresenta como um ser reflexivo, que olha para suas memórias e consegue,
a partir delas, perceber o hoje, tornando-se também uma pessoa crítica; tópico também previsto no PPP da
escola (MARACANAÚ, 2014, p. 17).
Alguns outros aspectos que foram percebidos durante a realização do processo de exploração cênica
podem ser também apontados, porém esses não estão contemplados nem previstos no PPP da escola. Um exemplo
foi a percepção intrapessoal que os estudantes desenvolveram; esses exercícios ajudaram os aprendizes a se
perceberem como indivíduos, fazendo com que se entendessem, desse modo, como sujeitos que formam uma
escola através de suas percepções e subjetividades. Deve ser levantado também o aspecto relativo às relações
interpessoais, ou seja, questões relativas aos hábitos relacionais e comportamentais dos alunos para com seus pares
e para com os outros colegas membros da comunidade escolar, em que, por meio da própria prática teatral,
percebem-se como participantes de um jogo coletivo.
As peças estão na mesa, as cabeças estão quebradas, fragmentos de memórias experimentadas em
cena jogados em meio ao teatro. Agora, o momento é de encaixar – ou não – as peças. Após a etapa dos
laboratórios, na qual a memória foi experimentada e experienciada através de diversas atividades, jogos,
experimentações, propostas e provocações, o material cênico realizado foi colocado em mesa para que fosse
cartografado, marcando e mesclando territórios e regiões, borrando fronteiras e limites, fazendo com que, através
da aglomeração das produções com temáticas aproximáveis, fosse preestabelecido o rosto do espetáculo. Vale
perceber que:
No Brasil, no que se refere a experiências de montagens com alunos do ensino fundamental e
médio, ainda são escassas as pesquisas e bibliografias que abordam o tema e sua relação com

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exercícios, jogos e técnicas propostos no ensino do teatro na realidade escolar, apesar de elas
ocorrerem. (MENDONÇA, 2013, p. 124).

Tratando-se de uma montagem com alunos de ensino fundamental, comunga-se com a afirmação da
escassez de literaturas e referências para serem trabalhadas na montagem de um espetáculo na escola. O ato inicial
da montagem foi a criação da dramaturgia do espetáculo a partir do experimentado em cena. Como no processo
conduzido por Mendonça (2013, p. 131), “A dramaturgia era pensada como uma escrita da cena que dialogava com
o material produzido nos exercícios e nas improvisações pelos alunos como artistas pensadores”. Um dos
instrumentos utilizados para dar base ao texto dramático construído para a realização do espetáculo foram os diários
de bordo, nos quais estavam contidos registros das experimentações, textos das improvisações e das imagens que
foram propostas.
As cenas foram divididas das seguintes formas: Cena 00 – Acorda menino, trata do ato de acordar e
arrumar-se para ir à escola. Cena 01 – Brincando de escola, aborda as brincadeiras que os alunos praticam na escola,
bem como desdobramentos poéticos sobre ele. Cena 02 – É hora de estudar, pautada numa construção musical que
coletou sonoridades da escola e regida pelos sinais sonoros, executando movimentos que abordam a rigidez do
aluno ao relacionar-se com a escola e suas formas. Cena 03 – Dança das bolinhas, exploração corporal baseada numa
guerra de bolinhas de papel como comum na sala de aula. Cena 04 – O que eu quero ser..., cena que, através de uma
reflexão sobre o passado, projeta o futuro e aborda os sonhos formativos e sentimentais dos alunos. Cena 05 – O
povo da minha escola, trata dos tipos de professores e estudantes, combinando-os em situações cotidianas da sala de
aula. Cena 06 – Ser apontado, aborda o bullying e as repressões que os discentes sofrem na sala de aula por parte dos
outros indivíduos da escola. Cena 07 – Ninguém é perfeito, aborda as brincadeiras e apelidos que os alunos fazem
com os “defeitos” de seus colegas. Cena 08 – Âmago, é uma proposta de estilística coreográfica em que os
educandos movimentam-se em dupla um sobre os pés dos outros. Cena 09 – As artimanhas da escola, fala sobre as
artimanhas e danações que praticavam durante a escola. Cena 10 – Quer namorar comigo?, trata dos namoros proibidos
que acontecem na escola. Cena 11 – Lembranças fragmentadas, realizada em interação com um videoslide produzido
com a junção de imagens de autorretratos com memórias da escola produzidas pelos próprios alunos. Cena 12 –
Saudades do que ainda nem se foi, cena também de interação com videodepoimentos de alunos que relatam sobre a
definição de escola, faz alusão ao apagar das velas com o ato de se desvincular da escola na formatura.
As ordens de cada cena foram pensadas para mesclar cenas cômicas e cenas mais densas, seguindo
também um percurso que se aproximasse dos acontecimentos na escola. Intituladas pelos alunos, as cenas
receberam esses nomes tendo em vista as temáticas e memórias que eram problematizadas em cada uma delas.
Com o esboço de dramaturgia finalizada, foi iniciada a montagem das cenas, sendo inicialmente trabalhada a partir
das imagens que foram propostas durante as experimentações.
Com o espetáculo montado, as cenas com suas imagens, propostas de marcações e movimentações,
adereços de cenas, cenários e figurinos escolhidos, textos com suas entonações e palavras de valor delimitadas, era
hora de repetir as cenas já prontas, a fim de afiná-las, ou seja, os ensaios da etapa final. A repetição, o ensaio de
cada cena, é muito importante para que se ajuste o que seja necessário. É nesse procedimento complexo que
acontecem outras transformações, dilatando a obra já montada. O fato de o espetáculo estar montado não quer
dizer que ele esteja finalizado, existem transformações e ajustes que precisam ser feitos até a concepção do artefato
artístico.

3 O ESPETÁCULO Rastro
Laboratórios, montagem, ensaio, eis que o espetáculo está “preparado” para ser exposto. A ansiedade
fazia parte do rosto dos alunos, ao mesmo tempo que desejavam incessantemente por aquele momento. A obra
teatral foi levada ao público no dia 11 de outubro de 2015, no teatro da Sociedade Artística Maranguapense7. Ao
chegar na apresentação, pode-se refletir com Benevides (2013, p. 152), quando comenta e se pergunta:
A ação teatral, ou seja, a apresentação pública, ou o compartilhamento com espectadores,
decorreu de processos de criação trabalhados em sala de aula. Pensando nestes dois momentos
do fazer teatral, o processo e a apresentação, problematizam-se as seguintes questões: é possível

7 Posteriormente houve outras apresentações do espetáculo.

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que haja uma conexão entre processos de criação e ações teatrais apresentadas para espectadores
que não integrem o grupo-sala?

Assim como no processo citado por Benevides, a apresentação do espetáculo denominado Rastro
aconteceu a partir do processo de criação ocorrido dentro da sala de aula e também era acompanhado pela dúvida
de se o espetáculo geraria uma conexão com os espectadores que não estiveram presentes durante o processo de
criação.
Sabe-se que fazer teatro não é só apresentar espetáculo, porém apresentar resultados cênicos é
culminar o processo de criação e mostrar para além dos produtores o que foi produzido. De fato, vale considerar
que “As experiências que dão conta de processos em sala de aula e de apresentações públicas são bastante
relevantes no ensino do teatro” (BENEVIDES, 2013, p. 152). O aluno, após passar pelos procedimentos de
construção de cena, consegue ainda relacionar-se com o público e absorver essa experiência de jogo com os
espectadores, relacionando-se agora com outros indivíduos para além da sala de ensaio.
A experiência de apresentar o espetáculo e principalmente a experiência de apresentá-lo fora da escola
é uma experiência de pôr-se em movimento, físico e ideológico, movendo-se para outros lugares, os corpos, as
mentes e as possibilidades. “Será possível agregar aos processos criativos desenvolvidos em sala de aula o
compartilhamento com plateias, possibilitando a fruição estética para além dos muros da escola, diluindo a
dicotomia processo e produto?” (BENEVIDES, 2013, p. 154).
Ao se trabalhar com as memórias dentro da escola, fez com que a sensação de pertença ao local
fosse sentida por diversos espectadores, pois as percepções de mundo dos alunos sobre a escola assemelhavam-
se às dos espectadores no período em que estes estavam na escola. É como se fossem jogados em cenas sinais
e códigos referentes a um lugar-comum, tanto aos que apresentam como aos que assistem, que é a escola.
Segundo alguns espectadores, o que aconteceu não parou no sentimento de nostalgia pertinente aos tempos
escolares, naquelas situações existia uma provocação à reflexão, em que o espectador era convidado a analisar o
espetáculo questionando as mesmas. Nesse sentido, foi comentado, por exemplo, que “É aquele teatro que nos faz
questionar situações e voltar no tempo” (Debate pós-espetáculo, 2015, 11 de outubro). Evidenciando que o espectador
não é só convidado a rememorar, mas que a questionar, criticar e refletir sobre o que está rememorando. Além
das questões que tratam da memória, da escola e do teatro, outros espectadores se remeteram a questões mais
profundas, afirmando que “Há muita questão política, há questão para pensarmos e repensarmos qual é a importância de ter
arte na escola. Por que tem que ter arte na escola? Por que tem que ter teatro e dança na escola? Por que tem que ter música na escola?”
(Debate pós-espetáculo, 2015, 11 de outubro).

4 REVERBERAÇÕES EM RASTROS
Para alguns discentes, foram os primeiros contatos com o teatro propriamente dito, uns nunca
haviam feito teatro, outros sequer tinham visto teatro na vida. O processo de criação da cena permitiu que o
estudante pudesse, através da prática, explorar conhecimentos que são referentes ao teatro, como o trabalho
com corpo, voz, texto e espaço. Entendendo diversos conceitos, na teoria e na prática, que fazem parte dessa
arte, com seu vocabulário específico, conhecendo também os seus materiais, esses relacionados à poética cênica
aqui desenvolvida, no entre do teatro, memória e educação. O que aqui se percebe é que “Aprender, portanto,
significa relacionar-se com o conhecimento e principalmente apropriar-se dele, a partir das plausíveis novas
(re)significações de cada sujeito de aprendizagem” (MUNDIM, 2013, p. 175). Essa relação ocorre dentro do
processo de criação, dado o contato e o diálogo direto realizado com a cena e seus componentes.
Os indicativos que apontam para as relações interpessoais, intrapessoais e o trabalho coletivo
evidenciam a capacidade que o processo de criação na escola tem de afetar o conhecimento pessoal sobre si, o
conhecimento das outras pessoas e o conhecimento da relação de si com o outro. Esses aspectos indicativos do
processo de criação foram observando como foi se modificando a relação dos alunos consigo mesmos e com
os outros, durante as improvisações e criações de cena.
Observou-se que a criação, tendo como matéria-prima a memória, permite ainda uma
autoavaliação constante durante o procedimento investigativo cênico, no qual, pelo estímulo da criação, existe
uma investigação de si através das próprias memórias. O que se percebe é que a sala de aula é o “Lugar onde

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se narram memórias e histórias; onde se exercitam a escuta e a observação, o olhar apurado e perceptivo”
(MUNDIM, 2013, p. 174). Essa escuta é de fundamental importância para evidenciar a coletividade e o
relacionamento entre os alunos, dado que, para se criar em coletivo, é necessário ouvir e analisar o que foi
escutado para que seja construída unificadamente a obra, caso contrário, ao invés de uma criação em conjunto,
haveria diversas criações individuais ou, se não houver acordo, talvez nem haveria criação. Os laboratórios de
criação ganharam uma organização poética, estética e política, uma estrutura singular e, ao mesmo tempo,
plural, ganhando um rosto, um perfil de criação que constituiu a obra, confirmando o que pensa Salles (2013,
p. 31) quando diz: “Cada processo é singular”.
Aqui se revela uma potente instância dos alcances pedagógicos do processo de criação, em que:
A criação pertence ao mundo do prazer e ao universo lúdico: um mundo que se mostra um jogo
sem regras. Se estas existem, são estipuladas pelo artista, o leitor não as conhece. Jogar é sempre
estar na aventura com palavras, formas, cores ou movimentos. O artista vê-se diante das
possibilidades lúdicas de sua matéria-prima. (SALLES, 2013, p. 90, grifo da autora).

O aluno tem em suas mãos um mundo de possibilidades criativas que ele pode administrar através
de suas próprias propostas, sendo sempre influenciado por suas percepções para com o criado.
Das reverberações e alcances pedagógicos do processo de criação no entre da memória e do teatro,
ressaltaram-se questões relativas à identidade e ao pertencimento. Os alunos afirmavam, por exemplo, que a melhor
parte de trabalhar teatro e memória foi “[...] ter este sentimento de superação” (LÚCIA, 2016, entrevista, 18 de março).
O que se começou a perceber foi que, através do teatro, os acontecimentos do passado eram agora encarados de
uma forma mais positiva pelos aprendizes. E, sobre aspectos negativos dessa relação com a memória, indicavam o
fato de ter que realizar cenas as quais eles haviam vivido, mas nas quais não tinham se sentido bem (LÚCIA, 2016,
entrevista, 18 de março). Para um dos alunos, foi como “Relembrar de certas coisas que você não quer lembrar” (MATEUS,
2016, entrevista, 25 de março). Foi complicado, disse outra aluna, “[...] revelar o que estava somente na sua mente”
(MILENA, 2016, entrevista, 18 de março).
Entre outras reverberações, um dos pontos bastante salientados, agora por outros professores do
colégio, foi a melhoria do comportamento dos alunos que faziam parte do projeto. Também foi notada pela gestão
do colégio a redução dos registros de indisciplina desses estudantes, chegando-se inclusive a zerar os registros de
indisciplina de alunos que tinham em média 10 registros mensais. Os próprios discentes, como expressam os diversos
comentários dos mesmos, reconheceram que o “[...] comportamento melhorou” (MILENA, 2016, entrevista, 18 de
março), que “[...] o teatro mudou o meu comportamento, mudou a maneira de agir, o meu falar, mudou tudo. Vejo a vida de um jeito
que não via. O teatro serviu como fator de mudanças” (MARIA, 2016, entrevista, 27 de março) e “O teatro acabou mudando o
comportamento dos alunos, dos que faziam e dos que assistiam” (RENATA, 2016, entrevista, 27 de março). A autopercepção
de mudança de comportamento dos alunos revela a proporção da mesma, em que, nos ensaios, nos intervalos e na
própria sala de aula, os educandos comentavam sobre essa mudança de comportamento. Uma aluna, por exemplo,
afirmou que:

As pessoas que eram mais danadas8 mudaram o jeito de ser. Elas viram que não tinha necessidade nenhuma de
fazer aquilo, não tinha necessidade de se danar, de responder, não tinha necessidade de não fazer a atividade; já
que está dentro da escola, vamos fazer o que é para fazer em uma escola: estudar. Ah, de pichar a escola também.
(MARIA, 2016, entrevista, 27 de março).

Com relação a outro aspecto comportamental, também foi notado pelos professores e pelos próprios
alunos que eles passaram a ser menos tímidos. A experiência de estarem à frente e à mostra fez com que os
discentes se habituassem à situação de exposição, fazendo com que eles mesmos percebessem o seu processo de
desinibição.
Desde o início do processo criativo, percebeu-se que era necessário que os discentes fossem capazes
de emitir suas opiniões sobre suas próprias memórias, para que fosse realizada a construção das cenas. Contudo,
quando um aluno era convidado a falar, dava-se a situação comum de que um primeiro discente fala e os outros
reproduziam o que aquele educando tinha falado. Da mesma maneira, dava-se inicialmente nos encontros do grupo

8 Danado é uma expressão nordestina para definir uma pessoa agitada, dada às diabruras e traquinagens.

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de teatro, o fato de que um aluno emitia sua opinião e os outros faziam comentários que partiam dos mesmos
princípios e pontos de vista apontados pelo aprendiz. Eles estavam a reproduzir discursos e não refletiam, não
criticavam e nem produziam seu próprio ponto de vista. Talvez o medo de errar ou o medo de falar bobagem
tolhia a fala dos estudantes.
Com a continuação dos encontros, aos poucos os educandos foram emitindo suas opiniões e
demonstrando estarem mais críticos sobre os assuntos apresentados, gerando inclusive discussões, em que se
apresentavam posições distintas para uma mesma situação. Essa percepção crítica foi transformando o grupo,
fazendo com que cada um criasse a sua visão dos acontecimentos e não simplesmente a reproduzisse. Nesse
contexto, pode-se pensar que “A essência do teatro-educação é a transformação que é partilhada por todo o
grupo durante o trabalho. O elo de confiança que se estabelece no grupo é fundamental pa ra o crescimento
dos alunos” (BENEVIDES, 2013, p. 166). De fato, quanto mais próximos eles se sentiam, mais à vontade eles
estavam para emitir suas críticas e seus pensamentos. Os momentos de discussões iam acontecendo e a cada
encontro eles se tornavam mais profundos no sentido de tratar com mais seriedade os assuntos referentes ao
processo de criação teatral no qual estavam imersos. Como escreve Benevides (2013, p. 167): “É fundamental
que o ensino de teatro propicie momentos de discussão em que os alunos tenham possibilidade de refletir
coletivamente, podendo problematizar e discutir o cotidiano e, ao mesmo tempo, manifestar desejos,
ansiedades, vontades, perspectivas”.
Apontar rumos, indicar caminhos, sugerir possibilidades, fazer com que o aluno tenha a percepção
de cada caminho aberto. Nesse sentido, a escola não se apresentaria como um lugar onde todos fazem tudo
igualmente, mas o encontro provocaria conjuntamente a produção de novos conhecimentos. Os novos
conhecimentos adviriam das vivências acontecidas, lembradas, e o conhecimento nascido da vivência teatral, como
ocorreu em nosso processo, em que os problemas eram apresentados e cada um construía seu caminho de
respostas, no qual questionar foi mais importante e potente do que as próprias respostas. Foi no gerar questões
que se deu a potência desta pesquisa, na possibilidade de saber, na possibilidade de responder e também no
percurso que é feito até se chegar à resposta, caso se chegue à resposta, pois as questões já são suficientes para
aflorar diversos caminhos, deixando entrever sempre diversos rastros.

REFERÊNCIAS
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(3º e 4º ciclos do ensino fundamental). Brasília, DF: MEC, 1998.
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STRAZZACAPPA, Márcia. Empilhando carteiras à procura de um espaço vazio. In: CONGRESSO DE
PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 5., 2008. Belo Horizonte, Anais... Belo Horizonte:
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TELLES, Narciso (Org.). Pedagogia do teatro: práticas contemporâneas na sala de aula. Campinas: Papirus,
2013.

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CENA-SELF: O DISCURSO DE SI NA CRIAÇÃO TEATRAL DA ESCOLA

Maria Josélia de Sousa Pereira


joselia.ufc@hotmail.com
UFC

Resumo: Este artigo procura fazer uma reflexão do desenvolvimento de uma prática de criação teatral na escola
intitulada SELF, a partir dos materiais autobiográficos e “discursos de si” trazidos pelos alunos. O projeto foi
realizado na Escola Estadual de Educação Profissional Professor César Campelo, na cidade de Fortaleza, CE.
Participaram do projeto alunos do 2º e 3º ano desta instituição. O processo criativo desenvolvido resultou na
instalação performática Self, apresentada no espaço da escola, partindo da investigação de uma linha de criação
mais performativa, intercruzando as linguagens do teatro e da performance. A partir de jogos, laboratórios,
construção de cenas e entrevistas os alunos foram estimulados a pensar através do espaço das ‘autobiografias’,
quais tipos de percepções cada um tinha sobre si mesmo e sobre a construção da própria história, o que extraia de
suas experiências e como se dava esse processo de relação entre Vida e Arte, no sentido de traduzir suas
experiências/discursos para a cena. Esta pesquisa, portanto, surge a partir da necessidade do movimento da
invenção e reinvenção dos discursos do sujeito, no que tange às formas de coerção e normatização sociais e como
estes podem ser problematizados, a partir dos aspectos sensíveis, pelo espaço cênico. A instituição escola, lugar de
desenvolvimento desta investigação é questionada no sentido de que muitas vezes detêm o poder de agir de forma
direta sobre a conduta dos indivíduos, limitando, em muitos casos, os momentos de subjetividade em prol de uma
visão tecnicista do ensino. A partir do terreno fértil das histórias de vida, das experiências vivenciais e sensitivas de
si, o aluno teve possibilidades de criação de outros discursos e novas percepções da vida e da arte tendo o teatro
como um espaço que estimula reflexões subjetivas e estéticas.
Palavras-chave: Self. Teatro. Autobiografia. Discurso. Subjetividade. Escola.

Abstract: This article seeks to reflect the development of a practice of theatrical creation in school entitled SELF,
from autobiographical material and "speeches himself" brought by the students. The project was carried out in the
State School of Vocational Teacher César Campelo in the city of Fortaleza, Brazil. Participated in the 2nd and 3rd
year students project of this institution. The creative process developed resulted in the performative installation
Self, presented in the school space, building on the research of a line of more performative creation intercruzando
languages of theater and performance. From games, laboratories, construction of scenes and interviews the
students were encouraged to think through the 'autobiographies' space, what kinds of perceptions each had about
himself and about the construction of history itself, which draw from their experiences and how was this process
relationship between life and art, to translate their experiences / speeches to the scene. This research, therefore,
arises from the need of the movement of invention and reinvention of the subject of discourse, with respect to
forms of coercion and social norms and how these can be problematized, from sensitive aspects, the scenic area.
The institution school, place of development of this research is questioned in the sense that often have the power
to act directly on the conduct of individuals, limited in many cases, the moments of subjectivity in favor of a
technical view of teaching. From the fertile ground of life stories, the experiential and sensory experiences of you,
the student had created opportunities for other discourses and new perceptions of life and art with the theater as
a space that stimulates subjective and aesthetic considerations.
Keywords: Self. Theater. Autobiography. Speech. Subjectivity. School.

1. CONTEXTUALIZANDO OS PERCURSOS
O presente artigo apresenta uma reflexão e debate sobre as experiências resultantes da pesquisa que
desenvolvi no PROFARTES (Mestrado Profissional em Artes) na Universidade Federal do Ceará. O projeto,
intitulado Self9 foi desenvolvido na Escola Estadual de Educação Profissional Professor César campelo, espaço

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onde trabalho como professora efetiva de Artes. Na mesma instituição, além de dar aulas curriculares, orientei um
projeto artístico-pedagógico com a participação inicial de 15 estudantes (número que sofreu alterações ao longo
do processo), alunos de 2º e 3º ano da instituição. A escola citada conta com uma grade curricular que integraliza
tanto o ensino básico quanto cursos técnicos de diversas áreas, visando a formação profissional voltada para a
atuação do estudante no mercado de trabalho. Com este grupo de alunos iniciei o meu processo de pesquisa do
Mestrado profissional em Artes, tendo como fio condutor do processo criativo em teatro as Autobiografias e
discursos de si10 que cada aluno trazia, atravessados por suas histórias de vida, memórias e experiências, na busca
constante da construção e reconstrução de um self11 por cada aluno por meio dos discursos que eram feitos pelos
mesmos.

Os alunos eram estimulados a narrar, compartilhar e refletir sobre suas histórias de vida, em vistas de
tornar o grupo cada vez mais próximo a partir das identificações e amizades que o processo possibilitava. As
questões iniciais do projeto objetivavam trabalhar o discurso de si a partir do estímulo: “O que vocês pensam e
sabem sobre vocês”. É importante salientar que as etapas não seguiram uma lógica rígida de ações, pois estas
muitas vezes se atravessaram, se complementaram, fugiram ao script, já que a própria ideia de fazer um projeto
onde os participantes falarão de si mesmos já tira todo o sentido de uma narrativa organizada e ordeira, dada nossa
incapacidade de sermos coerentes e centrados e à nossa identidade descentrada e fragmentada (HALL, 2015).

Cruzando todas as etapas de desenvolvimento do processo, foram realizadas entrevistas, rodas de


conversas e momentos de avaliação das oficinas, onde os alunos-atores expressavam suas visões sobre a temática
e o desenvolvimento do projeto. Com encontros regulares, elaborei algumas ações performáticas, sensoriais e
conceituais que foram norteadas por estímulos dados em busca de uma relação investigativa da própria história de
vida dos alunos, onde traziam experiências e visões de si de maneira poética, estimulados por perguntas/indicações
que funcionaram como estímulos para cada estágio criativo. Apresentarei de forma esquematizada um panorama
geral de como o processo foi sistematizado em vistas de clarificá-lo ao leitor:

1. Ações cênicas e audiovisuais: produção de textos, vídeos e criações performáticas.

Nesta ação, os atores foram instigados a responder a pergunta: “Quem sou eu”? a partir de diversas
intervenções. Em um primeiro laboratório trabalhamos com produção de vídeos, individuais e coletivos, onde
eles buscavam falar de si, de suas experiências e memórias, numa tentativa de se reconhecerem, desconstruindo
algumas visões e elaborando outros discursos. Em outros encontros, o processo foi direcionado a elaboração
de textos, de cunho livre ou com entrevistas semiestruturadas que, assim como os vídeos, discutiam questões
referentes a memórias, experiências e retratavam as memórias marcantes de suas vidas e os discursos que

10 Para Paulillo (2004): “O Discurso de Si se define como sendo aquela modalidade de discurso em que o próprio sujeito
enunciador aí se representa como o objeto do discurso: no Discurso de Si, o "eu" fala de si mesmo num processo auto-
reflexivo”. Essas reflexões que os sujeitos expressam a partir desses discursos são constituídas a partir de suas histórias de
vida, “relatos de experiências, lembranças de acontecimentos vivenciados, e de enunciações de estados subjetivos,
pensamentos e sentimentos experimentados pelo sujeito no passado ou mesmo no presente em que se enunciam”.
11 Apesar de originalmente self ser um termo advindo da área psicológica, apresentando os elementos que formam, interna e

externamente a personalidade do sujeito, o conceito de self será abordado e discutido aqui a partir da visão dos
construcionistas, onde o termo é tratado como um “discurso, uma construção social, produto das práticas discursivas nas
quais as pessoas dão sentido ao mundo e a suas próprias ações”. (GUANAES E JAPUR, 2003, p.135) O uso do termo e sua
relação com o trabalho serão minuciadas no decorrer dos capítulos.

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traziam sobre eles mesmos. Era comum, por exemplo, eles dizerem que usavam máscaras, que não
demonstravam o que eram nem o que sentiam, ou mesmo dizerem que não se conheciam, não podendo
afirmar muitas coisas sobre si. Esta primeira etapa gerou um profundo processo de reflexão sobre a condição
do sujeito de ser ‘assujeitado’ pelos contextos sociais em que se inserem, pois eles foram instigados a refletir
sobre o Eu-Social, mostrando como eles se viam nas diversas instâncias sociais (família, escola, comunidade) e
como eles enxergavam a si no pessoal, em seu lado mais singular. A partir desses estímulos, começamos a
desenvolver a noção de diferentes discursos, diversas identidades, sujeito fragmentado, descentrado e caótico.
Ainda dentro desta perspectiva de ação de discurso, os alunos foram estimulados a trazer criações cênico-
performáticos de cunho livre, tendo como referências textos e vídeos produzidos em processo, onde eles, a
partir da cena, trouxessem visões de si. Essas ações cênicas foram diferenciadas. Alguns cantaram, outros
dançaram, alguns dublaram, outros contaram histórias, outros trouxeram objetos e falaram sobre eles, etc. Em
um tempo mínimo de 03 minutos eles fizeram outros discursos e falaram da própria história a partir de cenas.
Algumas dessas ações foram reformuladas como material de apresentação final.

2. Ações conceituais
Nesta etapa de processo, os alunos foram estimulados a falar sobre si a partir dos objetos materiais que
constituem suas memórias. Remetendo ao Pensamento de Marcel Duchamp (1960), quando este fala da
importância da atividade mental em detrimento da obra final, pretende-se aqui uma valorização do conceito
mais do que o objeto em si. Os alunos trouxeram materiais diversos (Fotografias de infância, peças de roupa,
brinquedos, livros, cd’s/dvd’s, etc), a fim de um resgate, pelo objeto, das experiências/memórias de cada um.
A partir da realização de um laboratório, os alunos um a um, falavam sobre seus objetos, a partir da narrativa
oral e depois eram estimulados a improvisar com eles, tendo como ponto de partida as memórias que foram
aludidas com o objeto.
3. Ações autobiográficas e Self

Nesta etapa de trabalho, já cientes de que o processo trabalhava as histórias de vida dos sujeitos e principalmente
como essas experiências ajudam a formá-los, fizemos um laboratório de criação onde os participantes reviveriam
suas histórias de vida a partir das narrativas, de forma individual e em grupo. O processo ia ganhando uma forma
mais deslocada, pois além de trabalharmos com a descrição (dizer a autobiografia), enfatizamos a construção dos
discursos, onde os alunos tentavam alcançar suas singularidade e dizer o que pensavam sobre si mesmo, tentando
fugir ao modelo coercitivo imposto pela sociedade. A partir disso, começamos a pensar em títulos para nosso
processo, algo que remetesse a ideia do que estávamos querendo construir. Daí, começamos a pensar a partir do
termo Self, na perspectiva de seu sentido primeiro, no que se refere a pensar sobre “si mesmo”. Fizemos algumas
experiências para esse objetivo:

Em um primeiro exercício, os alunos construíram uma breve Linha da Vida, ou linhas da vida, partindo do
entendimento de que nossa história não faz parte de um todo coerente e organizado. Nestas linhas, eles destacavam
suas experiências mais singulares e significativas;

Posteriormente, essas linhas da vida eram compartilhadas e algumas delas foram improvisadas a partir da utilização
de jogos;

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Os atores compartilharam experiências com o grupo, a partir de três estímulos: Experiência feliz, triste ou
engraçada. Depois disso, eles escolhiam as mais significativas para o grupo e apresentavam a partir de imagens,
etapa amparada numa sequencia de jogos do Boal, pertencente à categoria Jogos de Imagem.

Por último, eles foram instigados a improvisar uma cena coletiva utilizando como temáticas propulsoras (fatos de
suas histórias de vida). Ambientados cada um em determinado lugar do espaço onde trabalhávamos eles
estabeleciam uma ordem de interação a partir da linguagem e da ação, sem perder de vista o objetivo principal que
era a criação de discursos de si. Algumas partes dessa ação transformaram-se em cenas, especialmente quando eles
falaram da dificuldade de falar sobre si, admitindo que não se conheciam ou que mudavam o tempo todo.

4. Processo de montagem

Nesta etapa, que corresponde aos últimos meses do processo, pensamos em nossa prática ao longo
de 01(um) ano de trabalho, na busca de encontrar a melhor maneira de mostrar o processo ao público e em especial
para a comunidade escolar-alunos, professores, pais e núcleo gestor-espaço de desenvolvimento e discussão do
projeto. Daí, avaliamos que o caráter fragmentário do processo não se encaixaria em um espetáculo convencional
de teatro, portanto, este processo de montagem foi traduzido ao público relacionando-se a outras linguagens
contemporâneas, pela Instalação e Performance, visto que a pesquisa se desenvolve a partir de um processo
atravessado pela performatividade12 que contamina a cena contemporânea. Esta performatividade se afasta da linha
representacional mimética, propondo uma ação livre da representação, gerando outras possibilidades de leitura,
pois ela não mais representa e sim se apresenta, provocando um impacto corpóreo-sinestésico no espectador. Ao
estabelecer os parâmetros que diferenciam o teatro performativo do Teatro tradicional, Féral (2009), afirma que
“a performatividade (e o teatro performativo) insiste mais no aspecto lúdico do discurso sob suas múltiplas formas
– (visuais ou verbais: as do performer, do texto, das imagens ou das coisas)” (p. 207).

2. Ensino de Arte no contexto técnico-profissionalizante

Desde o seu surgimento na Educação Básica, o ensino de artes sofreu diversas modificações quanto
a suas funções e procedimentos metodológicos, sendo ainda um terreno de incansáveis lutas de Arte-Educadores
comprometidos com a qualidade de ensino dessa disciplina, a partir da reestruturação do tempo, do preparo de
qualidade dos profissionais que atuam na área e da ênfase em todas as linguagens artísticas. Apesar dos inúmeros
desafios do ensino de artes nas escolas do país, é inegável a importância formadora que a arte tem para a vivência
dos sujeitos, já que consiste numa área de conhecimento que reflete sobre a vida e as culturas, oferecendo
possibilidades de expressão e discurso de si, propondo autonomia e reflexão crítica a respeito de como se constitui
o mundo, política, social e esteticamente.

12 O conceito de performatividade é discutido por Josete Féral como um teatro que se assemelha ao pós-dramático, mas o
termo performativo é usado por se adequar melhor a seu caráter performático. No teatro performativo, o ator é chamado a
“fazer” (doing), a “estar presente”, a assumir os riscos e a mostrar o fazer (showing the doing), em outras palavras, a afirmar
a performatividade do processo. A atenção do espectador se coloca na execução do gesto, na criação da forma, na dissolução
dos signos e em sua reconstrução permanente. Uma estética da presença se instaura (se met en place) (Féral, 2008, p.209)

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O processo de ensino-aprendizagem muitas vezes exige do aluno a emissão de respostas prontas


acerca das próprias definições, forçando-o a se apresentar como um sujeito claro, livre de dúvidas e totalmente
consciente sobre quem é e aonde quer chegar, na busca de formar os futuros “campeões” bem-sucedidos,
independente se atenda ou não as necessidades subjetivas ou problematizem os conflitos vividos pelos estudantes.
A partir desse ponto de vista, enfatizo a importância do trabalho com o subjetivo, com os estímulos sensíveis e
expressivos dentro da escola junto a todas as disciplinas que formam o currículo, não somente com a disciplina
Artes. Para Alarcão (2001), a escola não pode ser pensada apenas como um espaço de preparação para a vida, mas
deve ser vista como a própria vida, como espaço primeiro para o exercício da cidadania. Deste modo, a escola,
como se apresenta hoje, não tem conseguido acompanhar os paradigmas e as complexidades do mundo atual, pois
corre o risco de valorizar uma lógica racional e disciplinadora, sem potencializar o sujeito. Essa disciplinarização,
para Foucault (1987, p. 176) é “permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a
condição de tornar ela mesma invisível”. Para o teórico francês, a escola seria mais um instrumento de exercício
das relações de poder, pois ela “torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo
o seu comprimento a operação do ensino. (...) que permite ao mesmo tempo medir e sancionar” (p. 155). Ao tratar
sobre os processos disciplinares, o autor afirma que essa sujeição não necessariamente será de ordem física
diretamente a partir do suplício, por exemplo. Ela pode agir sobre o material sem, no entanto, ser violenta, pois
essa sujeição é sutil e silenciosa.

Outro aspecto dos novos paradigmas que sustentam a educação na contemporaneidade é a busca
pela preparação dos alunos para as condições de trabalho, onde a escola reforça nos estudantes o desenvolvimento
das habilidades e competências para uma melhor inserção na vida profissional, desconsiderando, em muitos casos,
outros aspectos importantes inerentes à ação educativa. Durante o processo de pesquisa, quando os sujeitos foram
questionados sobre o papel da escola e a colaboração desta para a realização pessoal, um dos alunos respondeu:
“Bom, ela (escola) colabora para a preparação para o mundo do trabalho (...). acho que 100% do que eles visam é
o mundo do trabalho.” (S.M, 15 anos). A partir desse panorama, a Secretaria de Educação do Ceará-SEDUC-CE,
reconhece que a missão da escola profissional consiste em “dá maior amplitude à concepção do direito à educação
por criar condições para que se estabeleça um diálogo com o mundo do trabalho”.13 Esses alunos, entendidos
como “clientes”, recebem o ensino integral e técnico, onde a atenção está voltada quase essencialmente para o
êxito profissional deles, muitas vezes ignorando outros aspectos também de grande importância, como os anseios,
conflitos e as subjetividades dos estudantes. Comparando essa visão da educação profissional com o conceito de
educação trazido pelos PCN’S, podemos notar que esta última tem um apelo mais amplo no que se refere a
formação do indivíduo, não se restringindo somente ao mundo do trabalho.
Uma prática que tem a possibilidade de criar condições para que todos os alunos desenvolvam
suas capacidades e aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de
compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas
e cada vez mais amplas, condições estas fundamentais para o exercício da cidadania na
construção de uma sociedade democrática e não excludente. (BRASIL, 1997: p. 33)

No entanto, dentro dessas duas visões, nota-se o enfoque dado ao aprendizado dos conteúdos como
premissa para a intervenção social, seguindo o raciocínio de que aqueles que aprendem com mais propriedade os

13
Disponível em:
http://www.educacaoprofissional.seduc.ce.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12&Itemid=128

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conteúdos “transmitidos” pela escola terão maiores chances de conquista e ascensão de seu espaço social. Dentro
dessa mesma lógica, na escola profissionalizante, os alunos que têm mais propriedade das técnicas de sua área de
formação, melhores currículos e melhores notas têm maior chance de inserção no mercado de trabalho. Pode-se
dizer que esse contexto de ensino busca “disciplinar” o aluno conforme o contexto que ele vivenciará nas relações
de trabalho, a partir de uma perspectiva de representação e obediência sem consciência reflexiva.

De tal modo, é certo que ainda existam pensamentos propagados de que o corpo necessita ser
controlado e condicionado para que seja possível a boa convivência e o seguimento satisfatório da vida civilizada,
refletindo uma ideia histórica de que o corpo pode representar uma ameaça para a manutenção da organização e
ordem sociais. A escola também promove esse assujeitamento e normatização do corpo, conforme expresso nas
palavras de Milstein e Mendes (2010):

Na escola existe um constante e intenso trabalho em todos e em cada um dos corpos; existe ação
e esforço para transformar os corpos de acordo com formas concretas quanto a dimensões,
diferenças de gênero e idade, gestos, modos, comportamentos, vestuário, momentos de descanso
e atividade etc. E essas formas concretas tendem a produzir um corpo-sujeito social e escolar.
Esse trabalho também inclui a produção da interpretação desse sujeito sobre si mesmo e sobre
os outros. (p. 37)

Em meio a essa problemática, o ensino de artes pode ser um espaço potente para se pensar a
educação, com o destaque para as subjetividades, criatividade, imaginação e valorização das relações interpessoais
e intrapessoais. Para Fusari e Ferraz (2001), a prática do ensino de artes nas escolas brasileiras estão se dando de
maneira incorreta, pois não há uma consciência, por parte do professor, do quão complexo pode ser o
desenvolvimento desse aprendizado. Dessa forma, muitos professores propõem atividades que despotencializam
o valor da arte na escola, delegando-lhe um valor utilitário e decorativo, como seu uso para produzir as festas das
datas comemorativas na escola, decorar os ambientes físicos da instituição, etc. Para Barbosa (2012), torna-se
urgente ressignificar as práticas de ensino de artes na contemporaneidade, numa busca de sair da superficialidade
do ensino dessas práticas. De acordo com a autora:

Por meio da arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do


meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a realidade
percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. (p. 19)

O fator arte cria condições para refletir, a partir dos sentidos e do potencial criativo, como podemos
integrar a realidade, sem estar sujeito ao que ela determina, fazendo as próprias escolhas e fazendo uso de nosso
pensamento. Analisando brevemente esse contexto, a problemática do ensino de artes na escola se instaura: Existe
espaço para a experiência artística dentro da escola? Como trabalhar com os fragmentos, os paradoxos e
deslocamentos próprios do Teatro Contemporâneo em um espaço que privilegia a lógica, a ordem e a centralização
do sujeito? Como trabalhar a arte em contextos onde a formação técnica para o trabalho está em primeiro plano?

A arte e o processo artístico possibilitam ao sujeito um agir transformador, assumindo a função de


oportunizar novas percepções e desenvolvimento do sensível, a partir dos processos de criação, comunicabilidade
e subjetividade que só podem ser notados através da experiência artística significativa. O aluno se coloca como o
criador e a própria criação, fundidos em uma experiência de um processo fluido, inquietante e cheio de nuances,
como a própria vida se apresenta.

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Na perspectiva de produzir possibilidades frente ao contexto de um ensino marcado pela falta


subjetiva, a arte tem potência para transformar a lógica imposta e cultivada pela escola de pensar sobre as coisas e
os acontecimentos da vida como sequências lineares, justificadas e focadas em objetivos e metas, comprimindo os
seres humanos em seres ordenados, evitando-se o negativo, as situações duvidosas e limitando o mergulho em
determinadas situações e sentimentos que podem gerar o fragmento, o ilógico e o irracional. A partir desse
contexto, nas palavras de André (2004), a ação criativa é um processo que produz possibilidades, contrapondo-se
ao experimento científico que objetiva um produto acabado. Desse modo, a escola prepara seus alunos para
conseguirem os objetivos que convenientemente eles tenham, devendo sempre ser buscados a partir de uma razão
ordeira e dos pensamentos elevados, valorizando a competição tão bem disfarçada pela manutenção da autoestima.
Não há espaço para se pensar sobre as individualidades, as dúvidas e as contradições que os estudantes vivem,
sensações expressas pelos modos de subjetividades que os formam. De forma geral, a escola não privilegia
conhecimentos e formas de aprendizagem que não se encontrem sistematizados nos livros, cadernetas de estudos
e nem nas grades curriculares, justamente pela extrema necessidade de uma lógica linear e objetiva para entender
o mundo. Na realidade, trata-se de uma lógica logocêntrica que teme os desvios, pois estes são considerados
arriscados. De fato, os são, porém alguns destes são importantes para atender a esta complexidade da subjetividade
humana. Em outras palavras, a escola corre o risco de menosprezar momentos em que os sujeitos alunos
demonstram suas complexidades, ignorando como eles agem, pensam e o que desejam falar.

3. Teatro e Discurso: construção e desconstrução dos Selves

O conceito de Self parte originalmente da psicologia, que o define como as disposições internas dos
indivíduos, que constitui a cada um o que é, como alicerce centralizado e uma força formadora da personalidade
do sujeito. No entanto, esse termo abrange várias discussões e possui diversos sentidos, inclusive dentro das
abordagens psicológicas. De acordo com Costa (2010) “tanto na psicologia, como na sociologia ou na filosofia, o
termo self está sempre relacionado aos valores intrínsecos à pessoa humana e estes valores refletem para muitos
autores o contexto social no qual estamos inseridos”. (p. 63) Para Santos e Gomes (2010), a questão do self tem
sofrido muitas mudanças de perspectivas na psicologia, passando de um self estruturado e imutável a um self
“descentralizado, narrativo e em movimento, ou seja, em constante processo de mudança” (p. 354).

O Self do qual trata este trabalho está amparado aqui de acordo com a visão construcionista, que o
concebe enquanto uma força formadora dos indivíduos que surge a partir da interação do sujeito com o meio
cultural, sendo modificável e possuindo um caráter de constante mudança. Portanto, a subjetividade é formada a
partir dos significados gerados nas relações entre as pessoas.

Em primeiro lugar, torna-se pertinente estabelecer as relações entre o Self deste trabalho e o Selfie14
como autorretrato através de câmeras fotográficas. O Selfie é algo decidido momentaneamente, por um momento
caracterizado pela distração, configurando-se como instante rápido e efêmero que se concretiza pela fotografia,
onde geralmente não se materializa, mas é compartilhada pelos canais virtuais - as redes sociais- gerando outras
formas de ver o mundo, provocando diferenças e hibridações. O selfie, no mundo contemporâneo, seria um

14
O termo Selfie vem da derivação abreviada da palavra inglesa “self-portrait” que significa autorretrato.

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símbolo dessa sociedade momentânea, instável, que reflete os valores impostos pela mídia e reprocessa os
princípios de um capitalismo frenético. Cohn (2015), afirma que o selfie tem relação com uma característica
obsessiva do homem pós-moderno de se fazer aparecer através das redes sociais, como se fora dos meios
midiáticos que propagam a imagem nós não existíssemos. A autora destaca que “através do selfie a pessoa pode
construir sua imagem, criar um personagem, uma nova identidade, mesmo que virtual, faz recortes de fatos e
situações, e dispara aquilo que deseja expor sobre si e seu cotidiano” (p. 07). De certa forma, esses termos possuem
uma correlação, já que podemos compreender que o selfie fotográfico seria uma das formas de derivação do Self
social, no que se refere às construções de discursos e identidades. Se entendermos que o self do indivíduo é
formado a partir das relações sociais e das mudanças culturais a que o sujeito está exposto, o selfie (autorretrato)
seria a representação, por meio da imagem, desses discursos, dessas ‘aparências’, dessa vida midiatizada e fictícia,
desse ser que busca mostrar-se outro a partir dos recursos imagéticos e cybernéticos, ou seja, dessa constante
criação de discursos e identidades possibilitadas pelos meios tecnológicos. Selfie seria, deste modo, a representação
de algo que em alguns casos não condiz ou mesmo deforma uma realidade. O selfie, enquanto registro imagético
nos possibilita pensar em como se dá a construção das subjetividades em um mundo cada vez mais informatizado
e tecnológico, onde as pessoas encontram-se cada vez menos propícias ao exercício do sensível.

A escola, neste sentido, seria um modelo propulsor do Self, já que a noção desse termo está
relacionada ao nosso eu social e a como nossas interações culturais sugerem as
criações/construções/desconstruções das identidades, não sendo estas vistas como elementos fixos, rígidos, não
como modelos, mas principalmente como dinâmica e movimento (HALL, 2015).

É impossível dizer quem eu sou. Já mudei e vou continuar mudando.” (R.M, 15 anos)
Para que eu me definir, se cada pessoa me define de uma forma diferente...Muitos insistem e me
perguntam a mesma coisa, como você se define? Se eu disser que me defino como uma pessoa
legal, chata, animada e realista, será que a forma como me definem e mesma que a minha? Será
que muitos me definem do mesmo jeito que eu me defino? Claro que não. (H. B, 14 anos)

A partir desses depoimentos, pode-se deduzir que o sujeito-aluno tem uma visão fragmentada e
descentralizada sobre si mesmo, fato que vai denotar a criação de discursos variados construídos por ele. A partir
das falas acima é possível perceber que esse sujeito se constitui enquanto fluidez e mutabilidade. Nada permanece
por muito tempo, sendo constante somente a criação de novos discursos.

Desse modo, é possível afirmar que a escola deve ser órgão fundamental para possibilitar o
desenvolvimento do indivíduo em todas as suas esferas, fazendo uso dos elementos que tem a sua disposição, em
busca de uma educação cada vez mais integrada com a realidade do aluno. A função social da escola está assim
relacionada à prática das relações sociais estabelecidas entre os homens. Dessa maneira, esta deve preocupar-se
com a formação dos sujeitos históricos que nela se encontram e as relações estabelecidas entre os indivíduos nas
diferentes esferas de sociabilidade. A escola, de acordo com LIBÂNEO (2011), ainda se mantêm como instituição
necessária para o dinamismo social. No entanto, a escola precisa rever alguns panoramas problemáticos em sua
configuração pedagógica. Deve-se pensar, portanto, de qual escola se fala quando pensamos em um processo de
aprendizado qualitativo e consciente. Para Libâneo (2011):

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195

A escola com que sonhamos é aquela que assegura a todos a formação cultural e científica para
a vida pessoal, profissional e cidadã, possibilitando uma relação autônoma, crítica e construtiva
com a cultura em suas várias manifestações: a cultura provida pela ciência, pela técnica, pela
estética, pela ética, bem como pela cultura paralela (meios de comunicação de massa) e pela
cultura cotidiana. (p. 10)

Apesar disso, é possível perceber que a escola, dentro dos atuais contextos, ainda mantêm práticas
tradicionais de transmissão/assimilação de conteúdos, desconsiderando a autonomia crítica dos estudantes, as
produções de subjetividades e as relações com o cotidiano. Portanto, o processo de aprendizagem torna-se
insuficiente, devido ao fato de não abarcar as necessidades básicas por quais cada aluno vivencia em sua
singularidade. Mais do que repetir conteúdos, o espaço escolar deve possibilitar situações de ensino onde o aluno
seja protagonista crítico dos diversos processos pessoais e sociais de desenvolvimento.

É preciso que a escola contribua para uma nova postura ético-valorativa de recolocar valores
humanos fundamentais como a justiça, a solidariedade, a honestidade, o reconhecimento da
diversidade e da diferença, o respeito à vida e aos direitos humanos básicos, como suportes de
convicções democráticas. (LIBÂNEO, 2011: p. 11)

A escola deve buscar desenvolver o seu programa de ensino apoiada no pensamento de que os alunos
devem apropriar-se criticamente da realidade e serem, portanto, capazes de modos de agir para a liberdade e não
o treinamento e aceitação dos contextos de opressão e massacre sociais que ocorrem nas dimensões do corpo e do
pensamento, atingindo vários aspectos da vida cotidiana. É preciso reinventar o espaço escolar de forma que os
alunos também aprendam a ser mais inventivos, evitando a repetição dos padrões oferecidos, fornecendo
possibilidades de recriar o mundo e o real.

Para Barbosa (2008), “a arte na educação contrapõe-se às supostas verdades educacionais e às mais
suspeitas ainda certezas da escola” (p. 12). A própria natureza da arte estaria em contrassenso com os impactos
negativos da escola na vida dos sujeitos. Será preciso romper com as barreiras que encobrem a arte no espaço
escolar e buscar revolucionar a realidade de descaso e desvalorização com que essa disciplina é tratada na dimensão
pedagógica.

4. Self, Discurso e Teatro: Processualidades

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Imagem 115- Início da ação. Recepção do público no momento: “Mágica da Cena”

Um galpão vazio nos fundos da escola, lugar destinado às realizações das aulas práticas do curso
técnico em Eletrotécnica. O espaço utilizado não poderia ser mais significativo, devido ao fato de que foi nele que
conseguimos desenvolver a maior parte do processo. Aos fundos do grande prédio da escola, onde as nossas
oficinas não poderiam incomodar ninguém, neste espaço compartilhamos a “instalação performática” que reuniu
projeções audiovisuais, fragmentos de textos, objetos expostos e algumas cenas do nosso Self.

A cena-self sempre se construiu como um processo em processo, onde as perspectivas de apresentação


não tinham a pretensão em mostrar algo pronto e finalizado ao público, mas de compartilhar alguns fragmentos
desse processo com os espectadores, fazê-los também construírem algo que por sua própria natureza não poderia
ser mostrado enquanto pronto, já que o material de montagem tratava-se de algo dinâmico, envolvido no fluxo
ininterrupto das experiências. Fugindo de uma perspectiva de espetáculo convencional de teatro, aproximando-se
mais das novas linguagens contemporâneas, firmou-se a partir de referências híbridas principalmente a partir da
investigação do Teatro e da performance16, buscando uma processualidade mais performativa. O inacabado e o
processual substituíram a estabilidade e o acabamento do processo, gerando espaços de quebras de modelos e
abertura para a discussão da cena.

Ao chegar do lado externo ao galpão, os atores eram recebidos de forma peculiar: um aluno que se
diz mágico, mas não sabe tanto de mágica (Imagem 01). A partir da mágica, o aluno vai dando algumas informações

15
Fotografias de Ramó Alcântara
16Embora o processo seja uma pesquisa teatral, os conceitos e características da arte da performance permearam toda a ação
cênica, trazendo um teor performático que condiz com a cena teatral contemporânea. De acordo com COHEN (2013), a
performance é uma arte de fronteira que “rompe convenções, formas e estéticas, num movimento que é ao mesmo tempo de
quebra e aglutinação” (p. 27). A performance, considerada uma ação híbrida permite pensar e discutir, a partir dos elementos
estéticos, questões políticas, ideológicas, sociais, questões de identidade, etc. Para CARLSON (2009), seus praticantes não
criam personagens, mas baseiam seu trabalho em suas próprias experiências e corpo. deste modo, a performance tem sua
ênfase no Self.

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e fazendo reflexões sobre o processo, enfatizando as experiências dos alunos em um processo singular, onde cada
um vai colocar um pouco sobre suas vivências e discursos. Deste modo, em uma atmosfera de interatividade, esse
mágico ‘torto’ realiza alguns de seus truques para um público que espera ansioso o momento de entrar no galpão.
Vendo que o aluno tinha se empolgado na realização de suas mágicas, um dos performers que estava dentro do
espaço de apresentação, sai de forma imprevista e diz que já está na hora de começar a ação.

Aos risos e estranhando essa atmosfera embaralhada, o público entra no galpão e, sob a luz de várias
lanternas (projetadas pelos atores) se depara com a instalação do processo: vários objetos expostos, espalhados
pela sala (livros, roupas, objetos, brinquedos, cds, etc) que foram trabalhados numa perspectiva conceitual na
segunda ação do processo, já apresentada na introdução do trabalho. Além dos objetos, os escritos dos alunos
vieram a tona, advindos de entrevistas, exercícios semi-estruturados e avaliações escritas do processo, estando
disponível no corredor do galpão para o espectador que quisesse ler17. Fotografias do processo, vídeos e fotos dos
arquivos pessoais dos atores foram projetadas, momento que teve como fundamento o ato de compartilhar, a
partir da imagem e do objeto, o que foi vivenciado nas etapas de desenvolvimento do processo self.

Ao entrarem no segundo espaço, onde aconteceria a maior parte da apresentação, o ambiente


encontra-se em estado de desordem, com vários objetos espalhados pelo chão, uma caixa de madeira escrita “Self”,
luzes à mostra, roupas, objetos de cena. Tudo estava ali, sob olhar do espectador (Imagens 2 e 3). Este
acompanhava curioso todas as ações, vivia o processo no momento da apresentação dele. Nas paredes do galpão,
algumas perguntas estímulos, que nortearam algumas etapas processuais, a título de exemplo: “Quem sou eu”?
“Será que eu me conheço”? “Eu nunca vou saber quem sou”, entre outras.

Imagem 3- “Memórias nossas e de mim”

Em quase 50 minutos de apresentação as cenas estabeleceram relações com o que aconteceu em


processo, interligando-se aos exercícios, ideias, estímulos trabalhados. As cenas foram permeadas por memórias
singulares na constituição de seus discursos, como já falado anteriormente, onde eles refletiram sobre diversas
questões/temáticas que atravessaram as cenas: As relações com a escola: o que era a escola, o que representava na
experiência de vida deles; Como eles se viam subjetivamente, fora do que a sociedade esperava deles? Quais anseios,

17
Alguns dos materiais escritos estarão nos anexos do trabalho.

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medos, perspectivas, sonhos, vontades, etc.; a relação com as paixões; as questões do corpo: o que é o corpo?
Quais interferências esse corpo sofre na escola? Relação vida/arte: os alunos traziam seus encontros com a arte ao
longo de suas histórias de vida e como essas experiências foram importantes para constituí-los enquanto sujeitos.
Sugerindo a participação do espectador, os atores descreviam e problematizavam esses e outros aspectos do
processo.

Nas primeiras propostas de cena, dentro da primeira etapa do processo, onde os participantes eram
estimulados a pensar o discurso a partir do “Quem sou eu?”, um dos alunos trouxe alguns objetos, um figurino,
colocou uma peruca, ligou a caixa de som e começou a dublar de maneira que todos riram dada a autenticidade
daquele momento. Durante a avaliação daquele dia, o ator falou que não conseguia pensar em nada sobre a
pergunta que eu havia feito, que não conseguia pensar em nenhuma cena, e que por isso resolveu trazer uma
performance que ele faz no cotidiano dentro do próprio quarto para ninguém ver: dublar e transformar-se em
outro. Para este aluno, o ato de transformar-se, de fingir ser aquilo que não é, de investir na transformação, diria
mais sobre ele do que um texto escrito.

Imagem 5- Arquivo pessoal do ator (imagem projetada na instalação)

Outra aluna disse que queria falar sobre ela fugindo dela mesma, mas almejando aquilo que ela
gostaria de ser: vestiu um vestido de festa, usou um salto muito alto, soltou o cabelo (que nunca solta), começou a
andar no palco com bastante imponência e começou a falar pra uma câmera sobre fatos triviais da sua vida como
se fosse a coisa mais importante do mundo, assumindo o papel de uma grande celebridade. A partir desse e de
outros impulsos começamos a perceber que o Self estava mais relacionado em muitos casos a uma ironia, à nossa
indecisão, ou aos aspectos menos discutidos sobre nós mesmos do que uma fala expressamente clara ou clichê
sobre quem somos nós. A ação do corpo, neste sentido, teve um teor poético mais expressivo do que a da
linguagem.

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A ação desenvolveu-se em espaços diferenciados, ressaltando tanto a dispersão espacial quanto


sensível, pois buscou desconstruir a lógica da ação, promovendo uma quebra de sentidos pra o espectador, onde
ele estabelecia, a partir de sua visão da cena, o que aquele espaço lhe fazia referência, fazendo-o refletir sobre a
razão do espaço escolhido para a realização da ação. Isto proporcionava mais que um deslocamento físico que
pretende tirar o público da ‘caixa’, mas um deslocamento conceitual que provoca ‘dissensualidades’. De acordo
com Vinhosa (2011): “a relação com a obra põe face a face duas singularidades, artista e público, que, por um
momento, e apenas por um momento, se tornam cúmplices na experiência do sentido que realizam juntas”. (p. 49)
De tal modo, como resume as palavras de um dos atores: “As cenas que eram apresentadas tinham diversos
sentidos: para aquele que estava apresentando, para os outros atores e pra o público. Como as cenas eram muito
“pessoais”, o sentido modificava. Só a pessoa que escreveu ou que viveu aquilo, sabia exatamente o que
representava pra ela”. (V.C, 16 anos). Por este efeito, somente o público que via aquela cena sabia o que para ele
representava, este se via impulsado a interpretar pessoalmente aquela situação. De tal forma, a obra amplia-se,
gerando infinitas experiências de sentido, escapando a qualquer limite imposto e se lançando no mundo.

4.3 Self, processo e público: por uma poética de si e do nós

O processo da cena-self promoveu um intercâmbio de ideias entre os participantes, uma troca


profícua de experiências, sem necessariamente chegar na dimensão da ‘moralidade’, mas de discutir abertamente
sobre várias questões que nem sempre são postas em discussão nos espaços cotidianos sem as pressões ou as
concepções que se esperam que tendem a responder o eterno questionamento: “Quem sou eu?” visto por mim
mesmo ou mesmo de compreender como posso ser melhor em relação a mim, ao outro e ao meio em geral em
que estou inserido.

Indo de encontro com os anseios do contemporâneo, a obra cênica mais importante do projeto
constitui o desenvolvimento da aprendizagem teatral dada em processo, bem como a criação de um espaço de
debates importantes sobre as subjetividades e as experiências de cada um. Isto remonta a questões iniciais acerca
da aprendizagem teatral na escola. O teatro não deve ser visto somente a partir da perspectiva da representação,
mas deve assumir o seu caráter político e dialógico dentro do espaço escolar, consistindo em um lugar onde os
alunos de fato aprendem sobre arte, o uso de novas linguagens e ainda discutem sobre realidade e experiências. A
partir de considerar o teatro enquanto obra em processo damos a ele um lugar específico na aprendizagem,
conferindo a esta arte o seu caráter de conhecimento e de construção do sensível. De fato, a arte se encontra na
“intenção” de ser e não necessariamente em seus resultados, indo de encontro ao pensamento de Vinhosa (2011),
quando este diz: “Antes de visar conclusões, o processo do artista se atém a experiência em si” (p. 43), sendo este
um de seus alcances eminentemente pedagógicos.

No geral, a atividade artística constitui-se enquanto um “jogo de formas”, que não permanecem os
mesmos para sempre, que se modificam, que assumem diversas facetas em contextos diferentes, tal como é o
próprio sujeito. Somos constituídos dessas mudanças, dessas desavenças de desejos, dessas centelhas de dúvidas,
de nunca estarmos disponíveis a sermos um só e a agir de determinada maneira o tempo todo, do ser fragmentado.
O que é potente dentro deste processo é a busca por habitar melhor o espaço da vida e não simplesmente a

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apresentação deste espaço de forma corriqueira e banal. De nada vale a representação pela ‘representação’, mas a
vivência real daquilo que se pretende compartilhar enquanto experiência. Ou, no caso do processo, reconstituir
reflexivamente estas experiências, disparando formas de discursos a partir delas.

Para Vinhosa (2011) não existe nada de ordeiro e organizado no mundo, embora nós precisemos ter
a falsa ilusão de que temos o controle. Sobre isso, Duarte Jr (2012) esclarece: “O mundo que construímos tem o
caráter de um todo unificado, ordenado. Evitamos o caos, a desordem. Vamos relacionando os eventos, a
desordem e as nossas percepções numa estrutura organizada” (p. 18). Continuando na mesma linha de pensamento,
Larrosa (2015), ao falar sobre experiências, faz alusão ao caráter de imprevisibilidade e vazio na experiência, não
sendo possível uma experiência organizada e unitária, pois enfatiza que “o real é infinito e, sobretudo, dinâmico,
caótico, fragmentado, e sempre inunda qualquer pretensão da linguagem em abarcá-lo, unificá-lo, fixá-lo,
simplificá-lo, compreendê-lo e ordená-lo”. (p.89)

Conforme o pensamento do autor, confirmamos dentro do processo que os alunos traziam questões
provocantes a partir de suas experiências, fato que foi emblematizado pela fala de um dos alunos no laboratório
‘autobiográficos’ que disse não possuir nenhuma experiência marcante na vida e que não se lembra de muitas coisas
de suas experiências dado a como elas são insignificantes. A partir desse posicionamento, podemos pensar também
na perspectiva de que a insignificância da experiência já poderia gerar experiências, mesmo que esse estado da
insignificância o tenha feito pensar que ele estava vazio. Esse vazio da experiência está impresso na vivência
cotidiana. No campo institucional escolar podemos perceber a assepsia de afetos que a escola promove muitas
vezes na pretensão de que seus alunos se tornem bons estudantes, com uma prática baseada no tecnicismo da
educação que leva os estudantes a assumirem acriticamente os conteúdos da escola. A partir daqui podemos discutir
a respeito desse espaço de vazio de experiências, entendendo esta a partir da perspectiva de Larrosa (2015) quando
este diz que experiência “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca” (p. 18). O que possibilita esse vazio? Como a arte pode operar em vistas de proporcionar
estas experiências? Diante dessas questões podemos afirmar que a participação desses alunos em um processo que
permite pensar o lugar da experiência enquanto discurso, oferece possibilidades para que eles compreendam quais
os sentidos que possuem suas experiências dentro dessas construções do sujeito, em vistas de levá-los a refletir a
respeito do impacto que tem as experiências que os atravessam sobre suas histórias, buscando transformá-las.

De fato, as perguntas motivadoras do processo de laboratórios, presentes nas entrevistas


semiestruturadas, ganharam espaço na apresentação deste e até agora ecoam sem nenhuma resposta acabada: Será
que me conheço?; Quais as singularidades que fazem-me ser quem sou?; Existe espaço para a subjetividade na
sociedade atual?

Todas essas problemáticas provocam um inacabamento altamente estimulante e essencial no


processo, visto que o projeto self não visou a formulação de respostas, mas procurou propor reflexões para que o
aluno tenha uma criticidade em relação à seus discursos e à realidade que o cerca. Diante disso, o processo self
esteve norteado pelas dúvidas, incertezas, desvios e pela busca constante de conhecer a si mesmo, a partir da
construção ou desconstrução do ser. Enquanto sujeitos constituídos de memórias, estas marcam a maneira de ser
do sujeito, constituem sua personalidade, formam e os transformam o tempo todo (LARROSA, 2015).

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De fato, a arte tem essa característica movente de fazer ressoar tudo aquilo que é pessoal, nos
fazendo perceber tudo o que está ao nosso redor, nos impulsionando a desconstruir os sentidos cotidianos que a
gente diz conhecer, redimensionando nossas certezas e seguranças. Para André (2007), “a arte “pensa” pela lógica
da transgressão, ela é risco, dissolve, abala, nega”.

No processo Self, podemos enfatizar a importância que carrega a construção cênica quando
oportuniza possibilidades para pensar e problematizar sobre nossas vivências, em um processo rico de trocas,
compartilhamentos, relações. A força desse projeto e as reflexões geradas por ele operam sentidos do meu fazer
artístico-pedagógico dentro da escola, contribuindo para discussões que repercutem na minha prática como
professora, como estímulo para pensar os espaços subjetivos, relacionais e experienciais gerados pela arte. A partir
do processo, então, refletimos questões da vida e da própria arte, com processualidades que nunca demarcam o
acabado, mas que sempre dão margens para a continuação e mudança constante. Afinal, os discursos mudam o
tempo todo, visto que os contextos e suas redes de poder também mudam constantemente exigindo uma atenção
contínua ao meio sociocultural no qual se habita.

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SABERES COMPARTILHADOS: Pedagogia das Experiências Territoriais e


Poéticas com jovens da Barra do Ceará

Roberta Bernardo da Silva


betaberna@gmail.com
Instituto CUCA

Resumo A intenção deste projeto é dialogar sobre a compreensão da construção de identidades, afetividades,
territórios dos jovens da Barra do Ceará e desenvolver reflexões sobre os saberes das juventudes, que compõem o
grupo de teatro e dança do CUCA Barra – Fortaleza a partir das práticas em educação popular. Influenciado por
táticas onde o ser humano repensa seu fazer diário, que se pretende potencializar modos de invenção para
construção de saberes e histórias do bairro. Uma inquietação que move esta pesquisa é a seguinte questão: o que
há de poético para transformar os modos de vida dos jovens na Barra do Ceará? A investigação é de caráter
etnográfico na pretensão de relatar sobre a questão anterior e terá três frentes de relatos com jovens da Barra,
moradores do bairro e funcionários do equipamento CUCA. Assim, serão acompanhados e analisados os diários
de percursos afetivos, as caminhadas à deriva pelo bairro, os laboratórios teóricos, práticos, artísticos e
pedagógicos, como a montagem de uma instalação artística itinerante. E por fim, efetivando, outras histórias para
refletir sobre a formação humana, poética e estética dos jovens na Barra do Ceará.

Palavras-chave: Territórios. Identidades nas Juventudes. Arte enquanto Saber.

Abstract The intent of this project is to dialogue on understanding the construction of identities, affectivity,
territories of Ceara Bar youth and develop reflections on the knowledge of youths, who make up the theater group
and dance CUCA Barra - Fortaleza from practices in popular education. Influenced by tactics where the human
being rethinks her do daily, which is intended to enhance the invention of ways to build knowledge and stories of
the neighborhood. A restlessness that drives this research is the question: what is poetic to transform the lifestyles
of young people in Barra do Ceará? The investigation is in ethnographic claim to report on the previous question
and will have three fronts reports with young people from Barra, the neighborhood residents and staff of CUCA
equipment. Thus, the daily affective pathways will be monitored and analyzed, walks to drift through the
neighborhood, theoretical, practical, artistic and educational laboratories, as the assembly of a traveling art
installation. And finally, effecting, other stories to reflect on the human, poetic and aesthetic of young people in
Barra do Ceará.

Keywords: Territories. Identities in Youths. Art as Knowledge.

1. Reconhecer o território que somos

Tendo como foco principal as juventudes da Barra do Ceará18, será ressaltado uma das recentes
políticas públicas que veio para potencializar a diversidade de ações que os jovens podem atuar, a
construção do CUCA Barra. Este é regido pela Coordenadoria Especial da Juventude de Fortaleza, onde
existem algumas possibilidades de formação na área artística, social e esportiva.

O público, alvo de muitas expectativas, normalmente, encontra-se repleto de curiosidades e


tendo possibilidades é perceptível que as identificações e os saberes deste jovem é despertado e efetivado.

18 . Barra do Ceará é considerada o bairro mais antigo da cidade Fortaleza e o segundo mais populoso. E mesmo tendo uma fama,
massiva, de que é um dos bairros mais violento da Capital, na Barra há belezas, como o pôr do sol no rio Ceará em encontro com o Mar da
praia da Barra e uma comunidade que luta para construir modos de vida.

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E mesmo tendo bastante acesso de muitos jovens no equipamento citado, ainda é registrado a não
ocupação do bairro, das praças, das ruas da Barra do Ceará, onde o CUCA Barra se encontra.

Diante disto, esta pesquisa, realizado com o apoio do CUCA Barra, se dispôs a habitar o bairro
citado como ruas, feiras, rio, mar, praias e seus diversos caminhos de chegada e saída do CUCA Barra,
com a proposta de perceber o que afeta a cada um desses jovens artistas nos lugares citados para poder
refletir sobre territórios e identidade. Território enquanto lugar que os jovens habitam e identificações,
afetações.

Em diálogo com a obra A Invenção do Cotidiano 1 - Artes de Fazer de Michel Certeau (2014), que
aborda estratégias e táticas em que o ser humano pode reolhar e repensar modos de elaborar o cotidiano,
evidenciando ações singulares nas escolhas que vivem, que foi explorado olhar sobre as possibilidades
poéticas e estéticas na pretensão de vivenciar, perceber e analisar as práticas das linguagens artísticas,
dança e teatro, enquanto saber e experiência formativa na vida dos jovens envolvidos no projeto-pesquisa.

Assim, tateando os modos que cada jovem tece suas vidas humanas e artísticas, que serão
ressaltados neste artigo os meios de evidenciar reflexões críticas sobre identidade, o lugar que cada um
pode ser e sobre o território que é habitado.

Este recorte é feito nesta pesquisa, pela necessidade de compreender o percurso formativo
estético e humano dos jovens em contato prático com a dança e o teatro na Barra do Ceará, como ainda
para que o ato de dançar e fazer teatro possa direcionar questionamentos, reflexões e percepções sobre
cada um/uma, sobre o entorno de si e como construir outros modos de vida como, por exemplo, para o
que veio cada jovem, qual sua origem, classe social, ideologia, o que move o seu cotidiano, quais são os
afetos que compõem sua história?

Com uma investigação por meio de aparatos etnográficos, este estudo foi desenvolvido com
propostas de observação, análises de entrevistas, escuta, conversas, acompanhamento das atividades
cotidianas no grupo de dança e teatro no bairro.

Deste modo, esta pesquisa se propôs a ação-refleção-ação tanto aos jovens do grupo de teatro
e dança do CUCA Barra, quanto a mim, ao habitar a Barra do Ceará, criar outras possibilidades de
percepção, de reflexão, de pausa, de criação e de questionamentos na intenção de potencializar a
formação humana e estética das juventudes da Barra. E os componentes que já moram no bairro a
despertar estes estados de reflexão crítica.

2. Sobre territórios que habitamos

Partindo do entendimento da Lei 12.852 encontrada no estatuto da juventude, seção IX - Do


Direito ao Território e à Mobilidade, Art. 31 “o jovem tem direito ao território e à mobilidade, incluindo

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a promoção de políticas públicas de moradia, circulação e equipamentos públicos, no campo e na cidade.”


(2013, p. 34). Assim, deste lugar de entendimento que esta investigação acompanhou as ações artísticas
aliadas a política pública CUCA Barra em curso pelo bairro para compreender e potencializar a circulação
dos jovens artistas na construção dos seus conhecimentos.

Contudo, a mobilização pela Barra, mesmo sendo de fácil acesso não foi tão simples pelo fato
dos conflitos entre alguns grupos de jovens, que demarcam seu poder sobre a comunidade através da
determinação de onde e quem pode caminhar por uma rua ou não. E ao realizar leituras sobre a Pedagogia
da convivência de Jares (2008) onde é relatado sobre conflitos em sala de aula e na comunidade escolar,
percebemos que uma das salas de aula que estou acompanhando são percursos do CUCA Barra ao Vila
do Mar, e nestes os conflitos e riscos são constantes, pelo fato do encontro dos códigos do bairro com
as práticas do grupo. Mas, Jares (2008) aponta estratégias para favorecer a convivência e neste caso este
estudo percorreu a Barra na busca por aproximação, transformação e empoderamento entre juventudes
e territórios habitados.

Como a dança e o teatro podem ressignificar o dia a dia a partir de estratégias criativas, que
esta pesquisa defendeu as linguagens citadas enquanto saber na produção de discurso dos jovens do
bairro. Pois, o bairro em questão é dito pelas mídias como um lugar apenas de facções e violências, mas
precisamos ressaltar o que presenciamos ao habitar a Barra como as senhoras das calçadas, as crianças
aprendendo a andar de bicicleta, jovens andando de skate, grupos de música ensaiando, outros jogando
bola dente outros. Cidadãos estes, que podem ser evidenciados narradores e não apenas peças das
histórias da Barra.

Diante disto, ressalto sobre a relevância de compreender a construção da identidade nas


juventudes que compõe o território supracitado. Quando discorro sobre território, digo do geográfico
periférico, Barra do Ceará, como os territórios simbólicos de cada jovem, como e onde este se percebe e
se constitui, é quando há o diálogo com a identidade juvenil.

Por exemplo, quando Hall (2006) discorre sobre identidade na pós-modernidade faz com que
seja possível se pensar sobre as influências que atravessam um ser e o compõe, assim como podemos
refletir sobre o que o autor diz abaixo:

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando
fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as
paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
“necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças
estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos
em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL,
2006, p.2)

Associando o indivíduo as suas práticas culturas, sendo artísticas e de modos de vida cotidiana
em relação as instituições que o ser se encontra ligado, ressaltado por HALL (2006), que foi possível

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analisar as fragmentações do que identifica cada jovem da Barra, logo o território habitado pode ser um
lugar simbólico ou subjetivo, como as cores, um outdoor, um bom dia de um transeunte, uma expressão
dançada, falada, pode ser um lugar, mesmo de modo fragmentado, pode formar um indivíduo.

Certeau (2014) diz que a invenção é limitada, contudo, até se chegar a este limite há muito para
ser investigado. Por exemplo, o poder da palavra dita por um jovem após uma percepção, os seus
movimentos, a sua escrita, a imaginAção dialogada com a sua história, as suas afetações faz que ocorra
uma mudança na sua identidade, como ainda, em quem está neste movimento no seu entorno.

O grupo de dança e o teatro propõe-se construir discursos, produção de lugares, de relações e


de criticidade ao se perguntar qual fala, ou escrita ou movimento cada um/uma se identifica. Ou o que
os afeta nos seus percursos. Deste modo, a dança teatralizada foi tecida e preenchida de sentidos dos
próprios jovens.

Quando é apostado nas duas linguagens artísticas citadas é porque se acredita que por meios
destas seja possível um olhar para si a partir do entendimento de saberes que se fazem presentes no
agrupamento de dança e teatro no CUCA e na Barra. Podendo, inclusive pensar no arsenal cultural
acessado por esses jovens. E em diálogo com o que expõe o conceito de capital cultural em Bourdieu
(1979, p.3), que este grupo, de algum modo poderá reverberar de outras maneiras tanto em si, quanto no
bairro:

O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, ou seja, sob a forma de
disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais -
quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas, que constituem indícios ou a realização de
teorias ou de críticas dessas teorias, de problemáticas, etc.

Este conceito aplicado a educação escolarizada é tido como arbitrário dominante e quando
os educandos não têm acesso a estas práticas através de seus familiares, são considerados os
desfavorecidos. Assim, trouxe este pensamento para um bairro da periferia de Fortaleza, onde a
acessibilidade a diversas culturas são escassas.

Deste modo, o artigo SABERES COMPARTILHADOS – Pedagogia das Experiências


Territoriais e Poéticas com jovens da Barra do Ceará, alcançou em média vinte jovens nas práticas de
dança e teatro, como ainda na ação de despertar e desenvolver um olhar crítico reflexivo sobre suas
experiências, transformando, assim os modos de trilhar os seus percursos formativos.

3. Problemáticas presentes nos territórios

Para pensar sobre identidade e território é preciso analisar diversos elementos como aspectos
econômicos, sociais, visuais, religiosos, culturais, arquitetônicos dentre outros. Deste modo,
midiaticamente, a Barra do Ceará tem um status identitário, por um lado por suas praias, pelo Rio Ceará

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e por outro por sua vulnerabilidade e violência. Entretanto, o bairro vai além dessas fronteiras e traz
consigo diversos afetos que a pesquisa deseja desvendar, potencializar e reinventá-los.

Mas, como, artisticamente e de modo analítico, despertar identidades, recontar histórias de


como chegar e sair de um território periférico onde os afetos estão, aparentemente, adormecidos?

A formação de identidades – sejam elas culturais, territoriais ou visuais – está enraizada no


contexto social, coletivo e histórico de cada localidade. É um processo de produção simbólica e
discursiva, que busca realçar as características e valores próprios de cada lugar, em contraposição
aos elementos representativos de outras culturas. Como mencionado, são essas identidades que
dão personalidade aos lugares dentro de um contexto global. (TAROUCO; REYES, 2011, p.3)

Se for percebido a olho “nu” pode ser identificado que a Barra do Ceará, não é muito diferente
de outros bairros, é composto por suas avenidas, ruas, pichações, escolas, mercantis, esquinas, bares,
imagens, lembranças, cheiros, cores, encontros, desencontros. Logo, obtêm em si as características da
sua identidade, expostas por diversos dispositivos. E o diferencial identitário deste bairro é a existência
de um equipamento enquanto política pública, o CUCA Barra, que precisa e está se propondo, enquanto
ação artística educativa, dissolver-se na comunidade, dado que o equipamento foi elaborado para este
fim: servir a comunidade Barra do Ceará.

Diante disto, muitas perguntas inquietaram esta prática como, por exemplo, quais os elementos
que compõem este bairro que podem servir como material para a construção de identidades? Como?
Quais os seus percursos diários e afetivos? Como estes jovens se percebem e são percebidos pelos
funcionários do CUCA e pelos moradores do entorno do equipamento? Como falar das afetividades de
uma periferia em estado de vulnerabilidade? Como criar uma rede de lugares a partir dos percursos
afetivos de cada jovem em diálogo com os territórios deste bairro?

Estas questões moveram esta pesquisa, talvez pelo meu desejo movente em gerar encontros,
proporcionar visibilidades de saberes que, aparentemente, estão adormecidos e de potencializar a vida da
comunidade Barra.

Deste modo, tivemos enquanto objetivo geral compreender os modos que o grupo de teatro
e dança do CUCA Barra desenvolvem seus processos artísticos pedagógicos, tendo como foco a educação
popular junto aos territórios e as juventudes para depois analisar e refletir, criticamente as maneiras que
o grupo compartilha os seus saberes para potencializar a formação humana, poética e política das
juventudes da Barra do Ceará.

4. Referencial teórico – o cruzamento dos territórios

Partindo do pressuposto que a obra A invenção do cotidiano 1 – arte de fazer é um campo de


reflexão sobre o modo que somos produzidos dentro de um sistema de consumo seja imagética,

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individual, territorial ou global, que a invenção nesta pesquisa foi cunhada neste aporte em diálogo com
o que cada jovem percebe e quis produzir, mostrar e ser enquanto indivíduo e coletividade nos lugares
que habitam, pois

a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes,


e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo
“imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre
“em processo”, sempre “sendo formada”. (HALL,2006, p.10)

Deste modo, a intenção foi acompanhar as percepções dos jovens, o que é identificável, o que
os forma, o que os atrai no dia a dia para poder imaginar, criar outras possibilidades nos entornos e
percursos do/para o/a CUCA Barra para refletir sobre os inacabados que cada um/uma pode ser.

A pesquisa partiu, poética e esteticamente, do lugar da produção de gesto. Este sendo livre,
codificado, abstrato veio preenchido de sentidos para quem o realizou, dado que as motivações para que
estes tenham sido realizados foram as suas próprias identificações, os seus afetos. “Os gestos e
movimentos desdobrados pelos afetos de vitalidade não precisam ser explicados para serem
compreendidos: contêm em si o seu sentido e o seu dispositivo de descodificação”. (GIL, 2004, p.87).
Percebo este pensamento como uma possibilidade de comunicação clara em que por si não carece de
auxílio para que se efetive a metaforização poética de um afeto, de uma necessidade.

GARAUDY (1980) defende, por exemplo, que o ato de dançar é um modo de vida. E eu
acrescentaria que o dançante precisa se tornar o que dança, que de modo prático, a obra “Dançar a vida”
de Roger Garaudy, publicada em 1980, aponta que desde os primórdios da sociedade que é a partir da
dança que o ser se encontra e ou se afirmar enquanto pertence a uma comunidade. Pode-se, inclusive,
fazer analogias as tribos, aos guetos, aos coletivos e agrupamentos em si, onde cada qual constrói uma
dança, um código, saberes, características em comum que identificam os componentes desses lugares.

Assim, este estudo cruzar os pensamentos moventes, às inquietações do porquê os jovens


procuram o equipamento CUCA Barra para realizar uma atividade artística e quais as relações possíveis,
existentes e ou adormecidas com a Barra do Ceará.

Outro aliado forte é o teatro, dado que o grupo onde foi desenvolvido este estudo aborda as
duas linguagens. Com o teatro foi estabelecido um diálogo com a obra de um diretor teatral, formador
Polonês Jerzy Grotowski, que dedicou sua vida em sistematizar e desenvolver um teatro chamado “Em
Busca do Teatro Pobre”, traduzida no Brasil em 1987. Esta obra, por se tratar de encenações que se
bastavam em atuações corporais, ritualísticas, intimistas e com base em ações físicas através de
laboratórios práticos, sem a necessidade de cenário, adereço, iluminação dentre outros aparatos cênicos,
que foi um gerador de ações para analisar a construção de identidade e modos de ocupar, artisticamente,
o CUCA e a Barra.

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O desejo por esta prática foi ressaltado neste momento pelo fato de que existiu no grupo um
desejo de produzir uma instalação artística itinerante, que foi composta, prioritariamente, por corpos
vivos e preenchidos de afetos, de identificações de cada jovem. Deste modo, foi possível tecer gestos
movimentados a materialidades enquanto objetos, ações físicas e falas. Como Grotowski (1987) não
considerou sua prática um método e sim possibilidades para que os seus atores pudessem encontrar suas
estratégias de treinamentos, os jovens puderam explorar o que o diretor deixou enquanto sistematização
para que fosse possível identificar os caminhos que direcionaram os conhecimentos e a produção em
arte.

Ao tentar costurar as inquietudes desta pesquisa, foi pensado e questionado sobre as cognições
que, possivelmente, foram produzidas na artesania cotidiana da dança e do teatro que foi produzido.
Piaget19 nos aponta a cognição como um campo de saber em que o indivíduo desenvolve percepções e
conhecimentos relacionando com a natureza, ao social e a si mesmo, na busca por organizar uma lógica
de vida. E quando é proporcionado diversas associações para pensar em invenções, este estudo dialoga
com a tese “A invenção de si e do mundo – uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da
cognição” da Virgínia Kastrup, publicada em 1999, que discorre sobre o processo formativo cognitivo
como um ato criativo que pode direcionar as potências do eu e do mundo. Assim, tanto os jovens
envolvidos neste estudo, quanto eu, que estou enquanto provocadora, pudemos investigar modos de
inventar lugares em si, no CUCA e na Barra, para poder dialogar com a cidade.

5. Procedimentos metodológicos – Como territorializar?

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo…


Por isso a minha aldeia é tão grande como outra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…
Fernando Pessoa (2005)

Assim como o poeta Fernando Pessoa, partimos do lugar da observação. No nosso caso de
como os jovens em questão se veem e veem o seu bairro-aldeia para uma compreensão de como estes se
percebem e narram suas histórias e percursos diários e como são agentes das suas identidades e territórios.

19 . Jean Piaget é um psicólogo suíço e desenvolveu a teoria da cognição em alguns estados sensoriais e motores. Esta descoberta
influenciou bastante professores e práticas educacionais.

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Os jovens têm entre 15 a 29 anos e compõem o grupo de dança e teatro do CUCA Barra.
Neste foi desenvolvido práticas artísticas pedagógicas de modo reflexivo e crítico, como ainda foi
coletado e analisado os relatos das juventudes.

O princípio metodológico deste projeto foi cunhado na etnografia onde

o(a) pesquisador(a) perde este lugar de “mal necessário” e se torna provocador de questões mais
pontuais sobre a vida das pessoas e dos grupos com as quais está dialogando, convidando-os a
pensar sobre o sentido de suas práticas cotidianas. No interior deste diálogo o(a) etnógrafo(a)
transforma, assim, os acontecimentos ordinários da vida dos indivíduos e/ou dos grupos com
os quais interage em evento extraordinário, promovendo entre eles o desafio de refletir
conjuntamente sobre si mesmos. (R0CHA; ECKERT, 2008. p.14)

Deste modo, analiticamente, correspondendo a uma abordagem qualitativa e de caráter


etnológico, os laboratórios práticos teóricos de partilha e construção foram utilizados como um locus de
coleta de materialidades20 e afetos dos percursos dos jovens, onde estes construíram seus percursos
afetivos para a composição e elaboração dos seus diários, para depois corpografar21 os mesmos.

Como ainda, realizaram o ato de compartilhar os seus saberes em grupo, suas vivências, seus
modos criativos. E diante disto, criar uma instalação artística itinerante, onde todos esses processos foram
analisados para perceber as identidades, a construção de conhecimento, as corpografias dos jovens em
relação aos territórios urbanos, periféricos da Barra do Ceará. Deste modo, partimos do entendimento
da Educação popular em Brandão (1984, p. 72), ao relatar que “a educação popular não é uma atividade
pedagógica para, mas um trabalho coletivo em si mesmo, ou seja, é o momento em que a vivência do
saber compartilhado cria a experiência do poder compartilhado.” Compreendendo este lugar de pensamento
que a base metodológica desta pesquisa, pode ser observada na ilustração a seguir:

20 As materialidades são os diários de percursos afetivos, composto por desenhos, fotos, colagens, escrita, objetos, cores, linhas,
dentre outras afetações capturadas pelos jovens no seu dia a dia.
21 É identificado como corpografar, o ato de desenhar movimentos com o corpo em relação ao espaço.

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Afetos
Percursos

Identificações Territórios

JUVENTUDES Experiências e ações


coletivas
compartilhadas

Cultura – ações
artísticas
Cultura – modos,
de vida, saberes
Teatro

Dança
ARTE EDUCAÇÃO
POPULAR

Ilustração 1 – Resumo gráfico metodológico da pesquisa


Fonte: Elaboração de Roberta Bernardo, 2016

E por fim, tecemos as histórias, as lembranças, as memórias estas podendo ser paradoxais,
assim como os fragmentos que constroem as identidades de cada indivíduo e lugar. Então, jovens que
não conheciam as histórias do seu bairro passou a conhecer, foi possível desconstruir a visão de apenas
violência massiva sobre alguns lugares na Barra do Ceará. Como ainda caminhamos, nos relacionamos
com a comunidade e construímos o nosso olhar junto ao território citado.

Hoje, as possibilidades e a relação dos jovens com o chegar e sair do equipamento CUCA
Barra é diferenciado. Mesmo que o perigo ainda existe, mas agora percebemos o perigo e as possibilidades
de todos os lugares. E quando nos referimos a um bairro periférico, claro neste existirá os perigos
oriundos dos periféricos que somos. O que não quer dizer que não exista brechas para inventar, construir
e transformar as poéticas adormecidas como sentar na calçada, transitar entre os territórios e assim,
inventar outros modos de vida.

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